terça-feira, 2 de maio de 2023

A Dialética Simbólica


Vistos da Terra, o Sol e a Lua têm o mesmo diâmetro aparente: meio grau de arco. Em contrapartida, todas as suas demais qualidades sensíveis – cor, temperatura, etc. – cor simetricamente opostas. Isto faz deles o emblema por excelência de todas as oposições máximas e irredutíveis, modeladas pelo esquema de dois pontos divergentes e equidistantes de um terceiro ponto central: por ocasião da Lua cheia, a Lua que se põe e o Sol que se levanta, ou a Lua que se levanta enquanto o Sol se põe, formam a imagem perfeita do equilíbrio dos contrários, com a Terra no meio como fiel da balança.


É uma imagem que nos ocorre naturalmente, quando queremos evocar a ideia de equilíbrio, a propósito, digamos, do ativo e do passivo, do masculino e do feminino, do claro e do escuro, de tudo quanto, enfim, a cultura chinesa resumiu sob os conceitos do yang e do yin. Sendo uma imagem fácil de gravar, e dotada de grande poder evocativo e mnemônico (proveniente, aliás, da homologia estrutural entre a psique humana e a esfera celeste), era natural que, em nosso tempo, os meios de comunicação se apossassem dela, utilizando-a como instrumento para fixar na imaginação do consumidor a mensagem das novas dietas, programas de ginástica e outros gadgets ideológicos que entraram no mercado através do naturismo hippie e das doutrinas pseudo-orientais. O abuso do emblema luni-solar veio junto com a vulgarização do yin e do yang.


Apesar da vulgarização, a imagem e o conceito que evoca são perfeitamente adequados à realidade que pretendem expressar; a lei da mútua compensação dos contrários não é uma pura fantasia, mas algo que efetivamente vigora em muitos planos e setores da experiência, e que, aliás, pode ser observado e deduzido da natureza, por exemplo, no caso dos vasos comunicantes ou do equilíbrio ácido-básico. Dentro dos seus limites, é um princípio explicativo perfeitamente válido, que funciona para um certo numero de casos.


Logo passamos do conceito abstrato de equilíbrio para a tentativa de equilibrar realmente alguma coisa concreta – por exemplo, quando aprendemos a andar de bicicleta –, verificamos que a nossa imagem de perfeita simetria se esboroa ao solavanco de sucessivas desilusões: de fato, não existe equilíbrio perfeitamente estático em parte alguma do mundo sensível. Uma vez atingido o momento de equilíbrio, o ponto central desliza, o conjunto escapa da simetria fugaz e cai; e voltamos a enfrentar a oscilação dos contrários. Notamos assim que, na experiência vivida, o ponto de equilíbrio não e propriamente um ponto, mas uma linha; e não é mesmo uma linha reta, mas uma linha sinuosa, que, gingando aos lados de um eixo meramente ideal, vai compensando as tensões de cá e de lá e compondo com o jogo do desequilíbrio das partes o padrão do equilíbrio instável do todo.


Na homeopatia, por exemplo, raciocina-se frequentemente assim. Um sintoma aparentemente alarmante – febre, sangramentos, supurações – manifesta certamente um desequilíbrio, mas o homeopata poderá não medicá-lo de maneira alguma se julgar que esse desequilíbrio parcial terminará por reconstituir o equilíbrio do organismo total. Inversamente, ele poderá receitar um medicamento que rompa um estado de equilíbrio aparente, para induzir desde o fundo das tendências orgânicas a formação ascensional de um novo e mais arraigado padrão de equilíbrio.


 Convenhamos que esse raciocínio é bem mais sutil e completo do que o anterior. Ele permite ir mais fundo na compreensão do real. Por exemplo, se nossos “naturalistas” pseudo-orientais estudassem um pouco do método hahnetnanniano, acabariam constatando – antes tarde do que nunca – que não existem alimentos yin nem alimentos yang, mas sim alimentos que, num certo quadro preexistente, assumem provisoriamente um papel yin ou yang, o qual também pode inverter-se com a evolução posterior do quadro; aliás, a tradição chinesa é categórica ao afirmar que a dualidade yin–yang é “o extremo limite do cosmos”; que, portanto, um e outro só existem como tais no plano do cosmos total¹; e que os entes individuais não somente são compostos de distintas dosagens desses dois princípios, mas que essa dosagem vai sendo progressivamente mais complexa e indireta a medida que descemos do plano universal para os planos mais particulares; de modo que para avaliar se um ente qualquer – digamos, um nabo – é yin ou yang, seria preciso ponderar uma quantidade praticamente indefinida de variáveis, entre as quais, obviamente, o momento e o lugar. Tais finuras jamais escaparam aos chineses. É somente a tola grosseria da nossa “cultura de massas” que imagina poder exprimir conceitos cosmológicos em quadros e tabelinhas dietéticas de correspondências rasas, lineares e, ademais, puramente fictícias.

Mas, voltando atrás, qual é a diferença precisa entre os dois raciocínios que acabamos de presenciar? No primeiro, os dois termos eram opostos estaticamente pela equidistância a um centro. Mas, se passamos da ideia de equilíbrio estático à de equilíbrio dinâmico, isto é, se passamos do conceito abstrato a experiência concreta e assim verificamos que o equilíbrio não é feito somente de simetria e equidistância, mas também de interação, de conflito e de colaboração entre os dois pólos, então estes já não são opostos, e sim complementares. Já não são apenas as extremidades de um contraste, mas as matrizes de uma harmonia, tão adequadas e complementares entre si quanto o sêmen e o óvulo, o arco e a corda, a vibração sonora e a resistência do tímpano. Já não nos falam somente pela sua equidistância fixa, por assim dizer cristalizada no céu, mas por seu convívio amoroso, grávido de tensões e possibilidades. Aprofundando mais a diferença, verificamos que, ao trocarmos de ponto-de-vista, introduzimos a variável tempo.


Em termos de lógica, podemos dizer que o primeiro raciocínio é um raciocínio de identidade e diferença, enquanto o segundo é um raciocínio dialético (no sentido hegeliano do termo). Os hegelianos sempre acusaram a lógica de identidade de ser puramente estática, de visar antes a abstrações formais do que a coisas concretas, imersas no fio do tempo, submetidas a transformações incessantes. O raciocínio dialético pretende apreender o movimento – por assim dizer, vital – das transformações reais fenomênicas. A verdade, segundo este método, não esta no conceito fixo dos entes isolados, mas no processo lógico-temporal que ao mesmo tempo os revela e os constitui. É o sentido da famosa formula de Hegel: Wesen ist was geworden ist. “A essência (de um ente) é aquilo em que (esse ente) se transformou”. Ou, em outros termos: ser, é devir.


Na astrologia, o símbolo que evoca esse segundo enfoque é o do ciclo lunar. Este projeta na tela dos céus o espetáculo da permanência na mudança, do ser que se revela e se constitui no devir. De fato, são as mutações da face lunar que acabam por mostrar ao homem a unicidade da fonte de luz: o Sol. Ora, o Sol quase nunca pode ser olhado diretamente. Na fórmula preciosa de Chesterton, “a única coisa criada à luz da qual olhamos todas as coisas e a única coisa para a qual não podemos olhar”. O Sol é, assim, uma invisível luminosidade. A lua, por seu lado, pode ser vista com seu claro perfil recortado no céu, mas, para compensar, este perfil não é constante. Assim, cada uma dos luminares aparentes tem algo de esquivo, para não dizer de equívoco: um foge ao olhar direto por seu brilho excessivo, outra foge à cristalização conceituai, por sua forma cambiante. Ora, esta forma atravessa nitidamente três fases, ou faces (a quarta face, a Lua nova, e invisível): na primeira, ela parece crescer como fonte de luz progressivamente independente. Aí atinge uma plenitude: temos a equivalência plena de dois círculos luminosos de meio grau de arco. Se ela se detivesse nesse ponto, diríamos: ha duas fontes de luz no céu. Mas o momento da sua plenitude já anuncia o declínio, já contem o germe da sua supressão; e vem a minguante, e enfim a Lua desaparece: o Sol, que durante todo esse tempo permanecera constante sob a sua capa luminosa, revelou-se – para o intelecto observador: constituiu-se – como fonte única real de luz, expressa e desdobrada temporalmente pelo compasso ternário da sua superfície refletante, a Lua.


Pelo simbolismo astrológico tradicional², o Sol representa à intelecção, a verdade, e a Lua a mente, o raciocínio: na dialética, uma verdade latente se constitui no espirito humano pelo processo do devir que a patenteia, que a verifica.


2 RENÉ GUÉNON, SYMBOLES DE LA SCIENCE SACRÉE, PARIS, GALLIMARD, 1962, PP. 395-405 (CAP. LXX, “COEUR ET CERVEAU”).

Se a balança do Sol e da Lua no horizonte, contemplada estaticamente na ocasião da Lua cheia, figurava o equilíbrio estático dos contrários, e portanto, a lógica de identidade e diferença, o ciclo lunar integral, contemplado na sua sucessão temporal, estampa nos céus a andadura ternária do pensamento dialético e o “sempiterno fluir” das coisas da natureza.


O raciocínio dialético tem um parentesco próximo com o raciocínio de causa e efeito, com a ideia de continuidade da mesma causa latente por sob a processão dos efeitos. O ciclo lunar pode, assim, representar indiferentemente o enfoque dialético ou o enfoque causal. Se o raciocínio de identidade e diferença³ é simples, direto e baseado na constatação de correspondências imediatamente oferecidas aos sentidos ou à inteligência, o raciocínio dialético demanda operações bem mais complexas, e o acompanhamento de todo um ciclo de transformações.


3 ALGO DE BEM PARECIDO COM A SEQÜÊNCIA DE PASSAGENS DO PLANO A PLANO QUE ESTAMOS OFERECENDO PODE SER ENCONTRADO NO LIVRO DE PHILIPPE D’ARCY. LA RÉFLEXION, PARIS, P. U. F. AS QUATRO ETAPAS QUE MOSTRAMOS CORRESPONDEM RESPECTIVAMENTE AO QUE ELE DENOMINA:12, ESTÁGIO DO OBJETO; 2A, ESTÁGIO DO SUJEITO; 32; ESTÁGIO DO EU TRANSCENDENTAL; 48, ESTÁGIO DO SOL OU ESTÁGIO DO MEIO LUMINOSO; ESTES CORRESPONDEM AOS QUATRO TIPOS DE RACIOCÍNIO – IDENTIDADE, CAUSA-E-EFEITO, ANALOGIA, CONVENIÊNCIA – ASSINALADOS POR EUGÈNE CASLANT EM LES BASES ÉLÉMENTAIRES DE L’ASTROLÓGIE, PARIS, ÉDITONS TRADITIONELLES, 1976, VOL. I, CAP. II, PP. 21-22.


Houve, assim, uma passagem de plano, uma subida de nível: ao passarmos da oposição estática à complementaridade dinâmica, do raciocínio estático ao dialético, mudamos de posto de observação e um novo sistema de relações se evidenciou no espetáculo das coisas. Parecemos ter chegado mais perto da realidade efetiva, abandonando os esquemas meramente formais e as armadilhas da nossa própria subjetividade. Parecemos, assim, ter chegado a uma solução para a oposição colocada inicialmente: ao introduzirmos a variável “tempo”, a oposição resolveu-se numa complementação.


Mas, bem examinadas as coisas, verificamos que a dialética só resolveu um problema a custa de criar outro: ao resolver a oposição entre o Sol e a Lua instalou em seu lugar a oposição entre o estático e o dinâmico. Se for uma fatalidade que todas as oposições estáticas possam se resolver pelo raciocínio dinâmico, não e menos verdade que elas só podem se instalar, inicialmente, pela formulação estática e abstrata dos conceitos de seus elementos. Como poderíamos “fluidificar” dialeticamente a oposição entre o Sol e a Lua se não soubéssemos o que é Sol nem o que é Lua, isto é, se os conceitos destes dois astros não fossem estáticos? Doravante estamos condenados a uma dualidade radical, que separa com um biombo de ferro o pensamento e a realidade: nossos conceitos serão sempre estáticos, a realidade será sempre dinâmica. A dialética desemboca no dualismo metodológico de Bérgson4 e Bachelard5.


4 HENRI BERGSON, INTRODUCTION À LA MÉTAPHISIQUE, EM OEUVRES, PARIS, P. U. F. , 1970, PP. 1392 SS.

5 GASTON BACHELARD, LE NOUVEL ESPRIT SCIENTIFIQUE, PARIS, P. U. F.

Para piorar ainda mais as coisas, a própria dialética, para entrar em ação, tem de introduzir novos conceitos, que serão igualmente estáticos, inclusive o próprio conceito de dialética. Estes conceitos poderão ser em seguida dialetizados por sua vez, e assim por diante interminavelmente. Se, na sentença de Heráclito, avô da dialética, “nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio”, podemos perguntar se esta sentença de Heráclito chega a ter duas vezes o mesmo sentido.


A dialética vê-se, desse modo, ante um trágico dilema: optar por um discurso interminável – o qual, não possuindo limites, deixa de ter qualquer conteúdo identificável, como bem o assinalaram os críticos neo-positivistas de Hegel6 – ou determinar arbitrariamente, e irracionalmente portanto, um ponto final qualquer para o processo dialético. Hegel, como se sabe, fez de si mesmo o ponto final da historia da filosofia, e a filosofia teve o desplante de continuar existindo depois dele.


6 COMO, POR EXEMPLO, BERTRAND RUSSEL NA SUA HISTÓRIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL, TRAD. BRAS., SÃO PAULO, NACIONAL, T. III.

Urge, portanto, passar acima da dialética, galgar mais um degrau, subir a um enfoque mais vasto e abrangente. E, novamente aqui, será o modelo celeste que vai nos socorrer, seguindo a advertência de Platão de que, sem nos orientarmos pelos lineamentos de inteligência divina cristalizada nos ciclos planetários, nossos pensamentos não cessam de vagar de erro em erro.


Ocorre que os dois polos da nossa oposição inicial só podem ser ditos contrários – ou, em seguida, complementares –, quando vistos no mesmo plano, isto é, quando, medidos pelo mesmo padrão, resultam em grandezas similares. Na passagem do raciocínio estático ao dinâmico, algo certamente se alterou – o modo de representação –, mas algo permaneceu tal e qual: o ponto de vista do observador; em ambos os casos, supusemos que este estava instalado na Terra; primeiro, contemplando o momento do equilíbrio do Sol e da Lua no horizonte; depois, acompanhando o ciclo de transformações durante um mês lunar; mas sempre desde o mesmo lugar.


Todas as oposições (e todas as complementaridades) fundam-se em alguma característica comum, que se polariza inversamente num elemento e no outro; isto é, as oposições são diferenças acidentais que resultam de um fundo de identidade essencial; a complementaridade consiste apenas em reconstituir, em seguida, esse fundo de identidade essencial, que um momento do processo havia velado, e que o acompanhamento do processo todo volta a desvelar, tal como o Sol e a Lua podem velar-se um ao outro no momento do eclipse, voltando depois a mostrar-se como são realmente. Este jogo que vai da identidade à diferença e novamente à identidade só se desenrola perante um observador estático, firmemente instalado no seu posto de observação.


Ora, o homem não pode normalmente abandonar seu posto de observação; não pode transportar-se corporalmente para fora da Terra. Pode apenas viajar mentalmente; mas, deixada a si mesma, a imaginação vaga entre os espaços celestes e cai na fantasia informe. A astronomia (que é a parte descritiva e substancial da qual a astrologia é a parte interpretativa e essencial) é o antídoto de tais errâncias. Pela correta medição, o homem restabelece na sua representação a figura correta dos céus. E já tem o apoio de um novo modelo intelectual calcado, segundo Platão, na inteligência divina, para buscar um ponto de vista que lhe permita ultrapassar a dialética vulgar, penetrando num enfoque que poderíamos denominar a dialética simbólica.


Se, na dialética vulgar, havíamos introduzido o fator “tempo”, aqui lançaremos mão do elemento “espaço”, completando, portanto, o modelo em que se apoiavam nossas representações. Podemos dizer que o ponto de vista dialético correspondia a uma observação meramente “agrícola” dos céus: tudo quanto captava era a ideia de transformação e de ciclo. A dialética simbólica, agora, vai partir de um entendimento propriamente astronômico, e lançar-se à compreensão do entrelaçamento espacial dos vários pontos de vista e dos vários ciclos que eles desvelam.


Ora, se abandonamos o ponto de vista terrestre e levamos em consideração o sistema solar como um todo – isto é, o quadro maior de referências no qual se estatuem e se diferenciam os vários elementos em jogo – verificamos que, na realidade, a Lua não está nem oposta ao Sol, como no raciocínio de identidade estática, nem coordenada a ele, como no raciocínio dialético, mas sim subordinada. Aliás, está até mesmo duplamente subordinada, desde que é o satélite de um satélite. A Terra está para o Sol assim como a Lua esta para a Terra. Formamos assim uma proporção, e aqui pela primeira vez atingimos um enfoque racional de pleno direito, desde que “razão”, ratio, não quer dizer originariamente nada mais que proporção. É a proporção entre nossas representações e a experiência, que assegura a racionalidade dos nossos pensamentos.


Imediatamente a oposição inicial e a complementação que a seguiu revelam-se aspectos parciais – e, portanto, insuficientes – de um conjunto de proporções, que se reabsorve no princípio unitário que as constitui. Porque todas as proporções são variações da igualdade, do mesmo modo que os jogos entre os ângulos e posições dos vários planetas entre si se reabsorvem e resolvem no posicionamento de todos em torno do seu eixo único central, que é o Sol.


Esta terceira modalidade denomina-se raciocínio de analogia. Há muitos equívocos correntes hoje em dia sobre o que seja o raciocínio analógico. Por exemplo, muitos autores acreditam que se trate da constatação da mera semelhança de formas7. Outros supõem que seja uma forma primitiva e vagamente “poética” de assimilação da realidade, distinguindo-se radicalmente da apreensão racional e lógica8. Na verdade, nenhum dos filósofos modernos jamais demonstrou possuir um domínio do raciocínio analógico tal como o praticava a antiguidade; por isto, nenhum deles é autoridade para dizer o que ele seja. O raciocínio analógico sintetiza numa visão integrada o raciocínio de identidade e o de causa e efeito, e é, portanto, superior a estes.


7 SUSANNE K LANGER, AN INTRODUCTION TO SYMBOLIC LOGIC, NEW YORK, DOVER, 1967, P. 21 SS.

8 GASTON BACHELARD, A POÉTICA DO ESPAÇO, TRAD. BRAS. , SÃO PAULO, ABRIL.

Se os filósofos acadêmicos fazem confusões a esse respeito, não as fazem em menor quantidade seus adversários, isto é, os astrólogos profissionais. Só que a fazem com a intenção contrária, enfatizando a superioridade do raciocínio analógico. De fato, eles usam e abusam de uma famosa “lei de analogia”, chamada a justificar sua arte, e que deve unir, em pulsação síncrona, o todo e a parte, o universo e o indivíduo, o distante e o próximo, tudo, enfim, o que cabe na fórmula clássica do micro e do macro.


Não é aqui o lugar de criticar os astrólogos profissionais, mas o fato é que eles interpretam essa “lei” em modo plano, raso, linear, como se entre o macro e o micro não existisse uma relação de analogia apenas, mas de identidade; por exemplo, ao lerem horóscopos individuais, a correspondência que eles veem entre as configurações celestes e os eventos da vida individual humana é praticamente direta, sem as modulações e mediações que o bom-senso requer, e sem as inversões de significado que a própria regra do raciocínio analógico, quando bem compreendida, exige. Tendo estabelecido, por exemplo, uma ligação simbólica entre Saturno e a paternidade, e entre a Lua e a maternidade, interpretarão diretamente um ângulo inarmônico entre Saturno e a Lua, no mapa natal, como indicação de um conflito entre a mãe e o pai do consulente. Essa forma de raciocínio grosseiro foi muito bem caricaturada num “silogismo” inventado pelo astrólogo espanhol Rodolfo Hinostroza:


“Saturno = pedra. Sagitário = fígado. Portanto, Saturno em Sagitário = pedra no fígado. Ou, se quiserem, pedrada no fígado”. Rodolfo Hinostroza.


α


CONSIDERAR COMO UM ASTRÓLOGO PROFISSIONAL A PESSOA QUE FAZ ESTE TIPO DE ANALOGIA É COMO CONFUNDIR O OPERÁRIO QUE TRABALHA EM UMA CONSTRUÇÃO COM O ENGENHEIRO RESPONSÁVEL. RODOLFO HINOSTROZA NASCEU NA CIDADE DE LIMA, CAPITAL DO PERU.

CÉSAR AUGUSTO – ASTRÓLOGO


Do mesmo modo, estabelecem correspondências diretas entre Libra, como símbolo do equilíbrio cósmico, e a justiça comum e a corrente dos nossos tribunais; e muitas outras no mesmo sentido. Ora, a astrologia e uma ciência cosmológica, e não psicológica: o plano onde se desenrolam os fenômenos, o cenário onde se representa o seu drama, é o cosmos total, e não apenas a mente do indivíduo. Entre esses dois planos, separados por muitos “mundos”, deve haver necessariamente muitas transições e atenuações; explicaremos isso mais adiante. O que interessa assimilar e que o raciocínio analógico e uma ferramenta sutil, de precisão: não resiste a um achatamento que comprima o macro no micro e os empastele.


Que significa, de fato, analogia? Em primeiro lugar, qualquer dicionário grego assinalará, no verbete αμαλωγος, análogos, a acepção de “proporcionalidade”, no sentido da fórmula ou no sentido das harmonias entre os distintos comprimentos das cordas de um instrumento musical e os sons que respectivamente emitem quando vibradas. Tais proporcionalidades, como qualquer um pode perceber, consistem precisamente na razão das diferenças entre os distintos valores. Portanto se não há diferenças, não ha analogia, ha pura e simplesmente identidade, no sentido da fórmula ou, para resumir, 1=1. Isto deveria revelar, desde logo, que um símbolo astrológico qualquer – planeta ou signo, angulo ou casa – não pode jamais ter o mesmo significado quando- considerado em dois planos diferentes de realidade, por exemplo no plano do cosmos total e no da psicologia individual. Em segundo lugar, o prefixo aná, αμα, que constitui essa palavra, designa um movimento ascensional:


μελανες αμα βοτρμες ησαν

Mélane aná botrües esan


 “No alto, estavam os cachos de negra uva”


ILÍADA, 18:562

Traduz-se como “sobre”, “acima”, “a montante”, “para cima”, como em αμαγωγη, anagogê, “elevação” “ação de elevar, de arrebatar para o alto”, ou ainda como em anabásis, anaforá, etc. O termo “analogia”, portanto, da a entender que se trata de uma relação em sentido ascendente. Melhor dito: os dois objetos unidos por uma relação de analogia estão conectados por cima: é em seus aspectos superiores, e por eles, que os entes podem estar “em analogia”. Uma analogia é tanto mais evidente quanto mais nos afastamos da particularidade sensível para considerar os entes sob o aspecto da sua maior universalidade. Correlativamente, essa relação se desvanece quanto mais encaramos os entes por seus aspectos inferiores, isto e, pela sua fenomenalidade sensível.


O que estabelece uma analogia entre dois entes, portanto, não são as similitudes que apresentem no mesmo plano, mas o fato de que emanam de um mesmo princípio, que cada qual representa simbolicamente a seu próprio modo e nível de ser, e que, contendo em si um e outro, é forçosamente superior a ambos. É nesse nível de universalidade que se celebra no céu o liame de analogia que vai unindo, numa cadeia de símbolos, o ouro ao mel, o mel ao leão, o leão ao rei, o rei ao Sol, o Sol ao anjo, o anjo ao Logos. Visto desde cima, desde o princípio que os constitui, eles revelam a proporcionalidade entre as funções simbólicas que desempenham para a manifestação desse princípio, cada qual no nível cosmológico que lhe corresponde, e é essa proporcionalidade que constitui a analogia. Visto desde baixo, desde a fenomenalidade sensível, ao contrário, eles se desmembram na multilateralidade das diferenças. Assim, a analogia e simultaneamente evidente e inapreensível; óbvia para uns, inconcebível para outros.


Utilizamo-nos, portanto, das analogias, para subir da percepção sensível à apreensão da essência espiritual, para ir do visível ao invisível, ou, nos termos de Hugo de São Vítor9, para ir da natureza à graça: a natureza, o mundo sensível, “significa” o invisível; a graça espiritual o “exibe”, no topo da escada. A escada das analogias – evocada, por exemplo, na escada de Jacó, nos degraus do Paraíso em Dante, e em todas as hierarquias de conhecimentos espirituais – é um meio de acesso ao princípio e, por outro lado, vem abaixo se este lhe é retirado do topo.


9 EDGARD DE BRUYNE, ESTÚDIOS, OP. CIT. , VOL. II, P. 216.

Sendo, então, um liame vertical e ascensional, a analogia é diferente das simples relações de similitude – complementaridade, contiguidade, contraste, etc. – que relacionam, juntam, separam e ordenam os entes no mesmo plano horizontal. Esta distinção, por elementar que seja, escapa tão facilmente ao observador de hoje, que mesmo um historiador competente como Michel Foucault se equivoca, ao classificar a analogia como uma das formas da similitude na ciência medieval. Na realidade, a diferença de planos entre essas duas relações não permite enfocá-las como espécies do mesmo gênero, tal como as classificações hierárquicas em geral se distinguem das classificações tipológicas: a distinção entre capitão, major e coronel não e do mesmo tipo da distinção entre infantaria, artilharia e cavalaria.10  E muito menos se poderia, então, submeter à analogia a similitude, como a espécie ao gênero, tal como não se poderia dizer que a classificação das patentes militares fosse uma espécie da qual a divisão das três armas constituísse o gênero. Isso deveria bastar para evidenciar que certas relações de semelhança que os astrólogos apontam entre planetas (ou mitos planetários) e entes e eventos do mundo terrestre – como, por exemplo, o fato de que Marte e o sangue são igualmente vermelhos – não são analogias, porque não remetem ao princípio que constitui esses dois entes e que é a razão comum das suas semelhanças e diferenças. Trata-se, portanto, de meras similitudes, discernidas no mesmo plano (no caso, o das qualidades sensíveis cromáticas). E como, no sentido plano ou descendente, a relação de proporcionalidade se dilui progressivamente na multiplicação das diferenças, as meras similitudes podem ser bem pouco significativas, e ate mesmo inteiramente casuais; e ninguém pensaria que um conhecimento sério se pudesse obter mediante a coleta de curiosas coincidências.


10 MICHEL FOUCAULT, LES MOTS ET LES CHOSES, PARIS, GALLIMARD, 1966, PP. 32-59.

No esquema simbólico que estamos estudando, a passagem do particular ao universal é simbolizada pela passagem do ponto de vista geocêntrico ao ponto de vista heliocêntrico. Este último, por sua maior abrangência, permite captar relações – analogias – que o particularismo da visão terrestre ocultava. Resumindo as fases percorridas, atravessamos: 1ª fase. Ponto de vista: aparência sensível momentânea. Raciocínio: identidade e diferença. 2ª fase. Ponto de vista: temporal e cíclico. Raciocínio: casual ou dialético. 3ª fase. Ponto de vista: espaço-temporal, abrangente, universalizante, ascensional. Raciocínio: analogia.


Por outro lado, se as analogias levam ao conhecimento do princípio, é que este já residia em nós de modo virtual. Esta presença latente, este guia invisível que com mão segura nos conduz pela “via reta” das analogias em meio à floresta das similitudes, é simbolizado por Virgílio, Beatriz e São Bernardo nas três etapas da ascensão do poeta na Divina Comédia de Dante.


Ora, os princípios universais geralmente chegam ao nosso conhecimento unicamente através de fórmulas abstratas, de modo que nos encontramos sempre divididos entre uma verdade universal e abstrata e uma experiência concreta destituída de verdade, destituída de sentido. A escalada das analogias visa justamente a transpor esse hiato, levando, na medida do possível, a um conhecimento vivido e concreto do universal. Através da analogia e do simbolismo, bem como das muitas artes, ciências e técnicas tradicionais que objetivam cristalizar e condensar esse simbolismo na psique do estudante, o que se procura é justamente transformar e alargar essa psique de modo que ela mesma assuma uma envergadura universal, à imagem do Homem universal11 que é compêndio e modelo do cosmos inteiro.


11 O HOMEM UNIVERSAL É O PROTÓTIPO DA HUMANIDADE, O MODELO PELO QUAL, SEGUNDO TODAS AS TRADIÇÕES, FOI ESTRUTURADO O UNIVERSO. NO CRISTIANISMO, ELE É TANTO O VELHO ADÃO QUANTO O “NOVO ADÃO”, JESUS CRISTO. A PROPÓSITO, RENÉ GUÉNON, LE SYMBOLISME DE LA CROIX, PARIS, VÉGA, E, DO PONTO DE VISTA DAS DOUTRINAS ISLÂMICAS EXCLUSIVAMENTE, ‘ABD AK-KARIM EL-JÍLI, DE L’HOMME UNIVERSEL, TRAD, E COMENTÁRIOS DE TITUS BURCKHARDT, PARIS, DERVY-LIVRES, 1975.

No simbolismo numérico, todas as proporções são, em última análise, formas e variantes da identidade. A identidade é uma formula única, simples e abstrata, 1=1, que contém em si, sinteticamente, todas as proporções do universo, isto e, todas as “dosagens” que compõem todas as coisas e seres. Ao conhecer o princípio de identidade, conhecemos, de certo modo, a razão de todas as razões; é o conhecimento universal, mas ainda em modo virtual, como a semente que, potencialmente, contém em si uma floresta inteira. A escala das analogias da concreção vivida a esse princípio, recapitula, por assim dizer, em modo abreviado, o orbe todo das possibilidades contidas no princípio de identidade e, no topo da escada, reencontramos esse princípio, já não como fórmula abstrata, mas como realidade plena, como sentido da verdade e verdade do sentido. É o que a escolástica denominava o universal concreto, a síntese da universalidade lógica e da plenitude existencial.


Esse reencontro, esta re-ligação, ressoa como a efetivação plena da felicidade. É a reunificação do homem consigo mesmo, preliminar ao reencontro com Deus. Na filosofia de Hugo de São Vítor, é o reencontro do homem exterior, ou carnal, com o homem interior, ou espiritual. Hugo, seguindo uma tradição mas traduzindo-a com gênio e originalidade, distingue no homem, primeiramente, quatro faixas: na parte corporal, sensus (sentidos) e imaginatio (imaginação); na parte espiritual, ratio (razão) e intelligentia (inteligência). Então pergunta: não haverá um faixa intermediária, um vínculo entre o espírito e o corpo? A essa faixa intermediária, Hugo denomina affectio imaginaria, e seu discípulo Ricardo de São Vítor, imaginatio mediatrix; “afecção imaginária” e “imaginação mediadora”. É nesta faixa intermediária que se dá o conhecimento das analogias e do simbolismo em geral, e é nela que se dá o reencontro da verdade universal com e na experiência concreta. A contrapartida ontológica dessa faixa psicológica é o denominado mundus imaginalis, o mundo das formas imaginais, que não se confundem com o imaginário (Hugo atribui o imaginário à parte corporal) e que constituem o elo perdido entre o mundo dos sentidos e as “formas puras (ou abstratas) do entendimento”; e aí que se celebra a reunificação do homem consigo mesmo, e é para aí que devemos voltar nossa atenção se queremos romper o divorcio alma-espírito a que nos acostumaram quatro séculos de cartesianismo. Se o raciocínio de analogia é tão incompreensível para o homem moderno, é porque este perdeu a visão desse mundo intermediário, acostumando-se a entender como “abstração” tudo o que escape do orbe dos sentidos. Mas esse mundo intermediário e não só o mundo dos símbolos, e sim também de entes imaginais simbolizados por eles, pois não se poderia conceber uma faculdade cognoscitiva que não tivesse uma contrapartida objetiva, seu objetivo de conhecimento próprio e independente. E é no mundo imaginário que reencontramos então os anjos e os personagens todos das narrativas bíblicas e mitológicas, como formas de realidade que não se reduzem nem ao nosso psiquismo subjetivo, nem a uma objetividade meramente exterior.


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A escalada termina aí. Tendo encontrado o princípio superior que organiza os vários planos de uma sequência analógica, parece que nada mais há a conhecer, ao menos dentro desse domínio em particular. No entanto, quanto mais nos aproximamos de um princípio universal, mais vão ficando para trás e cada vez mais longe as realidades concretas cuja explicação buscávamos. E, ao voltarmos do topo, às vezes parecemos ter perdido de vista o propósito da viagem. O momento do reencontro passa, e nada nos resta nas mãos senão o enunciado abstrato e sem vida de um princípio lógico, que e a recordação melancólica de uma universalidade perdida. É preciso, portanto, descer novamente do princípio às suas manifestações particulares, e depois subir de novo, e assim por diante. De modo que a alternância sim-não, verdade-erro, que constitui para nos o início da investigação, é finalmente substituída pela alternância alto-baixo, universal-particular. Passamos, assim, da oscilação horizontal para a vertical. E é justamente o despertar da capacidade de realizar em modo constante esta subida e descida, que constitui o objetivo de toda educação tradicional.


Mas a última etapa, que absolverá o raciocínio analógico do seu ultimo ranço de abstracionismo, é precisamente a forma suprema de raciocínio, forma essa superior a todas as outras, que já representa praticamente uma entrada no mundo da intuição e do conhecimento imediato. A essa forma de raciocínio, denominamos convenientia, “conveniência”, pois designa aquilo que convém, o ponto central para onde convergem todos os raios de um círculo e de onde eles partem novamente em todas as direções, representando o movimento duplo de contração-expansão do particular ao universal e deste ao particular. Quando nosso intelecto chega a essa forma de raciocínio, podemos então começar a compreender a doutrina hindu dos “dias e noites de Brahma”, ou a doutrina islâmica da “inspiração e expiração de Deus”, como retroação de todos os mundos ao seu princípio, seguida de nova expansão multilateral de manifestação universal. Estamos, assim, às portas da metafísica pura, mas isto será assunto para uma outra ocasião.