segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Mitologia Egípcia Horus


Hórus, mítico soberano do Egipto, desdobra as suas divinas asas de falcão sob a cabeça dos faraós, não somente meros protegidos, mas, na realidade, a própria incarnação do deus do céu. Pois não era ele o deus protector da monarquia faraónica, do Egipto unido sob um só faraó, regente do Alto e do Baixo Egipto? Com efeito, desde o florescer da época história, que o faraó proclamava que neste deus refulgia o seu ka (poder vital), na ânsia de legitimar a sua soberania, não sendo pois inusitado que, a cerca de 3000 a. C., o primeiro dos cinco nomes da titularia real fosse exactamente “o nome de Hórus”. No panteão egípcio, diversas são as deidades que se manifestam sob a forma de um falcão. Hórus, detentor de uma personalidade complexa e intrincada, surge como a mais célebre de todas elas. Mas quem era este deus, em cujas asas se reinventava o poder criador dos faraós? Antes de mais, Hórus representa um deus celeste, regente dos céus e dos astros neles semeados, cuja identidade é produto de uma longa evolução, no decorrer da qual Hórus assimila as personalidades de múltiplas divindades. 

Originalmente, Hórus era um deus local de Sam- Behet (Tell el- Balahun) no Delta, Baixo Egipto. O seu nome, Hor, pode traduzir-se como “O Elevado”, “O Afastado”, ou “O Longínquo”. Todavia, o decorrer dos anos facultou a extensão do seu culto, pelo que num ápice o deus tornou-se patrono de diversas províncias do Alto e do Baixo Egipto, acabando mesmo por usurpar a identidade e o poder das deidades locais, como, por exemplo, Sopedu (em zonas orientais do Delta) e Khentekthai (no Delta Central). Finalmente, integra a cosmogonia de Heliópolis enquanto filho de Ísis e Osíris, englobando díspares divindades cuja ligação remonta a este parentesco. O Hórus do mito osírico surge como um homem com cabeça de falcão que, à semelhança de seu pai, ostenta a coroa do Alto e do Baixo Egipto. É igualmente como membro desta tríade que Hórus saboreia o expoente máximo da sua popularidade, sendo venerado em todos os locais onde se prestava culto aos seus pais. A Lenda de Osíris revela-nos que, após a celestial concepção de Hórus, benção da magia que facultou a Ísis o apanágio de fundir-se a seu marido defunto em núpcias divinas, a deusa, receando represálias por parte de Seth, evoca a protecção de Ré- Atum, na esperança de salvaguardar a vida que florescia dentro de si. 

Receptivo às preces de Ísis, o deus solar velou por ela até ao tão esperado nascimento. Quando este sucedeu, a voz de Hórus inebriou então os céus: “ Eu sou Hórus, o grande falcão. O meu lugar está longe do de Seth, inimigo de meu pai Osíris. Atingi os caminhos da eternidade e da luz. Levanto voo graças ao meu impulso. Nenhum deus pode realizar aquilo que eu realizei. Em breve partirei em guerra contra o inimigo de meu pai Osíris, calcá-lo-ei sob as minhas sandálias com o nome de Furioso... Porque eu sou Hórus, cujo lugar está longe dos deuses e dos homens. Sou Hórus, o filho de Ísis.” Temendo que Seth abraçasse a resolução de atentar contra a vida de seu filho recém- nascido, Ísis refugiou-se então na ilha flutuante de Khemis, nos pântanos perto de Buto, circunstância que concedeu a Hórus o epíteto de Hor- heri- uadj, ou seja, “Hórus que está sobre a sua planta de papiro”. Embora a natureza inóspita desta região lhe oferecesse a tão desejada segurança, visto que Seth jamais se aventuraria por uma região tão desértica, a mesma comprometia, concomitantemente, a sua subsistência, dada a flagrante escassez de alimentos característica daquele local. Para assegurar a sua sobrevivência e a de seu filho, Ísis vê-se obrigada a mendigar, pelo que, todas as madrugadas, oculta Hórus entre os papiros e erra pelos campos, disfarçada de mendiga, na ânsia de obter o tão necessário alimento. Uma noite, ao regressar para junto de Hórus, depara-se com um quadro verdadeiramente aterrador: o seu filho jazia, inanimado, no local onde ela o abandonara. Desesperada, Ísis procura restituir-lhe o sopro da vida, porém a criança encontrava-se demasiadamente débil para alimentar-se com o leite materno. Sem hesitar, a deusa suplica o auxílio dos aldeões, que todavia se relevam impotentes para a socorrer.

OLHO DE HÓRUS

Quando o sofrimento já quase a fazia transpor o limiar da loucura, Ísis vislumbrou diante de si uma mulher popular pelos seus dons de magia, que prontamente examinou o seu filho, proclamando Seth alheio ao mal que o atormentava. Na realidade, Hórus ( ou Harpócrates, Horpakhered- “Hórus menino/ criança”) havia sido simplesmente vítima da picada de um escorpião ou de uma serpente. Angustiada, Ísis verificou então a veracidade das suas palavras, decidindo-se, de imediato, e evocar as deusas Néftis e Selkis (a deusa- escorpião), que prontamente ocorreram ao local da tragédia, aconselhando-a a rogar a Ré que suspendesse o seu percurso usual até que Hórus convalescesse integralmente. Compadecido com as suplicas de uma mãe, o deus solar ordenou assim a Toth que salvasse a criança. Quando finalmente se viu diante de Hórus e Ísis, Toth declarou então: “ Nada temas, Ísis! Venho até ti, armado do sopro vital que curará a criança. Coragem, Hórus! Aquele que habita o disco solar protege-te e a protecção de que gozas é eterna. Veneno, ordeno-te que saias! Ré, o deus supremo, far-te-á desaparecer. A sua barca deteve-se e só prosseguirá o seu curso quando o doente estiver curado. Os poços secarão, as colheitas morrerão, os homens ficarão privados de pão enquanto Hórus não tiver recuperado as suas forças para ventura da sua mãe Ísis. Coragem, Hórus. O veneno está morto, ei- lo vencido.”

Após haver banido, com a sua magia divina, o letal veneno que estava prestes a oferecer Hórus à morte, o excelso feiticeiro solicitou então aos habitantes de Khemis que velassem pela criança, sempre que a sua mãe tivesse necessidade de se ausentar. Muitos outros sortilégios se abateram sobre Hórus no decorrer da sua infância (males intestinais, febres inexplicáveis, mutilações), apenas para serem vencidos logo de seguida pelo poder da magia detida pelas HÓRUS sublimes deidades do panteão egípcio. No limiar da maturidade, Hórus, protegido até então por sua mãe, Ísis, tomou a resolução de vingar o assassinato de seu pai, reivindicando o seu legítimo direito ao trono do Egipto, usurpado por Seth. Ao convocar o tribunal dos deuses, presidido por Rá, Hórus afirmou o seu desejo de que seu tio deixasse, definitivamente, a regência do país, encontrando, ao ultimar os seus argumentos, o apoio de Toth, deus da sabedoria, e de Shu, deus do ar. Todavia, Ra contestou-os, veementemente, alegando que a força devastadora de Seth, talvez lhe concedesse melhores aptidões para reinar, uma vez que somente ele fora capaz de dominar o caos, sob a forma da serpente Apópis, que invadia, durante a noite, a barca do deus- sol, com o fito de extinguir, para toda a eternidade, a luz do dia. Ultimada uma querela verbal, que cada vez mais os apartava de um consenso, iniciou-se então uma prolixa e feroz disputa pelo poder, que opôs em confrontos selváticos, Hórus a seu tio. Após um infrutífero rol de encontros quase soçobrados na barbárie, Seth sugeriu que ele próprio e o seu adversário tomassem a forma de hipopótamos, com o fito de verificar qual dos dois resistiria mais tempo, mantendo-se submergidos dentro de água. 

Escoado algum tempo, Ísis foi incapaz de refrear a sua apreensão e criou um arpão, que lançou no local, onde ambos haviam desaparecido. Porém, ao golpear Seth, este apelou aos laços de fraternidade que os uniam, coagindo Ísis a sará-lo, logo em seguida. A sua intervenção enfureceu Hórus, que emergiu das águas, a fim de decapitar a sua mãe e, acto contíguo, levá-la consigo para as montanhas do deserto. Ao tomar conhecimento de tão hediondo acto, Rá, irado, vociferou que Hórus deveria ser encontrado e punido severamente. Prontamente, Seth voluntariou-se para capturá-lo. As suas buscas foram rapidamente coroadas de êxito, uma vez que este nem ápice se deparou com Hórus, que jazia, adormecido, junto a um oásis. Dominado pelo seu temperamento cruel, Seth arrancou ambos os olhos de Hórus, para enterrá-los algures, desconhecendo que estes floresceriam em botões de lótus. Após tão ignóbil crime, Seth reuniu-se a Rá, declarando não ter sido bem sucedido na sua procura, pelo que Hórus foi então considerado morto. Porém, a deusa Hátor encontrou o jovem deus, sarando-lhe, miraculosamente, os olhos, ao friccioná-los com o leite de uma gazela. Outra versão, pinta-nos um novo quatro, em que Seth furta apenas o olho esquerdo de Hórus, representante da lua. Contudo, nessa narrativa o deus-falcão, possuidor, em seus olhos, do Sol e da lua, é igualmente curado.

Em ambas as histórias, o Olho de Hórus, sempre representado no singular, torna-se mais poderoso, no limiar da perfeição, devido ao processo curativo, ao qual foi sujeito. Por esta razão, o Olho de Hórus ou Olho de Wadjet surge na mitologia egípcia como um símbolo da vitória do bem contra o mal, que tomou a forma de um amuleto protector. A crença egípcia refere igualmente que, em memória desta disputa feroz, a lua surge, constantemente, fragmentada, tal como se encontrava, antes que Hórus fosse sarado. Determinadas versões desta lenda debruçam-se sobre outro episódio de tão desnorteante conflito, em que Seth conjura novamente contra a integridade física de Hórus, através de um aparentemente inocente convite para o visitar em sua morada. A narrativa revela que, culminado o jantar, Seth procura desonrar Hórus, que, embora precavido, é incapaz de impedir que um gota de esperma do seu rival tombe em suas mãos. Desesperado, o deus vai então ao encontro de sua mãe, a fim de suplicar-lhe que o socorra. Partilhando do horror que inundava Hórus, Ísis decepou as mãos do filho, para arremessá-las de seguida à água, onde graças à magia suprema da deus, elas desaparecem no lodo. Todavia, esta situação torna-se insustentável para Hórus, que toma então a resolução de recorrer ao auxílio do Senhor Universal, cuja extrema bonomia o leva a compreender o sofrimento do deus- falcão e, por conseguinte, a ordenar ao deus- crocodilo Sobek, que resgatasse as mãos perdidas. Embora tal diligência haja sido coroada de êxito, Hórus depara-se com mais um imprevisto: as suas mãos tinham sido abençoadas por uma curiosa autonomia, incarnando dois dos filhos do deus- falcão. 

Novamente evocado, Sobek é incumbido da taregfa de capturar as mãos que teimavam em desaparecer e levá-las até junto do Senhor Universal, que, para evitar o caos de mais uma querela, toma a resolução de duplicá-las. O primeiro par é oferecido à cidade de Nekhen, sob a forma de uma relíquia, enquanto que o segundo é restituído a Hórus. Este prolixo e verdadeiramente selvático conflito foi enfim solucionado quando Toth persuadiu Rá a dirigir uma encomiástica missiva a Osíris, entregando-lhe um incontestável e completo título de realeza, que o obrigou a deixar o seu reino e confrontar o seu assassino. Assim, os dois deuses soberanos evocaram os seus poderes rivais e lançaram-se numa disputa ardente pelo trono do Egipto. Após um recontro infrutífero, Ra propôs então que ambos revelassem aquilo que tinham para oferecer à terra, de forma a que os deuses pudessem avaliar as suas aptidões para governar. Sem hesitar, Osíris alimentou os deuses com trigo e cevada, enquanto que Seth limitou-se a executar uma demonstração de força. Quando conquistou o apoio de Ra, Osíris persuadiu então os restantes deuses dos poderes inerentes à sua posição, ao recordar que todos percorriam o horizonte ocidental, alcançando o seu reino, no culminar dos seus caminhos. Deste modo, os deuses admitiram que, com efeito, deveria ser Hórus a ocupar o trono do Egipto, como herdeiro do seu pai. Por conseguinte, e volvidos cerca de oito anos de altercações e recontros ferozes, foi concedida finalmente ao deus- falcão a tão cobiçada herança, o que lhe valeu o título de Hor-paneb-taui ou Horsamtaui/Horsomtus, ou seja, “Hórus, senhor das Duas Terras”.Como compensação, Rá concedeu a Seth um lugar no céu, onde este poderia desfrutar da sua posição de deus das tempestades e trovões, que o permitia atormentar os demais. Este mito parece sintetizar e representar os antagonismos políticos vividos na era pré- dinástica, surgindo Hórus como deidade tutelar do Baixo Egipto e Seth, seu oponente, como protector do Alto Egipto, numa clara disputa pela supremacia política no território egípcio. Este recontro possui igualmente uma cerca analogia com o paradoxo suscitado pelo combate das trevas com a luz, do dia com a noite, em suma, de todas as entidades antagónicas que encarnam a típica luta do bem contra o mal. A mitologia referente a este deus difere consoante as regiões e períodos de tempo. Porém, regra geral, Hórus surge como esposo de Háthor, deusa do amor, que lhe ofereceu dois filhos: Ihi, deus da música e Horsamtui, “Unificador das Duas Terras”. Todavia, e tal como referido anteriormente, Hórus foi imortalizado através de díspares representações, surgindo por vezes sob uma forma solar, enquanto filho de Atum- Ré ou Geb e Nut ou apresentado pela lenda osírica, como fruto dos amores entre Osíris e Ísis, abraçando assim diversas correntes mitológicas, que se fundem, renovam e completam em sua identidade. É dos muitos vectores em que o culto solar e o culto osírico, os mais relevantes do Antigo Egipto, se complementam num oásis de Sol, pátria de lendas de luz, em cujas águas d’ ouro voga toda a magia de uma das mais enigmáticas civilizações da Antiguidade. 

Detalhes e vocabulário egípcio:

culto de Hórus centralizava-se na cidade de Edfu, onde particularmente no período ptolomaico saboreou uma estrondosa popularidade;culto do deus falcão dispersou-se em inúmeros sub- cultos, o que criou lendas controversas e inúmeras versões do popular deus, como a denominada Rá- Harakhty;as estelas (pedras com imagens) de Hórus consideravam-se curativas de mordeduras de serpentes e picadas de escorpião, comuns nestas regiões, dado representarem o deus na sua infância vencendo os crocodilos e os escorpiões e estrangulando as serpentes. Sorver a água que qualquer devotado lhe houvesse deixado sobre a cabeça, significava a obtenção da protecção que Ísis proporcionava ao filho. Nestas estelas surgia, frequentemente, o deus Bes, que deita a língua de fora aos maus espíritos. 

Os feitiços cobrem os lados externos das estelas. Encontramos nelas uma poderosa protecção, como salienta a famigerada Estela de Mettenich: “Sobe veneno, vem e cai por terra. Hórus fala-te, aniquila-te, esmaga-te; tu não te levantas, tu cais, tu és fraco, tu não és forte; tu és cego, tu não vês; a tua cabeça cai para baixo e não se levanta mais, pois eu sou Hórus, o grande Mágico.”. 

out- embalsamadores

vabet- lugar de purificação 

Mitologia egípcia Hathor


Amor... Rutilante véu de estrelas que veste de luz o corpo de pérolas negras da noite da humanidade... Rosa de fogo, orvalhada por uma poesia em chamas, despontando nos jardins do horizonte, para almas vagantes inebriar com o perfume de um imortal Sol de felicidade... Cálice de sonhos e feitiços derramado sobre os corações dos Antigos Egípcios pela sensual Háthor, soberana de um éden de felicidade perene, em cujo esplendor brotava o cobiçado fruto do amor, nascia a maviosa nascente da música, em cujas águas vogava a sensualidade das danças, desabrochavam as orquídeas selvagens do erotismo e brincava a doce brisa da alegria. Sua alma, cosmos de amores constelados, renovava-se nos semblantes de todas as apaixonadas que devotadamente a inundavam de preces ardentes, na esperança de escravizarem o coração dos seus amados e, por conseguinte, alcançarem “a felicidade e um bom marido”.

Venerada em Dendera por nas suas mãos divinas florescer o amor, a bela deusa, filha de Rá, inúmeras vezes representada sob a forma de uma vaca, desempenhava, tal como sucedia a um rol imensurável de outros deuses, díspares papéis, em diferentes zonas do Egipto. Podemos afirmar que as suas origens remontam a uma época longínqua da história, já que a deusa consta do documento egípcio mais antigo conhecido até ao momento: a “Paleta de Narmer”, cuja leitura nos permite conhecer a unificação do Egipto por Narmer, primeiro faraó da I Dinastia, acontecimento que constitui a inauguração da instituição faraónica. Ambas as faces deste documentos estão ornadas com cabeças de vaca que, tal como referido anteriormente, simbolizam a deusa Háthor. No Delta, é associada ao céu, sustendo o disco- solar no seu toucado, enquanto, em Tebas, surgia como uma deusa da morte. Enquanto protectora da necrópole tebana, Háthor é representada como uma vaca emergindo de uma montanha escarpada que simboliza a falésia onde estão escavados os túmulos. Aqueles que se aproximavam da morte, suplicavam, assim, pela sua protecção, ao longo das suas viagens até ao além

Com efeito, tal como a maioria das divindades egípcias, Hátor sabia mostrar-se cruel e devastadora. Tomemos como exemplo uma das lendas, que procura explicar as mudanças de estação, na qual, após uma feroz discussão com o seu pai, Hátor refugia-se no desero, permitindo que as trevas invadissem a terra, uma vez que o Sol somente ocuparia o seu legítimo lugar, quando a deusa retornasse. A euforia rasga tão profundo pesar, quando, persuadida por seu pai, Hátor regressa, enfim, banindo a noite. Em torno desta personagem, tece-se ainda outra narrativa, notavelmente, violenta. Indignado por a humanidade lhe haver desobedecido, Rá toma a decisão de massacrá-la, enviando, para este fim, a sua filha, tornada num olho solar fulminante. Porém, ao contemplar a devastação que a sua filha causava, Rá compadece-se daqueles que lhe haviam desobedecido e toma a resolução de por fim a tão hediondo crime. Deste modo, convida a sua filha a sorver uma cerveja cor de sangue, que, além de a embriagar, lança-a num sono profundo. Ao despertar, a sua cólera insaciável havia-se desvanecido, pelo que os derradeiros sobreviventes da sua chacina permaneceram incólumes. 

Em Dendera, ergueu-se, no templo ptolomaico, um imponente templo em sua honra, que a deusa deixava, anualmente, para, após uma prolixa viagem através do Nilo (em que o seu temperamento bravio era suavizado por músicas e bebidas) consumar o seu divino casamento com o deus- falcão Hórus, que a aguardava em Edfu (cidade situada a cerca de cento e sessenta quilómetros a montante do Nilo). Esta diligência mítica, que mantinha Háthor afastada da sua morada durante cerca de três semanas, era celebrada pelos egípcios com um festival alegre e faustoso. Procurando reproduzir o trajecto executado pela deusa, a solene procissão seguia então pelo rio, rasgando com uma barca (“A Bela de Amor) onde, detentora de uma fastígio inigualável, uma estátua de Háthor se elevava. Concomitantemente, os sacerdotes de Edfu preparam o encontro dos esposos, que ocorrerá no exterior do santuário, mais exactamente numa exígua capela localizada a norte da cidade. Este encontro deveria suceder num momento preciso, ou seja, à oitava hora do dia da lua nova do décimo primeiro mês do ano. Quando por fim Háthor abençoa Edfu com a sua magnífica presença e perfuma aos lábios de seu esposo com o incenso de um beijo, iniciam-se então as festividades, no decorrer das quais a deusa é aclamada, saudada e inebriada com a música docemente tocada em sua honra. Não era pois Háthor a “Dourada”, a “Dama das Deusas”, “A Senhora” e “A Senhora da embriagues, da música e das danças”?

Seguidamente, os esposos separam-se e ocupam as suas barcas, para que o cortejo possa dirigir-se para o santuário principal, onde os sacerdotes puxam as embarcações para fora de água e instalam-nas no recinto. Uma vez mais acompanhada por seu marido, Háthor saúda então seu pai, o Sol, que ao lado de Hórus velava por Edfu, como referem os inúmeros textos encontrados: “ela vai ao encontro de seu pai Ré, que exulta ao vê-la, pois é o seu olho que está de volta”. Terminado este encontro, tão lendários esponsais são enfim celebrados, prometendo, entre sumptuosos festejos, os dois deuses a divinas núpcias de luz. No dia seguinte, dá-se início a uma faustosa festa, que se demora pelos catorze dias do quarto crescente, num período de tempo marcado por um rol quase inefável de ritos, sacrifícios, visitas a santuários, celebrações, solenidades, entre outros eventos. Um grande banquete, no fim do qual dá-se a separação de Háthor e Hórus consagra o fim das festividades.
Tal como salienta Plutarco, o escritor grego, na escrita hieroglífica o nome de Háthor lê-se Hut- Hor, isto é, “a morada de Hórus” ou “a habitação cósmica de Hórus”, sendo portanto flagrante que a deusa representa o espaço celeste no qual o Hórus solar se desloca. 

Denominada “Senhora do Sicômoro”, deusa das árvores, Hátor surge inúmeras vezes a amamentar os defuntos, especialmente, os faraós, mediante os longos ramos de um sicômoro. Háthor, como deusa benevolente, possuía a intensa devoção, não somente de nobres, mas também dos mais humildes, erigindo-se, deste modo, em seu redor um culto que se proliferou no Império Romano. Todavia, a crescente popularidade do culto, tecido em torno de Osíris e Ísis, levou a que este deidade passasse a deter algumas das funções de Háthor, acabando estas por fundir-se numa única divindade. 
Em matéria de iconografia, a sua representação mais interessante é aquela que lhe permite surgir como soberana dos quatro cantos do céu e senhora dos pontos cardeais. Os quatro semblantes que a representam simbolizam cada um deles um determinado aspecto da sua personalidade, ou seja, Háthor- leoa, sublime olho dos astro solar, que os inimigos de seu pai, Ré, aniquila sem hesitar; Háthor- vaca, poderosa soberana do amor e do renascimento; Háthor- cobra, incarnação da beleza e juventude; e, por fim, Háthor- gata, eterna protectora dos lares e, claro, ama real. 

Não lhes sendo possível distinguirem-se noutros planos profissionais, muitas mulheres tornavam-se sacerdotisas de Hátor (mais tarde designadas por “cantoras de Ámon”,) uma vez que as actividades musicais que desempenhavam permitiram-lhes investir-se de funções honrosas. Por seu turno, fora dos cortejos religiosos, as bailarinas de Háthor, ostentando somente uma tanga curta, arredondada na frente, entretinham os convidados de um banquete. 


Detalhes e vocabulário egípcio:

O nome Háthor significa “ a casa de Hórus”.

Nebet- per- dona de casa.

Neferet- a bela;

Merout- amor;

Hensi irem- viver juntos

Sen- beijar / “respirar um odor” 

No Antigo Egipto, os apaixonados seduziam as mulheres amadas com epítetos plenos de doçura, alguns deles ainda empregues na sociedade contemporânea, como é o caso de “gazela”, gatinho”, “andorinha”, “pomba”, enquanto outros facilmente podem ser qualificados de impopulares e até perigosos para a integridade física do amante, como “meu hipopótamo”, “minha hiena” ou “minha rã”. 

Na realidade, o amor era representado discretamente pelos artesãos encarregados de enaltecer os túmulos egípcios com a sua arte, surgindo este sentimento sob a forma de um tímido gesto, em que a mulher rodeia os ombros do seu marido com o braço ou se apoia nas suas costas (o oposto jamais sucede). De facto, o perfume era um dos mais conhecidos símbolos do amor, o que sustenta a filosofia de que os egípcios abdicavam da vulgaridade de uma manifestação directa, em prole de uma doce e subtil sugestão, com frequência plena de sensualidade. 

O tecto da sala hipostila do templo de Háthor em Dendera enleva os seus visitantes com a visão de sublimes decorações contendo cenas de natureza astronómica, considerados por muitos como as mais originais jamais encontradas. Nele, o nosso olhar extasiado possui o privilégio de conhecer as horas do dia, da noite, os decanos, as regiões celestes, as décadas, os deuses dos pontos cardeais, as constelações, entre outros.

Ao observarmos o vão sul, somos maravilhados com uma cena, reproduzida não raras vezes em díspares pontos do santuário, que nos o corpo de Nut, a abóbada celeste, cujo corpo, banhado pelas ondas do oceano inferior, prolonga-se de uma extremidade à outra da sala. Os seus pés acariciam o este, enquanto que a sua cabeça repousa a oeste. Ao executar o seu trajecto cíclico, o deus solar incarna alternadamente os corpos diurnos e nocturnos de Nut, alumiando a terra de dia, enquanto, por oposição, de noite a lança nas trevas, desaparecendo, tragado pela deusa, para ir iluminar as regiões subterrâneas. Outra imagem oferece-nos, assim, a ressurreição do Sol , que os seus mil raios derrama sobre o templo de Dendera, personificado pela cabeça de vaca de Háthor, colocada sobre um edifício. 

Mitologia Egípcia Anúbis


Qual estrela reinventado a imanência da sua luz no cosmos da imortalidade, onde a mítica constelação da vida se traduzia e renovava num fulgor eterno, Anúbis (Anupu em egípcio) iluminava a noite do panteão egípcio enquanto pilar que sustinha o templo de um mito intemporal que prometia às almas a eternidade.

Escravizados pelo alento de vogarem no regaço da imortalidade, superando os próprios limites da existência, os Egípcios conceberam a arte do embalsamamento, que, ao conservar os seus corpos, os arrebatava ao abominável espectro da deterioração, tal como sugere uma das muitas inscrições talhadas sobre os caixões: “Eu não deteriorarei. O meu corpo não será presa dos vermes, pois ele é durável e não será aniquilado no país da eternidade”. Esta arte divina, apta a enfeitiçar o tempo, tornando-o escravo daqueles que a ela recorriam, era ditada, reinventada e abençoada por Anúbis, guardião das sublimes moradas da eternidade, Soberano das mumificações e embalsamamentos, intermediário entre o defunto e o tribunal que o aguardava no Além e deidade cuja aparência é estigmatizada pelas incumbências de que é investido. Por conseguinte, e numa flagrante evocação dos cães e chacais que velavam pelas inóspitas e desérticas necrópoles, esta divindade surge como um animal da família dos Canídeos ou, então, como um homem detentor de uma cabeça de chacal. A mitologia egípcia revela-nos que Anúbis era fruto de uma ilegítima noite de amor vivida por Osíris nos braços de Néftis. 

A lenda revela-nos que tão inusitada união dera-se aquando do retorno do então Soberano do Egipto ao seu magnífico país. Extenuando de uma viagem que o mantivera longe da sua pátria por uma eternidade, Osíris ardia em desejo de sentir o Sol que raiava no olhar de Ísis despir a mortalha de nuvens, tecida pela saudade, que vestia e sufocava os céus de sua alma. Ao vislumbrar Néftis, o deus enlaça-a então em seus braços, tomando-a pela sua esposa. E os seus sentidos, cegos pela paixão, revelam-se impotentes para lhe desvendar a traição que ele cometia, antes desta encontrar-se consumada. Graças a uma coroa de meliloto abandonada por Osíris no leito de Néftis, Ísis abraça a percepção de que o seu amado esposo havia-lhe sido infiel e, desesperada, confronta a sua irmã, que lhe revela que de tão ilídimas núpcias nascera um filho, Anúbis, o qual, temendo a cólera do seu esposo legítimo, Seth, ela havia ocultado algures nos pântanos. Ísis, a quem não fora concedido o apanágio de conceber um filho de Osíris, enleia então a resolução de resgatá-lo ao seu esconderijo, percorrendo assim todo o país até encontrar a criança. Acto contínuo, e numa notória demonstração da benevolência que lhe era característica, a deusa amamenta Anúbis, criando-o para tornar-se o seu protector e mais fiel companheiro.

A lenda de Osíris comprova que Ísis foi coroada de sucesso, uma vez que, após o desmembramento do corpo de seu esposo, Anúbis voluntariou-se prontamente para auxiliar a deusa a reunir os inúmeros fragmentos do defunto. Posteriormente, Anúbis participa com igual dedicação nos rituais executados com o fim de restituir a Osíris o sopro de vida e que lhe facultaram a concepção da primeira múmia, facto que legitimou a sua conversão no venerado deus do embalsamamento, eterno guia do defunto no Além. A sua crescente influência garantiu-lhe um posto relevante no tribunal composto por quarenta e dois juizes que julgava os recém- inumados. De facto, é ele quem conduz o morto até Osíris, apresentando-o ao tribunal por ele presidido, para de seguida proceder à pesagem do coração. Se porventura o morto desejar mais tarde regressar à terra, é Anúbis quem ele tem a obrigação de notificar previamente, dado que esta surtida só será exequível com o seu consentimento expresso, formalmente consignado sob a forma de um decreto.

As suas múltiplas funções permitem a este deus deter diversas denominações, embora todas elas se encontrem intrincadamente relacionadas com o seu papel na vida póstuma dos egípcios. Assim, Anúbis é reconhecido como “o das ligaduras”, como patrono dos embalsamadores, “presidente do pavilhão divino”, enquanto soberano do edifício onde a poesia da mumificação era declamada por peritos, “senhor da necrópole” ou então “aquele que está em cima da montanha”, designações que exaltavam a sua posição enquanto guardião dos túmulos e condutor dos defuntos nos traiçoeiros labirintos do mundo inferior. Como tal, não é de todo inusitado o rol interminável de hinos e preces a ele destinados, que encontramos não raras vezes nas paredes das mastabas mais antigas e igualmente no famigerado “Texto das Pirâmides”.

Anúbis constitui igualmente a deidade tutelar da décima sétima província do Alto Egipto, cuja capital, Cinopólis (“A Cidade dos Cães”), era o âmago do seu culto, não obstante a sua imagem ser também uma constante em relevos e textos figurativos existentes nas sepulturas reais ou plebeias do vale do Nilo. Com efeito, ao longo de toda a época faraónica, Anúbis usufruiu de uma inefável popularidade que se reflectiu na sólida implantação do seu culto nos díspares centros religiosos do país, particularmente em Tebas ou Mênfis. Em Charuna, localidade próxima do seu principal santuário, deparamo-nos com uma necrópole de cães mumificados, os quais eram venerados enquanto animais sagrados do deus.



Mas afinal que arte era esta que Anúbis protegia e representava? Originalmente, antes de haverem alcançado o seu meticuloso método de mumificação, os Egípcios envolviam os seus defuntos numa esteira ou pele de animal, visando que o calor e o vento dissecassem os cadáveres. Após um moroso processo evolutivo, os embalsamadores conseguiram enfim obter de forma artificial tal conservação natural, mediante um prolixo tratamento, que se prolongava por setenta dias. Uma vez ser necessário quantidades abundantes de água para lavrar os corpos, este ritual era realizado na margem Ocidental do rio Nilo (a considerável distância das habitações), onde os embalsamadores trabalhavam numa tenda arejada. Ultimado o referido período de tempo, os defuntos seguiam para as designadas “Casas de Purificação”, meras salas reservadas para as práticas de mumificação, onde cada gesto dos embalsamadores era talhado no olhar vigilante dos sacerdotes. Segundo inúmeros baixos-relevos e pinturas, estes primeiros ostentavam máscaras com a efígie do deus- chacal Anúbis, a deidade protectora dos mortos, talvez num desejo de atrair a sua benevolência. 

O único exemplar que se conserva de semelhante máscara leva a crêr que esta servisse igualmente de protecção contra os diversos cheiros que fustigavam os embalsamadores. Alguns momentâneos descuidos destes levaram-nos a esquecerem-se, por vezes, de determinados instrumentos no interior das múmias, o que nos permite conhecer, aprofundadamente, os seus diversos utensílios de trabalho: ganchos de cobre, pinças, espátulas, colheres, agulhas, vasos munidos de bicos para deitar a goma escaldante sobre o cadáver e furadores com cabeça de forcado, para abrir, esvaziar e tornar a fechar o corpo. Dada a ausência de qualquer informação legada pelos Egípcios sobre as suas técnicas de embalsamamento, é necessário recorrer aos relatos de historiadores gregos, como Heródoto, para que a nossa curiosidade seja saciada. As suas descrições permitem-nos vislumbrar cada movimento dos embalsamadores. Em primeiro lugar, estes extraíam o cérebro do defunto pelas narinas, com o auxílio de um gancho de ferro. Seguidamente, “com uma faca de pedra da Etiópia” (segundo refere Hérodoto) efectuavam uma incisão no flanco do defunto, pelo qual retiravam os intestinos do morto. 

Após terem limpo diligentemente a cavidade abdominal, lavavam-na com vinho de palma e preenchiam o ventre com uma fusão de mirra pura, canela e outras matérias odoríferas. Deixavam então o corpo repousar numa solução alcalina, baseada em cristais de natrão seco, onde permanecia durante setenta dias, ao fim dos quais a múmia era envolvida com mais de vinte camadas de ligaduras e coberta por um óleo de embalsamamento (uma mistura de óleos vegetais e de resinas aromáticas- coníferas do Líbano, incenso e mirra), que endurecia, rapidamente. Todavia, as suas propriedades anti-micósicas e anti-bacterianas não protegiam a estrutura do corpo esvaziado, dessecado e leve, facto comprovado pelo incidente ocorrido com a múmia do jovem faraó Tutankhámon, que se fragmentou, quando a tentaram remover do seu caixão. As faixas que envolviam o defunto eram, preferencialmente, de cores vermelho e rosa, jamais sendo utilizado para a sua concepção linho novo, mas sim, aquele que era obtido a partir das vestes que o morto envergava em vida. À medida que as ligaduras eram colocadas em torno dos defuntos, os sacerdotes presentes pronunciavam fórmulas sagradas. Simultaneamente, depositavam-se nos leitos de linho inúmeros amuletos profilácticos, tendo mesmo sido encontrada uma múmia com cerca de oitenta e sete destes objectos de culto. Entre estes encontrava-se ankh (vida), uma das mais preciosas dádivas oferecidas aos homens pelos deuses; o olho de oudjat, ou olho de Hórus, símbolo de integridade, que selava a incisão feita pelos embalsamadores, para retirar as entranhas do morto; um amuleto em forma de coração, concebido para assegurar que os defuntos seriam bem sucedidos nos seus julgamentos; e o escaravelho, esculpido em pedra, barro ou vidro. Este insecto enrola bolas de esterco, onde depõe os ovos. Os Egípcios creiam que um escaravelho gigante gerara o Sol de forma similar, rolando-o em direcção do horizonte, até ao firmamento. Uma vez que todas as manhãs este astro soberano desprende-se de um abraço de trevas, o escaravelho tornou-se num símbolo da ressurreição dos mortos. 

No exórdio da civilização egípcia, ultimados os seus processos de mumificação, as pessoas notáveis eram inumadas num caixão de forma rectangular, depositado num sarcófago de pedra, considerado como depositário das vida. Porém, ao longo da história, os caixões sofrem diversas metamorfoses, que alteraram, radicalmente, os seus simulacros. No Médio Império, os caixões tornaram-se antropomórficos, aumentando a sua produção. A própria múmia principiou a ter uma máscara de linho estucado, isenta de qualquer semelhança com o defunto. Na realidade, inúmeras múmias eram sepultadas em diversas urnas, sendo colocada uma dentro da outra, à semelhança das bonecas russas. Deste modo, a urna interna, mais ajustada, deveria encontrar-se apertada atrás. Durante muito tempo, os sarcófagos eram construídos em madeira. Não obstante, num período mais tardio, as urnas interiores eram efectuadas com camadas de papiro ou linho, o que se tornava mais economicamente acessível. Junto aos túmulos, repousavam cofres de madeira, que guardavam quatro recipientes, desde o mais humilde pote de barro ao mais faustoso vaso de alabastro. Estes canopes, cujo nome advém de Kanops, cidade situada a leste de Alexandria, continham as vísceras do defunto, uma vez que sem estas, o corpo não se encontraria completo. Inicialmente, esta pratica consistia em mais uma prerrogativa reservada aos soberanos do Egipto, mas com alguma rapidez estendeu-se igualmente aos sacerdotes e altos funcionários e, por fim, no Novo Império, a todos os egípcios abastados. 

O fígado, o estômago, os pulmões e os intestinos eram envolvidos separadamente em tecidos de linho, formando embrulhos que eram, em seguida, depositados no interior dos díspares canopes, após terem sido impregnados com resina de embalsamamento. Em contrapartida, o coração, símbolo da razão, cerne do encontro do espírito e simulacro da alma, após ser submetido a um rigoroso tratamento que visava a sua conservação, era sempre recolocado no corpo do defunto, que iria necessitar dele, ao longo do seu julgamento no Além. Por seu turno, as intrínsecas vísceras eram entregues a quatro deidades protectoras, filhos de Hórus, cujas cabeças ornamentavam frequentemente as tampas dos canopes: Amset, com cabeça de homem, (cujo nome resulta de aneth, uma planta conhecida pelas suas propriedades de conservação), tornado protector do estômago; Hápi, possuidor de uma cabeça de babuíno, que vela pelos intestinos; Duamoutef, que ostenta uma cabeça de cão e cuja missão é proteger os pulmões; e Quebekhsenouf, detentor de uma cabeça de falcão, que preserva o fígado. A partir do Novo Império, eram representadas nas arestas dos canopes deusas protectoras, que, com as asas abertas, resguardavam os seus conteúdos. As mesmas deusas surgiam ajoelhadas nos cantos dos sarcófagos. Nut, a deusa da abóbada celeste, adorna a face interior do tampo do caixão.

Paradoxalmente, os mais humildes eram privados de qualquer prerrogativa, sendo sepultados no deserto, envoltos numa pele de vaca, uma vez que não possuíam meios para pagar o avultado preço da imortalidade.


Detalhes e vocabulário egípcio:

Djed- eternidade;

Keres- caixão;

Na Época Greco-Romana, Anúbis foi investido de novas incumbências, incarnando numa deidade cósmica, regente dos céus e da terra.

Etimologicamente, o epíteto “Anupus” pode possuir a sua origem na palavra inep, empregue com o significado de “putrificar”.

A imagem de Anúbis, nas suas díspares representações, é uma constante não apenas nas múmias e sarcófagos, mas também nas vinhetas dos papiros funerários. A estatueta de Anúbis com cabeça de cão selvagem constituía igualmente um amuleto, que colocava os defuntos sobre a protecção do deus. Evoca-se como exemplo o túmulo do jovem Tutankhámon, entre muitos outros.

A famigerada múmia do faraó Ramsés III sobreviveu indemne durante quase 3000 anos, graças à arte egípcia do embalsamamento e à preservação do deserto. Porém, alguns meses de permanência num museu teriam causado a sua total destruição, caso inúmeros egiptólogos não houvessem agido, prontamente. 

out- embalsamadores

vabet- lugar de purificação, 'Casa da Purificação' 

Mitologia Egípcia Maet


Verdade... Etérea harpista de Sol que ritualiza em seu mavioso tocar o florir do dia numa Primavera de Luz, mera melodia de manhãs intemporais, cuja harmonia divina recria a ordem universal, inebria a humanidade com a sabedoria ancestral, semeia no jardim do mundo a rosa da justiça e coroa a árvore da vida com as excelsas flores do equilíbrio cósmico...

No Antigo Egipto, longe de constituir um conceito trivial isento de sentido ou alma, quiçá uma utopia impressiva banalizada pelo tempo, a "Verdade" surgia como o mais sublime caminho para a fruição espiritual. Encarnada pela deusa Maet, a verdade é assim sinónimo de rectidão, lealdade, justiça, em suma, de todos os princípios básicos que asseguram não apenas o equilíbrio cósmico, mas igualmente o aperfeiçoamento intelectual e espiritual do indivíduo. É, por conseguinte, graças ao equilíbrio oferecido por Maet que o mundo organizado mantém a sua integridade e o Universo conserva a harmonia que lhe fora concedida no acto da Criação. Maet parece suspirar-nos que a verdade, a vida e o conhecimento deveriam constituir a nossa religião primordial, que a Justiça deveria por nós ser eleita dogma universal e o que bem e a liberdade deveriam ser abraçados como a base das nossas preces. A deusa Maet, simultaneamente filha e mãe de Rá, num eterno reinventar de um cosmos renascido, era representada como uma jovem elegante, portadora de uma cabeleira que acariciava graciosamente os seus ombros. Na sua cabeça, a deusa ostentava uma pena de avestruz, empregue igualmente pelos egípcios de forma isolada, como símbolo da deusa Maet (nome próprio ) ou do conceito de verdade em si (nome comum). Em suas mãos, a deusa acolhe alguns dos mais eficazes símbolos profilácticos, como é o caso do uase ou uadj, ceptros também empunhados por diversas outras deidades do panteão egípcio.

Principio sagrado entre os egípcios, Maet consistia num rito incontornável não apenas para os simples mortais, mas também para os faraós e até mesmo para os deuses. Com efeito, a maviosa melopeia entoada por esta deusa era brisa sagrada que alimentava, inebriava e renovava os sentidos das restantes deidades, permitindo-lhes assim preservar a harmonia universal que ela encarna. O culto diário prestado aos deuses conhecia o seu apogeu com a oferta de Maet. Relevos de determinados templos tardios permitem-nos conquistar o tempo e, na mais sagrada lacuna da Imaginação, reviver as intrínsecas cerimónias do ofertório, legadas à eternidade nas paredes do mais íntimo dos santuários. Extasiados, quase abraçamos a prerrogativa de encarnar o sacerdote oficiante, eterno representante do faraó, que num rito pleno de magia oferece Maet, sob a forma de uma figurinha transportada num pequeno cesto, à deidade local, saciando assim a sua sede no cálice da ordem Universal, que o entoar de um hino derrama docemente: "(...) Salve a ti, que estás provido de maet, autor do que existe, criador do que és. (...) Tu surges com Maet, tu unes os teus membros em Maet (...)". É de facto graças a este ritual de uma beleza inefável que Maet, não residindo em nenhum templo específico, se encontra presente em todos os santuários do Vale do Nilo.

MAET E HATHOR Com efeito, nem mesmo o poderoso Rá, mítico regente dos deuses, subsiste quando privado do melífluo fruto da Verdade, pois somente o néctar que dele resvala sacia a sua sede de harmonia, alimenta o seu esplendor e renova a luz que o nimba num halo de espiritualidade ("Tu existes porque Maat existe", como refere um hino). De resto, era igualmente Maet quem se propunha a confrontar todos os inimigos de Ámon, fulminando-os com a sua cólera, a fim de jamais permitir que o fastígio do deus- solar fosse obnubilado. Não constitui assim qualquer surpresa constatar a presença de Maet na viagem amoniana. Embora somente ao deus- sol fosse concedido o apanágio de desfrutar intimamente da companhia de Maet, muitos outros deuses deixavam-se inebriar pela rima perfeita que a deusa concedia ao sublime verso do cosmos, como é o caso de Toth, que era com alguma frequência contemplado como esposo (ou por vezes irmão) de Maet, dada a sua invejável posição enquanto epítome celestial da precisão, justeza e rectidão. Enquanto Maet zelava pela harmonia celeste, na terra era o regente quem se encontrava incumbido do dever divino de conservar a ordem social e perpetrar as leis "maéticas", dispondo para tal de um completo corpo de funcionários, de entre os quais se destacava o vízir. Na função de garante da ordem moral, da justiça e da verdade, o vízir, chefe do poder executivo e de toda a área administrativa, abraça o epíteto de "Sacerdote de Maet", ostentando como insígnia uma pequena figurinha da deusa, geralmente esculpida em lápis- lazuli.

Como aqueles que coroavam o céu da humanidade com o arco-íris da liberdade, da verdade, da justiça e da equidade dos sentidos, os faraós não só não dispensavam maet no seu quotidiano, como também nos seus nomes reais, incluindo assim a deusa ou o próprio conceito que ela encarnava nas suas denominações, na ânsia de que assim lhes fosse concedida a eficácia necessária para uma regência próspera. Podemos evocar o exemplo de Hatchepsut, rainha do Império Novo, cujo pronome não era senão "Maatkaré", ou seja, "Maet é o alimento de Rá" ou "Maet é o ka (poder criador) de Rá. A sublime praia de Maet, graciosamente formada pelos mais rutilantes cristais de Sol, oferecia-se a todas as almas náufragas que se propusessem a brincar nas ondas de sabedoria ancestral do imponente mar do conhecimento. Para que a espírito algum o acesso a estas águas ornadas de magia fosse negado, os sábios egípcios (como os faraós Amenemhat I e Hor- djedef, filho do famigerado Quéops, entre muitos outros) elaboraram os “Ensinamentos”, fulgurantes estrelas de sabedoria destinadas a guiar a humanidade através da enigmática noite da vida. A leitura destes textos de valor incontestável permite-nos abraçar os fundamentos da solidariedade, da equidade, da justiça e da espiritualidade, indispensáveis para a criação de uma sociedade recta, harmoniosa e subversivamente oposta a isefet, ou seja, ao caos, à desordem, enfim, à pravidade em todos os seus subterfúgios e formas. Logo, todos devem respeitar aquilo que Maet representa, para possibilitar o retorno dos fenómenos naturais que garantem a vida e a vitória sobre as forças do caos que pairam ainda sobre a humanidade.

A presença de Maet, embaixatriz da Verdade e da Justiça, revelava-se vital para o bom funcionamento do tribunal osírico, uma vez que, caso privados da sua benção, os defuntos seriam alvo de um julgamento iníquo e imparcial. Conduzidos por Anúbis, o deus da cabeça de chacal, os defuntos compareciam diante do tribunal de Osíris, onde as suas almas seriam julgadas, revelando o seu destino. O tribunal divino erigia-se na "Sala das duas Justiças", intermediária entre o além e o submundo, rodeada por 42 demónios (este valor estava relacionado com o número de distritos- 42- que dividiam o Egipto Antigo). Perante cada uma destas temíveis entidades, o morto deveria declarar-se inocente de um pecado, resumindo-se estas 42 faltas em algumas categorias distintas: blasfémia, perjúrio, assassínio, luxúria, roubo, mentira, calúnia e falso testemunho. Para alcançar a absolvição, os réus deveriam não somente afirmar que haviam alimentado os esfomeados, saciado a sede dos sequiosos, entregue roupas àqueles que não as possuíam e concedido auxílio na travessia de um rio a quem não detinha qualquer embarcação, mas igualmente permitir que o seu coração fosse pesado, uma vez que este representava, para os egípcios, o cerne real da personalidade, a base da razão, da vontade e da consciência moral. Desta forma, sobre a vigilância de Anúbis, o coração do defunto (ib) é depositado num dos pratos de uma balança, confrontando o seu peso com o de uma pena de avestruz, símbolo de Maet. Esta prova, a que ninguém se pode eximir para aceder ao reino de Osíris, permite determinar se a alma do defunto se encontra em conformidade com Maet, isto é, se de facto, nela impera a harmonia oferecida pelo cumprimento das normas morais e espirituais que regem a sociedade.

Enfim, os resultados seriam registados por Toth, deus da escrita, para, em seguida, serem comunicados por Hórus a seu pai Osíris, que absolveria o morto, caso os dois pratos se equilibrassem ou se o seu coração se revelasse mais leve do que a pena. Neste caso, seria oferecido ao falecido um sublime paraíso, localizado a ocidente, onde as espigas de trigo elevavam-se a muitos metros do chão e a vida irradiava uma felicidade ímpar e desmedida. Todavia, a "Grande Devoradora", um misto aterrador de crocodilo, pantera e hipopótamo acha-se, igualmente, presente em todos os julgamentos esperando, impacientemente, pelo deleite de tragar todos aqueles, cujo coração detivesse um peso excessivo. Atormentados com a perspectiva das suas quimeras de ressurreição serem, abruptamente, devastadas pelo aniquilamento das suas existências, os Egípcios entregavam-se, ao longo das suas vidas, a um imensurável rol de precauções. Deste modo, com o fito de auxiliarem os mortos na sua derradeira diligência ao Império dos Mortos, surgiram inúmeras fórmulas mágicas, que, gradualmente, se reuniram no famigerado "Livro dos Mortos", cujo conteúdo era inculcado num rolo de papiro (embora anteriormente fosse apenas gravado nos caixões ou nas paredes)colocado nos túmulos, junto dos cadáveres. Na realidade, inicialmente apenas os faraós poderiam usufruir das referidas fórmulas de encantamento, mas, mais tarde, estas proliferaram-se, igualmente, pelos funcionários e sacerdotes mais bem sucedidos, que, assim, poderiam, enfrentar os inúmeros demónios, emergidos das trevas sob a forma de serpentes, crocodilos gigantes ou dragões, ao longo de toda a viagem. Porém, devido aos seus elevados custos, o "Livro dos Mortos" manteve-se inacessível para as classes mais pobres.

Aqueles que o procuravam, poderiam adquirir o "Livro dos Mortos", totalmente pronto, restando-lhes apenas acrescentar o nome do proprietário. A crença popular referia que este documento havia sido concebido pelo próprio Toth, que oferecia aos viajantes o meio de afastarem-se de um passo em falso. Por exemplo, ao serem abordados por um crocodilo, os defuntos deveriam pronunciar as seguintes palavras: "Passa de largo! Vai-te, crocodilo maldito! Tu não te aproximarás de mim, pois eu vivo de palavras mágicas, nascidas da força que está em mim!". Porém, fundidos com estas fórmulas, também foram registados no "Livro dos Mortos" pensamentos dogmáticos, como o apresentado, seguidamente "O homem deverá ser julgado pela forma como se conduziu na Terra", que representa uma clara divergência para com os restantes textos, divergência esta que pode ser explicada pelo facto desta obra não merecer, de todo, o epíteto de homogénea, uma vez que os seus capítulos acompanharam os díspares estados de evolução das ideologias egípcias. Com efeito, as partes mais antigas desta obra surgem nas paredes da pirâmide do faraó Unas, derradeiro soberano da Quinta Dinastia, enquanto que as mais recentes datam do século VII a.C. Embora não correspondessem já às concepções religiosas dos Egípcios, os textos mais arcaicos do "Livro dos Mortos" nunca foram retirados do mesmo, graças ao respeito que esta civilização dedicava a tudo o que pertencia ao passado. Como consequência, esta obra tornou-se, progressivamente, num espelho reflector da evolução da religião egípcia.


Detalhes e vocabulário egípcio:

Ao longo de aproximadamente cinco séculos (de 1550 a 1070 a. C.), subsistiu no Antigo Egipto uma confraria, constituída por homens e mulheres extraordinários, simultaneamente artesãos e sacerdotes, da qual brotaram muitas das obras- primas da arte egípcia. Esta confraria, expoente máximo da espiritualidade aliada à criatividade, viveu numa aldeia do Alto Egipto, interdita a profanos, cujo epíteto verdadeiramente excepcional é merecedor da nossa atenção: “Lugar da Verdade”, ou seja, “Set Maet”. O eterno cosmos onde a constelação de Maet reinventava a harmonia da sua luz, de forma a alumiar o universo com uma ordem espiritual inabalável, ainda se oferece ao nosso olhar, caso visitemos a localidade de Deir el- Medina, a oeste de Tebas. Lá, somos tentados a sonhar com todas as obras- primas que a mão humana, orientada pelo ritmo divino, forjou e imortalizou. 

Com frequência, deparamo-nos com as palavras Maet e maet escritas de forma verdadeiramente díspar. Consoante o autor, Maet é apelidada de Maat, Ma-a-at, Majet, Mayet, Maät, etc. Segundo a fracção mais numerosa de egiptólogos envolvidos nesta altercação, Maet, ou seja, a grafia empregue neste artigo, é a mais correcta. Porém, iníquo seria não salientar que egiptólogos tão prestigiados quanto William Hayes e Cyril Aldred optam pelo uso de Maat, grafia apresentada no início do séc. XX. 

Na escrita hieroglífica, a deusa Maet surge como uma figura ajoelhada, ostentando a sua característica pena de avestruz na cabeça e o signo ankh (símbolo da vida) sobre os joelhos. 

Mitologia Egípcia Aton


Saciados os céus no faustoso festival de luz que exaltava o excelso palácio do dia, o Sol abdica do seu eterno trono de turquesas e, velando a sua mística silhueta d’ ouro com as exóticas sedas do poente, estira-se languidamente no lendário tálamo do horizonte, preludiando a noite que já brotava no Infinito. À semelhança de tantas outras civilizações da Antiguidade, os egípcios veneravam o Sol como a mais importante deidade da sua inebriante religião, prestando-lhe um culto sincero e apaixonado enquanto deus primordial, ourives da criação que nos primórdios da existência talhara a jóia do universo, fonte da vida e alimento perpétuo.

No panteão egípcio, inúmeras são as deidades que incarnam o sublime regente dos céus, e, em particular, o seu rutilante ceptro de luz ou a força criadora que em seu extasiante esplendor se renovava, como é o caso de Horakhti, “o Hórus do Horizonte”, identificável como um homem de cabeça de falcão, sobre a qual repousa um disco solar; ou Ámon- Rá, deidade venerada em Tebas, cujo fastígio de luz, cálice solar derramado ao florir da aurora, sublimava o firmamento e conduzia a humanidade até à apoteose divina. Todavia, o desejo de se designar o astro- rei em si ou de evocar o disco solar somente era satisfeito através do pronunciar de uma única palavra: Áton. Enquanto variante aperfeiçoada de Ré- Horakthi, Áton era já alvo de um culto modesto mesmo antes da radical subversão de Akhenaton. Na realidade, as primeiras menções ao seu nome, enquanto designação do globo luminoso, datam do Antigo Império, podendo ser encontradas nos “Textos das Pirâmides”. Porém, é somente na 18ª dinastia, mais exactamente no reinado de Amenófis III, que Áton torna-se no centro de um desafio a toda a realidade conhecida, ao satisfazer o desejo deste faraó e, de seguida, do seu filho Amenófis IV, de centrar a religião egípcia num único deus. Mas que caminhos trilhou Áton até alcançar o estatuto supremo, ou seja, o de divindade dinástica? Ao longo de dezassete anos, a alma do Egipto ardeu no cálido e conturbado vórtice de uma revolução, fruto de paixões férvidas e imensuráveis, concebidas por um coração eivado de poesia e espiritualidade: o de Akhenaton, “O Herético”, faraó cujo reinado se encontra envolto num obscuro véu de densos enigmas, propiciados pela escassez de materiais históricos concretos.

Fruto da união entre o faraó Amenófis III e a rainha Teie, Amenófis IV galgou as veredas da infância e os labirintos da adolescência entre o fastígio do imponente palácio tebano de Malgatta, onde se submeteu a uma educação rigorosa, que visava despertar e esculpir, diligentemente, não somente as suas faculdades intelectuais, como as suas capacidades físicas. O seu mentor, Amenotep, filho de Hapu, inculcou no espírito algo sonhador do jovem príncipe o respeito pela Luz Criadora, cujo fulgor animava igualmente os deveres sagrados inerentes ao trono, que Amenófis IV ocupou em 1364 a . C., quando detinha apenas quinze anos. A seu lado, resplandecia uma jovem de beleza esplendorosa, Nefertiti, a quem, todavia, se havia unido por imposição de dirigentes egípcios, que ignoravam a devastadora paixão que entrelaçaria, posteriormente, as almas dos dois soberanos. Esta jovem rainha, Nefertiti, cujo nome significa “a bela veio”, pertencia, segundo a opinião de diversos historiadores, a uma famigerada família de um poderoso elemento da corte, versão contestada por alguns que afirmam que a soberana era na realidade filha de Amenófis III.

Inúmeras dúvidas adornam o exórdio do reinado de Amenófis IV, uma vez que se coloca a hipótese deste haver governado em simultâneo com seu pai, probabilidade contestada por uma fracção da comunidade egiptóloga. Desta forma, segundo a hipótese escolhida, observa-se uma variação de dados e datas. No quinto ano do seu reinado, o jovem soberano, agora com vinte anos, entrega a sua alma ao deus solar Áton, considerado a fonte de toda a vida, chegando mesmo a renegar o seu nome, com o fito de tomar a designação de Akhenaton, ou seja, “espírito eficaz para Áton” ou “aquele que agrada a Áton”, numa clara homenagem a esta deidade criadora. O seu fulgor fendeu o fausto ostentado pelas demais divindades egípcias, cujos cultos seculares Akhenaton desejou dilacerar, prostrando-os diante da luz que o enfeitiçava. Na realidade, semelhante politeísmo havia sido gerado no exórdio dos tempos pré-históricos, quando o Egipto se compunha de inúmeros reinos exíguos, cada um dos quais protegido por um deus próprio e distinto, geralmente, representado sob a forma de um animal. Todavia, muito cedo os Egípcios principiaram a venerar o Sol como uma deidade, à qual concederam a denominação de deus- sol Rá, uma soberano supremo com o qual gradualmente os deuses locais foram-se identificando e fundindo. Desta forma, o lógico ultimar de tão prolixa evolução deveria ter sido a assimilação dos díspares deuses locais numa só divindade. Porém, tal conclusão mostrar-se-ia deveras inconveniente para os diversos sacerdotes, sustentados pelas oferendas realizadas em honra das inúmeras divindades egípcias, cujo culto se realizava igualmente nos luxuosos templos, que os albergavam.

Ao tomarem Tebas como sua capital, os faraós tornaram Ámon no mais prestigiado dos deuses egípcios, concedendo aos sacerdotes que lhe prestavam culto um poder imensurável, que atingiu o seu apogeu, quando esta divindade se fundiu com o deus- solar Ra. Na verdade, não era contra Ámon, em concreto, que Akhenaton se batia, mas sim, contra a poderosa hierarquia religiosa tebana , que principiava a desafiar, embora subtilmente, a autoridade real. Desta forma, Akhenaton adopta o título de sumo- sacerdote de Heliópolis, denominando-se assim de “o maior dos videntes”, num acto que o prendeu à mais antiga expressão religiosa, considerada mais pura do que a religião tebana. Porém, é em Carnaque, templo dedicado a Ámon, que Akhenaton esculpe a sua visão, ordenando aos escultores que concebessem um ser singular, delineado num vórtice de características masculinas e femininas, que se reflectem, entre outros, num rosto deformado e num ventre saliente evocando uma fecundidade, que pretendia ilustrar que o faraó é mãe e pai de todos os seres.Após ter defrontado uma vez mais os sacerdotes tebanos ao retirar-lhes a gestão de intrínsecos bens temporais, inerentes ao trono do Egipto, Akhenaton reserva-lhes , no sexto ano do seu reinado, um novo sobressalto, ao tomar a decisão de criar uma nova cidade, desenhada na luz sublime de Áton, abandonando, deste modo, Tebas. O local eleito, “revelado pelo próprio Áton”, repousa na orla direita do rio Nilo, entre Mênfis e a antiga capital dos faraós, sendo actualmente conhecido pelo nome de Tell El- Amarna.

Nesta cidade, construída com uma rapidez surpreendente, Akhenaton manda erigir um palácio que o acolha e um tempo onde lhe seja possível prestar culto à luz que o inunda. O esplendor quase celestial de ambas as construções desvaneceu-se no compasso do tempo, restando agora apenas uma ideia prófuga a seu respeito. O faraó concedeu à sua cidade o epíteto de “Cidade do Sol”, jurando jamais abandoná-la, promessa que cumprir até ao eclipsar da sua existência. Diversos funcionários administrativos, escribas, sacerdotes, militares, artífices e camponeses desprenderam-se da sua antiga cidade para seguirem, obedientemente, o faraó. A cidade torna-se acolhedora, detendo largas avenidas, zonas verdejantes, parques sublimes e mansões nobiliárias, que abraçam a divina luz solar. Por seu turno, o referido templo erguido em honra de Áton revela-se díspar dos demais santuários construídos ao longo da décima oitava dinastia, devido à ausência de salas veladas pela escuridão, onde os cultos eram celebrados, quase secretamente. Em contraste, possuía inúmeros pátios brindados pela luz, que conduziam ao altar do deus solar, onde eram depositadas dádivas sumptuosas. Áton, deus de amor e luz, era geralmente representado sob a forma de um disco solar, ornamentado na maioria das vezes com um uraeus, símbolo de soberania, e cujos raios resplandecentes terminavam em mãos que agraciavam a humanidade com carícias celestiais.

Teoricamente, o culto dedicado àquele que se convertera “no pai dos pais e na mãe das mães”, facultava a todos o acesso ao Divino, já que para adorar Áton, bastaria dirigir-se ao magnificente soberano da luz. Contudo, tal ideologia sagrou-se numa utopia impressiva, terrivelmente aparada da realidade, uma vez que a essência de Áton persistia num paraíso proibido aos simples mortais, aos quais era oferecida a presença efectiva do deus no céu, mas não a compreensão do mesmo. Como tal, tornou-se vital a existência de um intermediário, que simultaneamente incarnasse as luzentes manifestações do deus único e permitisse ao mais comum dos mortais com ele comungar. Ocupando este intrínseco papel de mediador, Akhenaton converte-se então no único profeta do seu deus e seu representante junto dos crentes. Estes, por seu turno, prestavam culto a Áton através de uma oblação algo inusitada, que se concretizava numa oração pronunciada em casa, diante da estátua do rei. Na realidade, não se contentando em reformular a religião egípcia, Akhenaton introduziu no panteão artístico, além das insólitas silhuetas andróginas e de ventres salientes que traiam um estado de gravidez perpétuo, crânios alongados e rostos deformados, que se distanciavam deveras dos ideais cultivados anteriormente.

Nefertiti permanece imutavelmente ao lado do seu esposo, a quem dedica um amor imensurável, apenas comparável à devoção que a leva a prostrar-se diante da magnificência de Áton, a cujo culto se entrega, literalmente. Tornada num fascinante símbolo de beleza, a rainha exerce uma vital função religiosa, sendo “aquela que faz repousar Áton com a sua bela voz e as suas belas mãos, que seguram sistros”. Esta soberana, cujas responsabilidades políticas são inegáveis, oferece porém o seu coração ao amor que nutre pela sua família, que, no espírito de Akhenaton, é um estigma da vida divina., cujo esplendor merece ser imortalizado por artistas. Desta forma, os regentes concedem-nos, em diversas representações, a prerrogativa de perscrutarmos o seu lar, onde o enlace entre um homem e uma mulher é contemplado como um enlevo sagrado. Num baixo- relevo, repleno de ternura, Nefertiti, sentada nos joelhos do rei, segura uma das suas seis filhas; noutro, é esculpida a dor ímpar que devastou o casal régio, prostrado diante do féretro da sua segunda filha, perecida em consequência de uma prolongada enfermidade. Sacerdote e profeta de uma deidade nimbada por um halo de energia que concebe a vida, Akhenaton inicia determinados dignitários nos sacros mistérios de Áton, entregando-se, literalmente, a esse papel de mestre espiritual. Concomitantemente, emprega cada lampejo das sua forças à concepção de um sublime hino, que muitos consideram, flagrantemente, semelhante aos Salmos de David, nomeadamente, ao salmo 104.

Hino ao Sol

Bela é a tua alvorada, oh Áton vivo, Senhor da eternidade!
Tu és brilhante, tu és belo, tu és forte!
Grande e profundo é o teu amor; os teus raios cintilam nos olhos de todas as criaturas; a tua pele espalha a luz que faz os nossos corações viver.
Tu encheste as Duas Terras [nota: Akhenaton refere-se ao Egipto] com o teu amor, oh belo Senhor, que a ti mesmo te criaste, que criaste a Terra inteira e tudo o que nela se encontra: os homens, os animais, as árvores que crescem no chão.
Levanta-te para lhes dar vida, pois tu és a mãe e o pai de todas as criaturas. Os seus olhos voltam-se para ti, quando ascendes no firmamento. Os teus raios iluminam toda a Terra; o coração de cada um enche-se de entusiasmo, quando te vê, quando tu lhe apareces como seu Senhor. Quando te pões no horizonte ocidental do céu, as tuas criaturas adormecem como mortos; obscurecem-lhes os cérebros, tapam-se-lhes as narinas, até que de manhã se renova o teu brilho no horizonte oriental do céu.
Então, os seus braços imploram o teu Ka, a tua beleza acorda a vida e renasce-se! Tu ofereces-nos os teus raios e toda a Terra está em festa; canta-se, toca-se música, soltam-se gritos de alegria no pátio do castelo do Obelisco , o teu templo de Akhenaton, a grande praça que tanto de agrada, onde te oferecem alimentos como homenagem...
Tu és Áton, tu és eterno... Tu criaste o longínquo céu para aí te elevares e veres as coisas que criaste. Tu és único e, no entanto, dás vida a milhões de seres, é de ti que as narinas recebem o sopro da vida. Quando vêem os teus raios, todas as flores vivem, essas mesmas que crescem no chão e se abrem quando tu apareces. Com a tua luz se embriagam. Todos os animais se levantam de um salto, os pássaros que estavam nos seus ninhos abrem as suas asas, para fazerem preces a Áton, fonte da vida.

Convidemos, por instantes, este cântico devoto a adornar a nossa imaginação, permitindo-nos pressentir a fé ardente com que era entoado, entre o vibrar das cordas de uma harpa, que brindava cada alvorada e cada crepúsculo com a sua alma melódica. No exórdio das drásticas alterações religiosas, Áton ocupava um lugar de supremacia diante dos outros deuses, com quem, porém, coexistia. Somente após longos confrontos com os sacerdotes, Akhenaton ordenou enfim a supressão de todas as divindades egípcias, à excepção do seu deus- solar, ordenando que os seus nomes fossem apagados dos templos, num linchamento espiritual que principiou com Ámon. As razões e modo de aplicação desta estratégia religiosa encontram-se todavia sepultados sobre os escombros da obscuridade. Apesar da persistência febril do soberano, as divindades que ele tentara aniquilar permaneceram vivas no interior das casas de inúmeros egípcias, que continuaram a prestar-lhes culto, secretamente. De súbito, a alma egípcia colheu do reinado de Akhenaton uma rosa perlada pelo sacrilégio, que havia florescido de um gesto talhado num atroz equívoco: a supressão de Osíris, cujo culto era nimbado pela irresistível fragrância da imortalidade, quimera que escravizava o coração dos Egípcios. Desafiando a reconfortante noite de uma tradição secular com a rutilante aurora de uma herética subversão, Akhenaton concede ao seu deus a prerrogativa de usurpar os atributos e incumbências do venerado Osíris. Por conseguinte, em todas as representações funerárias datadas deste período de tempo, o personagem principal não é senão Akhenaton, mensageiro do deus único tanto na terra como no Além. 

Porém, a récita de indignação que rasgava o peito Egípcio esbateu-se em cânticos de submissão, elevados mesmo no instante em que o soberano proibiu o pronunciamento da palavra “deuses”. Eclipsada pela celestial visão da “Cidade do Sol” e pelo divino alento de enaltecer o esplendor de Áton, a liderança do Egipto tombou, negligentemente, numa remota e obscura lacuna da alma do regente, de cujas mãos sonhadoras resvalaram um imensurável rol de erros. Abominando conflitos ou guerras, Akhenaton adopta uma política de passividade, crendo que o prestígio do Egipto bastará para preservar o equilíbrio no Próximo Oriente. Desta forma, desvanece o halo de protecção que o faraó deve manter em torno dos seus aliados, permitindo que gradualmente o império formado por Tutmósis III se desintegre nas mãos do poderoso povo hitita. Embora tenha já perdido a maioria dos seus vassalos, corrompidos ou ameaçados, Akhenaton continua a ignorar os desesperados pedidos de auxílio provindos daqueles que ainda lhe são fiéis. A morte de Ribaldi, príncipe da Síria, que pagara com a sua vida semelhante fidelidade não rasgam tão denso véu de passividade. Esta ausência de qualquer reacção por parte do faraó fá-lo perder os portos fenícios, acentuar a revolta da Palestina, permitir a atroz chacina que levou ao desaparecimento de Mitanni, aliado do Egipto. O mutismo de Akhenaton talha o brilho feroz das armas dos hititas e assírios, tingidas do sangue de aliados egípcios. Como não conceder à atitude do regente o epíteto de deplorável? Como não condenar o seu reinado, conspurcado pelo travo do sangue? Porém, é possível argumentar a seu favor: talvez os relatórios que repousavam nas mãos fossem incompletos, adulterados ou mesmo falsos. Ter-se-ia ele, de facto, apercebido, da aterradora gravidade da situação? A luz de Áton tornou-se, para os egípcios, num fragmento das trevas, que invadiam, gradualmente, o seu pais, já fustigado por graves perturbações económicas, florescidas da ausência de tributos pagos por aliados. Os inimigos de Akhenaton fizeram ressoar a sua cólera nos murmúrios do rio Nilo, bordando-a, de seguida, num apelido significativo: “O Herético”. Na realidade, somente Akhenaton e um exíguo grupo de fiéis entregavam a sua alma à luz de Áton, deidade incapaz de silenciar os clamores tentadores de Osíris, de cujos braços o povo egípcio não se ousava desprender. 

O Sol do seu reinado extinguiu-se num céu de enigmas. Que sucedeu a Nefertiti após o ano 15 do reinado de Akhenaton? Ter-se-á oposto, igualmente, à conduta de seu esposo ou terá entoado cânticos dedicados a Áton até ao seu derradeiro suspiro? Crê-se que talvez a rainha tenha perecido no ano 13 ou 14 do reinado de Akhenaton, dilacerando o sopro de vida que ainda brincava no semblante do soberano. A sua morte perde-se na fragrância do desconhecido, suspeitando-se apenas que não tenha sido sepultado no túmulo familiar que mandara escavar em Amarna e onde já jazia o corpo da sua segunda filha. A “Cidade do Sol”, sublime oferenda a Áton, foi abandonada à aridez do deserto, sendo considerada como o fruto da heresia.


Detalhes e vocabulário egípcio:

Amarna, cidade localizada na margem direita do Nilo, mais exactamente a cerca de 280 km do Cairo, conquistou o tempo, tornando-o escravo dos seus caprichos, a fim de legar à eternidade algumas das mais magníficas obras de arte egípcia, como é o caso do famigerado busto de Nefertiti, encontrado numa oficina de escultura, e que hoje deslumbra visitantes de todo o mundo, no Museu Egípcio de Berlim. De resto, a luzente “Cidade do Sol” foi igualmente testemunha da subversiva arquitectura dos sumptuosos templos erigidos em honra de Áton. Com efeito, estes extasiantes edifícios a céu aberto contrastam terrivelmente com a arquitectura tradicional característica dos templos dedicados a Ámon. 

Mitologia Egípcia Amon


Entre os cerúleos pilares de lápis- lazuli do enleante templo dos céus, o Sol, sedutor feiticeiro do Infinito, transfigurava, através da mística alquimia da luz, a noite da inexistência, perpétuo algoz da alma humana, no resplandecente dia da vida eterna. E seus lábios luzentes, pétalas de luz da fragrante rosa de fogo que a aurora desfolhava sobre o leito do horizonte, na ânsia de perfumar as núpcias do céu e da terra, albergavam o berço da humanidade e a matriz da perfeição universal. No Antigo Egipto, Ámon- Ré, imanente incarnação do astro- rei, era soberano do sublime éden de fruição espiritual, de cujo seio de apoteoses divinas brotava o fruto da harmonia cósmica que deuses e homens cobiçavam. Ávidos de saciar a sua sede no néctar de paz intemporal dele resvalado, estes coroavam os céus com arco –íris talhados em hinos esplendorosos que exaltavam a magnificência do excelso regente dos deuses: “Único é o oculto que permanece velado para os deuses, sem que a sua verdadeira forma seja conhecida. Nenhum deles conhece a sua verdadeira natureza que não é revelada em nenhum escrito. Ninguém o pode descrever, é demasiado vasto para ser apreendido, demasiado misterioso para ser conhecido. Quem pronunciasse o seu nome secreto seria fulminado.” (Hino a Ámon).

Todavia, oráculo algum preconizara que tal deidade, quase escrava do anonimato total no Antigo Império, viria a coroar-se “rei dos deuses” (nesu- netjeru) e incontestável soberano do vasto reino dos céus. Com efeito, é apenas no decorrer do Médio Império, que Ámon, efígie do Sol criador, após haver vagueado, enquanto peregrino de luz, pelos ignotos céus do desconhecimento, alcança por fim o santuário de magia imarcescível, erguido no horizonte da fé em honra do panteão egípcio, onde, volvida uma viagem mágica, que lhe permitiu a absorção de diversas outras deidades, o deus solar renasce, cantando a Aurora do seu poder como divindade nacional, dinástica, universal e criadora. Os jardins onde a mitologia egípcia semeou as origens de Ámon constituem ainda um paraíso proibido, cujos encantos florescentes se oferecem somente à nossa Imaginação nómada. Porém, alguns egiptólogos crêem que originalmente Ámon não era senão uma deidade do ar, que no Infinito nas crenças egípcias, partilhava as características de Chu, estatuto do qual não jamais viu-se privado, mesmo após a sua meteórica ascensão até ao trono celeste. É, de facto, como rosa de vento, orvalhada de doces brisas, que Ámon desabrocha para a Primavera da popularidade na região tebana de Ermant. Esta teoria é, contudo, contestada por uma fracção oponente, a qual defende que Ámon, na realidade, floresceu na mitologia egípcia enquanto um dos membros da Ogdóade de Hermopólis, formando assim com Amonet, sua parceira feminina, um dos quatros casais que a constituíam. Nesta representação, Ámon e a sua esposa incarnam os princípios primordiais, suspensos nos braços da escuridão, que se transfiguravam num hipotético dinamismo criador. A introdução de Ámon na região tebana ofereceu-lhe uma inaudita ascensão no seio da Ogdoáde, ao indigitá-lo líder dos deuses que a formavam. 

Independentemente das dúvidas que, quais planetas perdidos no Universo da História, orbitam em torno da fulgurante estrela que exaltara o nascimento de Ámon, é certo que este deus manteve-se cativo do cárcere do anonimato até ao Império Médio. Com efeito, a partir da XII dinastia, o seu culto desenvolve-se de forma surpreendentemente célere, permitindo a Ámon ser consagrado soberano incontestável do panteão egípcio. Despindo a mortalha de nuvens que obliterava o seu rutilante corpo de Sol, Ámon inundou de luz as almas dos monarcas egípcios que, em retribuição, permitiram que o sublime pulsar do coração da eternidade entoasse até ao seu atroz eclipsar, a maviosa sinfonia composta pelo doce epíteto do deus criador. Assim, em Karnak foram edificados templos, cujo esplendor conquistou o tempo e desafiou a morte. Concomitantemente, o faraó torna-se filho carnal de Ámon, proclamando-se assim emissário dos deuses entre os homens e vice- versa. Em Tebas, cidade cuja cosmogonia combina elementos oriundos de Hermopólis, Heliópolis e Mênfis, Ámon tange no doce harpa do coração da doce deusa Mut a harmoniosa melodia do amor. Com ela e com Khonsu, fruto dos seus esponsais, formará uma poderosa tríade. Na qualidade de deus patrono da capital egípcia (Tebas), Ámon é coroado regente dos deuses. 
Contemplando a surpreendente ascensão ao trono dos céus do agora prestigiado deus criador, o clero abraça a resolução de talhar na sua coroa de luz a jóia rara de uma teologia apta a exaltar o fastígio da sua soberania, facto facilmente constatável através da leitura e análise do seguinte mito. Canta a lenda que a serpente Kematef, ou seja, “a que cumpre o seu tempo”, emergiu de Nun, o excelso oceano de energia primordial, no local exacto da cidade de Tebas, brindando os céus com o nascimento de Irta, isto é, “aquele que fez a terra”, para de seguida desbravar o paraíso indómito dos sonhos. 

Por seu turno, Irta, sublime ourives da Criação, converteu as trevas do nada no sumptuoso tesouro do Universo, principiando por esculpir a terra, eterna barca de rubis navegando nos mares de pérolas negras do Infinito e, acto contínuo, os já citados oito deuses primordiais que se dirigiram a Hermopólis, a Mênfis e a Heliópolis para sonharem o esplendor da luz divina que do áureo corpo do Sol se desprendia (Ptah e Atum). Traídos pela sua obra colossal, que no decorrer da sua concepção todas as suas forças havia furtado, as oito deidades retornaram a Tebas, onde, à semelhança de Kematef e Irta, saborearam as nascentes de fruição espiritual que brotavam do éden das quimeras. No cosmos deste mito, a constelação de Ámon brilhou enquanto ba (poder criador) de Kematef, o que cimentou a sua posição fautor das maravilhas da Criação. Gradualmente, Ámon fundiu a sua identidade com a de Ré, senhor de Heliópolis, concebendo assim a deidade Ámon- Ré, suprema incarnação do astro- rei. Esta conotação solar do deus tebano é enfatizada pelos seus adoradores: “Tu és Ámon, tu és Atum, tu és Khepri”, numa clara oblação às inúmeras metamorfoses vividas pelo deidade solar, principiando pelo seu derradeiro mergulho no oceano do horizonte, enquanto Sol poente (Atum), até à sua ressurreição sob a forma de Sol nascente (khepri).

Conquistando igualmente aparência e funções de Min, deus da fertilidade, Ámon, agora, Ámon- Min, incarna os elementos primordiais da Criação. De facto, algumas das primeiras representações de Ámon em Karnak, datadas do início da XII dinastia, representam o deus tebano, enquanto fruto da sua fusão com Min. Através da associação ecléctica às mais proeminentes deidades do panteão egípcio (Ré, Ptah e Min), Ámon conquista a dádiva do poder, inevitavelmente depositada no sumptuoso altar de sua alma iluminada, bordando nas sedas consteladas que velam a etérea silhueta do Universo a poesia da sua sublimação, enquanto divindade nacional, primordial e demiúrgica. Durante o reinado de Akhenaton, em meados do séc. XIV, o deus tebano é alvo da perseguição do regente, quiçá numa represália contra o intimidatório poder do clero amoniano, que aumentara proporcionalmente ao prestígio da deidade em questão. Após uma noite de cerca de quinze anos, uma aurora adornada de paradoxos e controvérsias canta a ressurreição do Sol, que uma vez mais se apodera do trono dos céus, sob a forma de Ámon. Este converter das trevas na luz deve-se à alquimia secreta de um único faraó: Tutankhámon (reinado: 1337- 1348 a . C.).

Um orvalho cristalino, eivado de mil enigmas, perla a rosa da fortuna, em cujas pétalas repousa o simulacro incerto do príncipe Tutankháton, espírito isento de origens concretas. Teria o futuro faraó despontado dos braços de Akhenaton ou do seio de uma família nobre? Um vórtice de conjecturas enlaça igualmente o significado do seu nome, sendo “ imagem viva de Áton” ou “poderosa é a vida de Áton” as traduções mais credíveis. Após a extinção de Akhenaton, o trono do Egipto oferece-se ao olhar hesitante de Tutankháton, uma criança de apenas nove anos, que, contudo, havia já desposado a terceira filha do faraó falecido. Inebriado pelo fausto de jogos e festas, enclausurado num débil esboço de uma personalidade esbatida, Tutankháton prostra-se diante dos conselhos de um preceptor, possivelmente, o alto- dignitário Ay, ignorando as ferozes querelas entre os partidários de Ámon e de Áton, cujo fulgor torna-se num sorriso da heresia. Gradualmente, a influência do clero enleia, irreversivelmente, o ingénuo jovem, depositando na sua alma ainda perfumada pela infância, o desejo de retornar ao seio da primordial religião, tecida em torno de Ámon. Por conseguinte, o jovem altera o seu nome para Tutankhámon, entregando cada suspiro do seu império aos lábios de nácar do politeísmo. Desta forma, no regaço de seu reinado o compasso do tempo esculpiu o sepulcro da excelsa “Cidade do Sol”, cujo fulgor foi extinto com o fito de restituir a soberania à olvidada cidade de Tebas, no seio da qual o faraó se reinstalou, concedendo, uma vez mais, imensuráveis poderes aos sacerdotes que se prostravam diante do divino simulacro de Ámon. Submissamente, todos aqueles que haviam ornado de vida a quimérica cidade de Akhenaton seguiram a família real, entregando Armana aos nefastos braços da decadência. As carícias letais do vento árido arrebatou o fastígio dos templos e palácios, resumindo-os a lúgubres escombros, no coração da areia enclausurados. Somente após 3000 anos, a alma desta cidade foi enfim libertado do seu lúrido cárcere.

Intoxicado pelo incenso celestial queimado sobre a cidade de Tebas, Tutankhámon não empreendeu qualquer campanha militar, impedindo assim uma ascensão do Egipto no plano internacional. Privado do seu antigo poder, o exército egípcio entrega-se aos braços da decadência. Na realidade, somente a contínua vigília de Horemheb, a quem Tutankhámon havia entregue plenos poderes, impediu toda e qualquer invasão do território egípcio. Este general encontrava-se deveras distante da imagem de soldado grosseiro e rude que inúmeras vezes lhe é atribuída na actualidade. Trata-se, na verdade, de um escriba, um letrado, cuja alma se encontra escravizada pelo amor ao direito e à justiça. Ao completar quinze anos, no ano 6 do seu reinado, a consciência dos seus deveres fende as pálpebras outrora cerradas de Tutankhámon, Desprendendo-se do torpor da infância, o jovem faraó principia a mergulhar nos seus ofícios de soberano, recorrendo ao pronto auxílio de seus mentores Ay e Horemheb, detentores de um poder imensurável, concedido pelo próprio regente. Surpreendentemente, Tutankhámon lida, habilmente, com a política externa, solucionando diversas questões pendentes. Simultaneamente, almeja restituir ao Egipto o seu esplendor estonteante, pelo que ordena a restauração e construção de monumentos e o levantamento de ruínas. De seu espírito resvalaram rasgos de luz, orvalhados pelo gotejar da independência, que fenderam enfim a sufocante influência que Ay e Horemheb possuíam sobre o faraó e sobre o destino do Egipto. Porém, quando Tutankhámon completou dezoito anos, a auspiciosa melodia entoada pela sua fortuna extinguiu-se nas trevas de uma sinfonia de silêncio, concebida pelas lúgubres carícias da morte... 

Intrigados com tão suspicaz falecimento, os egiptólogos lançaram-se numa desesperada procura pela verdade, já sepultada entre as valsas do tempo. Por fim, após um inexaurível rol de pesquisas e investigações, uma autópsia realizada à múmia do faraó concedeu-lhes o fulgor da solução que tanto haviam cobiçado: uma fractura na base do crânio de Tutankhámon comprovava que este havia sido, brutalmente, assassinado. Porém, que mãos cruéis e isentas de compaixão haviam desferido o golpe fatal que oferecera aos lábios sequiosos da morte o travo da vida de Tutankhámon? Os sacerdotes tebanos, movidos pelo temor de que o regente, agora livre igualmente da sua influência, abraçasse os devaneios de Akhenaton? Ou aquele que queimara o incenso da sua vontade sobre o débil altar da alma de Tutankhámon, submetendo-a aos seus caprichos e alentos: o divino- sacerdote Ay, tornado mais tarde em sucessor do faraó falecido? A verdade oferece-se ao olhar daqueles que pressentem os silvos das conjecturas, em cujo regaço quase sentimos o toque do sangue do jovem faraó tingir as mãos do ambicioso Ay. Na realidade, sobre a imagem de Tutankhámon baila um inexorável paradoxo, delineado pela imensurável fama que este insigificante faraó alcançou na actualidade. Indemne à acção dos inúmeros saqueadores, o seu túmulo, descoberto em 1822 por Howard Carter, derramou sobre a alma perplexa da humanidade a fragrância do fausto e fastígio do Antigo Egipto. Jamais houve uma descoberta mais preciosa do que a do túmulo de Tutankhámon. A grácil beleza dos móveis e as suas obras de arte ultrapassaram tudo o que até então fora encontrado no Egipto. Graças ao túmulo do jovem faraó, o único encontrado intacto, a cultura egípcia atraiu muitos mais admiradores do que no passado; admitiu-se que esta cultura havia exercido sobre os povos vizinhos uma influência muito mais profunda do que então se cogitara. Ao contemplarem-se as excelsas riquezas que um faraó considerado verdadeiramente irrelevante, cujo reinado prolongou-se por um escasso período de tempo, levava para a sua derradeira morada, calcula-se o esplendor que brincaria nos túmulos de poderosos faraós como Tutmés III, Amenófis II, Seti I e Ramsés II.

No paraíso de seu reinado, brotou a cobiçada fonte da ressurreição, onde Ámon, outrora cativo do sepulcro do esquecimento, saciou a sua sede de vida. Durante cerca de meio século, mais precisamente de 1000 a.C. até 525 a.C., data da invasão persa, a soberania da sumptuosa cidade de Tebas não foi senão dança ritmada da melodia de luz reflectida pelos cristais de Sol, que no olhar de uma magnificente dinastia de mulheres haviam esculpidos pela benção do astro- rei. A estas mulheres, intituladas “Adoradoras Divinas” ou, em egípcio, duat- netjer, o faraó havia concedido, sem hesitar, um poder espiritual e régio sobre a principal cidade santa do Alto Egipto. 
Sacerdotisas iniciadas nos mistérios de Ámon, a quem se uniam em esponsais divinos, com o fito de lhes prestarem um culto ornado de um certo erotismo, as Adoradoras Divinas eram regra geral provenientes de famílias nobres. Em diversas representações, contemplamos o rito que permitia à dama despertar na carne e espírito do deus tebano os ardores da paixão. Sob a liderança desta casta de mulheres viviam sacerdotisas, contempladas como o “harém de Ámon”, a quem era também confiada a incumbência de semear o desejo no peito do rei dos deuses e preservar a harmonia entre os céus e a terra. Enquanto esposas de Ámon, as Adoradoras divinas, não obstante não serem coagidas a celebrar votos de castidade, eram privadas não de vincular um casamento humano, mas também de ter filhos. 

De facto, a herdeira do seu cargo era a sua filha espiritual, elevada a este estatuto através da adopção.
Consagrando-se exclusivamente ao culto da deidade, as Adoradoras Divinas, excelsas instrumentistas que na harpa do cosmos fazem vibrar a energia celestial, garante da vida terrena, embora não fossem reclusas, usufruíam da maior parte do seu tempo no interior do templo de Ámon em Karnak, onde todos os dias persuadiam o deus a exprimir de forma benéfica o seu poder criador. 
Personalidades proeminentes no seio da cidade tebana, as Adoradoras Divinas eram incontestáveis proprietárias de casas, terrenos, servidores e diversos outros bens que contribuíam para a sua comodidade e autonomia.


Detalhes e vocabulário egípcio:

Amonet- Deusa constituinte da Ognóade de Hermopólis. É frequente depararmo-nos em Tebas com efígies suas, enquanto versão feminina do deus Ámon, papel geralmente concedido a Mut. Diversos textos da dinastia ptolomaica apresentam-nos Amonet ou Amaunet como incarnação do vento do Norte, a mãe primordial que “é pai”, isto é, aquele que sem intervenção masculina se encontra apta a conceber os seus filhos. Algumas fontes revelam que Amonet deu à luz Ré, ou, segundo outras vozes, Ámon, enquanto personificação de Ré. É exequível aventurar que o culto dedicado à deusa ultrapassa o da sua versão masculina em antiguidade. 

Identificamos Ámon nas diversas representações que o honram, como um homem ostentando sobre a sua cabeça uma coroa com duas plumas (kachuti) e em suas mãos (consoante as circunstâncias em que é invocado) o signo da vida (ankh), uma cimitarra (khopech) ou o ceptro uase, entre outros. O seu trono assenta sobre uma esteira que, por seu turno, se encontra sobre um pedestal dotado dos símbolos da deusa Maet. 

Ámon, “aquele cuja natureza escapa ao entendimento”, é representado por um carneiro de chifres curvos ou, pontualmente por um ganso. Com frequência, as díspares formas de animais adoptadas por um deus confere-lhe o poder para se tornar irreconhecível ou apto a ser confundido com outra deidade. A imagem do carneiro simboliza o conjunto das forças criadoras, quer aquelas incarnadas pelo Sol, quer aquelas que permitam garantir a reprodução dos seres vivos. 

“Tu és o deus oculto (Ámon), Senhor do silencioso, que acorre ao apelo do humilde, tu que dás alento a quem dele é privado” (Estela de Berlim).