“Sou a voz do despertar na noite eterna” [Hino gnóstico]
O Gnosticismo, doutrina filosófico-religiosa dos gnósticos, é o ensinamento baseado na gnosis, termo grego que significa literalmente conhecimento. Obviamente, neste caso, trata-se do conhecimento sagrado (ou Sophia).
Durante muito tempo, foi encarado como uma heresia, uma simples seita do Cristianismo: primeiro teria existido o Cristianismo, com a sua teologia, e só depois teria surgido a heresia gnóstica. Von Hartman, um historiador alemão dos finais do séc. XIX, ainda considerava que os gnósticos, interpretando a doutrina cristã à luz da filosofia grega, distorceram aquela mensagem e propagandearam formas falsas do ensinamento cristão.
Com o desenvolvimento do estudo da História das Religiões, esta perspectiva foi abandonada, passando a ficar clara e assente a idéia de que o gnosticismo é um fenómeno basicamente pré-cristão e um movimento religioso independente. No início do século XX, Wilhelm Bousset declarou que “o gnosticismo é antes de mais nada um movimento pré-cristão com raízes em si mesmo. Deverá pois ser entendido (…) nos seus próprios termos e não como um rebento ou derivado da religião cristã“. [1].
Walter Bauer publicou em 1934 uma obra que reconhecia que “originalmente, certas manifestações da vida cristã que os autores da igreja denunciam como heresias, não tenham sido nada do género, sendo sim as únicas formas da nova religião; isto é, nessas regiões, elas eram simplesmente o cristianismo”. [2]
As descobertas em Nag-Hammadi – uma nova perspectiva
Em 1945, um camponês encontrou, em Nag-Hammadi, uma pequena localidade no Alto Egipto, um grande pote de cerâmica contendo 13 livros de papiro encadernados em couro. No total foram descobertos 52 textos. Após longas investigações, os estudiosos chegaram à conclusão de que os papiros tinham cerca de 1500 anos e eram traduções em copta de manuscritos ainda mais antigos. As datas dos textos originais estão estimadas entre os anos 50 e 180 da nossa Era. Pensa-se que os manuscritos foram enterrados por volta do século IV, quando, na época da conversão do Imperador Constantino, os bispos católicos passaram ao poder e desencadearam uma campanha, por vezes muito violenta e inescrupulosa, contra as chamadas heresias. [3]
A descoberta destes textos iniciou uma era de pesquisa completamente nova, iluminando as raízes e os primórdios do Cristianismo, que diferem da versão que o poder vigente quis fazer vingar. A maior parte desta literatura é distintamente cristã; porém, alguns textos aproximam-se da tradição judaica e outros das tradições hindu e budista. No conjunto, tais escrituras apontam para a idéia de que os gnósticos foram dos primeiros e dos verdadeiros cristãos, encontrando-se entre aqueles que melhor compreenderam a mensagem mais profunda do Senhor. Tendo em conta a importância dos Essénios e grupos semelhantes na formação do Cristianismo Primitivo, importa referir que Helena Blavatsky, no Vol. III da sua obra “Ísis sem Véu”, sugere que os gnósticos seriam os essénios: quando estes últimos desapareceram, os gnósticos surgiram e afirmaram a sua doutrina.
Assim, o Gnosticismo deverá ser entendido como um penetrar na face oculta do Cristianismo, compreendendo, não só mas também, os ensinamentos destinados àqueles espiritualmente amadurecidos e capazes de penetrarem nos Mistérios. Num dos seus mais maravilhosos livros, o “Cristianismo Esotérico”, Annie Besant declara que, tal como todas as tradições religiosas, o Cristianismo tem um lado secreto destinado apenas a alguns, pois “as religiões são dadas ao mundo por homens mais sábios que as massas que as recebem. São destinadas a acelerar a evolução humana, e a sua acção, para ser efectiva, deve atingir e influenciar individualmente os homens. Ora, nem todos os homens alcançaram o mesmo grau de evolução (…). É, portanto, inútil querer dar a todos o mesmo ensinamento religioso(…). A religião deve ser graduada como a própria evolução, senão jamais atingirá o seu fim”.
As próprias palavras do Mestre são claras e explícitas: “E quando se achou só, os que estavam junto dele com os doze apóstolos o interrogaram acerca do sentido desta parábola. Ele disse-lhes: “A vós é dado a conhecer os mistérios do reino de Deus mas, para os que estão de fora, todas estas coisas se dizem por parábolas”. “Assim, lhes anunciava a palavra por muitas parábolas semelhantes, conforme os que eram capazes de ouvir. Ele não lhes falava senão por parábolas, mas quando estava em particular, explicava tudo aos seus discípulos”. [4]
Alguns dos próprios padres da Igreja haviam eles mesmo reconhecido a existência de uma doutrina oculta. São Clemente de Alexandria escreveu que “o Senhor permitiu que participassem desses Mistérios divinos os que fossem capazes de recebê-los. Certamente Ele não revelou aos muitos o que aos muitos não pertencia, mas sim aos poucos a quem sabia que pertenciam, os que eram capazes de recebê-los e de serem moldados de acordo com eles“. [5]
Assim, enquanto os ortodoxos dependiam exclusivamente dos ensinamentos públicos e exotéricos que Cristo e os Apóstolos proporcionavam a muitos, a maior parte dos cristãos gnósticos possuíam o seu conhecimento secreto, conhecido somente por poucos. Note-se que os gnósticos aqui retratados não se referem a nenhum dos modernos movimentos autodenominados gnósticos mas, sim, a homens profundamente sábios como Valentim, Basílides, Marcion e Simão, o Mago, entre outros.
Gnosis – autoconhecimento como conhecimento do Divino
A gnosis é o conhecimento espiritual e sagrado, correspondente à Gupta-vidyâ dos hindus, a visão com os olhos da alma ou percepção espiritual, e só pode ser alcançado através da Iniciação nos Mistérios Espirituais. [6] Para os gnósticos, a gnosis é (era) essencialmente um processo de autoconhecimento como conhecimento de Deus. Abandonai a busca de Deus e da criação e demais questões de índole semelhante. Procurai-O tomando-vos a vós próprios como ponto de partida. Aprendei quem é que, dentro de vós, faz seu tudo quanto há e diz: “Meu Deus, minha razão, meu pensamento, minha alma, meu corpo”. Aprendei as fontes da tristeza, da alegria, do amor, do ódio (…) Se investigardes cuidadosamente estas questões, descobrireis Deus em vós próprios. [7]
O homem que se conhece a si próprio, ao mais profundo nível, conhece simultaneamente Deus e, para o fazer, “Batei à porta que sois e caminhai sobre a estrada recta que sois. Pois se caminhardes pela estrada, impossível será que vos extravieis (…) Abri a porta por vós mesmos, de forma a poderdes ficar a conhecê-la (…) Tudo aquilo que abrirdes por vós próprios, abrireis efectivamente”. [8]
Entretanto, a idéia, explicitada por Annie Besant na “Sabedoria dos Upanishads”, de que a Natureza do Espírito Universal também se encontra em nós mesmos, de que o Atman ou Eu mais interno, que é (uno com) Brahman conhece a manifestação externa de Brahman, contribui para a compreensão do Reino de Deus referido no Evangelho de Tomé. Tal como o Espírito Universal se encontra em nós e fora de nós, é possível conhecer o Reino de Deus dentro de nós, através do autoconhecimento, e fora de nós, através do conhecimento das leis que regem o Cosmos, sendo estas o Pensamento Divino encarnado. (…) De facto, o reino encontra-se dentro de vós, e ele encontra-se fora de vós. Quando chegardes a conhecer-vos, sereis então conhecidos, e percebereis que sois os filhos do Pai vivo. [9]
Nesta viagem de autodescoberta a mente é o nosso guia fiel e a razão o nosso mestre: (…) trazei o vosso guia e o vosso mestre. A mente é o guia, mas o mestre é a razão. Vivei de acordo com a vossa mente (…) Adquiri força, pois a mente é forte (…) Iluminai a vossa mente (…) Acendei a lâmpada que tendes dentro de vós. [10]
A Ressurreição como Iniciação
A Ressurreição de Cristo não era interpretada de uma forma literal mas sim simbólica. Ela simbolizava a forma como era possível experimentar a presença de Cristo a um nível espiritual; ela é o momento da iluminação, o momento em que se alcança a gnosis. Sobre este assunto, o Tratado sobre a Ressurreição, diz: Não suponham que a ressurreição é uma aparição. (…) Em vez disso deveríamos era sustentar que é o mundo que constitui uma aparição e não a ressurreição. Ela é a revelação daquilo que em verdade existe e uma migração para a novidade. [11]
O autor deste texto considera a existência humana normal como morte espiritual e que, através da Ressurreição, o homem se torna espiritualmente vivo. No “Evangelho de Filipe” encontramos presente a mesma ideia: Tu viste o Espírito, tu tornaste-te Espírito. Tu viste Cristo, tu tornaste-te Cristo. Tu viste o Pai, tu tornas-te-ás Pai… [12]
“Para os cristãos dos primeiros séculos, Cristo era o símbolo vivo da própria divindade neles, o fruto glorioso do gérmen que eles traziam no próprio coração. A doutrina do Cristianismo Esotérico não era a salvação por um Cristo exterior, mas a glorificação e a perfeição de todos no Cristo interior”. [13]
O Cosmo
Tal como a tradição hindu, a filosofia gnóstica assenta na concepção de um Deus Absoluto, a Divindade Suprema, Transcendente a todo o universo manifestado. Este Deus é: O único Senhor e Deus (…) Pois ele não foi gerado (…) Por conseguinte, na devida acepção, o único Pai e Deus é aquele que não foi gerado por ninguém. [14]
A Raiz do Todo, o Inefável que reside na Mónada. Ele reside sozinho em silêncio (…) visto que, afinal, ele era uma Mónada, e ninguém existiu antes dele. [15]
No “Livro de Melquisedec”, do Evangelho do Mar Morto, é-nos dada uma magnífica descrição do Deus Imanifestado: Antes que existisse uma estrela a brilhar, antes que houvesse anjos a cantar, já havia um céu, o lar do Eterno, o único Deus. Perfeito em Sabedoria, Amor e Glória, viveu o Eterno uma eternidade, antes de concretizar o Seu lindo sonho, a criação do Universo. Os incontáveis seres que compõem a criação foram, todos, idealizados com muito carinho. Desde o íntimo átomo às gigantescas galáxias, tudo mereceu a Sua suprema atenção.
Valentim, um dos mais sábios entre os gnósticos, começa a sua exposição filosófica com a premissa de que Deus é essencialmente indescritível: nada pode ser dito acerca da Seidade pois o próprio conceito está muito para além da nossa compreensão. No entanto, ele sugere que o Divino pode ser considerado como uma díade “consistindo, por um lado, no Inefável, a Profundeza, o Pai Primordial; e, por outro lado, na Graça, o Silêncio, o Ventre e Mãe-de-Tudo”. A mesma ideia pode ser encontrada num dos textos mais recentemente encontrados, “O Protenóia Trimórfico” (literalmente, o “Pensamento Primordial Triplamente Formado”): Eu sou Protenóia, o Pensamento que reside na Luz (…) Ela que existe antes do Todo. (…) Eu sou percepção e conhecimento, e profiro uma Voz através do Pensamento. [16] Eu sou andrógino. Eu sou tanto Mãe como Pai, já que copulo comigo mesmo (…) Eu sou o Ventre que dá forma ao Todo. [17]
Na Grande Anunciação, a origem do Universo é explicada da seguinte forma: Do poder do Silêncio surgiu um grande poder, a mente do Universo, que gere todas as coisas, e é um macho (…) o outro é uma grande Inteligência (…) é uma fêmea que produz todas as coisas. [18]
Helena Blavatsky, descrevendo a filosofia de Basílides, outro grande sábio gnóstico, diz-nos que ele afirmava que o “Pai desconhecido, Eterno e Incriado, deu nascimento em primeiro lugar ao Nous, à Mente. Esta emanou de si mesma o Logos. O Logos ( o “Verbo” de João) emanou por sua vez as Phronêsis, as Inteligências. Das Phronêsis nasceu Sophia, a sabedoria feminina, e Dynamis, a força. Tais foram os atributos personificados da misteriosa Divindade, o quintérnio gnóstico, que simboliza as cinco substâncias espirituais, mas intelígiveis, as virtudes pessoais ou os seres exteriores da Divindade desconhecida. Essa é uma idéia eminentemente cabalística; ela é ainda mais budista”. [19]
Através do estudo e da análise comparativa de todas as grandes tradições religiosas chegamos, necessariamente, à conclusão de que elas não são mais do que as vestes externas daquela que é a Religião Universal, a Sabedoria de “todos os tempos e lugares”. Mesmo neste artigo, tratando-se de uma pequena introdução, podemos verificar que as semelhanças do sistema filosófico-religioso gnóstico com as tradições hindu, budista e judaica são evidentes. Importa, então, mostrar ao mundo, doente e ferido pela sua própria ignorância, que a unidade de todas as religiões é um facto e que é possível que todas as nações da Terra (se) respeitem e vivam sob a mesma bandeira, a bandeira da Eterna Sabedoria.
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1. W. Bousset, Kyrios Christos; tradução inglesa, 1913
2. W. Bauer, Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity, 1971
3. Originalmente, uma heresia nada mais significava que um grupo; mas, gradualmente, o significado adicional prendeu-se à palavra e tornou-se o de um grupo que professava uma doutrina falsa.
4. S. Marc. IV, 10, 11, 33, 34; S. Mat. XIV, 11, 34, 36; S.Luc. VIII, 10
5. Stromata, Livro I, cap.28
6. H. Blavatsky, Glossário Teosófico
7. Hipólito, REF 8.15.1-2
8. Ensinamentos de Silvano 106.30-117.20, NHL
9. Evangelho de Tomé 32.19-33.5, NHL
10. Ensinamentos de Silvano , 85.24-106.14, NHL
11. Treatise on Resurrection 48.10-16, NHL
12. Evangelho de Filipe, 61.29-35, NHL
13. Annie Besant, O Cristianismo Esotérico
14. Tratado Tripartido, 51.24-25.6, NHL
15. Uma Exposição Valentina, 22.19-23, NHL
16. Protenóia Trimórfica 35.1-24, NHL
17. Protenóia Trimórfica 45.2-10, NHL
18. Hipólito, REF 6.18
19. Helena Blavatsky, Ísis sem Véu
Autor: Ana Isabel Neves
Publicado na revista Biosofia nº13 – Primavera 2002 – Portugal