domingo, 9 de janeiro de 2022

Os Heréticos Gnósticos


Heresia, segundo os modernos conceitos da língua portuguesa, é uma doutrina contrária aos dogmas estabelecidos pela Igreja. Em tempos mais remotos a palavra heresia longe de apontar uma aberração religiosa, como gostaria de nos fazer parecer aquela que a exemplo da humildade que promulga se auto-entitula Madre e Santa, apontava “um ato de escolha” , tendo evoluído este significado através dos tempos para “escolha de princípios filosóficos” e mais tarde para “uma escola ou seita”.

Foi somente no séc. IV, quando a formulação doutrinária da Igreja Católica Apostólica Romana passa a gerar sérias controvérsias em seu seio que o termo adquire um sentido pejorativo, passando a palavra heresia a designar “uma doutrina mantida dentro da Igreja, mas perturbadora de sua unidade”, uma verdadeira ofensa contra os ditames divinos, uma ameaça ao reino de Jesus, o qual, aliás, já havia dito que seu reino não era deste mundo. Bem, talvez o dele, mas não o do clero como podemos vivenciar até mesmo nos nossos dias…

A grande ameaça no séc. II ao reino da Igreja era chamada de gnosticismo e seus adeptos, os gnósticos, se diziam detentores de conhecimentos sublimes sobre a natureza e os atributos divinos. Conhecimentos estes que apenas eram revelados aos perfeitos e sempre através de um sistema iniciatório.

Considerados pelos ortodoxos da Igreja como loucos e perigosos representantes do demônio os gnósticos marcaram profundamente a história religiosa humana e, ironicamente, chegam ao nosso conhecimento através do relato de seus algozes, os quais, na tentativa de acabar com o poderoso magnetismo por eles exercido sobre a massa de fiéis, fazem relatos de suas práticas e crenças de forma a contrapor-lhes a “lógica” e a “sensatez” da ortodoxia. Desta forma, agradecemos aqui ao trabalho incansável de Ignácio de Antióquia, Irineu de Lion, Hipólito, Clemente de Alexandria e tantos outros bispos da Madre Igreja que na tentativa de expurgar o gnosticismo do seio cristão acabaram por torná-lo imortal através de suas depreciações deixando entrever, no meio a tantas censuras, o fio que levou os estudiosos do século atual até ao pensamento gnóstico. Deus escreve certo por linhas tortas!

Outra grande fonte de informações a respeito dos gnósticos e que vem elucidando muitas questões é a biblioteca de Nag Hammadi, descoberta em 1945. Esta biblioteca é composta de um grande número de textos gnósticos, os quais, foram cuidadosamente escondidos numa vasilha e enterrados com o objetivo de preservá-los das mãos destruidoras da Igreja, evitando assim que o conhecimento estivesse definitivamente perdido para as gerações futuras. Nossos agradecimentos a estes seres desconhecidos que com sua ação nos permitiram acesso a esta parte de nossa própria história.

O objetivo deste artigo é fornecer ao leitor um conhecimento geral sobre o Gnosticismo e suas diferentes seitas, em especial as cristãs, levando-o, quem sabe, a refletir sobre a grandeza de um passado que ainda está presente no coração de muitos e é futuro no espírito de outros tantos…


De volta ao passado

No séc. II o contexto religioso era composto pelo declínio da religião oficial do Império Romano, o paganismo, e a ascensão progressiva de religiões e seitas inspiradas nos ensinamentos orientais.

As guerras civis eram freqüentes, sendo consideradas um prenúncio da queda do Império de Roma. Esta velha obsessão em relação a queda do império, que era a esperança dos povos dominados e o temor do povo dominante, retratava-se nos Oráculos da época que anunciavam o apocalipse com a queda da Urbe.

A magia e a astrologia passam a fascinar tanto as classes populares quanto as elites, incluindo aqui não só os abastados em dinheiro e posses como também aqueles doutos em filosofia.

Todas estas confusões ideológicas e sociais tiveram uma trégua no reinado de Augusto , quando este, fundando novamente Roma, faz surgir a era da pax aeterna , atestada pela transição da idade do ferro para a idade do ouro que ocorre sem a tão decantada catástrofe cósmica prevista pelos oráculos orientais. Acabam-se os temores e Roma passa a ser novamente considerada invicta, a urbis aeterna, sendo Augusto considerado o segundo fundador da Urbe. A sua data natalícia, 23 de setembro, foi considerada “o ponto de partida do universo” ao qual o imperador havia salvo da apocalipse total.

Augusto mostra-se um verdadeiro romano e adota a religião pagã como a oficial, presta homenagens aos antigos deuses, manda reformar os velhos templos e erigir outros, respeita os sonhos como avisos e consulta oráculos em busca de diretrizes para o futuro. A pax realmente torna-se um fato, mas a história infelizmente atesta que ela não era aeterna. Com a morte de Augusto retornam a Roma as guerras civis e o Império volta a declinar.

O culto à persona do imperador torna-se mais popular após as glórias de Augusto e o velho hábito de deificar o imperador após a sua morte toma o espírito religioso popular com grande intensidade.

No séc. II, a recusa em celebrar o culto do imperador foi a principal causa de perseguição aos cristãos. Esta perseguição tinha o apoio da opinião pública que odiava a religião emergente considerando-a excêntrica e pessimista, visto que, estimulava a esperança no pós-morte. O cristianismo era uma religião clandestina, sujeitando aqueles que a praticavam às punições oficiais. Acreditava-se que ele estimulava o incesto, o infanticídio e a antropofagia, além de cometer o crime de lesa-majestade e de ser eminentemente ateísta. Ser cristão era ser um fora-da-lei!

Realizam-se perseguições sangrentas às seitas cristãs, sendo a última delas levada a cabo por Diocleciano, considerada também a mais longa e a mais violenta.

Façamos porém um parênteses em favor de Diocleciano que longe de ser o imperador cruel e maligno divulgado pela cristandade, foi um governante primoroso que conseguiu restabelecer a paz no império, eliminando o direito ao trono por herança e instituindo o sistema de co-regências. É fato realmente curioso que Diocleciano, “aquele que odiava os cristãos”, tivesse permitido que sua própria esposa e filha se tornassem adeptas desta nova religião e abandonassem de vez as adorações aos deuses pagãos de quem ele era fervoroso devoto. Curioso é também o fato de que em seu império os cristãos alcançaram grande prestígio como doutores, professores e até mesmo freqüentassem o seu palácio para prestar serviços como escribas, tesoureiros etc.

Nos relatos de historiadores menos influenciados por paixões religiosas encontramos descrições do interesse político dos cristãos em converter o imperador que, apesar das tentativas, se mantinha fiel às suas raízes. Surge então, após vários tipos de pressões políticas e sociais, a visível ameaça cristã ao Império, o incêndio do palácio de Diocleciano, considerado por muitos um ato criminoso contra a vida do chefe do estado praticado por adeptos do cristianismo. Diante da constatação de que a nova religião poderia constituir uma ameaça ao império Diocleciano inicia a sangrenta perseguição. Porém o cristianismo tinha uma grande arma, seus mártires, que se ofereciam à morte pela espada do inimigo com a mesma sede que estes desciam a espada sobre seus pescoços. Como salvaguardar uma boa imagem diante de tamanha abnegação e sacrifício ? Os cristãos seriam para sempre os pobres carneiros devorados pelo lobo mau…

Embora para a missão cristã as perseguições constituíssem um grande risco, estas não eram o único perigo que ameaçava a Igreja. Os mistérios de Isis e Mithra, o culto do Sol invictus e outros tantos cultos representavam também uma ameaça real à sua propagação, pois contavam para a sua divulgação com a proteção oficial. Além disso, havia um perigo muito maior que era acalentado em seu próprio ventre, ameaçando implodí-la: o Gnosticismo.


Gnosticismo: suas origens

A origem do gnosticismo parece ser um ponto altamente polêmico entre os estudiosos do assunto. Alguns julgam que este tenha surgido com os povos árabes, outros atestam a sua origem nas filosofias orientais, outros acreditam que ele tenha tido sua origem no judaísmo, mas a grande maioria é categórico em afirmar que ele é anterior ao cristianismo.

O movimento gnóstico original era um fenômeno independente do movimento cristão que, acrescido de alguns conceitos deste último, acabou por formar o que hoje é conhecido por seitas gnósticas cristãs. Esta simbiose entre os dois movimentos parece ter sido, a princípio, benéfica para as seitas gnósticas que alcançaram uma grande expansão. No entanto, este benefício carregava em si a semente da destruição, se é que se pode falar de destruição em relação a um movimento que promulga um processo de evolução individual e totalmente desprovido de uma estrutura mãe organizadora.

A grande confusão em relação às origens do movimento gnóstico talvez se deva à difícil diferenciação entre gnose e gnosticismo.

Na tentativa de esclarecer esta questão renomados investigadores da antigüidade se reuniram no ano de 1966 e.v. e chegaram à conclusão de que a palavra gnose denota um sentido muito mais abrangente do que a palavra gnosticismo. Assim, se preconizou que gnose é sinônimo de “conhecimento dos mistérios divinos reservado a uma elite”, um processo de auto-iluminação que não está subordinado a esta ou àquela corrente filosófica ou religiosa, não está delimitado a nenhum momento histórico em especial e está contido em todas as filosofias e religiões, sendo o conjunto de suas práticas e princípios dependente da criatividade do fundador de cada doutrina em questão. Deste modo, temos gnose no Budismo, no Hinduísmo, no Judaísmo, no Cristianismo e nos diversos sistemas de crenças que povoam o nosso planeta, quiçá o nosso universo…

Sutilmente diferente do significado acima descrito, gnosticismo é um termo utilizado para denominar um sistema de crenças e práticas que teve o seu apogeu num espaço de tempo compreendido entre o início do séc. II e a segunda metade do séc. III . O tipo de gnose que compreende o gnosticismo está condicionada por um certo número de fundamentos ontológicos, teológicos e antropológicos que caracterizam este sistema diferenciando-o dos demais.

A linha que permite a diferenciação entre gnose e gnosticismo é muito tênue, pois que o gnosticismo é gnose, mas nem toda gnose é gnosticismo.

A conclusão sobre as origens do sistema gnóstico é consecução que por enquanto dificilmente será alcançada, pois as únicas fontes que temos a respeito deste sistema sãos textos escritos em língua copta que falam sobre as suas crenças e parecem ter conexão com as diversas gnoses da antigüidade. O gnóstico acreditava que toda religião continha uma verdade que poderia levar ao plano divino, por isso, recolhia em cada uma aquilo que considerava mais precioso. A sua incerção no contexto cristão foi estimulada por este pensamento, buscando nos ensinamentos de Jesus aquilo que considerava indispensável ao aperfeiçoamento de uma filosofia que o levaria a seu objetivo final: a Libertação.


Gnosticismo: sua filosofia

Quem sou, de onde vim e para onde vou.

O gnóstico acredita que a salvação só pode ser alcançada através do conhecimento que desvenda a compreensão da origem da alma, bem como da sua condição neste mundo e da sua saída desta condição. Este conhecimento não pode ser apenas intelectual, mas precisa passar pelo sentir, sendo antes de mais nada o conhecimento do Eu, de sua natureza e de seu destino. A compreensão da origem da alma, assim como, da sua condição neste mundo, servem de base à tomada de consciência que traz a gnose superior em relação aquilo do qual o homem é legítimo representante, despertando no adepto o desejo de se libertar da rede de ilusões que compõem o mundo físico, alcançando finalmente a salvação tão desejada.

Segundo a visão gnóstica o mundo material é uma prisão na qual o homem se encontra e que foi criada por um demiurgo ignorante de patamares espirituais mais elevados que julga ser o supremo senhor do universo. O homem, dotado da centelha divina, encontra-se adormecido pelo fumo de ilusões gerado daquilo que entende como vida, ou seja, o mundo físico, impossibilitando a manifestação de sua nobre origem representada pela centelha de Deus. Para o gnóstico, a ignorância é a fonte de todo mal, tendo como único antídoto o conhecimento, sendo este o único meio possível para a libertação da centelha que habita em todos nós, ou seja, o único meio para voltarmos à nossa condição primordial, Deus, que diferente do demiurgo, representa a perfeição.

A questão em torno da qual giravam todas as seitas gnósticas dizia respeito a como Deus em toda a sua perfeição teria permitido que o mal penetra-se em sua criação. Com a finalidade de explicar as dualidades perfeição x imperfeição, bem x mal, matéria x espírito, incompreensíveis para a mente humana, pois se partia da premissa de que Deus era perfeito, as religiões criaram o mito da queda.

No sistema adotado pela maioria dos gnósticos, diferente do mito de Adão e Eva encontrado no Gênesis, a queda teria se dado antes da criação do mundo. O Princípio Primordial , Ser Eterno e Gerador de tudo, teria produzido emanações conhecidas como Eons que por sua vez teriam produzido mais Eons distanciando-se estes últimos cada vez mais do Pai, origem de todos eles. Conforme as emanações iam se afastando do Pai a ignorância quanto à fonte geradora ia surgindo, sendo o erro um fato inevitável e tendo como conseqüência a formação da matéria. Mais uma vez fica aqui atestado que para o gnóstico a ignorância é a raiz de todo o mal.

O sistema gnóstico defendia a existência de uma mesma verdade presente em todas as religiões e que, embora contada de modos diferentes, quando fosse descoberta pelo seu adepto acabaria por levá-lo ao mesmo lugar dos demais adeptos das diferentes crenças. Deste modo não havia preconceito em adotar ensinamentos de outras seitas, pois o que realmente importava não era a defesa de crenças pessoais, mas sim, a busca do ensinamento verdadeiro. Para os perfeitos, nome pelo qual eram conhecidos os iniciados, o caminho libertador era pessoal e portanto dotado de características individualizantes, qualquer experiência era válida. O que o sistema proporcionava aos seus adeptos era o conhecimento das verdades sutis por traz dos ensinamentos grosseiros, conhecimento necessário para a iniciação, sendo a mesma obtida pelo esforço próprio daquele que se dispunha a empreendê-la. Sendo assim, o gnosticismo, diferente da Madre igreja, não oferecia a salvação coletiva através de um messias, pois que esta não poderia ser dada, mas sim conquistada por esforço pessoal, sendo intransferível. Este foi um dos motivos de divergência entre os cristãos gnósticos e os cristãos ortodoxos que, dentre outros motivos, acabou por gerar a expulsão dos primeiros, os quais, acusavam a Igreja de se desviar dos objetivos sagrados em favor de sua própria expansão. Enquanto os gnósticos buscavam qualidade, os ortodoxos buscavam quantidade o que tornava impossível a sua conciliação, visto que, estes dois princípios são diametralmente opostos em se tratando de verdadeira gnose.

Outro fator que tornava perigosos os seus ensinamentos perante a Igreja era a sua concepção sobre o Cristo que, para o gnóstico, era uma presença espiritual e não um ser dotado de carne e osso, conceito docético e altamente combatido pela Igreja que desta forma veria seu líder transformado num mito. Para o gnóstico não só Cristo era uma presença espiritual como a sua morte na cruz não significava que a humanidade estava salva, mas sim que havia um caminho para a libertação. Mais uma vez seus ensinamentos chocavam-se com os da Igreja, para a qual Cristo teria morrido na cruz para salvar a humanidade.

Os gnósticos cristãos defendiam uma gnose oculta por traz das palavras de Jesus apenas compreensível àqueles que tinham “ouvidos para ouvir”, expressão utilizada para designar uma qualidade especial de homens que seriam os verdadeiros gnósticos, nascidos em condições diversas dos demais seres humanos.

Segundo a sua gnose os seres humanos não vinham ao mundo em condições básicas de igualdade, havendo três tipos básicos: os hilicos ou materiais, os psíquicos e os pneumáticos. Os hilicos eram aqueles de mentalidade carnal e terrena , ocupados somente com o mundo material. Os psíquicos eram aqueles que viviam pela fé e pelas boas obras, mas que ainda estavam muito presos a ilusão material. Os pneumos eram aqueles portadores da centelha divina e portanto os únicos capazes de entender a gnose e de, através do auto-conhecimento, abandonar a dualidade e alcançar a unidade com Deus. Pode parecer a princípio que os pneumos eram privilegiados, mas era deles que se exigia mais, muito mais do que das outras duas ordens inferiores. “Daquele a quem muito se deu, muito será pedido, e a quem muito se houver confiado, mais será reclamado” (Lucas 12,48.)

Resumindo, no entender dos gnósticos eles deveriam ampliar cada vez mais o auto-conhecimento, pois esta era a única forma de conhecer Deus. O objetivo final era a volta às origens ou, melhor dizendo, o retorno à Luz que nasce de si mesma. Daí partira o ser portador da fagulha divina, separando-se da Fonte primordial, ao passo que antes era um com Ela. Dividido e aprisionado no mundo material ele deve lutar para voltar à sua condição primeira, abandonando a dualidade e atingindo o estado de uno com a divindade, quando poderá ser chamado de Filho de Deus.


Seitas gnósticas

Nesta sessão do artigo faremos uma análise sobre as principais seitas gnósticas cristãs. Infelizmente o estudo é limitado pelo breve espaço que contem um artigo e não faz justiça a enorme riqueza de ensinamentos que são pertinazes ao assunto, além do que, o número de seitas que estarão inseridas aqui é infinitamente menor do que aquelas que povoaram o espaço cultural e social do séc. II.

Tentei, na medida do possível, selecionar as seitas que maior influência tiveram no pensamento religioso da época e das quais muitas das outras doutrinas derivaram. Deste modo, pretendo levar o leitor a um conhecimento geral sobre o assunto, não deixando de aconselhar uma pesquisa mais profunda aquele que pelo tema se apaixonar.

Antes de entrar no gnosticismo, propriamente dito, pretendo expor o pensamento de Simão, o mago, que fazia parte da gnose judaica e que serviu de alicerce à combinação de idéias e à formação daquilo que mais tarde viria a ser classificado como sistema gnóstico. Pretendo com isto oferecer ao leitor informações pré-gnósticas, buscando facilitar o entendimento da teologia das diversas seitas que são o objeto de nosso estudo.

A fonte de pesquisa principal deste assunto foram os escritos de diversos heresiologistas que, como citado anteriormente, na ânsia de destruir um sistema acabaram por perpetuá-lo até os nossos dias. É claro que se por um lado o perpetuaram, por outro, o rechearam de interpretações pessoais dificultando o nosso aprendizado. Por isso, que o leitor me desculpe se alguns pontos do discurso parecerem demasiado obscuros.


Simão, o mago

Simão era originário da Samaria e popularmente conhecido como um exímio praticante das artes mágicas. Sua fama como homem sábio correu mundo, sendo considerado a encarnação do Logus, tal como o Jesus dos católicos, sendo esta a provável origem de toda animosidade cristista em relação à sua pessoa.

Considerava que o mundo derivava de um Potência infinita que podia ser figurada pelo fogo e baseava sua premissa nos escritos de Moisés que afirmavam ser Deus fogo que arde e consome. A estrutura deste Fogo Supra-Celestial diferia da estrutura simples inerente aos quatro elementos. Sua natureza era dupla e continha na sua composição um lado oculto e outro manifesto que se entrelaçavam formando uma unidade . A parte manifesta continha a oculta e esta última era a responsável pela existência da primeira.

O mundo engendrado provém deste Fogo Inato. Para que a criação do mundo se torna-se uma realidade, o Princípio de todas as coisas emanou as seis primeiras raízes que são o princípio da criação. Simão chamou a estas raízes de Intelecto, cujo par é Intelecção, Voz, cujo consorte é Nome e Razão, cuja contraparte é Reflexão.

Toda a Potência infinita está contida nestas seis raízes, mas o seu estado é de potência e não de ato, ou seja, está na condição daquele que pode vir a ser, mas que ainda não o é, como a semente que contém todo o potencial do fruto, mas ainda é apenas a semente. Se aquilo que se encontra nas seis potências se converte na imagem exata , tanto em essência, quanto em potência, em magnitude e em perfeição da Potência Inata e infinita, passa a ser conhecido como aquele que permanece, permaneceu e permanecerá, ou seja, aquele que está firmemente de pé. As conotações temporais desta designação são mera alegoria que nada têm a ver com um sentido cronológico e expressam: no tempo presente, aquele que permanece, o elemento transcendente, o espírito perfeito que se encontra no Pleroma desde a sua origem; no tempo passado, aquele que permaneceu, o processo pelo qual o imperfeito alcança a perfeição gnóstica e, na condição futura, aquele que permanecerá, o ato final da elevação, o regresso aquele que está de pé, à imagem exata da Potência Infinita, também classificada como a sétima potência. As três expressões configuram uma história atemporal que é o paradigma da história da salvação do homem.

Da união entre as seis raízes primordiais e a sétima potência, imagem da Potência Infinita, surge o mundo como o conhecemos. Correlacionando-o com as seis potências ou raízes obtemos: Intelecto / Intelecção correspondendo a Céu e Terra; Voz / Nome se tornando Sol e Lua; Raciocínio / Reflexão se transformando em Ar e água.

Na filosofia simoniana todas as coisas criadas estão impregnadas do Fogo Supra-Celestial, embora este se encontre na forma da semente que pode vir a ser e não do fruto que já é.

Depois de criar o mundo, Deus criou o homem e fê-lo, segundo Simão, não à sua imagem e semelhança, mas à imagem e semelhança das realidades superiores, plasmando-o no paraíso. Trazendo este pensamento abstrato para uma realidade palpável, temos que o mago transpõe o paraíso para o útero materno. Para isto ele se sustenta nas escrituras que em Isai. 44, 2.24 afirmam: “Eu sou quem te transplantou para o útero de tua mãe”. Se Deus plasma o homem no útero de sua mãe podemos dizer que o útero é o paraíso e que o Éden é á placenta.

A passagem do Gênesis que diz haver um rio que brota do Éden e irriga o paraíso é correlacionada, no sistema simoniano, com o cordão umbilical. Este cordão se divide em quatro braços, duas artérias condutoras de pneuma, o princípio espiritual, e duas veias condutoras de sangue que, ao saírem do Éden (placenta), se ligam às portas do fígado do feto, alimentando o nascituro. O pneuma, desembocando na aorta que está próxima à coluna vertebral, dá o alento de vida ao corpo da criança que está para nascer e lhe proporciona o movimento. Os quatro braços do rio são os sentidos visão, audição, olfato e gustação que representam a Lei que Deus deu a Moisés e, portanto, relacionados com os livros Gênesis, Êxodo, Levítico e o Deuteronômio.

Em todos os seres o desejo de geração provém do fogo. É assim que nos dizemos “arder de desejo” diante daquele que é o objeto de nosso amor. Para Simão, o fogo é uno e, quando trazido ao gênero humano, sofre uma adequação que lhe permite estar contido tanto no homem quanto na mulher. No homem, o sangue vermelho e quente, portador do fogo se transforma em esperma. Na mulher, o mesmo sangue se torna leite. A transmutação do Fogo ocorrida no homem é potencialmente gerativa e na mulher esta mesma transmutação é nutritiva. As duas funções se complementam pois, enquanto um gera, o outro alimenta o pequeno ser que acaba de nascer. Através da semente do macho e do alimento na fêmea, o Logus ali contido encontra a via ideal para tornar-se Logus das almas e passar de pequena centelha divina a perfeita imagem da Potência Infinita.

Não se sabe se alegórico ou não, relata-se nos livros que Simão possuía uma companheira que era chamada Helena, a quem ele havia tirado de um prostíbulo na cidade de Tiro na Fenícia. Segundo os relatos, Simão considerava Helena como sendo a Intelecção, princípio passivo feminino e a si mesmo como sendo o Intelecto, princípio ativo masculino , ou seja, ambos representavam as potências primordiais que, quando em perfeita cópula, dão origem a um ser andrógino, imagem da Potência Infinita. Sendo assim, sua filosofia considera que pode se alcançar o estado de perfeição através do ato sexual, bem como, defendia que este poderia ser realizado de maneira espontânea com qualquer mulher. Este ponto de vista ia de encontro à rígida moral vigente e lhe acarretou o título de libertino.

O sistema do Princípio primordial e suas raízes que deram origem ao mundo influenciaram em muito as diversas seitas cristãs gnósticas, dentre estas, a que sofreu maior influência do pensamento simoniano foi a dos valentinianos, a mais importante seita gnóstica do séc. II. Além do mais, Simão divulga a presença da centelha do Pai no homem, levando-o, quando desenvolvida, ao estado de perfeição e divinização. Estas, dentre outras, são as razões que levam os estudiosos a considerar Simão o precursor do gnosticismo e, portanto, verdadeiramente importante para o estudo deste sistema.


Gnósticos cristãos

Os gnósticos cristãos eram membros das comunidades cristãs como atestado pelos próprios heresiólogos.

A teologia dos gnósticos se baseava numa interpretação do Novo Testamento e do Antigo Testamento, sendo suas questões doutrinais, a Trindade, a Criação, a Divinização do Homem, a Redenção, o Nascimento Virginal, a Crucificação, a Igreja e o Fim do Mundo.

Os gnósticos se mantiveram muito próximos da Grande Igreja na teologia trinitária, embora mantivessem posição divergente no que concerne à criação, ao Antigo Testamento, a antropologia e a cristologia. Para eles era necessário aprofundar o sentido dos textos revelados.

A constatação de que os gnósticos pertenciam a Igreja não afeta a originalidade de seu pensamento, o qual, apresentava como características um aprofundamento da exegese dos textos sagrados e uma maior abertura em direção ao helenismo, em particular, o platonismo.

Para organizar nosso estudo dividiremos os pensamentos gnósticos naqueles que se baseiam principalmente no Antigo Testamento e aquele outro grupo que toma como ponto de partida o Novo Testamento, ressaltando porém que ambos utilizam as duas fontes.


A) Exegese do Antigo Testamento

Satornilos

Stornilos, ensinou em Antióquia no período de 117-138, reinado de Adriano.

Seu pensamento sustentava a radical distinção entre o Deus supremo e o criador, Deus dos judeus, descrito de forma muito negativa. Desta forma angariava inimigos tanto judeus com judeus-cristãos, cujo principal centro era Antióquia.

A cosmogonia e a antropogonia satornilianas se baseavam em uma interpretação dos primeiros capítulos do Gênesis.

Sustenta que existe um Pai desconhecido por todos, que criou anjos, arcanjos e potências, sendo o mundo e o homem criados por sete anjos.

A criação do homem se deu quando das alturas desceu uma imagem luminosa que os anjos não puderam reter. Desejaram então criar o homem à sua imagem, mas por possuírem pouca destreza, sua obra não podia ficar de pé e se arrastava pelo mundo. A Potência superior se apiedou da criatura, pois havia sido feita à sua imagem e enviou uma centelha divina que o colocou de pé e o fez viver. Após a morte, a centelha divina volta à sua origem e tudo o mais se dissolve.

Ensina que o Salvador não nasceu de uma mulher, que é incorpóreo e sem forma, mas que se manifestou sob a forma de homem.

Parece ter presenciado a destruição de Jerusalém, após a qual não se ouve mais falar dele.


Os Ofitas

Este grupo venerava a serpente do Paraíso, símbolo de sabedoria, pelo fato de haver enfrentado o Deus da criação mosaica. Sua angeologia se remete ao esoterismo apocalíptico e especulam sobre as duas Igrejas, a celestial e a terrena, acreditando na ressurreição da carne.

Os Ofitas parecem ter sido um grupo alexandrino que adotava um sincretismo egípcio, mistura de judaísmo, magia e cristianismo com toques de platonismo.


Os Naasenos

O nome desta seita deriva de nahas, serpente, e têm as características dos ofitas, na mediada em que adoram a serpente.

Considera que a serpente é o princípio cosmogônico absoluto, cujos atributos são o bem e cuja obra é a beleza.


Os Peratas

Os Peratas partem de uma interpretação do Antigo Testamento, principalmente dos primeiros versículos do Gênesis, aqueles que se referem às águas, o mar Vermelho e a serpente do deserto, convertida em ponto principal de sua alegoria cristã. Seu sistema sofre influência de idéias astrológicas e platônicas.


Os Setianos

O sistema Setiano se baseia numa interpretação alegórica do Pentateuco.

A serpente é uma representação do Demiurgo e também o disfarce através do qual o Logus penetra no seio da Virgem.

São ecléticos, inspirados no dualismo cosmológico platônico, com superficiais elementos aristotélicos e estóicos.


Os Cainitas

Este grupo representa um caso extremo de oposição ao Deus do Antigo Testamento.

Sustentam que Judas era o único dos apóstolos que possuía gnose e por isso realizou o mistério da traição através do qual Cristo foi crucificado, salvando a humanidade.


B) Exegeses do Novo Testamento

Basílides

Basílides foi discípulo de Menandro e condiscípulo de Satornilo em Antióquia. A atividade de Basílides parece estar limitada ao Egito e está situada no período do imperador Adriano, 117-118, segundo informação de Clemente de Alexandria.

Sua gnose atestava que havia um Pai ingênito que havia engendrado em primeiro lugar o Intelecto. Do Intelecto veio o Logus, do Logus a Prudência, da Prudência a Sabedoria e a Potência. Os nomes destas três formas divinas são, respectivamente, Noús, Lógos, Phrónesis, Sophía e Dínamis. Os três primeiros Eons constituem o Pleroma que é o Filho Unigênito, forma através da qual o Pai, não engendrado, se comunica com o exterior. O Filho possui tripla perfeição: como Intelecto está destinado a ser a compreensão do Pai para todos os seres inferiores; como Logus é o conjunto das formas que realizará os planos divinos; como Phrónesis é a providência que velará pela consumação da economia. De Phrónesis derivam simultaneamente Sophía e Dínamis, estando a primeira relacionada com os homens, em particular os eleitos, e a segunda corresponde ao Logus na sua função criadora do mundo.

A partir de Sophía e Dínamis procederam as potestades, os arcontes e os anjos, chamados “primeiros”, os quais criaram o primeiro céu. Depois outros anjos procedentes dos primeiros fizeram um céu igual ao anterior e logo outros anjos surgiram, formando o terceiro céu e, assim por diante, até chegar a uma totalidade de 365 céus que se iguala aos 365 dias do ano. Os anjos que ocupam o último céu, que é o que pode ser visualizado pelos homens, formaram todas as coisas deste mundo e dividiram entre eles a Terra e todas as raças de homens que nela habitam. O príncipe de todos estes anjos, supostamente o Deus dos judeus, desejou tomar para si todas as outras raças o que debelou uma rebelião contra ele.

O Pai Inominado, ao presenciar a perversidade dos arcontes, enviou seu primogênito, Intelecto, chamado Cristo, a fim de libertar aqueles que estavam sob o domínio dos que haviam criado o mundo. Cristo, segundo Basílides, apareceu entre os arcontes como homem que operava milagres e, diferente do que se conta, não padeceu a paixão. Em seu lugar padeceu Simão de Cirene que, ao carregar a cruz, foi confundido com Jesus e crucificado em seu lugar. Jesus, como potência incorpórea, podia alterar sua forma física, tomando, naquele momento, a aparência de Simão e saindo incólume da crucificação. Desta forma, retornou ao Pai que o havia criado.

Aquele que conhece os mistérios e sabe quem são os anjos, bem como a forma pela qual se originam, se faz invisível diante das potestades e retorna ao Pai.

Os basilidianos são acusados de praticar magia, encantamentos, evocações e toda a classe de ritos extraordinários.

Situam a posição dos 365 céus em conformidade com os ensinamentos astrológicos.

Defendiam a existência de um ser onipotente, abaixo do Deus superior, que presidia todas as coisas e cujo nome era Abraxax.

O nome Abraxax tem o valor numérico de 365, igual ao número de dias no ano. O deus Abraxax era, portanto, o símbolo do ano, o símbolo da trajetória da Terra ao redor do Sol. Devido ao seu valor místico, a palavra Abraxax acabou sendo inscrita em várias pedras e jóias, passando a constituir amuletos que protegiam aqueles que os portavam.


Carpócrates

Cárpocrates e seus discípulos dizem que o mundo foi criado por anjos muito inferiores ao Pai Ingênito e que Jesus nasceu de José. Semelhante ao resto dos homens, foi superior a todos, pois sua alma conservava a recordação do que havia visto em seu movimento circular em torno do Deus Ingênito. Por isto, lhe foi enviada pelo Pai uma potência que o capacitou a escapar dos criadores do mundo. A alma, passando por eles e alcançando completa liberdade, ascendeu até ao Pai. O mesmo ocorre com todo homem que resolve abraçar a mesma disposição que Jesus teve de se libertar.


Valentino

O maior de todos os pensadores gnósticos do segundo século II foi Valentino, que ensinou por volta do ano 137 d.C.

Ele estabeleceu escolas no Egito, no Chipre e em Roma, sendo esta última a mais famosa de todas. Ptolomeu foi um de seus alunos mais dedicados e foi quem deu continuidade aos ensinamentos do grande pensador.

Valentino considerava-se cristão e sua premissa básica era elaborar uma filosofia cristã, na qual, um dos pontos mais importantes era a demonstração de como o mal havia penetrado no mundo. Este era o tema central da maioria das seitas gnósticas ditas cristãs, pois que era difícil ao coração e mente humanos compreenderem como um Deus perfeito poderia ter permitido que o mal penetra-se em sua criação. Da filosofia de Valentim derivam, com algumas variações, muitas das outras filosofias que vieram a constituir um corpo individual e a formar uma seita, por isso, explicaremos com maior riqueza de informações sua mitologia, procurando fornecer ao leitor um panorama geral do chamado “mito da queda”.


Para os valentinianos existia um Eon perfeito, chamado de Pré-Princípio, Pré-Pai ou Abismo que era eterno e não engendrado. Com ele vivia Pensamento, chamado de Graça e Silêncio.

O Eon perfeito pensou em emitir um princípio de todas as coisas e depositou sua intenção na forma de semente em Silêncio. Esta, ao engravidar, pariu Intelecto, semelhante ao emitente e por isso mesmo o único capaz de abarcar a magnitude do Pai. Este Intelecto também é conhecido como Unigênito, Pai e princípio de todas as coisas, tendo sido emitido junto com o Eon Verdade. Esta tétrada é a raiz do universo: Abismo e Silêncio, Intelecto e Verdade.

O Unigênito, compreendendo o motivo pelo qual fora criado, emitiu Logus e Vida que emitiram Homem e Igreja. Esta é a ogdoada, raiz e subsistência de todas as coisas. Cada uma destas raízes é andrógina: Abismo tem como conjugue Pensamento, o Intelecto tem como contraparte a Verdade, Logus tem como companheira a Vida e o Homem a Igreja. A ogdoada é então conhecida por quatro nomes, Abismo, Intelecto, Logus e Homem. Sendo UM na verdade são Dois, pois o andrógino contém, em si mesmo, a fêmea.

Logus e Vida, após emitirem Homem e Igreja, tendo testemunhando o poder do Pai, desejam glorificá-lo e, em sua homenagem, emitem outros dez Eons, Profundo e Mistura, Imarcescível e União, Genuíno e Prazer, Imóvel e Comunhão, Unigênito e Beata. Por sua vez, Homem e Igreja, também glorificam o Pai emitindo doze Eons, Paráclito e Fé, Paternal e Esperança, Maternal e Caridade, Intelecto Perdurável e Entendimento, Igreja e Beatitude, Desejado e Sabedoria (Sophia).

Este é o Pleroma invisível e espiritual dos valentinianos, composto de trinta Eons e dividido em ogdoada, década e duodécada.

De todos os Eons apenas Intelecto contempla e compreende o Pré-Pai, embora todos os demais desejem também se deleitar na sua contemplação.

Sophia, o último Eon, tomada de audácia, resolve se lançar à procura da Fonte Criadora e na ânsia de compreender sua grandeza, comete “adultério”, experimentando uma paixão sem o abraço de seu conjugue, Desejado. Se debate incessantemente diante da impossibilidade de seu empreendimento, tendendo sempre a ir mais longe sob a influência do amor que devotava ao Pré-Princípio. Não encontrando Limite, a força que mantém os Eons fora da inefável grandeza, finda por ser absorvida e dissolvida na substância universal. Reconhece, finalmente, que o Pai é incompreensível e abandona sua intenção, deixando também de lado a paixão que com ela sobreveio. Passa então a suplicar o seu retorno ao Pleroma.

A atitude de Sophia não deve ser compreendida como um erro, pois ela é o Eon mais perfeito da duodécada e representa o cume do processo de formação substancial do homem superior. Concluindo-se o trigésimo Eon, o Pleroma está agora disposto a receber a gnose, do mesmo modo que Jesus, aos trinta anos, está pronto para receber o Espírito Santo.

As súplicas de Sabedoria para voltar ao Pleroma são ouvidas pelo Pai que, através de Unigênito, emite Limite à sua própria imagem, o qual, é conhecido sob o nome de Cruz, Redentor, Emancipador, Limitador , Reintegrador. Limite então, pela graça do Pai, purifica, consolida e restabelece Sabedoria ao seu conjugue, expulsando a sua intenção e paixão para fora do Pleroma, crucificando-as.

Intenção, embora amorfa e desprovida de compreensão, constitui uma substância espiritual, pois possui o impulso natural do Eon.

De forma a que o ocorrido com Sophia nunca mais viesse a ocorrer com nenhum outro Eon, o Unigênito, sob a orientação do Pai, emite Cristo e Espírito Santo, destinados à fixação e consolidação do Pleroma. Cristo anuncia entre os Eons o conhecimento sobre o Pai, enquanto o Espírito Santo os ensina a praticar eucaristia, trazendo o verdadeiro repouso.

A conjunção de Cristo e Espírito Santo significa a unção do espírito. A nível gnoseológico significa que recebeu a gnose suprema, a visão de Deus. A nível ontológico, significa que passou a ser Deus.

O mito de Valentino desdobra a conjunção Cristo-Espírito Santo, pois enquanto o primeiro ensina, o segundo introduz ao repouso. Na vida de Jesus observamos duas épocas distintas, aquela que vai do batismo até à ressurreição, na qual, se dedica a ensinar, atividade do Cristo ; e outra que vai da ressurreição até a ascensão, durante a qual, os apóstolos são elevados à gnose pela ação do Espírito Santo.

O Logus divino, criado pela unção do espírito, corresponde ao Logus interno e delimita a intenção criadora e manifestadora do Pai, mas subsistindo ainda em seu próprio espírito, não tendo sido proferido.

Após a sua consolidação, os Eons, por sua própria vontade, emitiram juntos um ser de indescritível beleza que continha a essência mais bela e mais perfeita de cada Eon. Este ser é Jesus, também chamado de Salvador, Cristo, Logus e Todo, pois provém de todos.

Este ato comum dos Eons representa um estagio importante no nascimento do Logus que, ungido pelo Espírito Santo, está projetado ao exterior e à salvação, como fruto perfeito de todo o Pleroma: Jesus-Cristo-Salvador-Logus. Este é o meio através do qual, Deus, produz seu Logus, como pessoa subsistente, em um substrato pneumático próprio, ou seja, em um princípio espiritual próprio.

Fora do Pleroma, a intenção da Sabedoria superior, chamada de Achamot, entrou em ebulição nas regiões de sombra e de vazio, por ter saído da luz e do Pleroma informe e sem figura, como um aborto, não compreendendo nada. O Cristo se apiedou dela e estendendo-se através da Cruz, com sua própria potência lhe deu forma, mas somente em relação à substância e não em relação ao conhecimento, retornando logo após ao Pleroma.

Uma vez formada, mas vazia do Logus invisível que lhe ajudara, ou seja, Cristo, se lançou em busca da luz que a havia abandonado, não conseguindo alcançá-la devido ao impedimento de Limite.

Como não pudesse voltar ao Pleroma, pois ainda trazia acoplada a paixão, sofreu toda série de arrebatamentos, tristeza, temor pela própria vida, perplexidade etc. O sofrimento, ao contrário do que acontecera com a Sabedoria superior, sua genitora, não lhe acarretou transformação, mas sim, contrariedades e uma grande disposição para doar a vida. Esta foi a origem da matéria que constituiu o mundo e sua alma, bem como ao Demiurgo.

Depois que a paixão de Achmot havia sido superada, ela voltou-se para o Pleroma e suplicou que a salvassem. Cristo, apiedando-se mais uma vez, envia a Paráclito, o Salvador, ao qual o Pai outorgou toda a potência. Do mesmo modo fizeram os Eons, de forma a que nele tudo fora criado, o visível e o invisível.

O Salvador deu a Achmot a formação, desta feita, segundo o conhecimento, e a curou de suas paixões. Achmot, diante da visão dos anjos que acompanhavam Paráclito, engravidou e concebeu espíritos que eram a imagem daqueles anjos.

Segundo Valentino havia três substratos para a formação do mundo: o material, que procedia da paixão; o psíquico, que procedia da conversão de Achmot; e aquele que havia sido parido, o espiritual.

A partir da substância psíquica foi formado o Demiurgo que se tornou Pai e Rei de seus consubstanciais e daqueles procedentes da matéria. Os valentinianos sustentam que ele é a origem de todos os seres criados depois dele e, sendo ignorante, desconhece que tudo é criado através dele pelo estímulo da mãe, Achmot. Criou-se então, o céu e a terra.

O Demiurgo, uma vez criado o mundo, criou o homem terreno a partir da confusão e da fluidez da matéria, infundindo em alguns deles o homem psíquico e revestindo-o de pele, a carne sensível.

O broto espiritual, concebido por Achmot diante da contemplação dos anjos, passou desapercebido ao Demiurgo e foi ocultamente introduzido nele, de forma a que, quando este soprasse sobre o homem o hálito vital, lhe comunica-se também a centelha divina, de modo a que, crescendo dentro do homem, este se torna-se capaz de receber o Logus perfeito. Aqueles que recebem esta centelha divina, visto que não são todos, constituem o homem espiritual, o qual, recebe a alma do Demiurgo, o corpo do barro e o espírito da Mãe Achmot. Eis o que para os valentinianos constitui o homem gnóstico.

Estas três raças de homens, a saber, o material, o psíquico e o espiritual, representam três possibilidades distintas de salvação. A salvação, ao contrário da Igreja ortodoxa, vem determinada pela essência e não pela conduta.

O homem espiritual se salvará, ou seja, chegará à perfeita gnose no Pleroma, graças à semente espiritual que traz junto com ele. O homem material não pode se salvar, pois a essência material é incapaz de salvação. O homem psíquico não pode alcançar a perfeita gnose, mas receberá uma beatitude psíquica extrapleromática, se observar a boa conduta. O homem espiritual é livre na medida em que não está sujeito às potências deste mundo, as quais, determinam o destino do homem; o psíquico tem o seu destino vinculado ao seu libre arbítrio e o material não goza de liberdade, pois está irremediavelmente preso à matéria.

O espiritual possui apenas o germe do pneuma imperfeito, feminino. Este germe é passível de se desenvolver e alcançar a semelhança com seu correspondente masculino, o Salvador, que será seu esposo na consumação.

O ser espiritual é educado junto com o psíquico no que concerne à conduta. Isto indica, claramente, que não há concessões ao libertinismo, o espiritual está sujeito as mesmas regras morais que o psíquico. A única coisa que varia é a conseqüência da transgressão: o pneumático não pode perder nada, o psíquico perde tudo.

Quando todos os elegidos alcançarem a perfeição, Achmot entrará no Pleroma e receberá seu esposo, o Salvador, dando-se a consumação final. Os espirituais se despojarão de sua alma e matéria, ascendendo como espíritos puros ao Pleroma, onde se juntarão a seus conjugues masculinos, os anjos, à imagem dos quais foram gerados. O Demiurgo assumirá o lugar de Achmot e o fogo que se encontra oculto no mundo consumirá toda a matéria.

Este é o mito da queda, segundo Valentim, resumidamente demonstrado neste artigo, pois os seus ensinamentos prosseguem com a explicação docética a respeito do surgimento de Jesus Cristo, como salvador. Segundo o docetismo, Jesus não era dotado de corpo humano, mas sim uma aparência, uma presença espiritual. Para Valentino, seu corpo era etéreo e feito de substância celeste, totalmente diferente de nosso corpo material, pois era impossível para um Deus tornar-se homem, adotando a matéria impura. Esta reflexão a respeito de um Redentor etéreo que descia através das esferas do universo incomodava aos líderes da Igreja que, deste modo, viam a narrativa a respeito da vida de Jesus ser transformada em história mitológica.


Nag Hammadi, o passado está de volta…

No ano de 367 d.C., o mundo cristão estava em guerra consigo mesmo. Foi nesta época que chegou à comunidade monástica de Tabinnisi, próxima ao Nilo, a ordem para que Teodoro, diretor da comunidade, lê-se a 39a. Carta Festal de Athanasius, bispo de Alexandria, da qual passo a relatar alguns trechos.


[…] Mas desde então temos mencionado aos hereges como mortos e a nós como os possuidores das Divinas Escrituras para a salvação; e por isso temo menos, como escreveu Paulo aos corintos, que alguns dos simples se deixem enganar, por sua simplicidade e pureza, pela sutileza de certos homens, lendo outros livros, os chamados apócrifos, tomando-os, pela similaridade dos nomes, por livros autênticos; te suplico que tenhas paciência se escrevo também, de forma a recordar, sobre assuntos os quais já estás familiarizado, pois o faço levado pela necessidade e pelo maior proveito da Igreja. Ao mencionar estas coisas adotarei o que disse Lucas, o evangelista. Pois alguns hão tomado os apócrifos e os hão misturado com as Escrituras de inspiração divina, das quais temos sido plenamente persuadidos, como aquelas que desde o princípio foram testemunhos e ensinamentos da palavra entregue aos pais; também me parece bom, havendo sido apoiado a isto pelos irmãos, pôr diante de ti os livros incluídos no Canon, aqueles que foram entregues e acreditados como divinos; com a finalidade de que aquele que haja caído no erro possa corrigir àqueles que o hajam extraviado; e que aquele que permanece na pureza possa regozijar-se de novo, voltando estas coisas à sua lembrança…


Athanasius segue relatando os livros que serão aceitos como autorizados e divinos. Esta lista constitui o que hoje chega ao nosso conhecimento como Bíblia.


[…] Estas são a fontes da salvação, as que com as palavras nelas contidas podem satisfazer a quem tem sede. Somente nelas se proclama a doutrina da divindade. Que nenhum homem acrescente e nem retire nada delas. Pois neste ponto o Senhor envergonhou os saduceus dizendo-lhes: “Errais, não conhecendo as escrituras”. E reprovou aos judeus dizendo-lhes: “Busca as escrituras, pois estas dão testemunho de mim


Diante desta carta fica oficialmente decretado o esqueleto literário da Igreja, considerando-se tudo o que esteja além deste como apócrifo ou, melhor dizendo, não autêntico, duvidoso e, principalmente, fora da lei, constituindo uma heresia.

Nos nossos dias ser considerado herege, longe de uma depreciação, equivale a pensador independente e de arrojada intelecção. Mas, naqueles tempos, o termo herege era uma ofensa grave, tornando-se aquele a quem o termo era agregado, passível de excomunhão.

Aproximadamente no momento em que se transmitia a 39a carta de Athanasius, bispo de grande importância, conhecido por seu “dom” de introduzir o ódio e medo no coração dos não ortodoxos, um grupo de pessoas decidiu enterrar numa vasilha feita de argila vermelha 13 livros, atados com couro, que continham 46 textos diferentes e apócrifos.

Muitos, principalmente os da Igreja, têm afirmado que o objetivo de quem os enterrou era propiciar o seu desaparecimento, mas isto não condiz nem com a forma habitual de destruí-los que era queimando-os, nem com o cuidado com que foram guardados e que permitiu que se preservassem até ao nosso século. Quem quer que seja que os haja escondido demonstrou extremo carinho e extremo zelo na maneira como os escondeu na areia, demonstrando profundo amor pelas obras ali contidas.

A vasilha era como um pequeno útero que guardava, silenciosamente, um momento de nossa própria história.

Em dezembro de 1945, três filhos de Ali e Umm-Ahmad, do clã al-Samman, Mohammed, Khalifa e Abú al-Majd estavam trabalhando perto de al-Qasr, povoado situado a 6 km de Nag Hammadi, na estrada principal que conduz ao Cairo. O irmão mais novo, Abú, desenterrou a vasilha perto de uma pedra e o irmão Mohammed, dez anos mais velho, assumiu o descobrimento. A princípio não quiseram ver o conteúdo da vasilha com medo de que contivesse algum espírito maligno, mas depois retornaram ao local e a quebraram, tomando posse do seu conteúdo. Quando se aperceberam que seu conteúdo dizia respeito ao povo cristão se desinteressaram, queimando alguns e vendendo outros.

Por este motivo, somado a motivos políticos e religiosos, muitos dos documento contidos na vasilha, permaneceram em mãos de particulares e ocultos por muito tempo, levando um considerável tempo até a sua publicação. Somente em 1977, 32 anos após o descobrimento dos escritos, é que se publicou pela primeira vez a biblioteca de Nag Hammadi.

Se Mohammed Ali fosse capaz de ler copta, a língua do antigo Egito escrito em letras gregas, talvez tivesse atentado para o seguinte parágrafo, mudando, quem sabe, o destino dos apócrifos: “Te darei o que nenhum olho jamais viu, o que nenhum ouvido jamais escutou, o que nenhuma mão jamais tocou e o que nunca foi pensado por nenhuma mente humana.”


Conclusão

Apesar da diversidade de seitas gnósticas que divulgam uma infinidade de pensamentos, conforme a compreensão do universo alcançada por seu fundador, existe um núcleo que parece exercer forte poder sobre elas, mantendo-as orbitantes em torno deste ensinamento, assim como os planetas giram em torno do sol. Este núcleo exprime a natureza divina do homem, o portador da centelha do Pai, e a necessidade, quase instintiva, de se retornar à origem de tudo libertando-se da matéria, ou seja, retornar a Deus.

O método ensinado em todas as seitas para se alcançar esta libertação caminha pela senda do auto-conhecimento e pelo esforço pessoal. Não há uma fórmula salvadora e libertadora além do conhece-te a ti mesmo.

O que demarca a existência das diversas seitas gnósticas é a forma com que se exprime o mito da queda e o retorno à Luz Primordial, mas os gnósticos são os primeiros a afirmar que a verdade é universal seja qual for a forma por ela adotada para se manifestar. O fato de termos diversos planetas orbitando em torno do sol não invalida a veracidade da existência de cada um deles, do mesmo modo, a existência de inúmeras seitas gnósticas não invalida a veracidade de cada uma delas, principalmente se atentarmos para o fato de que seu ensinamento é único.

Semelhante ao que ocorria no séc. II, vemos nos nossos dias uma grande confusão política e social, levando a uma busca de novos valores e a uma conseqüente reinterpretação do mito divino com a formação de novas filosofias e religiões. O homem, indócil com sua condição, questiona suas origens e seu destino, buscando um caminho de libertação. As estruturas até agora vigentes se dizem herdeiras da sabedoria milenar e lutam pela manutenção do poder, acusando a sociedade emergente de herege e pecadora, passível de punição pela “bondade” divina. E ainda assim, mesmo sob a ameaça de excomunhão do reino de Deus, alguns homens e mulheres ousam erguer suas cabeças acima da ilusão moral criada e respirar outros mundos, criando outros pensamentos, outros conceitos de homem, de vida e de Deus. Estes homens e mulheres ousam pensar: a grande blasfêmia!

Estranho é que, justamente no atual contexto, a terra mãe comece a fazer ressurgir textos falando de outras realidades, outras possibilidades do ser, trazendo esperanças de um novo amanhecer. Estaríamos nós, em pleno séc. XX presenciando o ressurgimento do gnosticismo?

Não tenho resposta para esta questão. O fato é que ainda temos um longo caminho a percorrer. Somos como crianças que despertam de um longo sono, buscando ainda a coordenação de nossos próprios movimentos, tentando reaprender a andar e a pensar segundo nossa própria vontade. Despertos para uma realidade que ainda não compreendemos, buscamos reunir os retalhos que restaram do eclipse religioso a que inocentemente sucumbimos. O que é realmente válido é que estamos todos, de uma forma ou de outra, buscando reencontrar nosso elo perdido e, neste momento de caos, é importante que relembremos o ensinamento não só gnóstico, mas de todas as eras: Homem, conhece-te a ti mesmo.


A Missa Gnóstica

Aleister Crowley escreveu o Liber XV, a Missa Gnóstica, em 1913, em Moscou, o ano logo após de sua nomeação por Theodore Reuss como o Xº Cabeça da Seção Britânica da O.T.O. De acordo com W.B. Crow, ele a escreveu “sob a influência da Liturgia de São Basílio da Igreja Russa”. Crowley publicou a Missa Gnóstica três vezes durante sua vida: em 1918 em The International, em 1919 em The Equinox, Volume III, No. 1 (o “Equinox Azul”), e em 1929/30 no Apêndice VI de “Magick in Theory and Practice” (“MTP”). Theodore Reuss publicou uma versão alemã em 1918. Dizem que Jane Wolfe participou de celebrações da Missa Gnóstica com Crowley em Cefalú, mas a primeira celebração pública registrada da Missa Gnóstica foi feita num Domingo, em 19 de março de 1933 e.v., por Wilfred T. o Smith e Regina Kahl em Hollywood, Califórnia. Crowley escreve no Capítulo 73 de seu “Confessions”:

Durante este período a total interpretação do mistério central de maçonaria tornou-se claro à consciência, e eu expressei isto de forma dramática em “The Ship”. O clímax lírico é em algum aspecto a minha realização suprema na invocação; de fato, o coro começa:


“Tu que és eu além de tudo que sou…”


pareceu-me digno de ser introduzido como o hino no Ritual da Igreja Gnóstica Católica, que, mais tarde naquele ano, eu preparei para o uso da O.T.O., a cerimônia central de sua celebração pública e privada, correspondendo à Missa da Igreja Católica Romana.

Enquanto lido com este assunto eu posso também delinear seu escopo completamente. A natureza humana necessita (no caso da maioria das pessoas) da satisfação do instinto religioso, e, para muitos, isto pode ser melhor realizado através de meios cerimoniais. Eu desejei então construir um ritual pelo qual as pessoas pudessem entrar em êxtase assim como elas sempre o fizeram sob a influência do ritual apropriado. Nos recentes anos, houve um fracasso crescente em se atingir este objetivo, devido aos cultos existentes chocarem suas convicções intelectuais e ultrajarem seu bom senso. Assim suas mentes censuram seu entusiasmo; eles são incapazes de consumar a união de suas almas individuais com a alma universal assim como um noivo consumaria seu matrimônio se seu amor fosse constantemente lembrado que suas suposições eram intelectualmente absurdas.

Eu decidi que meu Ritual deveria celebrar a sublimidade da operação de forças universais sem introduzir discutíveis teorias metafísicas. Eu não faria nem sugeriria qualquer declaração sobre a natureza que não fosse endossada pelo mais materialista homem científico. Superficialmente isto pode soar difícil; mas na prática eu achei totalmente simples combinar as concepções racionais mais rígidas do fenômeno com a celebração mais exaltada e entusiástica da sublimidade delas.

A palavra “Missa,” de acordo com a Igreja Católica Romana, vem da palavra latina Missa, “despedida,” da frase usada na conclusão de algumas antigas liturgias, “Ite, missa est” (“Vade, esta é a despedida”). Apesar da origem de seu nome, a cerimônia eucarística da Missa não se originou com Cristianismo, nem é exclusiva propriedade de qualquer religião em particular. Crowley reconheceu nas Liturgias dos Ritos Russos e Romanos os padrões belos e complexos de uma profunda tradição simbólica, brilhando sob a crista do dogma religioso escolástico.

O ritual eucarístico que constitui a essência da Missa é muito mais antigo que o do Cristianismo; de fato, alguns teólogos protestantes apontaram à Missa e aos seus componentes simbólicos evidências da corrupção da Igreja Católica pela incorporação de práticas e doutrinas pagãs “idólatras”. Alguns dos muitos exemplos disto incluem: a Hóstia redonda e Prato associado com o crescente prateado do Cálice como símbolos óbvios do Sol e da Lua; a Cruz do Altar como Objeto de Culto (Omphalos, Lingan ou a árvore Sagrada); a pia batismal como fonte sagrada; a Litânia dos Santos uma invocação dos espíritos dos antepassados; e a própria Eucaristia como um vestígio de sacrifício humano.

Alguns cultos totêmicos pré-históricos, pela evidência de certos cultos totêmicos modernos, podem ter criado uma forma de vínculo social através de festins rituais, especialmente festins que envolviam o consumo do totem animal ou planta. A Magia que enlaçava os destinos dos membros da sociedade totêmica com o do totem animal ou planta também enlaçava os destinos dos membros da sociedade totêmica entre si.

O sentimento de destino compartilhado, ou Espírito ou Magia compartilhada, tornou-se tão forte em alguns cultos totêmicos que eles começaram a criar sua própria e única identidade, com seus próprios atributos e até mesmo sua própria personalidade. És vezes ela se tornaria totalmente identificada com a personalidade de um herói ou xamã particularmente virtuoso e poderoso, uma identificação que permaneceria após a morte do herói. O herói, identificado com o Espírito de culto, não poderia ser dito que houvesse verdadeiramente morrido por tanto tempo quanto o próprio culto sobrevivesse. Ele tornou-se um homem divino, um híbrido entre o gênero humano e as forças da natureza, totalmente humano ainda que totalmente divino, que estava morto ainda que vivo, que portanto possuía poder sobre a vida e a morte.

A adoração primitiva de Dionísio, que pode ter se desenvolvido de um modo similar ao dos ritos de uma sociedade totêmica, incluia o ato de beber vinho e o consumo da carne crua de um animal sacrificado em um ritual chamado a Omophagia. O animal ou era um touro, ou um gamo ou um bode, todos sagrados a Dionísio em lugares diferentes, e era ritualmente rasgado em pedaços em comemoração do desmembramento de Dionísio-Zagreus, o pequenino filho de Zeus, pelas mãos dos Titãs.

A carne consumida na selvagem Orgia das Bacantes não era, contudo, a simples carne de um animal abatido. Primeiro, era um animal de um tipo que fosse sagrado ao Deus (i.e. um animal totem) e assim participando da natureza vital do Deus. Segundo, o animal enfrentava cerimonialmente os maiores e mais característicos ordálios do próprio Deus. Passando por este ritual de magia simpática, considerava-se que o animal tivesse assumido a verdadeira identidade do Deus. Sua carne, portanto, acreditada-se ter se tornado a verdadeira carne do próprio Dionísio. A vinha também era sagrada a Dionísio, e participava de sua natureza de um modo semelhante ao totêmico. Quando as Bacantes consumiam a carne e o vinho, elas consumiam o verdadeiro corpo e sangue de seu Deus. Integrando o corpo de seu Deus dentro da estrutura de seus próprios corpos individuais, elas realizaram a integração do Espírito do Deus dentro da estrutura de seus próprios Espíritos individuais. Isto não somente lhes dava acesso ao poder e à Magia do Deus, isto também lhes dava uma forte sensação de identidade com suas companheiras Bacantes, que eram insufladas com o mesmo Espírito divino.

Com o passar do tempo, a cultura grega se tornou mais refinada e complexa através do intercurso com outras culturas, tais como as do Egito, ásia Menor e Fenícia. A adoração primitiva de Dionísio sobreviveu porque era sensível à evolução e desenvolvimento.

Os Orfitas (que floresceram no Sec. VI p.e.v.) adotaram a religião Dionísica como sua própria. Eles suavizaram a selvageria de seus ritos, e usaram estes rito refinados para transmitir, por alegoria, os ensinos filosóficos de sua religião redentora. Sendo ascetas e vegetarianos, eles substituíram a sangrenta Omophagia por uma não-sangrenta comunhão sacramental de bolos feitos de farinha e mel em memória do filho assassinado de Deus. Os ensinos Órficos, preservado nos Hinos Órficos e desenvolvido nos Mistérios Gregos e os ensinos do mais famoso dos iniciados Órficos, Pitágoras, exerceu uma grande parcela de influência no desenvolvimento da mais recente religião e filosofia helênica, particularmente o Neoplatonismo e o Gnosticismo. Por estas vias entrou essa religião sincretista altamente próspera conhecida como Cristianismo.

A palavra “Gnóstico” é uma palavra grega que significa “que pertencem ao conhecimento”. É geralmente usada em referência a um grupo de primitivos sistemas religiosos Cristãos que se desenvolveu na assimilação cultural, religiosa e filosófica do Império Romano Oriental durante o primeiro século, e.v. e foi primeiramente centralizado em Alexandria, Egito. Coletivamente conhecidos como Gnosticismo, estes sistemas, considerados “heresias” pela teocracia cristã em desenvolvimento, tentaram fundir o Cristianismo Judaico com Filosofia Grega, Teurgia Egípcia e outros elementos. Tais sistemas incluíram os ensinamentos de Simão o Mago, Basilides, Valentino, Bardesanes e Marcion, assim como os de outros grupos conhecidos como Setianos e Naassenos. O termo “Gnóstico” também pode ser usado para se referir a outros sistemas religiosos que, embora não-cristãos, compartilharam muitas das visões dos gnósticos cristãos. A religião Orfita estava entre estes, assim como e estava os ensinos Herméticos da seita egípcia de Poimandres e a religião Manichaeana, e assim como está a religião do Mandaeanos do Iraque meridional.


Comparando os diversos padrões da tapeçaria Gnóstica, nós notamos alguns linhas em comum:


sincretismo simbólico e prático;

uma cosmogonia na qual a Matéria é separada do Espírito por uma série de emanações ou Eons, com o cosmos se originando de uma “mistura” do Espírito dentro da Matéria;

graus variados de sentimento anti-cósmico: desvalorização do mundo criado e da existência material, expressada ou no ascetismo ou no libertinagem;

a doutrina que o espírito humano é essencialmente divino;

um sistema de redenção através do misticismo e iluminação pessoal que é representado em um salvacionismo do “redimido redentor”;

uma escatologia enfatizando a separação final das Almas inocentes da Matéria e seu retorno ao puro Espírito.

Muitos, mas não todos, dos sistemas gnósticos colocaram o Deus Verdadeiro sobre o Deus adorado pela grande massa de humanidade. Este Deus inferior foi geralmente retratado como um poder arrogante e tirânico, ignorante de sua própria origem e limitações. Vários sistemas gnósticos foram caracterizados por uma ênfase na divina contraparte feminina à figura de Cristo, que foi variavelmente conhecida como Sofia, Helena, Ennoia, ou Barbêlô.

O elitismo da maioria dos sistemas gnósticos os levaram à máxima extinção a favor do mais populistas e militantes sistemas “ortodoxos” do Cristianismo, Islamismo e Zoroastrianismo; e muitas das escritas originais gnósticas foram sistematicamente destruídas. Algumas, contudo, sobreviveram, notavelmente o Corpus Hermeticum, o Códice Askew, o Códice Bruce, o Códice Akhmim e a Biblioteca de Nag Hammadi, assim como as escritas existentes do Manichaeanos e Mandaeanos. Muito mais informação relativa às doutrinas e crenças de várias formas do Gnosticismo primitivos foram transmitidas pelas obras dos escritores anti-heréticos primitivos cristãos tais como Justin Martyr (c.100-c.165 e.v.), Irenaeus de Lyons (c.100-203 e.v.), Clemente de Alexandria (c.155-c.210 e.v.), Tertullian de Carthage (c.155-c.230 e.v.), Hipólito de Roma (170-235 e.v.) e Epifânio de Salamis (315-403 e.v.), sendo o último uma fonte menos fidedigna que os outros.

Além de sua transmissão através da literatura, a corrente gnóstica parece ter retorcido seu caminho através da idade média em várias correntes distintas da tradição. A Gnose Hermética foi incorporada à ciência alegórica da Alquimia. O Gnosticismo egípcio influenciou o misticismo hebraico de Hekalot e da Merkabah que posteriormente desenvolveu-se para o Cabalismo. A Marcionita, e possivelmente a Manichaeana, Gnose foi preservada pelos Paulinos da Armênia e possivelmente influenciou os Bogomils da Bulgária que, em troca, ajudaram a fundar a seita Cátara ou Albigense do Sul da França no século 12. O Catarismo além disso influenciou o desenvolvimento do Cabalismo Judaico medieval como também as lendas cavalhereiscas do Santo Graal, e unido com as idéias esotéricas islâmicas (com suas próprias influências gnóstica e/ou neoplatônicas) no cristianismo não ortodoxo dos Cavaleiros Templários. Foram o Cabalismo, o Hermetismo e o Templarismo unidos ao Rosicrucianismo e à Maçonaria; que serviram de base à O.T.O., à Hermética Ordem da Aurora Dourada e à A∴A∴. A gnose Valentiniana discretamente entrou na estrutura e rituais sacramentais da Igreja Católica Romana.

As descobertas de algum do códices gnósticos, o Elenchos de Hipólito, e certos documentos cátaros inspiraram o Renascimento Gnóstico Francês do final do 19º século e.v.. O Renascimento Gnóstico Francês misturou os elementos do Templarismo, Rosicrucianismo, Igreja Cristã e Gnosticismo histórico em uma tentativa de reconstruir uma Igreja Gnóstica independente, um dos resultados disto foi a fundação de nossa própria Igreja Católica Gnóstica.

A união da Igreja Católica Gnóstica e da O.T.O. representou, então, uma confluência de numerosas correntes gnósticas dentro de um único corpo — um corpo que alcançou última realização na introdução da mais rescente e dinâmica corrente gnóstica, a Lei de Thelema, que foi introduzida na O.T.O. e na Igreja Católica Gnóstica pelo Mestre Therion.

Compondo Liber XV, Crowley tentou descobrir a oculta tradição gnóstica escondida dentro da cerimônia da Missa, para liberá-lo da escravidão às teorias escolásticas e dogmas da teologia Cristã, e para demonstrar a continuidade fundamental entre esta antiga tradição da Sabedoria e as modernas revelações e filosofia libertária de Thelema.


Nota

Este ensaio foi originalmente publicado em 1995 em “Mystery of Mystery: a Primer of Thelemic Ecclesiastical Gnosticism,” publicado por J. Edward e Marlene Cornelius como o Número 2 do privativo jornal Thelêmico Red Flame.


Referências

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Gerald Gardner e a influência de Crowley

Gerald Gardner

Gardner é de origem Inglesa, nascido em 13 de Junho de 1884, nas proximidades de Liverpool. Ele mesmo afirma que a bruxaria sempre esteve presente na sua família desde Grissel Gardner, que foi queimada na fogueira como feiticeira em 1610, remontando até mesmo a sua Avó, que também teria sido feiticeira, como outros parentes de sua linhagem.

Sofrendo muito de asma, Gardner foi morar em diversos locais com clima ameno juntamente com a empregada da sua família, Josephine “Com” McCombie. Morou nas Ilhas Canárias, Accra, Ilha da Madeira e Ceilão (atual Sri Lanka).

Voltando mais tarde para Inglaterra, casou com uma dama chamada Donna durante 33 anos. Donna nunca fez parte de suas práticas (bruxaria ou feitiçaria), assim desmistificando o fato de alguns livros sobre Wicca serem de sua autoria.


Witchcraft Today

Esse é um dos livros mais conhecidos do autor, que traz uma narrativa como a bruxaria sobreviveu até os dias atuais, alguns de seus ritos e inspiração.

Neste livro, vemos que Crowley e Gardner pareciam ser amigos próximos. O livro não traz detalhes claros de como ambos se conheceram. Alude, apenas, a certo momento em que Gardner pretendia mostrar que o “círculo mágico das bruxas” diferia de outros métodos e que a única pessoa que poderia ter criado algo parecido seria Aleister Crowley. Quando Gardner encontra com Crowley, ele estaria mais interessado em escutar se Gardner já tinha reescrito alguns desses métodos usados pelas bruxas. Gardner revela apenas que  ingressou muito jovem nas práticas antigas e que não diria se tinha reescrito algo.

Em outro momento, Gardner cita que Crowley estava interessado em cultos fálicos, assim como os membros de um lugar chamado Hellfire Club. Embalado nesse contexto, ele cogita que Crowley pertenceria ao “culto das Bruxas” e que certamente usou desse “culto” para elaborar rituais.

Temos também outras menções a Crowley, como a alusão à cerimônia da Missa da Fênix, na qual se corta o próprio peito e se faz uso desse sangue. Gardner usou esse ritual para defender o argumento de que não era estritamente necessário matar algo para utilização de sangue.


Ye Bok of ye Art Magical

Para muitos, esse nome é totalmente desconhecido. Já quando falamos do famoso “Livro das Sombras” gardneriano, é algo de reconhecimento instantâneo. Na verdade, ambos são quase o mesmo livro. O Livro das Sombras é uma versão resumida do Ye Bok of Ye Art Magical.

O BAM (Ye Bok of Ye Art Magical) é um compilado de materiais que contém desde magia cerimonial salomônica até cultos relacionados às bruxas. Esse livro é a base de toda Wicca gardneriana e nele é onde encontraremos as maiores evidências que Crowley foi grande influência para Gardner.

A primeira parte do BAM traz passagem quase completas da parte IV do Book 4 e também da primeira parte.  Há também muitas passagens de “A Árvore da Vida”, do Regardie.

Na segunda parte nós temos, logo no início, uma descrição da bênção ao Pão e ao Vinho que consta na parte VI do Liber XV (a Missa Gnóstica da O.T.O.) e um conjunto de extrações consideravelmente iguais a do The Equinox Volume I Nº III.

As partes três e quatro do BAM são as que mais chamam atenção: elas contêm seguimentos ritualísticos adotados para a Wicca que foram retirados na íntegra da Missa Gnóstica, do Livro da Lei, Supremo Ritual e do The Equinox volume 3, parte 1 (The Blue Equinox). Destaca-se, por exemplo, a citação completa pela Sacerdotisa dos versículos do Livro da Lei, com a omissão do verso 62 da fala de Nuit, a frase que Gardner transforma em característica fundamental de seu sistema: “Faze o que tu queres desde que não prejudiques a ninguém”, sua interpretação pessoal de “Faze o que tu queres será o todo da Lei”.

E também quando o Sacerdote recita, ainda na Missa Gnóstica:

Oh, segredo dos segredos que estás escondido na essência de tudo o que vive, nós não Te adoramos, pois aquele que adora também és Tu. Tu és aquilo, e aquilo sou eu. Eu sou a chama que queima em todo coração humano, e no âmago de cada estrela. Eu sou a Vida e o doador da Vida; entretanto, o conhecimento de mim é o conhecimento da morte…


Gardner e a O.T.O.

Gerald Gardner foi mestre do corpo local da O.T.O. na Inglaterra e durante um curto período foi chefe da O.T.O da Europa, logo após a morte de Crowley.

Já foi alegado que a carta de Crowley elevando Gardner ao VII ° e autorizando o mesmo a realizar iniciações em nome da Ordem seria forjada, pois Gardner teria escrito o conteúdo da carta e Crowley assinado

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Religião do Sagrado Feminino

A mulher deve reaprender a celebrar a abundância da vida que existe em seu útero e reverenciar a Deusa através do sangue menstrual que flui através do colo uterino. Quando aceitamos a menstruação como algo sagrado, nos tornamos mais conscientes de suas influências e podemos usufruir de forma plena de seus benefícios. Desta forma, restabelecemos a nossa conexão com os Mistérios Femininos.

Segundo  J.J Bachofen, com base em suas pesquisas arqueológicas ele pode afirmar que “A maternidade foi à fonte de todas as sociedades humanas”.

No período Neolítico, décimo milênio A.c, a sociedade humana descobriu a agricultura, saindo da condição de nômades e aderindo a um estilo de vida sedentário. Agora possuindo moradias fixas; desenvolveram métodos de cultivo agrícola e descobriram como armazenar alimentos.

Neste período existe o primeiro indicio de religião, que assumiu a forma de um culto de natureza matrifocal. Foram encontradas em escavações várias estatuas femininas que representavam varias formas da Deusa, a figura maternal era totalmente associada à natureza, pelo seu poder de criar a vida e por sua fertilidade. Inclusive, foram descobertas dentro cavernas conchas com descrições “o portal por aonde a criança vem ao mundo”, feitas em Ocre Vermelho que simbolizava o sangue menstrual.

Na Tradição Sumério-babilônica o sangue menstrual é considerado sagrado, um símbolo que representa a vida, veículo pelo qual a Deusa Mãe Tiamat concebeu a vida, derramando seu sangue sobre a terra.

A passagem da cultura Matrifocal para a Patriarcal pode ser representada pelo mito da morte da Deusa Tiamat por seu inimigo o Deus Marduk. Que divide seu corpo em duas partes e com eles forma o céu e a terra.

O Sangue Menstrual e Seus Mistérios

Para todas as mulheres em idade fértil a fase menstrual é um período de grande intuição, criatividade e inspiração, o ápice do poder feminino. A palavra “menstruação” tem origem na raiz grega “men” que significa mês, e “menus”, que significa ao mesmo tempo lua e poder. Nessa fase  as mulheres ficam mais conectadas as energias astrais e aquilo que Jung chamava de inconsciente coletivo.

Embora se encontrem diversos tabus que tratem o sangue menstrual como algo impuro, nem sempre foi assim. Muitas culturas antigas acreditavam que a Lua  menstruava e que era um símbolo apropriado para a Grande Deusa Mãe. 

A  evolução do ciclo lunar de vinte e nove dias e meio aproximadamente, tal como o ciclo menstrual das mulheres, podia ser associado as Três Faces da Deusa como Jovem, Mãe e Anciã. Na fase da Lua Crescente a Deusa é jovem e cheia de vigor, já na Lua Cheia a Deusa é Mãe, e na Lua Minguante torna-se a Anciã. A Lua Negra (Lua Nova) corresponde à transformação da Deusa, a sua transição, a passagem pelo mundo dos mortos, para que depois reencarne e renasça como Jovem novamente.

Em tempos remotos o sangue menstrual era utilizado para fertilizar o solo para que seus nutrientes fossem absorvidos pelas plantas. Era desta forma, que as Antigas Sacerdotisas realizavam sua comunhão com Deusa, retribuindo seu sacrifício, que foi dar origem a vida infundindo seu sangue sobre terra. 

Também o sacramento com a ingestão do sangue era antes relacionado ao sangue menstrual da Deusa, por vezes chamado de Leite da Deusa Mãe, que conferia o poder da imortalidade.  No Egito antigo o leite de Ísis era muito utilizado nas procissões. Sua cor era rosada, que remete ao sangue menstrual, carregado dentro de um vaso com forma de vulva, às vezes derramado na terra para torna-la fértil e era famoso por seus poderes curativos. 

Eles também tinham a deusa Sekhmet, a Leoa Escarlate, a deusa da guerra e ligada ao ciclo menstrual das mulheres. Sekhmet é a guerreira sem medo, capaz de destruir e espalhar os flagelos, deusa selvagem e terrificante mas que, paradoxalmente, sua energia sanguínea pode curar os doentes assim como destruir os inimigos do Estado. A estátua de Sekhmet protegia as entradas dos templos egípcios e seu culto contribui para a manutenção da ordem cósmica.

Assim para as sacerdotisas que realizam trabalhos magísticos o sangue menstrual (sabiamente utilizado) pode ser fonte de enorme poder de cura assim como de precipitação (materialização) de suas magias.