domingo, 14 de agosto de 2016

A Religião da Luz


Detalhes do painel "A ascensão ao Empireu", parte do tríptico "Visões do Além", 1500-1504, Hieronymus Bosch, Palácio Ducal, Veneza.


A RELIGIÃO DA LUZ


A salvação através da gnose

Desde a aparição do cristianismo, há quase vinte séculos, o maniqueísmo foi certamente o que de mais maravilhoso se produziu na história espiritual da humanidade em todo o globo terrestre” A afirmação, de Simone Weil, permite compreender a atração que exerce ainda hoje uma posição como a maniqueísta, que, mais do que qualquer outra, presume interpretar a condição do homem decaído de forma unida a seu desejo de salvação -

O deus "decaído" e a existência como mal

"Desde a aparição do cristianismo, há quase vinte séculos, o maniqueísmo foi certamente o que de mais maravilhoso se produziu na história espiritual da humanidade em todo o globo terrestre".

A afirmação, de Simone Weil, permite compreender a atração que exerce ainda hoje uma posição como a maniqueísta, que, mais do que qualquer outra, presume interpretar a condição do homem decaído de forma unida a seu desejo de salvação. Em seu pessimismo cósmico, o maniqueísmo, como Hans Jonas mostra com olhar agudo em seus estudos sobre o gnosticismo2, guarda afinidades surpreendentes com o niilismo contemporâneo. Prisioneira de um mundo perverso, caracterizado por caos e destruição, a alma anseia fugir do cárcere corpóreo para reencontrar a pátria perdida, o divino reino de luz oposto às trevas da matéria, do qual originariamente provém. O homem é um “estrangeiro” no mundo, um “deus exilado” dominado pelos sentimentos da revolta e do desgosto para com a existência presente, pela saudade do que já houve, diante do paraíso perdido que a gnose lhe fará reconquistar. Como diz um fragmento antigo: “Nascido da Luz e dos deuses,/ eis-me em exílio e deles separado./ Os inimigos, lançando-se sobre mim/ transportaram-me ao reino dos mortos./ Que seja bendito e encontre libertação/ aquele que livrar minha alma da angústia!/ Sou um deus e nascido dos deuses,/ brilhante, cintilante, luminoso,/ radiante, perfumado e belo,/ mas hoje reduzido ao sofrimento”.

O deus “perdido”, a alma de luz, encontra-se acorrentado à matéria, reduzido à condição servil; o homem das dores é “crucificado” na terra, obra das potências demoníacas. É o Jesus Patibilis da tradição maniquéia.

O homem sofre porque sua alma, a parte divina que existe nele, está “mesclada” à matéria, a qual, tanto no maniqueísmo quanto no gnosticismo, é o mal. “A Matéria tornou o primeiro homem cego e surdo, inconsciente e perdido, a tal ponto que não conhece nem sua origem nem sua estirpe [sua família divina]. A Matéria criou o corpo e a prisão; ela acorrentou a alma, que perdeu o conhecimento. - Horríveis são para mim, prisioneiro, os demônios, as diabas e todas as bruxas! - Az [a Concupiscência, a Matéria] amarrou fortemente a alma ao corpo maldito. Fê-la horrível e malvada, cheia de cólera e ávida por vingança”. A existência mortal é um aborto. Na mitologia maniquéia, ela é o fruto de uma progênie perversa criada não por Deus, mas por um casal de demônios, os quais, depois de devorar seus filhos, se acasalam e dão vida ao primeiro casal de homens: Adão e Eva. Na origem da espécie humana está o duplo selo da herança satânica, feito de canibalismo e sexualidade. Um selo que se perpetua com o ato de procriação, com a geração dos seres vivos por meio da qual o mundo, o cárcere obscuro, continua. Continua a acorrentar as almas, a aprisionar a “luz”. “Deduz-se daí que o pecado é, antes de mais nada, o resultado da inerência da alma à ‘mistura’: A existência - poderíamos dizer - é pecado em si mesma. A alma não é pecadora por si só; no fundo, não é responsável pelo pecado: não sucumbe a ele pela própria vontade, mas a ele é induzida por estar mesclada com a carne [...]. A única causa do pecado é a matéria, cuja essência é constituída pelo mal e cuja expressão natural, espontânea, é a ‘concupiscência’”.



"A ascensão ao Empireu"


A partir dessa dupla afirmação - a alma é inocente, a matéria é o mal -, o maniqueísmo se configura, enquanto “religião de salvação”, como um outro caminho diferente do afirmado pelo cristianismo. A existência não se torna má mediante o consenso da liberdade, mas o é em si mesma. Essa maldade só pode ser expiada pela purificação dos corpos e por um caminho, em maior ou menor medida tortuoso, de transmigração das almas de corpo em corpo, de cuja corrente só os Eleitos, os “Puros”, são definitivamente libertados. Tal perspectiva se encontra com a tradição budista, para a qual a redenção reside numa espécie de de-criação, de nulificação, de distanciamento, de abstração. Se o mal reside na “mistura” da alma com o corpo, da luz com a matéria, a salvação se dará pela divisão, quando uma for subtraída da outra. Salvar-se é separar-se. A moral maniquéia é uma moral negativa. “Ela realmente implica uma recusa, uma rejeição e uma espécie de negação do mundo que nos oprime, dos seres malvados que o dominam, da condição de escravidão, e, por esse aspecto, pode ser comparada à atitude de revolta, ou mesmo de niilismo, que se encontra na base de vários dos sistemas gnósticos”.

Um cristianismo gnóstico-zoroastriano

Como se forma a “visão de mundo” maniquéia, a visão de Manes, seu fundador? Para responder a essa pergunta já se derramaram rios de tinta, mas a resposta é hoje razoavelmente possível, na medida em que o chamado Códice maniqueu de Colônia, descoberto em 1969 no Egito, nos oferece uma biografia confiável de Manes, talvez oriunda do século V. Manes, nascido em 216 d.C. numa localidade da Babilônia setentrional, iniciou em 240 a pregação que o levaria à Índia e, na volta, à corte do rei persa Sapor I (240-272), o soberano que humilhou três imperadores romanos (Gordiano III, Filipe, o Árabe, e Valeriano). Com Sapor I, Manes obteve consenso e proteção. Graças a isso, a “Igreja” maniquéia pôde se desenvolver e difundir. Manes enviou missionários à Síria, ao Egito, a Batriana, à Armênia e a Palmira. “Mas, se depender da minha esperança”, afirmaria, “ela chegará até o Ocidente e o Oriente. E sua mensagem será ouvida em todas as línguas, e será anunciada em todas as cidades. Minha Igreja é superior neste ponto às Igrejas que a precederam, pois essas Igrejas eram eleitas em alguns países e em algumas cidades. Quanto à minha Igreja, ela se difundirá por todas as cidades, e o meu Evangelho alcançará a todos os países”.

Um “Evangelho” universal como o de Manes conduziria o autor a um destino que seus discípulos compararam ao de Cristo: foi hostilizado pelos sacerdotes zoroastrianos e preso pelo rei Wahram I (273-277). Sob o peso das correntes, morrerá, em 277, com a idade de sessenta anos. Graças ao Códice de Colônia, do qual existem também edições em inglês e italiano (esta, parcial)8, podemos penetrar na formação de Manes, o período, entre os quatro e os vinte e quatro anos, que ele passou numa comunidade de Batistas judeus-cristãos que seguiam o ensinamento de um mestre de nome Helchassai. A descoberta da inserção de Manes nesse ambiente é de grande importância, pois, como escreve Sfameni Gasparro, “contribuiu de maneira decisiva para orientar a pesquisa sobre a dimensão judaico-cristã do fenômeno maniqueu em seu conjunto”. O Mani-Codex da Universidade de Colônia redimensiona os outros filões de interpretação da gênese do maniqueísmo - os “orientais” budista-irânicos (F. C. Baur, R. Reitzenstein) -, que mantêm sua validade, mas apenas subordinadamente. O Códice, e esta não é uma conseqüência marginal, restabelece como plenamente válido o testemunho de Agostinho sobre o maniqueísmo, depois da decidida contestação por que passou esse testemunho a partir do trabalho de Isaac de Beausobre, Histoire critique de manicheé et du manichéisme (Amsterdã, 1734-1739).

Permite, além disso, compreender a afirmação, à primeira vista surpreendente: “Eu, Manes, apóstolo de Jesus Cristo”, tal como as numerosas outras em que Manes se declara manifestação do Paráclito, a ponto de se identificar com o Espírito da Verdade e, portanto, com a plenitude da Revelação. Afirmações que não surgem simplesmente, como muitas vezes se afirmou no passado, de um projeto de adaptação a ambientes cristãos, mas, sim, da transposição da doutrina cristã para um registro manifestamente gnóstico. Como observa A. Böhlig: “Em sua juventude e por intermédio de seus predecessores, Manes naturalmente teve a possibilidade de conhecer várias correntes religiosas. O ambiente de sua infância era um judeu-cristianismo de marca gnóstica. Idéias irânicas podem lhe ter sido transmitidas, se levarmos em conta sua descendência. Ele encontrou o mundo do budismo no leste do Irã e na Índia, durante suas viagens. Seu dualismo radical talvez tenha sido influenciado por idéias irânicas [...]. Todavia, a tendência basilar do mito, que exprime o impulso central de sua crença, é [...] um cristianismo gnóstico que representa, em ampla perspectiva, o caminho do Filho de Deus de várias formas encarnado como criador e redentor, com a finalidade de ser, mediante sua gnose e as conseqüências que dela derivam, apresentado ao Pai”.

Esse cristianismo gnóstico toma forma em Manes não apenas por este fazer parte da “comunidade judaico-cristã tendencialmente gnóstica da tradição helchassaíta”que se encontrava na Babilônia, mas também graças a uma radicalização que o leva a afastar-se dessa comunidade. O motivo da ruptura é a concepção do método da purificação. Para a comunidade dos Batistas, a purificação requer um “batismo” contínuo, cotidiano, dos corpos e dos alimentos. Para Manes, a única purificação possível é obtida mediante a Gnose: “O batismo com o qual purificais vossos alimentos de nada serve; com efeito, esse corpo é impuro e foi plasmado por uma criação impura. [...] A purificação, portanto, a respeito da qual está escrito, é a que ocorre mediante a Gnose: a Luz que se separa das Trevas, a Morte da Vida, as Águas vivas das Águas impuras”.

É assim que nasce o maniqueísmo. Nasce como religião da “separação”, como conhecimento (gnose) da salvação por meio da distinção entre o puro e o impuro. Dois dogmas estão no centro da cosmo-teologia maniquéia: o dos “Dois Princípios” e o dos “Três Tempos”. Segundo o primeiro, Bem e Mal, Luz e Trevas, Espírito e Matéria são duas Substâncias antagônicas e irredutíveis. Um dualismo que revela o eco do zoroastrismo, mas também, provavelmente, de Marcião. Para o segundo dogma, o dualismo entre os dois Princípios vale no início e no fim do mundo, mas não durante o período “mediano” em que eles se entrelaçam numa mistura que dá lugar à condição presente da existência. Nosso mundo é “Mistura”, mescla de bem e mal segundo um laço que “acorrenta” a alma ao corpo e lhe impede a memória de suas origens divinas. Essa “queda” da alma no mundo nada mais é que um momento da luta cósmica entre o Reino da Luz e o Reino da Matéria, que vê no início o “Homem Primevo”, personificação do Pai, cair como refeição dos demônios, que devoram sua alma. Dessa forma, a Matéria engole uma parte da alma divina: é a Alma do mundo, que, encerrada por toda parte - nas plantas, nos animais, no corpo humano -, geme por sua prisão, ansiando o retorno ao Reino de Luz. Se é assim, o maniqueísmo pode aparecer como uma “religião de salvação”, na medida em que, libertando a alma de seus laços, permite a volta à dualidade originária, à separação absoluta entre os dois mundos. A salvação é “‘regeneração’, ‘renascimento’, no sentido de que consiste, para o Espiritual, em ‘re-unir’ (syllegein) a própria substância luminosa e divina, em recuperar seu verdadeiro eu, em voltar a seu ser e ao lugar primitivo”. A salvação está na “re-união” da substância luminosa encerrada e sepultada no corpo do mundo, na “restauração” do divino disperso, des-unido, no retorno à dualidade original. Nessa salvação, Jesus, o “Noûs divino”, tem também o seu papel. Um papel que Manes, “apóstolo de Jesus Cristo”, propõe-se a cumprir.

O “Salvador-salvo”

Salvação da alma e salvação de Deus

Tanto para Ugo Bianchi16 quanto para Henri Charles Puech, “o maniqueísmo é uma religião do Noûs”. Ou seja, o problema da salvação se revolve no problema do conhecimento, no chamado que o intelecto (Noûs) faz à alma (psykhe) adormecida, envolvida no sono da matéria. Esse conhecimento, anamnese, reminiscência das próprias origens, lembrança da pátria divina, requer, para se realizar, uma mensagem, um mensageiro divino que encarna, de tempos em tempos, a potência da Luz. É nessa perspectiva que o maniqueísmo postula uma corrente de “Salvadores”, de enviados divinos que despertam a alma do sono, que convidam a humanidade à separação, à fuga do mundo, à recusa dos demônios e do comércio com os alimentos e a procriação. Essa corrente de “Tochas”, “Lâmpadas”, “Iluminadores”, que vai de Adão, Set, Enós, Henoc, Nicoteu, Noé, Sem, Abraão, a Buda, Zoroastro, Jesus, Manes representa, na realidade, um único herói. “A maior parte dos personagens de múltiplos nomes que intervirão na cosmogonia e na soteriologia nada mais será, no fundo, que as encarnações ou expressões sucessivas dessa mesma Entidade ou as funções hipostatizadas da atividade divina”.

Essa “Atividade”, ao “salvar” as centelhas de luz dispersas na matéria, num processo circular que lembra de perto o hegeliano, salva também a si mesma. “É uma única e mesma substância - a Luz, que é o próprio Deus -, que se mescla a uma Matéria transformada em mundo e em corpo; por conseguinte, será uma operação idêntica aquela que pretende libertar essa substância luminosa do universo e salvá-la no organismo humano. Enfim, por onde quer que seja e sempre, é o próprio Deus que, em parte, é engolido pelas Trevas e delas se liberta; uma mesma Entidade, nos planos cosmológico e antropológico, é a um só tempo o ser a ser salvo e o ser que salva. Reencontramos aqui [...] a figura que Reitzenstein pretendia descobrir no centro de toda espécie de gnosticismo: o ‘Salvador-salvo’”.

A Entidade mítica dos maniqueus, o Deus da Luz, se salva na medida em que os homens “pneumáticos” são salvos. “Os ‘Espirituais’ representam o conjunto da substância luminosa decaída e espalhada na matéria, e a recuperação de seu verdadeiro eu corresponde, ao mesmo tempo, à ‘re-união’ progressiva das ‘partículas’ dessa substância, dos ‘membros’ desse personagem divino que, reagrupados dessa forma, voltam pouco a pouco à unidade, ao todo orgânico que formavam na origem. Salvando os ‘pneumáticos’, o herói mítico salva a si mesmo, da mesma forma como os ‘pneumáticos’, salvando a si mesmos, contribuem para a salvação desse ser do qual fazem parte por essência. No fim das contas, e segundo esse modo de ver, o drama gnóstico da salvação poderia se reduzir a um tema único: o do ‘Salvador-salvo’, o ser divino cuja história vai de uma decadência a uma salvação, podendo assumir em alguns momentos a figura do Anthropos, do Homem do qual os homens representam o fracionamento”.

Ao longo da história do Anthropos, do Homem Primevo que renasce por meio da reunificação das centelhas de luz, encontramos também Jesus Cristo. Manes, “apóstolo de Jesus Cristo”, que, enquanto Espírito Santo, é o cumprimento da Revelação do Noûs, encara Jesus como o Salvador que ilumina, que desperta a alma do sono, como um momento do Salvador-salvo. É o crucificado que desperta a alma crucificada e mesclada ao corpo. Por isso, “sua Paixão só tem valor salvífico enquanto ensinamento frutuoso para a inteligência humana; não tanto por seu caráter de sacrifício, mas como exemplo. De fato, para o maniqueísmo, a Paixão de Cristo é puramente aparente. Se Jesus tivesse nascido de mulher, se seu corpo tivesse sido idêntico ao nosso, esse deus teria participado da corruptibilidade, da impureza da carne, ou, então, desta deveria estar ausente o pecado, o que, de um ponto de vista dualista, não pode deixar de ser contraditório. A realidade dos sofrimentos padecidos na cruz tiraria da Paixão qualquer caráter divino: como na Gnose docetista, é pelo fato de Jesus ter permanecido ‘impassível’ que ensinou à alma a separação absoluta que deve haver entre o corpo e o Noûs. Por acréscimo, a paixão de Cristo nada mais é que uma ilustração da crucifixão cósmica sofrida, segundo o mito, pelo Jesus Patibilis: a paixão é um ato histórico que exprime, de forma fascinante, a doutrina do “Salvador-salvo”. Como escreve Alexandre de Licópolis, “no final, o Noûs [que é Jesus], mediante sua crucificação, fez conhecer que é de modo semelhante que também o poder divino é pregado, crucificado à matéria”. Não será participando de Jesus encarnado e crucificado, como é para o cristão, que o maniqueu encontrará sua salvação, mas graças ao ensinamento e ao exemplo de um Jesus que revestiu uma aparência física apenas para manifestar-se ao mundo dentro do tempo, cuja missão foi, em primeiro lugar, despertar e iluminar as almas”.

A Paixão de Jesus é um exemplo para todos, é a manifestação da “Luz crucificada e mesclada à matéria, numa paixão cósmica e intemporal”. A Paixão de Jesus é a paixão da alma acorrentada à matéria. A Alma do mundo, “essa parte consubstancial de Deus, mesclada a todos os corpos, e curiosamente ligada às folhas, às sementes, aos troncos e aos frutos das árvores, essa ‘Alma Viva’ é muitas vezes identificada com o grandioso símbolo do Jesus Patibilis. Ela é o rosto ‘patético’ do Jesus transcendente, a parte dolorosa a ser salva de Yso ziwa, Salvador enquanto pura luz. Esse Jesus cósmico e intemporal é crucificado na matéria com a qual sua alma luminosa está ‘mesclada’. O mundo inteiro é a ‘Cruz da luz’. As árvores, em que se encontra concentrada uma larga parte da substância divina, servirão particularmente como patíbulo para o Cristo: segundo a expressão do maniqueu Fausto citada por Agostinho, ‘Jesus, a Vida e a Salvação dos homens, está fincado a qualquer madeiro’ (‘patibilis Jesus, suspensus ex ligno’). A Paixão e a Crucifixão do Jesus histórico alargam-se às proporções de eventos universais e eternos e propõem uma lição exemplar. ‘Vemos por toda parte’, diz Fausto, ‘a fixação mística de Jesus a sua cruz (‘crucis ejus mystica fixio’). Por meio dela se manifestam as feridas da paixão que sofre nossa alma”.

Isso ocorre da mesma forma como em Hegel a kenosi do Logos torna-se símbolo de um processo universal: o da alma “crucificada” à matéria que anseia por voltar ao Pai. “O devir universal, portanto, é o desdobramento da paixão de um Deus que é Salvador de si mesmo, e a história da humanidade se confunde com o drama da nossa paixão e da nossa salvação consubstancialmente ligados a esse ser mítico e a esse mítico processo”.


A última ceia, Salvador Dalí,1955, National Gallery of Art, Washington.


O padecimento divino é o nosso padecimento, uma vez que nossa alma, a centelha de luz, é parte do Homem Primevo, do deus desmembrado, dissolvido em miríades de fragmentos e “sepultado” na matéria. Nossa alma é “um fragmento, uma partícula, um membro”, uma porção orgânica, substancial, de Deus. Ainda mais precisamente, a alma humana, enquanto passiva e mesclada às Trevas, forma um todo com a dynamis pathetike do Salvador, com o Jesus Patibilis, repetindo ou prolongando sua crucifixão cósmica”.

Nessa absoluta identidade entre Deus e a alma, “parte” dele, Deus salva a alma despertando-a do sono; e ela, por sua vez, “salva” a Deus, contribuindo para a “re-união” da substância luminosa dispersa. Uma re-união que passa eminentemente pelo “ventre” dos Eleitos, os quais, diferentemente dos simples Ouvintes, têm o poder de purgar, de “separar” a luz da matéria por meio do processo digestivo. O estômago, aqui, se transforma na “oficina em que os alimentos permitidos se sublimam, separando pela digestão as duas naturezas neles mescladas. Seu banquete, portanto, é um ato redentor, e tem um valor sacramental. Por isso, os heresiólogos cristãos às vezes o interpretaram como uma celebração eucarística”. Nele, o Eleito, aquele que renunciou ao trabalho, à procriação, à preparação dos alimentos, “aceita” a comida que lhe é preparada pelo Ouvinte, amaldiçoando este último por sua obra, a não ser que depois lhe conceda o perdão. A consumação do banquete pode transfigurar-se em ato santificador. “Obra de perdição, o fato de se alimentar transforma-se, assim - no caso do Perfeito -, em obra santa, operação salvífica, não apenas permitida, mas, paradoxalmente, recomendável, realização do que Santo Agostinho ridiculariza sob o nome de ‘purgação’, de ‘salvação por meio dos dentes, do ventre ou do estômago’”.

Posteridade maniquéia

A religião de Manes não encerra sua história nos primeiros séculos da era cristã. Ela terá uma posteridade. Esse “Ideal de morte”, baseado na inação, no desprezo pela agricultura - que tortura os membros de Deus -, pelo matrimônio e pela procriação, por todo o mundo físico, cuja radicalização comporta o aniquilamento da humanidade e do mundo, continuará, por rios subterrâneos, a inflamar o imaginário religioso. Nós o vemos realizado, ainda que não sejamos capazes de traçar sua árvore genealógica, nas grandes heresias da Idade Média. No Paulicianismo, que surgiu na Armênia no século VII; no Bogomilismo, surgido na Bulgária no século X e irradiado, depois, pelos Bálcãs, pela Ásia Menor e pela Rússia; nos Cátaros, na França do século XII. Em todos está presente o dualismo dos Princípios, a subdivisão entre “Perfeitos” e “Crentes”, a condenação da carne e do sexo. A “heresia do mal” se opõe, dessa forma, à visão cristã do pecado original; num niilismo radical, opõe-se à criação, considerada obra de Satanás. Um pessimismo sombrio que reaparecerá vivo em algumas correntes da Reforma e que, não por acaso, levará o calvinista Pierre Bayle a reavaliar, em seu Dictionnaire historique et critique, de 1697, o maniqueísmo como única alternativa racional ao cristianismo na explicação do problema do mal. Uma posição destinada a encontrar mais de um consenso no âmbito da modernidade, a partir do período romântico, como documenta o exemplo de Simone Weil, grande admiradora dos cátaros. Uma posição que, mesmo negligenciada pela crítica e pelos próprios estudiosos do fenômeno maniqueu, reencontra-se, em formas surpreendentemente análogas, na Qabbalah de Yitzchàq Luria (1534-1572), que tanta influência terá no pensamento hebraico moderno, e não só nele. A idéia luriana da “ruptura dos vasos” e do Tiqqun lembra muito de perto a posição maniquéia. A ruptura dos vasos, posta no início do processo cósmico, remete ao mito da queda das “centelhas de luz” na matéria, da “mistura” entre o puro e o impuro, da mesma forma como o Tiqqun remete ao mito da “re-união” da substância luminosa. “Tudo está em exílio. A luz espiritual da Shekhiná precipita na escuridão do mundo demoníaco do mal. Disso resulta a mistura do bem e do mal, que deverão ser separados outra vez por meio da retomada dos elementos da luz e da sua volta à posição anterior”. Como observa Gershom Scholem: “Revela-se aqui uma estranha afinidade com as idéias religiosas fundamentais dos maniqueus: uma afinidade cuja evidência não pode escapar do historiador das religiões. Elementos da gnose - ausentes ou irrelevantes na antiga Qabbalah -, em especial a teoria das centelhas ou partículas de luz dispersas, reapresentam-se em primeiro plano nessa fase mais tardia de desenvolvimento do pensamento cabalista. Indubitavelmente, não se trata, nesse caso, de um laço histórico entre o maniqueísmo e a nova escola de Safed, mas apenas de uma disposição de espírito afim que, por conseguinte, produz resultados e idéias afins. Todavia, e talvez justamente por isso, um estudo mais particularizado do sistema de Luria seria de notável interesse também para o estudioso da gnose: pois esse sistema - tanto no conjunto quanto em seus detalhes - pode ser considerado como um caso exemplar de um modo de pensar tipicamente gnóstico”. Dessa forma, por meio de caminhos diferentes, a visão de Manes, a união indissolúvel que faz de niilismo e salvação, desprezo e ascese, abominação dos corpos e deificação das almas, continua a estar presente no pano de fundo inquieto da cultura e da espiritualidade moderna. Uma presença que até hoje, num horizonte sugestionado pelo Nada e pelo Caos, manifesta-se na idéia de um mundo em guerra, dividido entre as Forças do Bem e do Mal, entre os Puros e os Impuros, entre a Luz e as Trevas.


Corpus hypercubus, 1954, Salvador Dalí, Metropolitan Museum of Art, New York.