terça-feira, 2 de maio de 2023

Ápeiron e a Noção de Divino


A partir do que foi tratado até agora relativamente às noções – arché e phýsis – em Anaximandro, e as nuanças divinas pertinentes a essas categorias, este trabalho entende que o ápeiron está estreitamente relacionado com a noção divina de princípio, fonte que deu origem a todas as coisas.


A fecundidade dessa ideia entre os pré-socráticos, e sua relação homóloga à imortalidade, é notada na religiosidade dos cultos cívicos da religião homérica e, sobremaneira nos antigos cultos de mistérios peculiares ao orfismo, conforme testemunhou o papiro de Derveni. Nesse sentido, somado ao testemunho de Aristóteles na Física, o ápeiron como uma categoria divina – imortal e indestrutível – em Anaximandro seria a expressão do divino num tempo no qual a investigação filosófica era por excelência científica? O ambiente religioso no qual estava inserida a cosmologia pré-socrática do quinto século a.C., e a Teologia Órfica presente no papiro de Derveni (datado entre o quinto e o quarto século a.C, descoberto em 1962), seriam evidências de que a cosmologia de Anaximandro tinha forte ligação com os cultos de mistérios?


Não obstante responder a essas questões seja uma tarefa extremamente difícil, se não impossível, a elucidação delas provoca, na atual pesquisa da filosofia antiga, uma releitura do que foi tratado até hoje pela escola moderna. Frente a isso, faz-se necessário delimitar esta investigação em dois blocos distintos. O primeiro, a partir de Aristóteles e Simplício; o segundo, a partir do papiro de Derveni.


Inicialmente, quanto à noção de divino evocada pelo ápeiron, entende-se que ambos os testemunhos – de Aristóteles e Simplício – corroboraram a concepção grega para a qual é impossível algo surgir do nada. Ou seja, os atributos divinos notados no ápeiron, embora atualmente essa questão não seja definitiva, a partir de Aristóteles e Simplício não são ex nihil. De acordo com os autores, imortalidade e indestrutibilidade são categorias que remontam aos atributos dos deuses homéricos, evidenciando a possibilidade de que Anaximandro poderia ter chamado seu princípio cosmogônico de – divino.


A análise sobre a sentença – princípio cosmogônico divino – requer uma investigação isenta das influências da religiosidade monoteísta presente na mentalidade do século XXI, sobretudo, aquela noção de gênese, recorrente na milenar cultura hebraica. “Ao contrário de Yahvé, os deuses gregos não criaram o mundo […]”. A noção de um deus pessoal, criador do cosmos, não era comum entre os gregos, não obstante estes possuírem suas personalidades míticas.


Entre os gregos, conforme assinalou Burkert, a noção de divino sobre a phýsis e, consequentemente, a divindade de seu princípio – ápeiron – correspondeu estreitamente com as leis próprias da phýsis que os primeiros cosmologistas não poderiam determinar. Ou seja, a impotência do homem diante dos fenômenos naturais, de certo modo, elevou a phýsis a um status divino. A partir da análise de Burkert, no ápeiron são marcantes alguns predicados das personalidades míticas gregas. Porém, predicados sem qualquer traço de um deus pessoal. De acordo com o autor, “[…] no lugar das personalidades míticas dos deuses, está agora algo neutro: ‘o divino’, “theîon” (πεῖραρ).


As conclusões de Burkert são recorrentes em Aristóteles. O estagirita, igualmente, testemunhou acerca do ápeiron de Anaximandro apresentando indícios nos quais tò theîon, desde Tales de Mileto, seria uma noção inerente ao pensamento pré-socrático sobre o divino. Na esteira de Burkert e Aristóteles, Guthrie demonstrou que os deuses, presentes em todas as coisas, conforme assinalou Aristóteles em Sobre a Alma, não pertenciam a uma categoria pessoal, mas, ao atributo divino – psyché.


Com efeito, por um lado, é razoável pensar que Anaximandro não tenha interpretado a filosofia de seu mestre a partir de um cosmos com vida ou animado. A noção de psyché e movimento no cosmos era uma categoria própria do sistema aristotélico. Por outro lado, o fato de Aristóteles ter mencionado tò theîon em Tales e Anaximandro, propicia conjeturar que a imortalidade do ápeiron de Anaximandro poderia fazer remissão à imortalidade dos deuses presentes nas coisas, conforme pensava Tales. Essa hipótese é também corroborada pelas conclusões de Guthrie quanto ao pensamento grego antigo, para o qual “[…] a divindade se desprende, efetivamente, diretamente da imortalidade”.


Diante dos recursos doxográficos confirmados pela historiografia pré-socrática, esta investigação, espelhada em Burkert e Guthrie, centra sua análise acerca do ápeiron, tal como sua noção de divino, no testemunho de Aristóteles e em sua autoridade, conferida pela tradição. Apesar do jargão aristotélico quanto à cosmologia do milésio ser uma justificativa de seu próprio sistema, o fragmento abaixo atesta a relação intrínseca entre a noção de divino e ápeiron:


Por isso, como temos dito, parece que não tem princípio, mas que é ele o princípio das outras coisas, e abarca e governa a todas elas, (como afirmam todos os que não admitem outras causas além do infinito, como a Inteligência e o Amor), e que é o divino, por ser “imortal e imperecível”, como dizem Anaximandro e a maioria dos fisiólogos.


A importância desse fragmento não se justifica apenas por ele ter conferido nominalmente ao ápeiron a prerrogativa de ser o princípio de todas as coisas. Sua legitimidade repousou no fato de ele ter documentado o modo com o qual a maioria dos fisiólogos pensava a respeito da divindade da arché. Outrossim, é legítimo supor que a noção de princípio divino, descrita por Aristóteles a partir do ápeiron, inaugurou um modo de pensamento que atravessou toda a cosmologia pré-socrática.


Nota-se, no fragmento, Aristóteles distinguindo, entre os fisiólogos antigos, aqueles cuja opinião era contrária à concepção de uma matéria – yle – animada ou automotriz. No caso em questão, o estagirita fez remissão ao pensamento de Empédocles e Anaxágoras, para os quais não era satisfatória a crença em uma arché animada. Desse modo, ao descrever esses dois modos de pensamento acerca do princípio material, Aristóteles evidenciou que a noção de divindade, marcada no ápeiron, foi uma relevante discussão na Grécia do século VI a.C., notadamente entre a maioria dos pré-socráticos.


Acompanhando o testemunho de Aristóteles, cabe sublinhar, como um marco para a questão do divino, no ápeiron, as sentenças verbais inscritas em 203 b10 – “e abarca e governa a todas elas [as coisas]” – kaì periekhéin ápanta kaì panta kybernãn. Essa sentença, e suas nuanças inteligíveis, contêm indícios de uma noção de princípio mais além de uma arché material.


Os termos periekhéin e kybernãn evocam atributos de consciência e inteligência, sobretudo a partir da concepção monista a respeito de uma arché material posterior a Anaximandro. Literalmente, periekhéin e kybernãn significam: abarcar e governar.


A observação de Guthrie quanto à noção de inteligência, refletida pelo ápeiron que tudo governa, compareceu com uma ressalva. Inteligência seria uma noção genuína em Anaxímenes. Trata-se do pensamento monista de Anaxímenes, para o qual a arché seria governada pelo ar, um governo dotado de inteligência e psyché. Em Anaxímenes, o verbo kybernãn é recorrente, pois contemplou todo o seu sistema no qual o ar foi tomado como arché.


Entretanto, mesmo que os documentos doxográficos não conferiram literalmente a noção de inteligência e psyché a Anaximandro, por outro lado os verbos periekhéin e kybernãn compareceram na terminologia pré-socrática e, “[…] seu autor podia ter sido Anaximandro […]”.


Aristóteles, possivelmente, teria reunido esses dois vocábulos a partir de fontes diversas a fim de destacar a relação homóloga do termo tò theîon com o ápeiron. Contudo, o termo – abarcar e governar – conferiu ao ápeiron prerrogativas de um princípio divino. Pois:


Obviamente, a atribuição para a arché não somente de vida, mas também de capacidades de governo, sugere imediatamente um status divino. O mesmo verbo (governar um navio, κςβεπνᾶν) se aplicava evidentemente as divindades em contextos não filosóficos. Portanto, não é novidade que Aristóteles continue atribuindo a divindade explicitamente à arché de Anaximandro e daqueles que pensam como ele.


Guthrie, assim, concluiu sobre a capacidade de governo exercida pelo ápeiron. O status divino, conforme assinalou o autor, era a definição mais adequada e pertinente à mentalidade grega pré-socrática para a qual não somente a capacidade de engendrar era divina, mas também a de governar todo o cosmos.


Diante das considerações de Guthrie sobre o excerto de Aristóteles na Física, pergunta-se: Anaximandro seria o precursor de uma teologia natural? Até onde é possível sustentar a impessoalidade divina na sentença tò theîon descrita por Aristóteles quanto ao ápeiron? Compartilhando o pensamento de Guthrie, David Sider e Dirk Obbink observaram que a noção de divino no ápeiron foi, de forma profunda, uma investigação do pensamento grego antigo. De acordo com os autores:


A impessoalidade do ápeiron divino de Anaximandro é a mais antiga incontestável reflexão registrada do movimento de especulação teológica do sexto século, que é especialmente vívida no pensamento de Xenófanes, distante do antropomorfismo divino.


Essa posição de Sider e Obbink, em relação à impessoalidade divina no pensamento grego antigo, correspondeu com os estudos desde Burkert a Guthrie. Entretanto, Sider e Obbink emergiram, do fragmento aristotélico, uma questão para a qual a dimensão pessoal da divindade pode ser uma discussão fecunda no fragmento. Trata-se do emprego do verbo kybernãn – governar – mencionado por Aristóteles. Somado a isso, dirão os autores: “Porém, a divindade impessoal de Anaximandro tem uma dimensão pessoal em que ‘governar todas as coisas’ pode ser um governo que subordinou a ordem cósmica”.


Certamente, esta dimensão pessoal divina foi um modo de pensar herdado da tradição religiosa, que precedeu o argumento racional cosmológico. O que poderia abarcar e governar toda a phýsis, senão algo supremo, divino? Essa hipótese é legítima, não anacrônica. Ao classificar o ápeiron como uma categoria imortal e reguladora do cosmos, Aristóteles faz remissão às prerrogativas divinas, inerentes ao pensamento pré- socrático. “Anaximandro propõe uma divindade eterna, impessoal para o agente que origina nosso cosmos”.


Cabe ainda, ressaltar o lamentável fato de o livro Perì phýseos, de Anaximandro, ter se perdido no mundo antigo. Suas ideias quanto à divindade do ápeiron certamente estariam mais bem evidenciadas no seu livro. De acordo com as opiniões dos autores supracitados, é razoável a hipótese de que Aristóteles teria evocado os verbos periekhéin e kybernãn a fim de se aproximar do que teria pensado o milésio em relação ao divino, e elucidá-lo. Ambos os verbos estavam presentes nas teorias daqueles fisiólogos sucessores de Anaximandro, sobretudo Anaxímenes, Anaxágoras, Heráclito e Parmênides os quais trataram o divino como princípio.


Outra sentença semelhante à de Aristóteles, no âmbito da descrição dos atributos divinos do ápeiron, encontra-se no testemunho direto de Simplício. Segundo o autor, o ilimitado não apenas abarca e governa, mas também governa sob um “[…] princípio retributivo de justiça […]”.


A informação de Simplício, de acordo com a tradição, foi tomada em grande parte de Teofrasto, discípulo e sucessor do Liceu – escola fundada por Aristóteles. Como um profundo comentador das obras do estagirita, Simplício logrou um lugar de destaque na doxografia anaximandrina por fazer conhecido o fragmento remanescente do milésio.


A similaridade do relato de Simplício com o de Aristóteles na Física, concernente à divindade do princípio material, remete a uma noção de ordem cósmica operada pela justiça – dikhe – na qual prevalecia o equilíbrio do ciclo cosmológico, modelo compatível com a ausência de limites. De acordo com o doxógrafo:


Afirma que é, não a água ou algum dos outros assim chamados elementos, mas uma outra natureza diferente, ilimitada, da qual seriam formados todos os céus e os cosmos naqueles contidos. “Todas as coisas se dissipam onde tiveram a sua gênese, conforme a culpabilidade; pois pagam umas às outras castigo e expiação pela injustiça, conforme a determinação do tempo. […].


O contributo de Simplício, como intérprete de Anaximandro, foi decisivo na retomada da noção de ciclo cósmico no pensamento pré-socrático. Essa noção, arraigada na remota religiosidade grega, foi acolhida por Anaximandro, conforme assinalou o fragmento.


Com efeito, isso significa que o milésio teria utilizado o vocabulário mítico para tornar notória sua ideia de justa retribuição no cosmos e no plano ético político. Esse pensamento concordou, sobretudo, com a noção de similitude e simetria narrada por Homero, por meio das quais a dikhe – deusa da justiça, filha de Zeus – operava seus julgamentos. Igualmente, é mister notar: toda a cosmologia de Anaximandro, conforme já abordado nos capítulos anteriores, foi construída sobre o pilar da simetria.


Ademais, sua cosmologia inaugurou um modelo escatológico com profundas raízes na tradição mitológica de seu tempo. Quando Anaximandro imaginou a Terra no centro do universo esférico, ela, em hipótese, poderia vir a ser e perecer sob o governo de seu ápeiron divino, uma vez que a divindade também era representada pela figura cíclica.


Pelo que demonstrou a cosmogonia pós-Anaximandro, a noção de um universo que se regenera a cada tempo foi assumida pela maioria dos pré-socráticos, notadamente Heráclito e Parmênides. O primeiro disse: “o caminho a subir e a descer é um e o mesmo”; o segundo: “Pouco me importa por onde eu comece, pois para lá sempre voltarei novamente”.


Cabe, ainda, ressaltar as perspectivas de Mcevilley acerca da noção de divino anunciadas no ápeiron. Suas concepções ultrapassaram as cercanias gregas. O autor identificou a localização geográfica na qual Mileto estava inserida. Não somente a questão portuária da cidade e, logo – a diversidade cultural advinda das atividades comerciais – como também a influência religiosa oriental e seus resquícios, com a divindade da esfera no pensamento grego.


A noção escatológica da religiosidade oriental, descrita num símbolo circular, onde o cosmos é gerado e destruído, teria de algum modo influenciado Anaximandro ao descrever o ápeiron como fonte da geração e destruição do cosmos? A partir de Mcevilley, é legítimo supor que tanto os milésios quanto os orientais consideraram um fenômeno escatológico como próprio de uma figura geométrica divina, cíclica. De acordo com o autor: “[…] além de seu significado como ‘indefinido’, ápeiron em grego também significa ‘anel’ ou ‘círculo’, uma vez que o círculo é uma linha ilimitada, uma linha sem começo nem fim”. Solidário a essa interpretação, Mircea Eliade identificou, dentre diversos escritos sagrados da tradição oriental, a noção do mito da infinita repetição, classificado por ele como – mito do eterno retorno. Segundo o autor, esse mito trata da “[…] infinita repetição do mesmo fenômeno (criação – destruição – nova criação)”.


Por que os relatos míticos, de tradições tão originais como a oriental e a grega, assumiram, na figura geométrica cíclica, a melhor definição para sua noção de divindade? E ainda: por que Anaximandro, Heráclito e Parmênides evocaram em suas cosmologias esses símbolos inaugurados pelo mito desde Homero e Hesíodo, portanto aceitos nos cultos de mistérios e na religiosidade cívica grega?


Em Mileto, Anaximandro foi o primeiro a expressar com uma linguagem prosaica, a divindade do ápeiron em seu sistema cosmológico conservado pela criação e conflagração. Ao passo que na Itália, “[…] a retomada periódica, por parte de todos os seres, de suas vidas anteriores – representa um dos poucos dogmas que, como sabemos com alguma certeza, faziam parte do pitagorismo primitivo”. Ao que parece, o ápeiron de Anaximandro assimilou da remota tradição mítica grega e oriental a noção de divino, a qual marcaria profundamente o monismo pré-socrático e sua concepção do princípio primeiro de todas as coisas.


Portanto, entre os primeiros fisiólogos monistas, cuja investigação ensejava o princípio – arché – Anaximandro foi o que melhor exprimiu, através do ápeiron, o significado do Uno divino que tudo abarca e governa. O vocabulário da descrição divina, utilizado por ele, ilustrou, também, uma possível estreita relação entre a tradição órfica e a filosófica. Conforme notou Alberto Bernabé: “Tanto os Órficos quanto os Pré-socráticos se preocuparam constantemente quanto ao problema da relação entre unidade e multiplicidade na cosmogonia. Por isso, ocasionou que: “Para alguns, o saber Órfico prefigurou a filosofia milésia; enquanto que, para outros, o mito Órfico do mundo unificado em Zeus é uma remitificação do monismo filosófico e um eventual panteísmo dos milésios”.


Ambas as interpretações corroboraram a tese para a qual a cosmogonia órfica, presente no papiro de Derveni, dialogou com a cosmogonia pré-socrática em seu começo. Pois: “O aspecto literário do Orfismo foi provavelmente fundamental para se estabelecer um diálogo entre a religião de mistério e a filosofia”. Somado a essa imagem literária, é legítimo afirmar que a partir de Betegh é possível comprovar que o papiro de Derveni é uma das melhores fontes doxográficas para os pré-socráticos porque não é contaminada por Platão e Aristóteles. Isso implica que a tese de Dixsaut Platão, fonte dos pré-socráticos, não pode ser uma norma absoluta.


O fato de a tradição religiosa, inaugurada por Orfeu, ser anterior à descoberta do papiro, datada por volta do século IV a.C., leva a crer que sua cosmogonia poderia ter influenciado a concepção dos primeiros Milésios sobre a arché, principalmente Tales, Anaximandro e Anaxímenes. Essa hipótese não pretende resolver a questão levantada por Betegh, para o qual os milésios teriam assimilado a cosmogonia órfica, ou ao contrário. Todavia, a similaridade notada no papiro, tal como na doxografia pré-socrática, no que se refere à noção de divino, motivou esta pesquisa a empreender uma releitura do significado de – água, ápeiron e ar – fundamentos da physis milésia.


Precipuamente, é válido fazer um cuidadoso exame nas colunas abaixo testemunhadas pelo papiro de Derveni:


P[ri]meiro existia, ant[es] de se[r] [no]m[e]ado. Em seguida, foi

nomead[o].

Pois, antes dos seres de agora (serem) justapostos, era

o ar, e sempre será. Pois não veio a ser, mas era. E o motivo porque

foi chamado “ar” já foi mostrado nos primeiros (versos). […]

[…] é bastante evidente que “Oceano” é o ar, e o ar, Zeus.

Certamente outro Zeus não “concebeu” Zeus, mas ele próprio

para si mesmo (concebeu) grande força. E os que não sabem

acham ser o Oceano um rio, porque “escorrendo largamente”

ele acrescentou. Mas ele indica a própria inclinação

nos dit[o]s e nas palavras costumeiras.

(PAPIRO DE DERVENI)


O autor do poema foi, certamente, um exegeta; um iniciado comentador dos textos atribuídos a Orfeu. Nessa poesia sacra, estão evidenciados certos elementos, os quais no começo da investigação natural foram ilustrados pela mentalidade milésia. Bernabé, quanto a essa relação homóloga, disse que “O mais provável é que se tenham produzido influências mútuas”. Essa conclusão, embora não seja definitiva, foi amparada pelos vestígios deixados por essas duas tradições.


Dentre esses indícios, está a noção ontológica descrita em alusão à imortalidade – logo, a eternidade de Zeus. Na coluna XVII, v. 1, o rei dos deuses é apresentado como fonte inexaurível da qual todas as coisas vieram a ser. Ele mesmo não foi gerado, não veio a ser, porque sempre foi arché. Aqui, especificamente, o ápeion de Anaximandro se ajusta perfeitamente ao que disse o papiro. Primeira semelhança: Zeus não era linguagem, Ele precedia ao seu nome. Realmente, entre os antigos sábios gregos, o Ser não era exprimido por palavras. De forma análoga, ao contrário de uma categoria determinada, nomeada, o ápeiron não se associava à natureza de nenhum dos quatro elementos. Desse modo, também, o ilimitado não era linguagem.


Outra evidência dos laços estreitos da tradição órfica com a milésia está na narrativa do papiro expressa na coluna XXIII, v. 3 na qual água, ar e Zeus são Um. Esta tríade cosmogônica correspondeu estreitamente com aquela concepção divina de princípio inscrita na arché de Tales e Anaxímenes. Nesse sentido, certamente Anaximandro considerou, ao seu modo, a divindade da água e do ar, pois, para ele, o princípio da vida na terra seria gerado a partir da evaporação emitida por calor e umidade.


É inquestionável a originalidade teórica dos três primeiros milésios. A coesão entre seus testemunhos cosmológicos e cosmogônicos remete à presença do divino, não obstante ele tenha sido expresso de distintos modos. Se, conforme ilustrou Betegh, o pensamento milésio foi impactado pelo orfismo, isso significa que a coerência da arché milésia não teria outra explicação, senão a teofanização de Zeus como princípio material, sobretudo em Tales e Anaxímenes. Se o mestre e o discípulo de Anaximandro assimilaram Zeus em seus princípios materiais, certamente seria por influência da tradição órfica de seu tempo. Note-se:


A identificação entre Zeus e o ar em si não pode causar surpresa. Embora, com base na semelhança fonética, tornou-se mais comum igualar Hera com o ar, a equação Zeus = ar também está atestada em diversos textos. Para começar, Zeus sempre foi relacionado com o céu, e em Homero ele está alocado explicitamente nesta parte ‘etérea’ do mundo quando as regiões cósmicas foram distribuídas entre os filhos de Cronos. Partilhando a terra e o Olimpo em comum, Poseidon recebeu o mar, Hades, o submundo e Zeus ‘os céus amplos no aither e nuvens’.


Até que ponto essa simbiose cosmogônica foi possível? A linguagem racional inaugurada por Tales teria conservado, de forma oculta, a divindade da água, outrora representada por Zeus no orfismo? Conforme notou Roy Kenneth Hack, na esteira de Betegh, o vocabulário dos gregos exprimia, de diversas formas, o mesmo poder divino. Porém, devido às regras da razão, foi necessário acontecer uma transposição no modo de expressar a divindade. Por conseguinte, Zeus permaneceu velado no argumento cosmológico racional, e isso, os milésios fizeram com lisura.


A relação intrínseca entre os cultos de mistérios e o pensamento pré-socrático, a priori, demonstrou-se através da perpetuação da noção de divino em ambas as mentalidades, embora essa ideia tenha sido elaborada primitivamente em Tales. Entretanto, em Anaximandro, seu ponto alto estava iminente. Pois:


Mas há uma novidade genuína no nome e natureza da divindade suprema de Anaximandro. A ideia de deus começou sua longa jornada separada da noção de substância e em direção à “pura” causalidade. Este deus supremo é ainda uma substância, mas já não é uma substância nomeável e definitiva como a Água.


Deus cosmogênico: Essa era a noção suprema de divindade retratada muitas vezes, entre os órficos, por Zeus e igualmente Moira. (Papiro de Derveni, Col. XVII v. 15a). A tese de Hack propôs que esse deus cosmogênico atravessou toda a filosofia milésia intrinsecamente envolto nos elementos pelos quais o cosmos veio a ser.


A jornada desse supremo deus, como o autor bem classificou, tratou-se do seu percurso iniciado nos trilhos dos quatro elementos – água, ar, terra e fogo – todos condenados por Anaximandro por serem susceptíveis ao perecimento, sobretudo por sobreposição de seu oposto. Por isso, quando o milésio definiu ápeiron como núcleo engendrador e destruidor das coisas que existem, essa foi a descrição mais apropriada para descrever o deus cosmogênico que é pura causalidade. Nota-se que o autor evocou os testemunhos de Simplício in Phys., e o comparou com o ciclo de nascimento no qual Zeus figurava princípio e fim.


A partir de então, pode-se aceitar como verdadeira, a tese na qual o símbolo de geração e destruição foi admitido em ambas as tradições – órfica e milésia. Na primeira, Zeus protagonizou a noção cosmogênica onde o fim, ou conflagração das coisas, não lhe desonrava o mérito de ser inexaurível; pois nele e para ele eram todas as coisas. Na segunda, a esfera desenhou a fusão de dois opostos, a saber; começo e fim. Peras e ápeiron, desde então, aniquilaram a sobreposição injusta, outrora corrente entre os opostos. Desse modo, o modelo geométrico esférico inaugurou uma noção harmônica do cosmos, expressa pela simetria.


A sentença de Anaximandro, tal como sua noção de justa retribuição, foi uma discussão fecunda entre os pré-socráticos, notadamente em Heráclito, o qual foi citado nominalmente no papiro. Como demonstrou o intérprete de Orfeu, a noção de justiça, nesses cultos de mistérios, apresentava estreita correspondência com as figuras míticas jônicas, sobretudo a ideia de punição que Heráclito atribuiu às Erínias.


Certamente, a presença de Heráclito no papiro de Derveni ilustrou o conhecimento filosófico e a intenção do exegeta em tornar inteligível, ainda que em códigos, a teogonia anunciada por Orfeu. Em suma, a doxografia tem consagrado Anaximandro como o precursor não somente de uma cosmologia pautada por princípios científicos, mas também para além deles no campo ético, conforme descrito no seu princípio de justiça e retribuição. Diante disso, é possível que o orfismo tenha contemplado todo o sistema cosmológico inaugurado por Anaximandro, ou ambos foram construídos sincronicamente? As respostas, certamente, não anularão as evidências deixadas por essas duas tradições no que diz respeito às suas concepções da noção de divino.