terça-feira, 2 de maio de 2023

Simetria na Cosmologia de Anaximandro de Mileto


Arché e Phýsis na Cosmologia Simétrica de Anaximandro:

Ápeiron e a Noção de Divino


Mediante os testemunhos doxográficos pelos quais foi construída a história da filosofia pré-socrática, notou-se, desde o início desta (no final do sexto século a.C.) a busca do princípio – arché82 – a qual, como pensava a maioria dos primeiros Fisiólogos, teria engendrado todas as coisas abarcadas pela phýsis83.


82 O TERMO ORIGINAL GREGO PARA ARCHÉ É ἈΡΤΉ, CONFORME A TRANSLITERAÇÃO DE GUTHRIE. O AUTOR TRADUZ DE FORMA DETALHADA E EXPLICA A UTILIZAÇÃO DA PALAVRA NO AMBIENTE PRÉ-SOCRÁTICO.

83 ΦΎΖΗΣ, É O TERMO ORIGINAL GREGO CORRESPONDENTE À PHYSIS, CONFORME A TRADUÇÃO DE GERD A. BORNHEIM. SEGUNDO O AUTOR, “A PHYSIS É O CONCEITO FUNDAMENTAL DE TODO O PENSAMENTO PRÉ-SOCRÁTICO”

O testemunho de Aristóteles corrobora o pensamento que considerou os milésios como os primeiros filósofos interessados naquilo que teria constituído todas as coisas. Não obstante a tradição demonstrar que as opiniões dos primeiros físicos eram divergentes quanto à natureza material do elemento primeiro, conforme assinalou o estagirita na Metafísica, os antigos conservaram a opinião de que tais elementos sempre persistem, nunca são gerados.


Quando Anaximandro define ápeiron (infinito, ilimitado) como sendo a arché da natureza, o milésio evoca em sua máxima a noção de imperceptível e infinitude referindo-se à imortalidade dos deuses? A noção de divino e imortal, presente entre os antigos, no que diz respeito à eternidade do cosmos e seus elementos constituintes, foi herdada da religião e do mito? Certamente, a resposta a essas questões requer, nas páginas seguintes, passar em revista ao testemunho de Simplício: “Anaximandro chamou a arché e elemento de todas as coisas existentes ‘o ilimitado’, sendo o primeiro a atribuir este nome à arché.”


Com efeito, frente ao excerto de Simplício em discurso direto, nesta abordagem não se pretende fazer qualquer tipo de interpretação sobre o fragmento de Simplício em voga; nem sequer, questionar a autenticidade do mesmo, mas, tomá-lo como parâmetro para a questão da arché na cosmologia simétrica de Anaximandro. Todavia, mediante as inferências dos comentadores modernos, sobretudo Guthrie, Kahn, Kirk, Raven e Schofield, Thomas McEvilley, entre outros autores consagrados, os problemas e as conjeturas, durante este percurso, surgirão.


A investigação sobre a arché, no pensamento pré-socrático, deve estar para além de uma análise sobre as divergências de opiniões que os primeiros físicos tiveram no tocante ao elemento primeiro.


Embora o pensamento moderno, principalmente aquele que segue fielmente a tradição grega antiga seja um norte a respeito do significado do elemento primeiro, no decorrer das próximas páginas se questionará sua concepção sobre a qual o princípio – arché – teria sido concebido como apenas de natureza material. A princípio, é prudente considerar as observações assinaladas por Guthrie no que tange à arché, inscrita no fragmento de Simplício.

O autor, primeiramente, remonta ao fragmento 204 b 24 da Física de Aristóteles, o qual abarca os elementos contrários, postulados como arché pelos primeiros físicos. Pelo que demonstra Guthrie, os contrários, no viés de Anaximandro, estão inseridos em uma cosmologia pautada pelo equilíbrio, não pela sobreposição entre os elementos. Igualmente, na esteira de Guthrie, dirá Vernant “Para Anaximandro, ao contrário, nenhum elemento singular, nenhuma porção do mundo poderia dominar as demais. São a igualdade e a simetria dos diversos poderes constituintes do cosmos que caracterizam a nova ordem da natureza”.


Guthrie, ciente de que Anaximandro não concebia a arché da maneira de Aristóteles, haja vista a palavra elemento, no fragmento de Simplício, ser um termo aristotélico, assinalou:


Cuando Anaximandro intentó por primera vez expresar filosóficamente su idea, no era posible ninguna distinción clara entre sustancia y atributo. Del mismo modo que habló de “lo infinito”, designó también a los contrarios recurriendo a un artículo y a un adjetivo: lo caliente, lo frío, lo húmedo y lo seco. Anaximandro los consideraba cosas y no cualidades, como ha dicho Cornford.


Para destacar a originalidade do pensamento anaximandrino que estava imbricado no excerto de Aristóteles, Guthrie assinala outra vez:


“Lo caliente” no era el calor, considerado como una propiedad adjetiva de una sustancia, de algo que está caliente. Era una cosa sustantiva y “lo frío”, su contrario, era otra cosa. Como consecuencia de ello, era posible considerar a lo caliente y lo frío como cosas contrarias que pueden fundirse juntas en un estado indiferenciado, como una mezcla de vino y agua.


Consensual aos argumentos assinalados por Cornford na obra: Principium Sapientiae, as Origens do Pensamento Filosófico Grego, Guthrie lançou luzes inteligíveis sobre o fragmento de Simplício. Se, para Anaximandro, o quente e o frio não são qualidades, mas, potências substantivas, ao contrário da concepção aristotélica que teria influenciado Simplício no excerto citado, simetria e equilíbrio serão princípios intrínsecos na arché de Anaximandro? Na esteira de Guthrie, a resposta a essa pergunta será positiva. “Anaximandro ha reconocido que existe la tendencia natural de cada uno de los elementos a destruir a su contrario”. Nesse sentido, o equilíbrio entre esses elementos comprova a existência deles na natureza. Nota-se:

En el mundo considerado como un todo, ninguna de las fuerzas contrarias (o fuerzas litigantes, como las imaginaba Anaximandro) obtiene una victoria completa y final: el equilibrio entre ambas siempre se está recuperando o manteniendo. Si una obtiene una ventaja local, la otra se retira a otro lugar.


Conforme Guthrie observou, a tradição doxográfica foi tributária a Aristóteles por ser ele a fonte que aponta os milésios como interessados exclusivamente na arché da natureza. Entretanto, o autor adverte que a abordagem do estagirita requer do leitor alguns cuidados, sobretudo por Aristóteles ter evocado a filosofia pré-socrática justificando seu próprio sistema quádruplo93 de causalidade, parecendo-lhe que os milésios “[…] trataram, exclusivamente, de princípios de ordem material […]”


93 O TERMO SISTEMA QUÁDRUPLO DE CAUSALIDADE REFERE-SE ÀS QUATRO CAUSAS ABORDADAS POR ARISTÓTELES, A SABER: CAUSA MATERIAL, EFICIENTE, FORMAL E FINAL.

Se, o princípio arché de tipo material é, exclusivamente, uma noção do núcleo da filosofia aristotélica baseada nas causas materiais, não contempladas pelos milésios do sexto século a.C., e tão pouco por Anaximandro, a que Anaximandro estaria fazendo remissão ao estabelecer um princípio extrínseco à categoria dos quatro elementos materiais? Segundo Guthrie, o milésio se referiu ao conceito primeiro da ciência jônica – a phýsis.


Ao tratar sobre o tema phýsis – o qual entendemos ser um dos mais fecundos entre os pré-socráticos – consideramos estar diante de uma noção cujo significado está para além do que a modernidade lhe conferiu, haja vista a proximidade do termo física com a palavra natureza, verificada na expressão aristotélica – fisiólogos ou filósofos da natureza.


O interesse de Aristóteles por assuntos sobre a natureza, confirmado pela tradição doxográfica, rendeu-lhe uma obra intitulada Física, na qual o estagirita remonta à cosmologia dos primeiros sábios para justificar a sua. O título da obra, como notou Guillermo de Echandía, seu prefaciador, ocasionou mal entendidos, pois, não obstante o termo Física ser pertinente às ciências exatas, Aristóteles o teria abordado em termos naturalistas intrínsecos à cosmologia jônica do sexto século a.C. Note-se:


Ahora bien, el título de esta obra se presta a un malentendido. Porque el lector no iniciado que se aproxime a ella desde el actual nivel de conocimiento puede creer que el vocablo “física” tenía el mismo significado entonces que ahora, como efectivamente ocurre con “geometría” o “aritmética”. Y aquí está el malentendido. La física moderna, tal vez el producto más gigantesco del espíritu europeo en su historia, ha hecho, junto con la técnica, que el modo como el europeo actual se siente intelectualmente instalado en el mundo sea radicalmente distinto que el del griego. […] En efecto, phýsis no era el nombre de una región especial del ente, sino que en la tradición griega designaba todo cuanto existe en el Universo: los astros, la materia inerte, las plantas, los animales y el hombre.


A descrição do que seria a phýsis, operada por Guillermo de Echandía, parece se aproximar do que pensaram sobre ela os primeiros sábios jônios. Esse tema, por ser uma discussão fecunda entre os fisiólogos, como já demonstrado por Aristóteles, era comumente discutido entre esses pensadores.


Desde Tales de Mileto, o primeiro filósofo que se propôs a investigar sobre a natureza, a phýsis tornou-se o núcleo da investigação milésia. Por esse tipo de investigação versar acerca do todo – o divino, o homem e o cosmos – os escritos em prosa intitulados – Da Natureza ou Perì phýseos – a partir de Anaximandro, ganharam notoriedade entre os pré-socráticos. Pois:


Era costume entre os escritores alexandrinos dar títulos, na ausência de provas concretas, que conviessem aos interesses conhecidos de um pensador antigo. “Da Natureza” foi um título clássico e compreensivo que teve tendência para ser atribuído a todos aqueles a quem Aristóteles chamou θσζητοί, isto é, a quase todos os Pré-Socráticos.


Os pormenores dos feitos e da vida dos pré-socráticos, embora questionáveis, sobretudo no que diz respeito ao conteúdo das investigações, não impedem que lhes sejam atribuídas algumas obras pela doxografia, as quais remontam àquelas investigações já assinaladas por Aristóteles acerca da Natureza.


Dentre os fisiólogos interessados por esse tipo de investigação, Kirk, Raven e Schofield mencionam Xenófanes de Cólofon, Empédocles de Agrigento, Heráclito de Éfeso e Melisso de Samos, os quais possivelmente viveram do século VI a.C. ao século V a.C. Esses filósofos, cuja acmé (άκμή) teria sido influenciada por Anaximandro, “[…] procuraram compreender a “natureza” de uma coisa descobrindo de que fonte e de que forma isso veio a ser o que é”.


Efetivamente, o sistema cosmológico inaugurado por Anaximandro, cujo princípio é homólogo à proporção e à justa medida, preconizou uma cosmologia advinda da operação inteligível humana. Os tratados sobre a natureza, desde Anaximandro, englobaram a phýsis a partir de princípios harmônicos nos quais “Os homens, a divindade, o mundo formam um universo unificado, homogêneo, todo ele no mesmo plano […]”.


De acordo com as inferências mencionadas por Kahn e Vernant, chega-se à seguinte hipótese: se, por um lado, os princípios inteligíveis operados por Anaximandro, ao discorrer sobre arché e phýsis, abdicaram da linguagem teogônica, por outro lado esses mesmos princípios, cujo núcleo é o ilimitado, estão imbricados com aquela noção de divino na qual a phýsis, em sua completude, foi concebida na mentalidade pré-socrática.

Vale, portanto, a partir dessa conjetura, lembrar que Tales, o mestre de Anaximandro, foi o primeiro fisiólogo que, não obstante inaugurar o nascimento da filosofia milésia, a partir da investigação natural, conservou em sua essência a noção de uma phýsis divina.


Tales, conforme o testemunho de Aristóteles, ter-se-ia referido a um deus não antropomórfico em sua descrição na qual todas as coisas, cheias de deuses, seriam os princípios da phýsis? Outrossim, quando Anaximandro evocou os atributos divinos, a saber: imortalidade e indestrutibilidade, para descrever o ápeiron, ele estaria conservando na cosmologia jônica a noção de divino da antiga tradição religiosa grega? A fim de responder tais perguntas, urge considerar o porquê de Anaximandro ter convergido o princípio da phýsis no ápeiron.


A partir dessas considerações, a originalidade da cosmologia de Anaximandro chega ao seu ponto alto. O ápeiron, como arché da phýsis, será a definição apropriada em substituição àquela que postulava ser, como elemento perceptível98, o princípio de todas as coisas. Se a phýsis amalgamou em seu núcleo todos os elementos naturais e supranaturais, conforme a descrição de Tales e Anaximandro, “a noção de não perceptível”, segundo Guthrie, traduz quase com exatidão a noção divina de ápeiron.


98 AQUI, ELEMENTO PERCEPTÍVEL SIGNIFICA: ÁGUA, TERRA, AR E FOGO; OU SEJA, LÍQUIDO, SECO, ÚMIDO E QUENTE.

De fato, quais serão os atributos que corroboram essa noção de divino presente no ápeiron? Não obstante tratarmos minuciosamente dessa questão em um tópico específico nas páginas a seguir, serão ilustrados, neste intróito, alguns significados que a tradição grega atribuiu ao ilimitado:


O Infinito de Anaximandro pode estar relacionado aos seus interesses astronômicos baseados na Mesopotâmia por ser esférico ou circular; além de seu significado como “indefinido”, apeiron em grego também tem o significado de “anel” ou “círculo”, uma vez que o círculo é uma linha ilimitada, uma linha sem começo nem fim.


Thomas Mcevilley, no tocante à influência oriental e suas nuanças, que teriam influenciado os primeiros físicos jônicos, levou a cabo, num estudo comparativo entre o pensamento grego e a remota cultura do Oriente, a noção de infinito descrita por Anaximandro. O autor está cônscio de que a noção de infinito, atribuída ao ápeiron no sistema do milésio, evoca a noção de ciclo cósmico da remota civilização mesopotâmica, sobretudo, a noção de infinitude divina existente nos quadros mentais egípcios e indianos.


A descrição tomada por Mcevilley, na qual o ápeiron, cujo significado em grego, está para além de indefinido, ajusta-se ao modelo geométrico – círculo – símbolo do infinito, o qual é homólogo à falta de limites da esfera. Pelo que demonstraram as investigações do autor, aquela noção de divindade que os gregos atribuíram à esfera e, de acordo com Guthrie, também assumida por Xenófanes, corresponde estreitamente à noção divina intrínseca ao círculo, o qual abarcava a noção de geração e destruição conforme a remota religiosidade oriental.


Na esteira de Mcevilley, Mircea Eliade empreendeu uma investigação na qual atestou a proximidade dos quadros mentais do oriente com a sentença de Anaximandro, testemunhada por Simplício – “Todas as coisas se dissipam onde tiveram a sua gênese […]”.


Com efeito, Eliade parte de pressupostos entre os quais o excerto testemunhado por Simplício trata-se de um ciclo cósmico similar ao contemplado na tradição indiana. Quanto à investigação de tais ciclos, sobretudo no que se relaciona à geração e destruição das coisas, dirá Eliade “Devemos começar pela tradição indiana, pois foi ali que o mito do eterno retorno recebeu sua mais corajosa formulação. A crença na periódica destruição e criação do universo já pode ser encontrada no Atharva-Veda”. Outrossim, ao que demonstra Eliade, a infinitude cíclica contemplada por gregos e orientais é, portanto, inerente à noção de divino em ambas as culturas, conforme sugeriu o fragmento supracitado, de Simplício. Nesse sentido, quanto ao mito do eterno retorno e sua estreita correspondência com o ápeiron, dirá o autor: “Este mito ainda podia ser encontrado nas primeiras especulações pré-socráticas. Anaximandro sabe que todas as coisas nascem e retornam ao apeiron”.


A partir das considerações assinaladas por Mcevilley e Eliade, os quais descreveram o mito do eterno retorno como um ciclo divino, presente na tradição grega e oriental, conclui-se que, em virtude da originalidade religiosa grega, Anaximandro foi influenciado pelas narrativas homéricas e hesiódicas, que fundamentaram o pensamento religioso pré-filosófico. Por isso, a partir desses pressupostos, as linhas a seguir pretendem investigar o núcleo da cosmologia simétrica de Anaximandro, a saber: o ápeiron, no qual toda a phýsis foi convergida a partir do termo original – arché.


Enfim, mediante esses atributos inexauríveis e axiais da cosmologia do milésio, em suas órbitas, as próximas linhas percorrerão os caminhos pelos quais Anaximandro fundamentou seu sistema filosófico harmônico e simétrico. É o que se ensaiará nos subcapítulos a seguir.


No início do percurso sobre a origem e a natureza do universo em Anaximandro, uma pluralidade de investigações, como tem demonstrado a história da filosofia grega, surgiu, devido à complexidade das questões – arché e cosmologia – inerentes ao pensamento dos primeiros físicos jônicos, especialmente Anaximandro.


Noção de Arché na Cosmologia Simétrica de Anaximandro

Diante dessas questões, entende-se que o pensamento racional foi inaugurado imbricado na investigação versada sobre a arché da natureza, uma das vias cujo ponto de chegada é a cosmologia simétrica de Anaximandro. Entende-se que a harmonia e a simetria, apanágios da razão, foram determinantes no princípio dessa organização cósmica. Pois:


El nacimiento de la filosofía en Europa consistió, por tanto, en el abandono, a nivel de pensamiento consciente, de soluciones mitológicas para los problemas que atañen al origen y a la naturaleza del universo y a los procesos que continuaron desarrollándose en él.


O pensamento de Tales de Mileto ajusta-se perfeitamente ao modelo de investigação que, como notou Guthrie, inaugurou o pensamento filosófico europeu. Quanto a isso, a tradição que o sucedeu lhe será tributária. Igualmente, “El nombre de Tales gozó siempre de gran consideración entre los griegos como el de un sabio y científico ideal. […]”.


Contudo, por que a harmonia e a simetria não foram notadas por Tales e, incluídas em sua investigação cosmológica? Tales, tradicionalmente, possuía um refinado conhecimento matemático e geométrico. O filósofo, ao contrário de Anaximandro, antes de ir para Mileto teria contemplado as colossais pirâmides egípcias, construídas a partir de um conhecimento geométrico. De acordo com Proclo, “Tales, tendo ido primeiro para o Egito, transferiu este estudo [a geometria] para a Grécia…”.


Por que Tales, provido de conhecimentos matemáticos e geométricos pertinentes à justa medida, à simetria, operou sua cosmologia a partir de um arquétipo material, a saber: a água? A harmonia e a simetria, ao que demonstra a doxografia talesiana, não foram notadas, sequer ocuparam lugar de destaque na cosmologia do milésio. Isso, portanto, constitui-se um fato assaz curioso, uma vez que o filósofo era um exímio matemático, acima de tudo, geômetra.


Certamente, a conclusão do milésio – aquela que sustentou ser a água a arché da phýsis – tem a ver com o fato de ter ignorado a esfericidade da terra. Como afirma Guthrie, as previsões eclípticas de Tales seriam mais precisas, não fosse o conhecimento esférico da Terra lhe ter faltado.


Embora esse aparente lapso não tire o mérito de Tales, por ter sido ele o primeiro fisiólogo a empreender uma investigação cosmológica a partir da própria natureza, será Anaximandro, seu discípulo, o fisiólogo sempre lembrado por ter empreendido uma investigação sobre a natureza a partir de uma nova tese, um modo excelente, no qual, filosoficamente, ultrapassou Tales. Note-se:


Agora tudo se desenrola à volta das teses e dos pensamentos de homens individuais que se exprimem pela escrita, na forma de livros dirigidos a um público leitor crescente. Aparecem textos com formas e conteúdos nunca antes existentes. O novo é incomparável ao velho. A filosofia começa com o livro escrito em prosa. […] No livro de Anaximandro, em princípio, já está esboçado o modelo do universo que permanece determinante até à revolução copernicana […].


A superação do sistema filosófico talesiano pelo anaximandrino, de acordo com Burkert, vai além da percepção simétrica e esférica ignorada por Tales. O autor salienta, além do modelo cosmológico revolucionário de Anaximandro, o modo com o que Anaximandro abrangeu em um livro escrito em prosa, todos os elementos constituintes da sua noção de arché. A opinião de Burkert, portanto, lança luzes sobre o novo modo de se exprimir teses quanto à cosmologia milésia, ou seja: o modo da escrita em prosa, criado por Anaximandro.


Se, por um lado, a explicação cosmológica talesiana sobre o elemento primeiro tornou-se rudimentar, frente à refinada cosmologia inaugurada por seu discípulo, por outro lado, atribuir o nascimento da filosofia à escrita do primeiro livro em prosa – cujo autor, pela tradição, é Anaximandro – pode ser um exagero ou um preciosismo por parte de Burkert.


Quando Guthrie destacou o problema entre os primeiros fisiólogos relativamente à arché, atribuindo o nascimento da filosofia a esse tipo de investigação, o autor partilha o mérito da investigação filosófica entre os primeiros físicos, os quais pretenderam dizer qual seria a arché cosmológica. Nesse sentido, portanto, Tales de Mileto parece ter uma primazia razoável.


O debate propenso a articular, por meio da historiografia pré-socrática, um consenso quanto a quem teve o mérito de inaugurar a filosofia na Jônia, deve estar cônscio que tal empreendimento versará sobre intrincados testemunhos, os quais consideramos como fósseis da filosofia pré-socrática.


Ademais, esta pesquisa, na esteira de Diógenes Laércio e Guthrie, é solidária à tese de que o termo – precursor – traduz o significado da relação discípulo/mestre, notadamente no caso de Tales e Anaximandro. O testemunho de Diógenes coaduna com a opinião exposta neste trabalho, o qual não considera a hipótese de emulação entre o pensamento talesiano e anaximandrino:


Diógenes Laercio dice que la filosofía jonia surgió con Anaximandro, pero que Tales, “un milesio y, por ello, un jonio, instruyó a Anaximandro”. Hay mucho que decir sobre la opinión de este compilador tardío, según la cual, tal y como nosotros la conocemos, Tales debe ser considerado como precursor y Anaximandro, como creador del primer sistema filosófico del que tenemos noticia.


Os motivos pelos quais Guthrie se apoia em Diógenes são, portanto, justificáveis. Diógenes Laércio, de cuja vida a tradição historiográfica pouco sabe, ao opinar sobre a filosofia milésia e seus precursores, certamente comparou o ambiente filosófico vivido na Academia platônica e no Liceu de Aristóteles com aquele vivido por Tales e Anaximandro. Essa hipótese apoia-se na máxima citada anteriormente: instruiu Anaximandro.


Nota-se que o verbo grego, instruir, é homólogo ao verbo grego ensinar, no infinitivo impessoal didásko, o que, em geral, circulava no ambiente acadêmico. Essa conjetura se baseia na noção de philía – amizade – como princípio básico da relação entre discípulo e mestre.


Essa noção, conforme assinalou Cornelli, se sobressaiu nos primeiros discursos de Pitágoras. A philía incorporava todos os atributos pertinentes à fidelidade entre os amigos, amigos do saber, logo: filósofos – philósophos. Esse tema, de acordo com Cornelli, era intrínseco à filosofia reinante nas comunidades pitagóricas, que obedeciam à ética da philía.


Com efeito, conforme comentado no capítulo segundo sobre A Jônia de Anaximandro e a Itália Pitagórica, a proximidade dessas duas escolas permitiu aos milésios o contato com a noção de philia do pitagorismo, florente na Itália do sul. Observa-se que os termos instruir e precursor, testemunhados por Diógenes Laércio são, portanto, termos comuns à época do Liceu e da Academia de Platão. Foi nesse ambiente entre amigos que Anaximandro teria, sem dúvida, recebido as primeiras instruções de seu mestre, Tales.


Porém, se a tradição atribuiu a Anaximandro o mérito de ser o primeiro filósofo a mencionar o termo arché à substância originadora, como deverá ser entendida essa questão, visto a arché, em Tales de Mileto, ser a Água? Esse problema parece ter sido causado por Aristóteles, quando ele se propôs a empreender sua investigação quanto à causa material no pensamento dos primeiros sábios. Nota-se:


Dos primeiros filósofos, a maioria considerou os princípios de natureza material como sendo os únicos princípios de tudo que existe. Aquilo de que são constituídas tôdas as coisas, o primeiro elemento de que nascem e o último em que se resolvem […], a isso chamam êles o elemento e o princípio das coisas, […]. Tales, o fundador dêste tipo de filosofia, diz que o princípio é a água (por êste motivo afirmou que a Terra repousa sôbre a água), […] ora, aquilo de que originam tôdas as coisas é o princípio delas.


É mister, antes de discorrer o problema sugerido por Aristóteles sobre a arché em Tales, voltar a uma das primeiras questões contempladas aqui, neste sub-tópico. Inicialmente, foi perguntado: Por que Tales, provido de conhecimentos matemáticos e geométricos pertinentes à justa medida, à simetria, operou sua cosmologia a partir de um arquétipo material, a saber: a água? Em que pese a contribuição de Guthrie, ao assinalar que esse problema seria um dos resultados da ignorância de Tales quanto à esfericidade da Terra, a noção de simetria não foi contemplada já que não era este o tema que interessava Aristóteles quando fez remissão à filosofia pré-socrática.


Desde o início de sua análise sobre os fisiólogos, de acordo com David Ross, Aristóteles já havia postulado qual seria a natureza, o conteúdo do qual ter-se-iam engendrado todas as coisas. Na Física, o estagirita nomeou tais princípios naturais como: causa material, formal, eficiente e final. Nessa linha, corrobora David Ross: “Daí, [Aristóteles] passa a testar a exatidão da sua análise verificando se os filósofos anteriores descobriram outras espécies de causas além destas quatro”.


A conclusão de Ross, portanto, demonstra que a intenção de Aristóteles, remetendo aos primeiros filósofos, não era outra senão justificar o seu próprio sistema filosófico causal. A partir dessa, e sobretudo das advertências de Dirk Couprie quanto ao “jargão aristotélico” observado na historiografia pré-socrática, é possível afirmar que Aristóteles tivesse contaminado o pensamento talesiano, ocultando em seus testemunhos, a noção de simetria e justa medida? Afinal, não era esse o tema (simetria, harmonia e proporção) sobre o qual Aristóteles se propôs a tratar na Física, conforme notou Ross. A água, princípio material em Tales, seria mais conveniente aos propósitos da causa material, investigada pelo estagirita? Segundo Kirk, Raven e Schofield, sim. Segundo os autores, esse tema (a água) ajustou-se à ideia aristotélica de uma arché material.


Retomando a questão – arché em Tales – problema suscitado por Aristóteles, a partir de agora as considerações precedidas servirão como fundamentos nos quais se questionará o porquê de Aristóteles ter conferido a Tales o título de o primeiro filósofo a empreender uma investigação sobre o fundamento primeiro da phýsis.


O excerto da Metafísica em voga, contempla a descrição de Aristóteles e, logo, o problema levantado por ele ao afirmar que o princípio de todas as coisas era a investigação principal entre os primeiros filósofos.


Se a noção de arché foi inaugurada por Anaximandro, conforme narrou Simplício, até que ponto esse testemunho será válido, visto que Aristóteles considerou, na Metafísica, Tales de Mileto como o fundador desse tipo de investigação? O problema parece avolumar-se à medida que Kirk, Raven e Schofield, assim como Burnet, posicionam-se favoráveis a Aristóteles. Os autores, assim, iniciam a discussão sobre a arché, subordinados à pergunta: “Anaximandro chamou ἀρτή à substância originadora”?


Embora a pergunta citada, não contenha a palavra – primeiro – a qual modificaria o seu sentido, levando a crer que Anaximandro teria sido o primeiro a chamar ἀρτή à substância originadora, a pergunta inclina-se, segundo Kirk, Raven e Schofield, a uma resposta na qual será discutível se Anaximandro utilizou de fato, pioneiramente, o termo arché para nomear a substância originária. Trata-se de uma investigação na qual os autores, concordando com Burnet, analisaram exclusivamente um excerto de Simplício, ignorando o outro.


Nos dois discursos de Simplício, os quais serão notados a seguir, não obstante o autor estar comentando Aristóteles na Física, nos dois casos o termo grego – prõtos cujo significado é primeiro, comparece em ambos os fragmentos remontando aos feitos de Anaximandro.


No primeiro caso, Kirk, Raven e Schofield passam em revista o fragmento de Simplício no qual, segundo os relatos de Teofrasto, assinalou: “Anaximandro de Mileto, filho de Praxíades, sucessor e pupilo de Tales, disse que o princípio e elemento das coisas que existem é o ápeiron, [indefinido ou ilimitado], tendo sido ele o primeiro a introduzir este nome do princípio material”.


Nesse fragmento, a resposta a essa pergunta (Anaximandro chamou ἀρτή à substância originadora?) parece ser afirmativa. Tiraram eles essa conclusão fundamentados na opinião de Burnet sobre o que realmente Teofrasto queria dizer:


Burnet, contudo, defendeu a opinião de que Teofrasto disse simplesmente que Anaximandro foi o primeiro a chamar o princípio material (ἀρτή no sentido peripatético normal) pelo nome de ηὸ ἄπεηρολ, sem outra qualificação. É este, certamente, o sentido mais óbvio do extrato de Teofrasto, 101 A, ao passo que em 101 B ηοῦηο provavelmente se perdeu por haplografia antes de ηοὔλοκα.


O comentário de Burnet citado pelos autores, contribuiu substancialmente para aproximar, ao pensamento moderno, o que de fato Simplício queria dizer. É mister lembrar que a tradição considera Simplício um dos principais comentadores de Aristóteles; portanto, o mérito de Burnet está em sua investigação que abarcou esses consagrados autores do mundo antigo, a saber: Aristóteles e Simplício.


Diante disso, no campo das hipóteses, entendemos que a inferência de Burnet vem corroborar o sistema aristotélico causal, que Aristóteles postulava, desde o início, a respeito da investigação dos primeiros físicos.


Essa hipótese, portanto, nasce a partir do que assinalou Kirk, Raven e Schofield supracitados, concernente à intenção pela qual Teofrasto testemunhou sobre a arché. Ao qualificar as afirmações de Teofrasto como sendo um testemunho no sentido peripatético normal, Kirk, Raven e Schofield, cada vez mais, alargam a distância entre o leitor e o pensamento de Anaximandro.


Se, por um lado, Kirk, Raven e Schofield, na esteira de Burnet, evocam a cosmologia do milésio, certos de que Teofrasto não disse que Anaximandro foi o primeiro a introduzir o termo arché – mas que ele teria sido o primeiro a chamar a arché pelo nome ápeiron – por outro lado, o testemunho dos autores torna-se discutível, dado que o princípio material operado no fragmento em voga é uma categoria desconhecida por Anaximandro.


Com efeito, a opinião de Kirk, Raven e Schofield quanto ao elemento primeiro possui as lentes de Aristóteles e não as de Anaximandro. A noção de arché na cosmologia do milésio não é homóloga àquela do sistema causal aristotélico. De Anaximandro a Aristóteles, abriu-se uma lacuna de cerca de trezentos anos sobre a investigação cosmológica, motivo pelo qual toda conclusão a respeito do princípio material nesse período será tributária a Anaximandro.


Quando o milésio qualifica a natureza da substância originadora como sendo indefinida ou ilimitada, essa era a melhor definição para além de uma natureza material vigente desde Tales.


É, portanto, prudente lembrar que a opinião de Kirk, Raven e Schofield na esteira de Burnet, pela qual Teofrasto não teria designado Anaximandro como o primeiro filósofo a usar o termo arché entre seus contemporâneos, também está no campo das hipóteses. Não obstante a inferência de Kirk, Raven e Schofield estar de acordo com o fragmento de Simplício em foco, conferindo ao milésio o feito de ser o primeiro fisiólogo a chamar ápeiron a arché, os autores, ao contrário da maioria dos críticos modernos, limitam-se apenas ao primeiro excerto de Simplício.


Nesse sentido, finalmente, o testemunho de Aristóteles no qual favoreceu Tales de Mileto como sendo o primeiro físico a empreender uma investigação sobre a arché, corroborou a hipótese argumentada por Burnet e Kirk, Raven e Schofield na qual insinuaram que Tales poderia ser o primeiro físico a utilizar o termo arché na investigação cosmológica pré-socrática.


Entretanto, nunca é demais lembrar que, ao remeter à investigação feita por Tales, Aristóteles está se debruçando sobre noções materiais causais díspares da noção de physis investigada tanto por Tales quanto por Anaximandro.


Conforme se notou até agora, o primeiro discurso de Simplício justifica a hipótese de Kirk, Raven e Schofield, pela qual Anaximandro não teria sido o primeiro a usar o termo arché, mas que teria sido o primeiro a chamar arché pelo nome de ápeiron. Como consequência dessa hipótese, surge obviamente um problema adicional a ser enfrentado, qual seja, o uso do termo arché como tendo sido criado por Anaximandro.


Na sentença de Simplício, a seguir, há indícios que mostram Anaximandro não apenas sendo o primeiro a designar a substância primeira como sendo infinita ou ilimitada, mas também como o primeiro filósofo a utilizar o termo arché. Nota-se:


“Anaximandro disse que os opostos estavam no substrato, que era um corpo infinito, e que eles são extraídos dele; ele foi o primeiro a chamar o substrato um princípio”.

Não obstante o excerto supracitado resolver o problema da ambiguidade de interpretação presente em Simplício conforme notado por Kahn, o fragmento ainda não convence Kirk, Raven e Schofield de que Anaximandro seria o precursor da investigação cosmológica a partir do termo arché. Os autores ignoraram o fragmento, argumentando estar diante de um comentário no qual Simplício tornou difícil o entendimento do termo arché.


Simplício, que segundo a tradição doxográfica leu os pré-socráticos, ao comentar Teofrasto, teria-se equivocado sobre a arché em Anaximandro? Ao que demonstram Kirk, Raven e Schofield, sim. Nota-se:


É possível, evidentemente, que Simplício tenha interpretado erradamente o comentário de Teofrasto acerca de ἀρτή e ἄπεηρολ […] Parece, todavia, provável que em Teofrasto não se sugere nenhum emprego técnico de ἀρτή por parte de Anaximandro – o emprego a que ele se referiu foi o de ηὸ ἄπεηρολ.


O equívoco de Simplício na Física, como concluíram Kirk, Raven e Schofield, e também Burnet, certamente tem conexão direta com o primeiro excerto no qual, Anaximandro teria operado sua cosmologia na órbita do ápeiron, não da arché. Por outro lado, Teofrasto já havia, segundo o fragmento de Simplício, empregado a palavra arché ao falar sobre a cosmologia de Tales, o que para os autores, seria o momento oportuno para Simplício consagrar Anaximandro como o criador do termo, porém não o fez.


Entretanto, tais conclusões não podem, consoante os autores supracitados, resolver definitivamente esse problema. Ao contrário do que já foi dito até agora, a análise empreendida por Kahn nos dois fragmentos de Simplício, demonstra estreita concordância doxográfica com os fragmentos assinalados por Hipólito, os quais testemunharam a respeito da arché no pensamento de Anaximandro.


De acordo com as investigações levadas a cabo por Kahn nas colunas A e B, onde a primeira reúne fragmentos compilados por Simplício, e a segunda, por Hipólito, o problema parece estar na órbita do pronome demonstrativo neutro – toûto – esse, o qual comparece nos fragmentos de Simplício, mas ausenta-se em Hipólito. “[…] a omissão de ηοῦηο[em Hipólito], e a substituição de θαιέζας por θοκίζας, está claramente como uma lectio difficilior”. Nota-se:


Isso é um antigo e contínuo tema de controvérsias: se a frase πρῶηος ηοῦηο ηοὔλοκα θοκίζας ηῆς ἀρτῆς refere-se à palavra ἀρτή nela mesma, ou se está antecedendo imediatamente ἄπεηρολ. Devemos entender que Anaximandro foi o primeiro a introduzir “este mesmo termo de ἀρτή”, ou “este nome ἄπεηρολ para a ἀρτή”? Ambas as construções podem ser, e têm sido, defendidas.


Kahn, conforme supracitado, evocou a pergunta recorrente nos argumentos de Kirk, Raven e Schofield, a do emprego da palavras ápeiron e arché na cosmologia simétrica de Anaximandro. A ambiguidade na qual está submersa o excerto de Simplício e os argumentos corroboradores das interpretações contrapostas desse fragmento, como notou Kahn, são alguns indícios que demonstram a imortalidade do pensamento de Anaximandro na tradição doxográfica.


Por fim, ao empregar o pronome demonstrativo neutro toûto – esse – a que Teofrasto estaria fazendo remissão: ao ápeiron ou à arché? Conforme observou Kahn “Deve-se admitir que a evidência puramente gramatical determine uma prima facie para o caso da palavra ηὸ ἄπεηρολ”. Igualmente, na coluna B, quando Hipólito mencionou pela primeira vez ápeiron, conforme apontado por Kahn, ele iniciou a sentença com o nominativo masculino oûtos – esse – que é uma sentença equivalente a toûto – esse – recorrente em Simplício. Tais indícios gramaticais, portanto, apontam Simplício e Hipólito dizendo que Anaximandro foi o primeiro a chamar ápeiron a arché. Porém, na opinião de Kahn “tal evidência não pode ser decisiva aqui”.


Por que essa evidência gramatical, segundo Kahn, não resolveu o problema da ambiguidade de interpretação em torno do princípio material na sentença de Simplício e Hipólito? O exame realizado por Kahn, nessa questão, está para além do olhar filológico gramatical pelo qual a doxografia dos textos antigos, sobretudo pré-socráticos, estabeleceu como confiáveis ou canônicos.


O autor, quanto a isso, é conhecedor de que a acessibilidade dos textos antigos é possível graças à filologia, por meio da qual se investigaram os testemunhos dos primeiros milésios. Todavia, a eficácia de tal investigação torna-se questionável, caso o testemunho de outros filósofos e doxógrafos contemporâneos, ou textos que se incluam no mesmo tema sejam descartados como autoridades que permitam outro olhar sobre a questão. Pois:


Tais paralelos poderiam mostrar que ηοὔλοκα ηῆς ἀρτῆς é uma possível referência à palavra ἀρτή, mesmo não sendo a frase a que esperamos. E a ambiguidade em torno dessa expressão é, penso eu, definitivamente resolvida por duas outras passagens em Simplício, as quais mostram que ele mesmo compreendeu isso para referir-se ao termo ἀρτή. A primeira indicação disso está nas palavras que seguem imediatamente: ιέγεη δ‟ αὐηὴλ κήηε ὕδφρ κήηε ἄιιο ηη … εἶλαη, onde αὐηὴλ deixa claro que é a palavra ἀρτή, não ἄπεηρολ, que está predominante na mente de Simplício (e na de Teofrasto, se seu texto estiver fielmente copiado aqui). Além disso, quando Simplício retorna mais tarde à doutrina de Anaximandro, sua sentença é inequívoca: πρῶηος αὐηὸς ἀρτὴλ ὀλοκάζας ηὸ ὐ ὑποτείκελολ.


A opinião de Charles Kahn é a mais razoável diante da questão tratada quanto à arché. Ao contrário do que já foi dito por Kirk, Raven e Schofield supracitados, Kahn se alinhou com Simplício, embora isso não seja unanimidade entre outros autores, considerando que a questão primordial tratada por Teofrasto em todo o fragmento não era o ápeiron, mas a arché.


Ao ilustrar o fragmento 150.23 da Physis, no qual Simplício assinalou como sendo Anaximandro o primeiro filósofo a nomear o substrato dos contrários como arché, Charles Kahn, na esteira de Guthrie recorre a outro escrito no qual Teofrasto, ao que parece, tratou sobre a arché em Anaximandro, sem dar margens para dupla interpretação.


Diante desse problema e da imersão doxográfica nos textos gregos antigos da época, não pretendemos emitir juízos interpretativos extrapolando o que os autores, aqui citados, emitiram ao longo da Historia da Filosofia Antiga.


Realmente, é necessário lembrar que a arché foi, dentre a cosmologia de vários filósofos pré-socráticos, objeto de investigação pelo qual se marcaram seus sistemas filosóficos. Todavia, em se tratando do sistema cosmológico pioneiro de Anaximandro, não apenas a arché, como também, seguramente, o termo ápeiron foram introduzidos por Anaximandro na discussão filosófica.


Coadunando com as investigações efetuadas por Kahn, Guthrie notou que a investigação de Aristóteles em torno da arché e, posteriormente endossada por Teofrasto, era uma prática comum entre os primeiros milésios. Entretanto, o que se deve questionar, é se Aristóteles empregou o termo em seu sistema causal no mesmo sentido utilizado por Anaximandro ao referir-se ao ápeiron e à arché.


Por um lado, se a linha da investigação do elemento primeiro se sustenta no que propôs Aristóteles a respeito da causa material, a noção de arché não será outra senão a própria noção da materialidade. Por outro lado, para além das causas materiais propostas pelo estagirita, a noção de arché em Anaximandro ultrapassa toda a noção de phýsis perpetuada no sistema aristotélico.


Ora, afinal, antes de Aristóteles empreender suas investigações sobre o sistema causal, a cosmologia simétrica pautada pela equidistância da Terra em relação às extremidades do cosmos já havia sido instaurada por Anaximandro. De acordo com o milésio, é de se presumir que, a justa medida da qual a phýsis fazia parte, não admitiria um princípio no qual os elementos se sobrepõem uns aos outros. Assim, nenhum dos elementos contrários ou forças litigantes intrínsecas às phýsis obtém vitória completa ou final. Pelo contrário, em Anaximandro, essas forças da natureza vão se mantendo.


A noção de arché – princípio ilimitado e infinito – seria para Anaximandro uma negação de uma noção material para a composição da phýsis? A resposta, certamente, está envolvida na remota possibilidade de ler Anaximandro sem as lentes com as quais Aristóteles examinou os pré-socráticos.