quinta-feira, 21 de novembro de 2019

A Corrente Shaitanica


A MULHER ESCARLATE & A
CORRENTE SHAITÂNICA
DO AEON DE AQUÁRIO

Em Berlim todas as prostitutas se comportam como «mulheres de respeito»; Em Nova Iorque todas as «mulheres de respeito» se comportam como prostitutas. Reflexo: todas são prostitutas, de qualquer maneira.[1]

Por que escarlate? O termo Mulher Escarlate ou Prostituta da Babilônia é derivado de O Livro das Revelações. A cor escarlate, desde tempos imemoriais, tem sido associada a imortalidade. Esta era a cor da vestimenta cerimonial dos antigos sacerdotes e sacerdotisas fenícias e babilônias. Esta é a cor do sacrifício a Deusa Primordial, a cor do sacramento lunar desprovido de karma: O melhor sangue é da lua, mensalmente: em seguida o sangue fresco de uma criança, ou destilando da hoste do céu: em seguida de inimigos; em seguida do sacerdote ou dos adoradores: finalmente de alguma besta.[2] Escarlate é uma cor vibrante,[3] ¾ vermelho e ¼ laranja. Laranja e vermelho são as cores associadas a Hod e Geburah, ambas no Pilar da Mão Esquerda na Árvore da Vida. Acima de Hod e Geburah, no ápice do Pilar da Mão Esquerda, está Binah, o Grande Mar, associada a Babalon como a Deusa Mãe Primordial. Abaixo de Geburah e Hod está Malkuth, o Reino da Filha, a avātar da Deusa, conhecida como Mulher Escarlate. No Pilar da Mão Esquerda, a vibração ou fluxo é descendente, em direção à materialização.
As magistas thelêmicas, no curso da iniciação, se identificam com Babalon e o ofício de Mulher Escarlate. No entanto, Babalon e o Ofício da Mulher Escarlate são pouco compreendidos e, mais tecnicamente, aceitos. O Ofício de Mulher Escarlate exige uma ruptura total com as programações osirianas-crististas que as mulheres são expostas desde a infância no Ocidente. Assumir o Ofício de Mulher Escarlate e tornar-se Cingida pela Espada começa com uma carnificina interior, onde toneladas de programações culturais judaico-cristãs são retiradas das camadas mais profundas da mente inconsciente.
No entanto, a grande maioria das magistas thelêmicas não compreendem o processo preliminar de purificação que esta jornada inevitavelmente irá requerer. Ao invés disso, elas têm preferido pular este processo doloroso, no entanto, fundamental no alicerçamento de suas Fundações (Yesod). Essa esquiva demonstra não apenas a dificuldade de olhar para dentro e, silenciosamente trabalhar sobre si mesma. É a famosa patologia conhecida como esquiva da sombra. Mas Silêncio é a fórmula mágica atual do Aeon de Aquário, cujo caminho inevitável é o olhar para dentro. O Atu XVII, A Estrela, demonstra uma mulher nua. Ela tem um pé dentro da água e o outro fora. Ela derrama água de um jarro. Ás águas neste Atu representam o conteúdo da mente inconsciente e àquilo que flui dentro da mente de uma fonte superior. A Mulher no Atu XVII é a Alta Sacerdotisa da Estrela Prateada, a Filha-Heh ou avātar de Babalon como a Mulher Escarlate. Ela aprendeu a utilizar com sabedoria o seu corpo, intelecto, emoções, sensações e sentimentos como um Relicário Sagrado, não apenas como um recipiente adequado ao influxo arquetípico sutil que vem da Realidade além do Abismo, mas como um Sacrário seguro para esse influxo arquetípico abaixo do Abismo. A Mulher Escarlate age, portanto, como um fio de condução entre as forças que estão acima do Abismo e a Terra (Malkuth) abaixo. Não a considere, como muitos se levantam equivocadamente para dizer, apenas um peão para um arranjo de forças além da compreensão e que fluem pela imaginação ou intuição humanas. Não, muito pelo contrário, ela a artista ou arquiteta que os dirige e nesse ofício, ela dá nascimento na Terra (Malkuth) àquilo que está na mente (Chokmah) de Deus. Note que o Atu XVII conecta a Vontade do Logos em Chokmah com sua perfeita expressão abaixo do Abismo em Tiphereth.
Para assumir o Ofício de Mulher Escarlate, primeiro a magista thelêmica deve abraçar a corrente shaitânica – ou demoníaca – do Aeon de Aquário. Na Árvore da Vida, a parte do Sol (Tiphereth) que encara o conteúdo sombrio da vastidão negra do espaço é o Grau de Adeptus Minor (Interno) ou Adepto Interno. Na avaliação da psicologia moderna junguiana, é o momento em que o iniciado embarca em uma jornada pelas profundezas da mente inconsciente, trabalhando nas esferas de Tiphereth, Geburah e Chesed. Neste estágio da iniciação thelêmica, a LVX de nossa Estrela é mais arquetípica, alinhada a Consciência Universal (Chokmah), transmitindo a consciência individual (Tiphereth) lampejos da Verdadeira Vontade.
O Aeon de Aquário é regido por Hoor-paar-kraat que, segundo Aleister Crowley (1875-1947) é Had, Set ou Satã. Onde existe Luz, também existem Trevas. Mitologicamente, Satã é o Senhor do Ar. Este é o Elemento atribuído a Aquário. Hoor-paar-kraat ou Set é a parte sombria e oculta de Hórus (Ra-Hoor-Khuit). É uma infantilidade medonha tentar conceber Hórus como uma forma distinta ou separada de Set. Hórus representa a Luz-Consciência e Set a Sombra-Inconsciência. Diariamente todos nós lidamos com a dualidade Set-Hórus em nossas vidas, caos e ordem interagindo o tempo todo. Um exemplo simples: quando você está em uma fila no supermercado aguardando sua vez pacientemente, a Ordem-Hórus prevalece em sua consciência. Quando a rebeldia se instaura e você deseja passar na frente de todos e faz planos mirabolantes para isso, agindo em conformidade, Caos-Set reina em sua consciência.
Carl Jung (1875-1961) chamou de sombra o papel do conteúdo inconsciente da mente no dia-a-dia. Mas ele ensina que este conteúdo não é maligno, diferente dos nossos ancestrais que viam no papel de Set (Shaitan-Satã-Pã-Lúcifer-Sombra) uma qualidade essencialmente maligna. Jung ensinava que se o conteúdo sombrio do inconsciente for reprimido por noções religiosas e sociais comportamentais, ele pode se precipitar na mente superficial de maneiras destrutivas. Negar o conteúdo sombrio da mente inconsciente leva a sua projeção externa, quando projetamos a sombra naqueles próximos a nós ao invés de confrontá-la, abraçá-la, aceitá-la e então conduzir seu poder. É no conteúdo profundo da mente inconsciente que nossas qualidades inatas, boas ou ruins, residem. Esse conteúdo, nós temos o péssimo hábito de se esquivar, de se esconder dele, assim como o escondemos daqueles que nos cercam. No entanto, embora nos esforçamos para deixar a sobra fora do alcance dos outros e de nós mesmos, ela permanece ativa no inconsciente, projetando seu conteúdo, de tempos em tempos, criando um tipo de sub-personalidade autômata, o alter ego, que temporariamente toma conta da personalidade, algo conhecido na área da psicologia como possessão demoníaca, quer dizer, o conteúdo da mente inconsciente que se apossa da consciência.
No Aeon de aquário, o treinamento para assumir o Ofício de Mulher Escarlate começa abraçando o conteúdo shaitânico da sombra. Verdade seja dita, para qualquer iniciado thelêmico, subir pelos braços da Árvore da Vida significa abraçar a própria sombra. Assim, neste Novo Aeon a Mulher Escarlate não teme, renega ou encarcera o conteúdo da sombra. A Mulher Escarlate aceita a sombra como uma parte essencial e fundamental do processo de iniciação. No Aeon de Aquário cada um deve aprender a trabalhar com o conteúdo sombrio da mente inconsciente. O primeiro passo é reconhecer o poder destrutivo e tifônico da sombra quando mal compreendido e reprimido. Após este prístino reconhecimento, inicia-se o trabalho sobre a sombra, compreendendo-a, aceitando-a e então dirigindo-a para propósitos positivos, alinhados a Verdadeira Vontade, não as demandas desmedidas do Ego. Nos Mitos do Santo Graal, este trabalho é conhecido como redenção, quando o Reino torna-se novamente um campo fértil. Na Árvore da Vida, este trabalho é representado pelo Caminho de Ayin ou do Diabo, o Atu XV do Tarot de Thoth, debaixo para cima. É uma jornada pela escuridão até o encontro do Sol em Tiphereth. Este é o primeiro Caminho conectado a realização da Grande Obra alquímica que se divide em quatro etapas: nigredo, albedo, citrineto e rubedo. O Caminho de Ayin então se refere ao nigredo, a escuridão que implica putrefação. Este é o Caminho onde todos nós confrontamos a sombra e todos os aspectos de māyā (ilusão) que temos criado desde a infância. No sistema de Jung, trata-se do encontro entre o conteúdo demoníaco do inconsciente profundo com a personalidade consciente, quando a infância pode ser então resgatada e um crescimento sadio em direção a vida adulta pode ser conquistado. Este é um tema central no atual Aeon de Aquário.
Aceitar o conteúdo da sombra é tomar as rédeas sobre a própria iniciação e isso implica, acima de tudo, em liberdade. Este é outro tema importante no Aeon de Aquário. Quem são as aspirantes a Mulher Escarlate que verdadeiramente têm coragem para assumir com liberdade àquilo que de verdade são? É difícil, porque a pressão sociocultural ocidental cristista e osiriana é deveras poderosa e as mulheres, mesmo as aspirantes mais sinceras de espírito livre, se veem aprisionadas pelas correntes sutis do deus dos escravos. Mas se estando conscientes do processo a mente inconsciente ainda vive por programações judaico-cristãs, o Aeon de Aquário também inconscientemente tem impelido as pessoas a se rebelarem contra as correstes de sua escravidão.
Vagarosamente, enquanto a Criança Hórus cresce vigorosa no Novo Aeon, a humanidade tem se rebelado contra as instituições que tentam controlar a vida e ditar as regras espirituais. A verdade do outro tem, aos poucos, deixado de ser verdade para nós e os sacerdotes das religiões estabelecidas já não têm mais o poder de controle que tinham no passado Aeon de Peixes. Revolução tem sido o impulso inconsciente da humanidade no Aeon de Aquário, a era do opositor, o rebelde, Set-Satã. Chegamos em uma fase evolutiva da humanidade onde a regra tornou-se o individual ao invés do universal. Mas existe aí um perigo, porque o Aeon de Aquário também tem um lado sombrio, profundamente enraizado no individualismo e no narcisismo. Este é um caminho que pode levar a desconexão com nossa Fonte espiritual acima do Abismo. Em outras palavras, a introversão, arma mágica do Aeon de Aquário, deve ser utilizada não para fortalecer o Ego e o sentido de egoidade individualista, mas ao contrário, como uma ferramenta através do qual é possível se orientar ao interior na finalidade de conquistar o Universal individualmente, não coletivamente, como foi o caso da fórmula mágica – a fala ou projeção da Palavra – do Aeon de Peixes. A Corrente Mágica Aquariana do Novo Aeon nos leva para dentro, pois este é o Aeon da Filha-Heh, o complemento do Filho-Vav. Ele é Ra-Hoor-Khuit, o Deus Solar da Fala, o Hórus Externo que apresenta, coletivamente, a salvação. Essa era a Corrente Mágica do Aeon de Peixes. A Filha-Heh é Hoor-paar-kraat, o Set-Lúcifer-Satã-Prometeu Interno, àquele que produz a gnose individual. Como podemos ver, não se trata de um individualismo animal e degenerado que atende somente as demandas e devaneios do Ego, mas uma individualidade espiritual que nos capacita a experimentar diretamente a Realidade Última de Deus. A Filha-Heh é o complemento culminante do Filho-Vav. Sua rebeldia não é maligna ou ignorante. Ela desce dos Céus, lutando contra os deuses, para trazer aos homens o conhecimento de que eles são deuses. O trabalho mágico no Aeon de Aquário deve, portanto, ser executado individualmente e solitariamente.
No Aeon de Peixes, a Sombra-Filha-Set estava oculta. Apenas seu irmão, o Hórus-Luminoso era conhecido. Quer dizer, o conteúdo sombrio do inconsciente era completamente renegado, mantido em silêncio, no escuro, considerado maligno e, portanto, reprimido. No entanto, como o Atu XVII no mostra, o conteúdo da mente inconsciente profunda está vindo a tona para todos nós e nos encontramos na era em que devemos confrontar a sombra como um caminho para realização espiritual. No Aeon de Peixes a Filha-Vav (Malkuth) foi considerada separada da Vontade Universal. Ela representou o materialismo corpóreo, uma agente satânica corrupta que distanciava homens e deuses. Mas no presente Aeon de Aquário, a Vontade Universal será conquistada individualmente pela exploração daquilo que antes era considerado corrupto: o corpo, os sentidos, o sexo etc., quer dizer, o Reino Filha-Heh-Malkuth. A lição deste Aeon é que, silenciosamente, abraçando o conteúdo demoníaco da sombra, cada um pode conquistar a Vontade Universal acima do Abismo. Esse é o individualismo espiritual que a Filosofia de Thelema proclama, uma liberdade contra as regras espirituais estabelecidas pelos sacerdotes das fés populares em detrimento de uma caminho individual baseado nas Leis da Estrela que cada um representa. Não se trata do individualismo egoísta eu contra tudo e todos, tudo para mim ou tudo meu. A conquista não é do Ego, mas da Alma, ao receber o influxo da Verdadeira Vontade que vem de Chokmah.
Em minhas epístolas sobre o Ofício da Mulher Escarlate, eu sempre destaco a característica desapegada da Sacerdotisa: Atai-vos de modo algum,[4] diz Nuit em Liber AL vel Legis. Aquário é a 11ª Casa Zodiacal, que governa relacionamentos desapegados. Isso significa que a avātar de Babalon, a Filha-Heh Mulher Escarlate, explora sem se prender, desfruta sem se apegar, pois tudo deve ser vivido e abraçado com plenitude e não existe lei além de Faz o que tu queres.[5] Para ela, nada é mais importante que a Verdadeira Vontade. Aos olhos seculares do profano, ela é a rameira, pois a nenhum homem ela rende homenagem ou fidelidade. A Mulher Escarlate é unicamente fiel a Verdadeira Vontade. Para a Mulher Escarlate nada é mais importante que a Verdadeira Vontade e por conta disso, qualquer apego pode representar um empecilho ao seu trabalho espiritual.
Astrologicamente, a Verdadeira Vontade é simbolizada por Urano, um planeta impessoal que rege Aquário e nada tem a ver com as questões humanas. A Vontade reside acima do Abismo, intocada pelas demandas humanas em Chokmah, o Pai-Falo que a projeta na forma de Semente. Outro regente de Aquário é Saturno, a Lei por trás do como executar a Verdadeira Vontade. Mas Saturno (como Binah) está acima do Abismo. Trata-se da Grande Mãe Universal impregnada pela Semente do Pai-Chokmah cujo Filho é projetado abaixo do Abismo como uma Estrela. Neste Aeon de Aquário, a sacerdotisa deve aprender sobre as Leis de sua Estrela para assumir o Ofício de Mulher Escarlate, cuja promessa é liberar seu potencial divino para que ela possa ser uma avātar de Babalon, uma encarnação viva da Deusa Universal, uma agente real do poder da Deusa Babalon, pois não existe deus senão o homem neste ciclo evolutivo da humanidade. Este trabalho se inicia com o abraço ao conteúdo demoníaco da sombra, velado na imagem de Set ou Had, Hoor-paar-kraat.
NOTAS:

[1] Aleister Crowley, Diário Mágico: 4 de janeiro de 1931.
[2] AL vel Legis, III:24-6.
[3] Posteriormente, o escarlate foi identificado com pecado e traição no Velho Testamento. É interessante notar que na tradição espiritual do Santo Daime, a cor vermelha é desapropriada para rituais, principalmente àqueles em que o sacramento é produzido: os Rituais de Feitio. Em algumas Igrejas, mulheres menstruadas são desaconselhadas a participar das sessões de cura, pois se entende que neste período elas estão contaminadas e carregam consigo a semente do pecado original.
[4] AL vel Legis, I:22.
[5] AL vel Legis, III:60.