quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Kimbanda


“Exu meia noite
Exu da madrugada
Salve o povo de Quimbanda
Sem Exu não se faz nada”

A Quimbanda é uma religião, tradição e também sistema de trabalho magicko genuinamente brasileiro. Podemos dizer, dentro do âmbito já demonstrado até aqui no blog, que esta é a manifestação do Caos em nossas terras – o que torna um tema quase obrigatório a ser estudado por qualquer um que se relacione com energias caóticas. Tendo em vista a popularização da Umbanda no meio ocultista, nada menos digno do que demonstrar esta corrente “opositora” que vem ganhando cada vez mais espaço nos meios das práticas mais intensas ou herméticas (fechadas a ordens) – inclusive fora do Brasil, na Europa e EUA.


Origens e Raízes Históricas:

A palavra “Kimbanda” vem da língua kimbundo de Angola, significando “curandeiro – sacerdote da arte de curar”.  Para representar-se o culto estritamente brasileiro, distanciando-se da raíz africana, utiliza-se o termo como “Quimbanda”.

Durante a época do Brasil colonial, inúmeros foram os negros exportados para o mundo inteiro através do tráfico negreiro. As tribos guerreavam entre si na África e os derrotados eram vendidos ao homem branco e transportados em navios nada confortáveis para serem vítimas de trabalhos forçados por todo Império e em suas colônias. Essa prática escravista deu origem não apenas aos cultos praticados aqui, mas também os difundidos pelo México, Haiti e mesmo nos EUA, como o Vodu e o Hodoo.

Se tratando de Brasil, a miscigenação foi ainda mais poderosa. Aportaram aqui os negros de tribos sudanesas, bantus (mais númerosos) e muçulmanos (mais agressivos, constantemente utilizados como feitores ou “caçadores” de outros negros). Entre estes traficados, haviam também sacerdotes kimbandeiros (curandeiros) e suas antíteses, chamadas de “mûlojis” – sacerdotes de magia maligna, que amaldiçoavam inimigos por dinheiro, agindo como mercenários.

A adaptação dos negros no Brasil – colônia foi um processo doloroso. Além de tudo ser diferente, sua cultura foi esmagada brutalmente pela imposição do catolicismo e repressão de suas práticas por parte da Igreja católica. Alguns negros mais pacifistas terminaram por aderir em parte o cristianismo europeu – outros, que habitavam áreas mais isoladas da colônia, em especial em seu interior, rejeitaram totalmente essas práticas católicas.

É fato interessante a ser citado que ao adentrar no “novo mundo”, os negros tiveram contato com outra crença desprezada e mutilada: Os indígenas, ex escravos que se compadeciam de seus irmãos fugidos. Os quilombos, os locais onde os escravos fugidos se escondiam, passaram então a abrigar uma miscigenação realmente peculiar, entre os cultos vindos da áfrica, os cultos sincréticos entre tais cultos e o catolicismo europeu e junto a isso, as crenças genuinamente xamânicas, as pajelanças e os cultos indígenas – gerando uma nova e riquíssima cultura.

O Diabo em terra Brasileira – A primeira manifestação de Satã no Brasil:

Quando tiveram contato com os povos africanos e seus Deuses, um deles marcou o homem branco de forma especial: Eshù. Originalmente, os Deuses Yorubás não possuíam representação antropomórfica, apenas símbolos e associações naturais. Ehsù, representando a potência masculina, o movimento, sendo cultuado com sangue, e tendo como símbolo um pênis ereto chocou o homem branco – que imediatamente o associou a Ha-Shatan, ou Satã. O “Demônio” bíblico. No território brasileiro a frase “‘Eshu l’o ti mi’ (Exu que me impeliu) passou a ser utilizada como forma de atribuir a ele (também chamado Elegbara – “aquele que possui”) culpa de atos malignos.

Dentro dos Quilombos, os índios e negros (junto a Judeus, brancos cristãos fugidos e negros muçulmanos) sincretizaram suas crenças, de forma a criar uma oposição também religiosa ao homem branco escravagista. Erguiam totens de Ossos, pintavam seus corpos de negro e vermelho, bebiam, fumavam e cantavam com seus atabaques hinos a suas divindades. Os sacerdotes tiveram uma importância ímpar dentro desse ambiente, curando feridas, fazendo partos, benzendo guerreiros  – tudo como forma de libertação e oposição – totalmente condizente com os ideais Caóticos de libertação espiritual das correntes dogmáticas, mesmo fora do ambiente de batalha deste contexto histórico.

Religião e Sistema Magicko:

A Quimbanda adquiriu então a posição de religião de cunho não somente opositor, mas também Ancestral. Diferente da Umbanda e do Candomblé, ela lida com a Ancestralidade. Os espíritos destes guerreiros, nossos antepassados, que são cultuados de forma a nos fazer entender nosso passado para compreender nossa luta atual – e também nos religam com nossas essências espirituais, despertando nosso real espírito de fogo negro.

Os Exus catiços, que já passaram em encarnação física seriam responsáveis por nossa herança genética e familiar. E os Primordiais, aqueles que são pura essência, os responsáveis por nossas heranças espirituais, com as quais nos reconciliamos através dos cultos da Quimbanda. Estas entidades apadrinham, cuidam e auxiliam o adepto em seu desenvolvimento terreno, atuando como “guias”, para que após seu desencarne ele possa continuar sua evolução.

Os cultos utilizam-se de uma parte religiosa, que visa essa conexão interna com as formas ancestrais, mas também possuem seu cunho místico e sua gnose esotérica. Utilizam-se da magicka e da feitiçaria primal e tribal, herdadas dos Ancestrais. Cura, afligir inimigos, conquistas amorosas, imposição da Vontade são também elementos presentes no exoterismo e feitiçaria, embora não sejam objetivos finais ou cruciais do culto (neste ponto, podemos dizer que os “terreiros” de charlatões aproveitam-se de pessoas desesperadas para cometerem abusos financeiros e toda forma de extorsão – sujando o nome do real culto que serve a grandes propósitos e não se limita a causas mundanas).

A Morte como transição é muito presente no culto. Para entender a vida, é necessário também entender a morte. Os Ancestrais manifestam-se no culto através principalmente dos Exus, entidades com roupagem tipicamente brasileira, Pomba Giras, Malandros, etc.

“O garfo de exu é firme
A capa de exu me rodeia
Passei pela encruzilhada
Exu não bambeia”

Temos que ter em mente ao abordar esta entidade que, embora estejam relacionados em diversos aspectos, os Exus falangeiros presentes na Umbanda/Kimbanda são totalmente diferentes daquele Èshu orixá, presente nos cultos do Candomblé. Enquanto o segundo é uma deidade absurdamente respeitada e temida – cujo contato dos homens brancos com os negros yorubás deu origem ao sincretismo com o “Diabo”, os primeiros são resultados da mesma cruza que deu origem aos Lwas (Loas) Ghede e Papa Legba do Vodu Haitiano. Pode-se dizer que essas falanges são “primas”, embora ainda sejam bem diferentes em seu culto e oferendas possuem comportamentos e frequências energéticas bem próximas.


Os Exus falangeiros são entidades tipicamente brasileiras, existindo da forma como conhecemos somente dentro dos cultos com base naquele surgido nessas terras. Seus comportamentos estereotipam o comportamento comum a entidades originárias de pessoas mortas. E de fato, eles dividem-se em duas classes, os Exus Primordiais, aqueles não nascidos, habitantes de zonas inferiores no Astral e que orientam e “doutrinam” a segunda classe de Exus para seus trabalhos. E os Exus “catiços”, aqueles que são Eguns (espíritos antepassados – um termo usado de forma bem errada atualmente para se referir a espíritos obsessores, mas que nada tem a ver com isso) de magos, feiticeiros, curandeiros, indígenas, caçadores, médicos, bandidos entre diversas outras almas falecidas – que se uniram aos Primordiais no Astral para serem doutrinados e trabalharem por sua evolução.

Evolução é um conceito muito presente no trabalho com Exus. Enquanto os catiços evoluem em seus trabalhos, o médium e os que lidam com essas entidades são conduzidos e protegidos pelas mesmas durante sua própria evolução espiritual.

A própria palavra “Exu” remete aos poderes masculinos e ao movimento, quebra da estagnação. Exus são os protetores, os guardiões dos caminhos, encruzilhadas e portais/entradas. Assim, atuam desde encruzilhadas, ruas, cemitérios, matas (onde existem diversos portais naturais), até praias (onde há a “calunga grande”, a maior das portas – o mar).

É interessante que podemos sincronizar essa origem dos Exus nos movimentos energéticos primordiais com aqueles movimentos de energia que primeiramente geraram as Kliffoth/Qliphoth através do confronto entre Ordem e Caos. Exus são a representação da Chama Caótica do Homem em sua manifestação muito mais pura que a nossa, ainda aprisionada na matéria. Podemos vê-los como as energias que transitam pelos túneis de Caos dentro de NOX.

São energias realmente intensas, e entidades arredias, normalmente controladas por uma mais poderosa, sempre presente. Os palavrões, conotações sexuais, bebedeiras e cigarros típicos de espíritos mundanos são controladas por um “Exu Coroado”, um líder da falange doutrinado a muito mais tempo e de presença sempre marcante. Os Primordiais, ao manifestarem-se, são normalmente mais sisudos e sérios, fazendo menos brincadeiras e exigindo maior respeito.

Para aqueles da Umbanda, essas entidades são emissários dos Orixás, distantes da humanidade. Os mensageiros submetidos aos 7 grandes cabeças das linhas de umbanda, sendo eles: Oxalá; Yemanjá; Ogum; Oxossi; Xangô; Oxum e Omulú. Dentro da Umbanda, os Exus se limitam a mensageiros e guardiões, regidos por uma “lei maior” de Olurún (criador) que não os permitiria causar danos.

Já dentro da Kimbanda, os Exus estariam submetidos 7 linhas (Linha das Encruzilhadas,dos Cruzeiros,das Matas,Cemitério, das Almas, da Lira, e dos Mares), encabeçados por “Exu Maioral”, o grande líder de todas as falanges. Dentro desse culto, eles seriam Amorais, podendo sim ferir e atacar pessoas, caso fosse realmente necessário para defender seus protegidos espirituais. Essa rixa de “moral x amoral” é talvez a maior discussão entre a Umbanda e a Kimbanda em relação a estas entidades.

Existem incontáveis manifestações de Exus, a perder-se a conta, cada um com sua personalidade, área de atuação e modo de trabalho. Mas devido ao sincretismo religioso existe uma classe que nos chama a atenção especificamente – e causa certo rebuliço entre os que lidam com tais entidades. São os Exus que herdaram nomes demoníacos. Entre eles, Exu Beelzebub, Exu Lúcifer, Exu Astaroth, etc. Essas nomenclaturas não querem dizer que estes Entes SÃO de fato esses demônios. Na verdade eles apenas atuam na frequência energética destas entidades maiores.

Ainda na linha de Exu temos duas manifestações que também merecem atenção. Os Exus-Mirins, que normalmente apresentam-se como crianças um bocado “atentadas” e travessas, semelhantes aos Erês (crianças) e as Pomba-Giras. “Pomba-Gira” é uma corruptela brasileira de “Mbùmba Nzila”, nome de um distrito do Congo, e que se traduz em “Mbùmba” = “mistério, segredo” e “Nzila” = “encruzilhada, estrada”. São o lado feminino dos Exus, uma manifestação da sensualidade, da feitiçaria feminina. Normalmente bruxas, curandeiras, ou prostitutas mortas que continuam seu caminho evolutivo.

E não, ao contrário do que dizem, não são apenas mulheres e homossexuais que manifestam esses espíritos. Esse é um mito difundido por charlatões que corrompem a sacralidade do culto com suas perversões mal resolvidas…

Métodos de Trabalho

Os métodos de trabalho com Exus são interessantes. Recomenda-se que antes de tentar sozinho se relacionar com essas entidades, se receba orientação de um sacerdote, dentro de um terreiro. Dessa forma, evita-se cair na mão de Kiumbas (entidades independentes e maliciosas, normalmente vampíricas – que se nutrem nas fraquezas e erros alheios, ou em oferendas feitas de forma errada ou abandonadas) e cometer erros grosseiros.

Não há livro que especifique o trabalho com eles. A melhor forma de aprender é na prática, dentro da tradição e em contato com as entidades. Muda-se a visão de local para local e de autor para autor, devido à variedade de tribos e tradições. Deve-se encontrar aquela que for mais adequada à pessoa.

Apesar das variações, existe uma base em comum que se encaixa em todos os cultos. Os Exus possuem pontos riscados, que são nada menos que sigilos, cada entidade possuindo o seu. Possuem também pontos cantados, invocações vibradas junto aos atabaques (instrumentos de percussão) que fazem os “cavalos” (médiuns de incorporação) entrarem na frequência da entidade. A semelhança com sigilos da Goétia e evocações entoadas é visível e não é coincidência. Embora não estejam diretamente relacionados, todo sistema de evocação/invocação possuí certo padrão básico sistemático. No entanto, enquanto os cultos afros envolvem a Incorporação, a Goétia exige uma prática muito mais avançada na visualização. Por serem entidades mais “próximas” a humanidade, o contato é muito mais direto.

As oferendas concedidas a essas entidades normalmente incluem uma bebida e um fumo específicos a cada um e também uma comida ritualisticamente preparada, cuja energia “alimenta” a entidade.


O culto aos Exus está diretamente ligado a prática de Necromancia. Isso se deve não apenas ao contato com Eguns ancestrais como visto no post anterior, mas também está ligado a prática sacrificial. Os Sacrifícios animais são comuns e recorrentes nos cultos africanos, sendo renegados apenas recentemente por linhas de Umbanda que visam ser mais “brandas”. No entanto, sempre estiveram presentes na história e não deveriam ser um tabu tão grande para nós.

Galinhas, bodes e até bois são utilizados nos cultos, sendo totalmente aproveitados. Nada é desperdiçado. O Sangue, que contém a energia da Morte (aí entrando a prática necromântica) é oferecido aos entes. A carne é consumida pelos praticantes. E dos ossos e couro/penas fazem-se poderosos amuletos e fetiches utilizados no culto, desde construção de “tronqueiras” (altares reservados aos Exus) até amuletos cedidos aos médiuns para proteção.


Conclusão

Esta foi uma muito breve explanação diante de um culto realmente extenso com muitas variações tribais e locais. Os Exus são entidades fascinantes que podem auxiliar muito qualquer adepto de qualquer senda a evoluir e a se proteger (embora seja bom não depender jamais apenas deles). Embora seja corrompido por charlatões, deveria dar-se mais atenção a este trabalho, levando a sério e pesquisando a fundo, para destruir os tabus e as deturpações. Por serem muito próximos de nós, é fácil trabalhar com eles e se identificar com os mesmos, o que torna a Kimbanda uma forma poderosíssima de magicka. São a nossa manifestação de Caos, a forma Brasileira de oposição. E para entendermos a nós mesmos e entender nosso presente e definir nosso futuro, é necessário também conhecer nossas Raízes Ancestrais.


 Laroyê Exu!

 Malachi Azi Dahaka.

Templo de Quimbanda Maioral Beelzebuth e Exu Pantera Negra