Aleister Crowley escreveu o Liber XV, a Missa Gnóstica, em 1913, em Moscou, o ano logo após de sua nomeação por Theodore Reuss como o Xº Cabeça da Seção Britânica da O.T.O. De acordo com W.B. Crow, ele a escreveu “sob a influência da Liturgia de São Basílio da Igreja Russa”. Crowley publicou a Missa Gnóstica três vezes durante sua vida: em 1918 em The International, em 1919 em The Equinox, Volume III, No. 1 (o “Equinox Azul”), e em 1929/30 no Apêndice VI de “Magick in Theory and Practice” (“MTP”). Theodore Reuss publicou uma versão alemã em 1918. Dizem que Jane Wolfe participou de celebrações da Missa Gnóstica com Crowley em Cefalú, mas a primeira celebração pública registrada da Missa Gnóstica foi feita num Domingo, em 19 de março de 1933 e.v., por Wilfred T. o Smith e Regina Kahl em Hollywood, Califórnia. Crowley escreve no Capítulo 73 de seu “Confessions”:
Durante este período a total interpretação do mistério central de maçonaria tornou-se claro à consciência, e eu expressei isto de forma dramática em “The Ship”. O clímax lírico é em algum aspecto a minha realização suprema na invocação; de fato, o coro começa:
“Tu que és eu além de tudo que sou…”
pareceu-me digno de ser introduzido como o hino no Ritual da Igreja Gnóstica Católica, que, mais tarde naquele ano, eu preparei para o uso da O.T.O., a cerimônia central de sua celebração pública e privada, correspondendo à Missa da Igreja Católica Romana.
Enquanto lido com este assunto eu posso também delinear seu escopo completamente. A natureza humana necessita (no caso da maioria das pessoas) da satisfação do instinto religioso, e, para muitos, isto pode ser melhor realizado através de meios cerimoniais. Eu desejei então construir um ritual pelo qual as pessoas pudessem entrar em êxtase assim como elas sempre o fizeram sob a influência do ritual apropriado. Nos recentes anos, houve um fracasso crescente em se atingir este objetivo, devido aos cultos existentes chocarem suas convicções intelectuais e ultrajarem seu bom senso. Assim suas mentes censuram seu entusiasmo; eles são incapazes de consumar a união de suas almas individuais com a alma universal assim como um noivo consumaria seu matrimônio se seu amor fosse constantemente lembrado que suas suposições eram intelectualmente absurdas.
Eu decidi que meu Ritual deveria celebrar a sublimidade da operação de forças universais sem introduzir discutíveis teorias metafísicas. Eu não faria nem sugeriria qualquer declaração sobre a natureza que não fosse endossada pelo mais materialista homem científico. Superficialmente isto pode soar difícil; mas na prática eu achei totalmente simples combinar as concepções racionais mais rígidas do fenômeno com a celebração mais exaltada e entusiástica da sublimidade delas.
A palavra “Missa,” de acordo com a Igreja Católica Romana, vem da palavra latina Missa, “despedida,” da frase usada na conclusão de algumas antigas liturgias, “Ite, missa est” (“Vade, esta é a despedida”). Apesar da origem de seu nome, a cerimônia eucarística da Missa não se originou com Cristianismo, nem é exclusiva propriedade de qualquer religião em particular. Crowley reconheceu nas Liturgias dos Ritos Russos e Romanos os padrões belos e complexos de uma profunda tradição simbólica, brilhando sob a crista do dogma religioso escolástico.
O ritual eucarístico que constitui a essência da Missa é muito mais antigo que o do Cristianismo; de fato, alguns teólogos protestantes apontaram à Missa e aos seus componentes simbólicos evidências da corrupção da Igreja Católica pela incorporação de práticas e doutrinas pagãs “idólatras”. Alguns dos muitos exemplos disto incluem: a Hóstia redonda e Prato associado com o crescente prateado do Cálice como símbolos óbvios do Sol e da Lua; a Cruz do Altar como Objeto de Culto (Omphalos, Lingan ou a árvore Sagrada); a pia batismal como fonte sagrada; a Litânia dos Santos uma invocação dos espíritos dos antepassados; e a própria Eucaristia como um vestígio de sacrifício humano.
Alguns cultos totêmicos pré-históricos, pela evidência de certos cultos totêmicos modernos, podem ter criado uma forma de vínculo social através de festins rituais, especialmente festins que envolviam o consumo do totem animal ou planta. A Magia que enlaçava os destinos dos membros da sociedade totêmica com o do totem animal ou planta também enlaçava os destinos dos membros da sociedade totêmica entre si.
O sentimento de destino compartilhado, ou Espírito ou Magia compartilhada, tornou-se tão forte em alguns cultos totêmicos que eles começaram a criar sua própria e única identidade, com seus próprios atributos e até mesmo sua própria personalidade. És vezes ela se tornaria totalmente identificada com a personalidade de um herói ou xamã particularmente virtuoso e poderoso, uma identificação que permaneceria após a morte do herói. O herói, identificado com o Espírito de culto, não poderia ser dito que houvesse verdadeiramente morrido por tanto tempo quanto o próprio culto sobrevivesse. Ele tornou-se um homem divino, um híbrido entre o gênero humano e as forças da natureza, totalmente humano ainda que totalmente divino, que estava morto ainda que vivo, que portanto possuía poder sobre a vida e a morte.
A adoração primitiva de Dionísio, que pode ter se desenvolvido de um modo similar ao dos ritos de uma sociedade totêmica, incluia o ato de beber vinho e o consumo da carne crua de um animal sacrificado em um ritual chamado a Omophagia. O animal ou era um touro, ou um gamo ou um bode, todos sagrados a Dionísio em lugares diferentes, e era ritualmente rasgado em pedaços em comemoração do desmembramento de Dionísio-Zagreus, o pequenino filho de Zeus, pelas mãos dos Titãs.
A carne consumida na selvagem Orgia das Bacantes não era, contudo, a simples carne de um animal abatido. Primeiro, era um animal de um tipo que fosse sagrado ao Deus (i.e. um animal totem) e assim participando da natureza vital do Deus. Segundo, o animal enfrentava cerimonialmente os maiores e mais característicos ordálios do próprio Deus. Passando por este ritual de magia simpática, considerava-se que o animal tivesse assumido a verdadeira identidade do Deus. Sua carne, portanto, acreditada-se ter se tornado a verdadeira carne do próprio Dionísio. A vinha também era sagrada a Dionísio, e participava de sua natureza de um modo semelhante ao totêmico. Quando as Bacantes consumiam a carne e o vinho, elas consumiam o verdadeiro corpo e sangue de seu Deus. Integrando o corpo de seu Deus dentro da estrutura de seus próprios corpos individuais, elas realizaram a integração do Espírito do Deus dentro da estrutura de seus próprios Espíritos individuais. Isto não somente lhes dava acesso ao poder e à Magia do Deus, isto também lhes dava uma forte sensação de identidade com suas companheiras Bacantes, que eram insufladas com o mesmo Espírito divino.
Com o passar do tempo, a cultura grega se tornou mais refinada e complexa através do intercurso com outras culturas, tais como as do Egito, ásia Menor e Fenícia. A adoração primitiva de Dionísio sobreviveu porque era sensível à evolução e desenvolvimento.
Os Orfitas (que floresceram no Sec. VI p.e.v.) adotaram a religião Dionísica como sua própria. Eles suavizaram a selvageria de seus ritos, e usaram estes rito refinados para transmitir, por alegoria, os ensinos filosóficos de sua religião redentora. Sendo ascetas e vegetarianos, eles substituíram a sangrenta Omophagia por uma não-sangrenta comunhão sacramental de bolos feitos de farinha e mel em memória do filho assassinado de Deus. Os ensinos Órficos, preservado nos Hinos Órficos e desenvolvido nos Mistérios Gregos e os ensinos do mais famoso dos iniciados Órficos, Pitágoras, exerceu uma grande parcela de influência no desenvolvimento da mais recente religião e filosofia helênica, particularmente o Neoplatonismo e o Gnosticismo. Por estas vias entrou essa religião sincretista altamente próspera conhecida como Cristianismo.
A palavra “Gnóstico” é uma palavra grega que significa “que pertencem ao conhecimento”. É geralmente usada em referência a um grupo de primitivos sistemas religiosos Cristãos que se desenvolveu na assimilação cultural, religiosa e filosófica do Império Romano Oriental durante o primeiro século, e.v. e foi primeiramente centralizado em Alexandria, Egito. Coletivamente conhecidos como Gnosticismo, estes sistemas, considerados “heresias” pela teocracia cristã em desenvolvimento, tentaram fundir o Cristianismo Judaico com Filosofia Grega, Teurgia Egípcia e outros elementos. Tais sistemas incluíram os ensinamentos de Simão o Mago, Basilides, Valentino, Bardesanes e Marcion, assim como os de outros grupos conhecidos como Setianos e Naassenos. O termo “Gnóstico” também pode ser usado para se referir a outros sistemas religiosos que, embora não-cristãos, compartilharam muitas das visões dos gnósticos cristãos. A religião Orfita estava entre estes, assim como e estava os ensinos Herméticos da seita egípcia de Poimandres e a religião Manichaeana, e assim como está a religião do Mandaeanos do Iraque meridional.
Comparando os diversos padrões da tapeçaria Gnóstica, nós notamos alguns linhas em comum:
sincretismo simbólico e prático;
uma cosmogonia na qual a Matéria é separada do Espírito por uma série de emanações ou Eons, com o cosmos se originando de uma “mistura” do Espírito dentro da Matéria;
graus variados de sentimento anti-cósmico: desvalorização do mundo criado e da existência material, expressada ou no ascetismo ou no libertinagem;
a doutrina que o espírito humano é essencialmente divino;
um sistema de redenção através do misticismo e iluminação pessoal que é representado em um salvacionismo do “redimido redentor”;
uma escatologia enfatizando a separação final das Almas inocentes da Matéria e seu retorno ao puro Espírito.
Muitos, mas não todos, dos sistemas gnósticos colocaram o Deus Verdadeiro sobre o Deus adorado pela grande massa de humanidade. Este Deus inferior foi geralmente retratado como um poder arrogante e tirânico, ignorante de sua própria origem e limitações. Vários sistemas gnósticos foram caracterizados por uma ênfase na divina contraparte feminina à figura de Cristo, que foi variavelmente conhecida como Sofia, Helena, Ennoia, ou Barbêlô.
O elitismo da maioria dos sistemas gnósticos os levaram à máxima extinção a favor do mais populistas e militantes sistemas “ortodoxos” do Cristianismo, Islamismo e Zoroastrianismo; e muitas das escritas originais gnósticas foram sistematicamente destruídas. Algumas, contudo, sobreviveram, notavelmente o Corpus Hermeticum, o Códice Askew, o Códice Bruce, o Códice Akhmim e a Biblioteca de Nag Hammadi, assim como as escritas existentes do Manichaeanos e Mandaeanos. Muito mais informação relativa às doutrinas e crenças de várias formas do Gnosticismo primitivos foram transmitidas pelas obras dos escritores anti-heréticos primitivos cristãos tais como Justin Martyr (c.100-c.165 e.v.), Irenaeus de Lyons (c.100-203 e.v.), Clemente de Alexandria (c.155-c.210 e.v.), Tertullian de Carthage (c.155-c.230 e.v.), Hipólito de Roma (170-235 e.v.) e Epifânio de Salamis (315-403 e.v.), sendo o último uma fonte menos fidedigna que os outros.
Além de sua transmissão através da literatura, a corrente gnóstica parece ter retorcido seu caminho através da idade média em várias correntes distintas da tradição. A Gnose Hermética foi incorporada à ciência alegórica da Alquimia. O Gnosticismo egípcio influenciou o misticismo hebraico de Hekalot e da Merkabah que posteriormente desenvolveu-se para o Cabalismo. A Marcionita, e possivelmente a Manichaeana, Gnose foi preservada pelos Paulinos da Armênia e possivelmente influenciou os Bogomils da Bulgária que, em troca, ajudaram a fundar a seita Cátara ou Albigense do Sul da França no século 12. O Catarismo além disso influenciou o desenvolvimento do Cabalismo Judaico medieval como também as lendas cavalhereiscas do Santo Graal, e unido com as idéias esotéricas islâmicas (com suas próprias influências gnóstica e/ou neoplatônicas) no cristianismo não ortodoxo dos Cavaleiros Templários. Foram o Cabalismo, o Hermetismo e o Templarismo unidos ao Rosicrucianismo e à Maçonaria; que serviram de base à O.T.O., à Hermética Ordem da Aurora Dourada e à A∴A∴. A gnose Valentiniana discretamente entrou na estrutura e rituais sacramentais da Igreja Católica Romana.
As descobertas de algum do códices gnósticos, o Elenchos de Hipólito, e certos documentos cátaros inspiraram o Renascimento Gnóstico Francês do final do 19º século e.v.. O Renascimento Gnóstico Francês misturou os elementos do Templarismo, Rosicrucianismo, Igreja Cristã e Gnosticismo histórico em uma tentativa de reconstruir uma Igreja Gnóstica independente, um dos resultados disto foi a fundação de nossa própria Igreja Católica Gnóstica.
A união da Igreja Católica Gnóstica e da O.T.O. representou, então, uma confluência de numerosas correntes gnósticas dentro de um único corpo — um corpo que alcançou última realização na introdução da mais rescente e dinâmica corrente gnóstica, a Lei de Thelema, que foi introduzida na O.T.O. e na Igreja Católica Gnóstica pelo Mestre Therion.
Compondo Liber XV, Crowley tentou descobrir a oculta tradição gnóstica escondida dentro da cerimônia da Missa, para liberá-lo da escravidão às teorias escolásticas e dogmas da teologia Cristã, e para demonstrar a continuidade fundamental entre esta antiga tradição da Sabedoria e as modernas revelações e filosofia libertária de Thelema.
Nota
Este ensaio foi originalmente publicado em 1995 em “Mystery of Mystery: a Primer of Thelemic Ecclesiastical Gnosticism,” publicado por J. Edward e Marlene Cornelius como o Número 2 do privativo jornal Thelêmico Red Flame.
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