terça-feira, 2 de maio de 2023

A Phýsis e a Imagem Cósmica


A Phýsis e a Imagem Cósmica a partir do Sistema de Anaximandro

A cautela será, nesta argumentação, a melhor aliada a partir destas primeiras linhas com que esta pesquisa pretende discorrer sobre o tema – phýsis. Tal advertência, porém, não exime as questões tratadas anteriormente de qualquer cuidado e, não as tornam menos importantes no contexto geral deste trabalho. Por se tratar de um conceito aparentemente comum e presente nas disciplinas científicas do século XXI, dentre elas a Física, Física Quântica e, sobretudo a Natureza, tal como se a compreende hoje, esta investigação deverá precaver-se, para não incorrer em equívocos na perspectiva pré-socrática focada na phýsis.


Semelhante àquela advertência na qual Périllié alertou sobre o empobrecimento e disparidade do termo simetria na mentalidade atual em relação àquele que nascera na Grécia no final do século VI a.C., a noção de phýsis, igualmente, reclama por uma análise que não seja anacrônica ou diferente daquela realizada pelos primeiros físicos da Jônia. Assim, a presente análise centrará a investigação a partir do que pensou Anaximandro sobre a phýsis.


Trata-se de um árduo e cuidadoso trabalho, haja vista a relação intrínseca entre o pensamento do milésio e a phýsis nela mesma. Conforme notou Bornheim, a descrição milésia, relativa ao conceito-base de phýsis, não pretendia, em sua gênese, aproximar o homem ou lhe permitir uma experiência com a natureza decorrente de seu amplo conceito, no qual se inscreveu a noção de phýsis no pensamento pré-socrático. Em outras palavras, o autor define o pensamento de Anaximandro sobre a phýsis não como algo externo ou oposto à natureza, mas como pertencente a ela, como elemento de sua própria composição.


A análise de Gerd Bornheim, nesse aspecto, tem a ver com a obra de Périllié acerca da originalidade dos gregos e, sobretudo com o que a posteridade entendeu a partir de tais conceitos puramente gregos. Trata-se, portanto, de uma investigação na qual pensar a phýsis significa versar por onde nenhuma das potências constituintes do cosmos escapam ou se dissociam umas das outras. A imagem cósmica, ilustrada por Anaximandro, correspondeu às exigências da noção de phýsis de seu tempo? Qual era, nesses termos, o núcleo de sua física?


Desde a leitura de Bornheim acerca da phýsis pré-socrática, o presente trabalho notou a cosmologia simétrica e a noção de um princípio imaterial correspondendo sincronicamente com a realidade em que viveu Anaximandro. Porém, com ressalvas.


Por um lado, o sistema de Anaximandro pareceu uma continuidade da investigação veiculada em seu tempo, a saber: toda aquela filosofia primeira na qual a pergunta – “do que o mundo é feito?” – preconizava a investigação natural iniciada por Tales. Por outro lado, Anaximandro transpôs o modo da investigação cosmológica de seu tempo propondo uma theoria até então nova para o quadro mental pré-socrático.


Com efeito, a via através da qual Anaximandro operou sua cosmologia, necessariamente, requereu da imagem cósmica e de seu sistema uma noção homóloga à phýsis e ao que ela representou em seu começo. Frente a isso, Bornheim resumiu o modo com o qual, a partir de Anaximandro, toda investigação sobre a física primeira deveria se precaver para não incorrer em erros contemporâneos:


Posto que a nossa compreensão do conceito de natureza é muito mais estreito e pobre que a grega, o perigo consiste em julgar a phýsis como se os pré-socráticos a compreendessem a partir daquilo que nós hoje entendemos por natureza; neste sentido, se comprometeria o primevo pensamento grego com uma espécie de naturalismo. Em verdade, a phýsis não designa precipuamente aquilo que nós, hoje, compreendemos por natureza, estendendo-se, secundariamente ao extranatural.


O empenho de Bornheim, quanto à investigação da phýsis esboçada no itinerário pré-socrático, demonstrou o quanto a superficialidade da noção atual de naturalismo não coadunou com o que de fato foi descrito pela mentalidade pré-socrática acerca da natureza. A visão do autor, portanto, demonstrou estreita proximidade com a obra de Heidel na qual Anaximandro emerge tratando sobre a phýsis.


Em seu artigo publicado em 1921, William Heidel evocou da cultura grega antiga as possíveis informações concernentes ao livro Da Natureza ou Perì Phýsis, atribuído a Anaximandro. De acordo com as investigações do autor, o conteúdo do livro teria abarcado as questões inerentes à phýsis. Igualmente, a obra, cuja tradição a atribuiu ao milésio, conteria “[…] uma exposição sumária de suas opiniões”.


Dentre a doxografia na qual Heidel fundamentou sua investigação acerca do livro, que em sua opinião teria circulado no mundo antigo, destaca-se a descrição do léxico bizantino do ano 1000 d.C.: “[Anaximandro] Escreveu Da Natureza, Circuito da Terra, Das Estrelas Fixas, Esfera, e algumas outras obras”.


Esses dados bibliográficos fornecidos por Suidas demonstraram o interesse de Anaximandro por uma gama de doutrinas as quais ele teria compilado em seu livro. Embora o conteúdo dessa obra tivesse sido, infelizmente, ocultado na tradição doxográfica, o seu estilo não foi. Quanto ao livro Da Natureza, de Anaximandro, há consenso tradicionalmente de que seria o primeiro tratado escrito em prosa na Grécia antiga, “[…] considerando-se que todo início é sempre modesto”.


Ademais, quanto ao Perì Phýsis de Anaximandro, Heidel o julga definitivamente de autoria do milésio, em que pese a ressalva: “[…] embora não seja claro se devemos a ele ou a Ferécides o crédito de ter escrito o mais antigo tratado grego em prosa”. Para sustentar essa hipótese, Willian Heidel questionou a autenticidade do testemunho de Temístio, que considerou Anaximandro como “o primeiro entre os gregos que conhecemos que se aventurou a publicar um tratado sobre a natureza”. A validade do fragmento, no qual Temístio alude ao Perì Phýsis, merece crédito à medida que o autor atribui a obra a Anaximandro. Quanto ao seu pioneirismo, na escrita em prosa, talvez se aceite como fidedigna a fonte desconhecida de Temístio, caso o autor tivesse a intenção de afirmar que antes de Anaximandro, nenhum outro milésio escreveu em prosa.


A hipótese traçada por Heidel, não abalou o edifício doxográfico construído ao longo da tradição filológica segundo a qual o argumento a favor de Anaximandro foi corroborado. O argumento a favor de Ferécides demonstrou a imparcialidade de uma investigação exaustiva que Heidel fez sabedor de que tal livro teria circulado entre os pré-socráticos contemporâneos de Anaximandro.


O título – Da natureza – não obstante ter sido comum entre os pré-socráticos, não foi uma titulação propriamente jônia. Conforme constatou Heidel, as obras dos primeiros fisiólogos, escritas em prosa ou em verso, não foram intituladas. Entretanto, o seu conteúdo e o nome do autor eram denunciados logo em seu prefácio.


Com efeito, foi a tradição alexandrina que tardiamente intitulou os livros consoante investigação que promoviam. Kirk, Raven e Schofield, acerca dos títulos das obras antigas, demonstraram que a catalogação encetada pelos escritores alexandrinos se relacionava estreitamente com os tratados daqueles que Aristóteles chamou de fisiólogos.


Frente ao itinerário traçado por Heidel quanto à origem do livro de Anaximandro, é, pois, possível ir além e conhecer o conteúdo de seu livro? No caso em questão, primeiramente não bastassem os testemunhos antigos terem chegado à modernidade através da ótica da Filosofia Clássica, sobretudo aristotélica, acresce-se a desvantagem de nenhuma das obras citadas por Suidas ou outro doxógrafo serem contempladas pela doxografia, em sua completude. Esse fato parece desacreditar qualquer delineação quanto ao conteúdo do livro de Anaximandro.


Entretanto, tais dificuldades não podem ser definitivas e refratárias a novas perspectivas, ainda que estejam no âmbito das conjeturas. Por outro lado, houve uma necessidade de busca em outras bases pelas quais a investigação doxográfica dialogou com outros testemunhos antigos cujo tema de investigação estava em voga. Nesse caso, o conteúdo de um livro antigo escrito por um físico jônio. Ao delinear a trajetória rumo à obra de Anaximandro, Heidel adotou alguns critérios assinalados por Bornheim quanto à investigação pré-socrática. Nota-se:


Mas o imenso e inesgotável trabalho de redescoberta, que vem sendo realizado em nossos dias, obrigou a situar os critérios de interpretação em outras bases; podemos mesmo afirmar que o denominador comum das pesquisas contemporâneas consiste em libertar a filosofia dos pré-socráticos da milenar tutela platônico-aristotélica; consiste em tentar elucidá-los escutando o que dizem os próprios fragmentos […]


Ao delinear algumas fontes não peripatéticas, dentre elas o testemunho de Diógenes Laércio atestando Anaximandro como “o primeiro a desenhar os contornos da terra e do mar”; Agatêmero, confirmando o milésio como “o primeiro que ousou desenhar a terra habitada sobre uma tábua” e, por fim, o relato de Estrabão, que coloca Anaximandro em uma seleta lista de geógrafos, Heidel notou que o conteúdo do livro de Anaximandro poderia estar para além de um tratado cosmológico.


O minucioso exame, realizado por Heidel, emergiu um Anaximandro até então desconhecido daquela imagem que a tradição peripatética traçara a respeito dos pré-socráticos. Heidel, portanto, menciona o Da Natureza como um tratado voltado “[…] para um campo mais intimamente ligado à história e geografia”. Assim, Anaximandro teria sido mais geógrafo do que filósofo. É notório que Heidel empreendesse sua investigação embasado nas descobertas arqueológicas onde os mapas das civilizações antigas remontavam aos testemunhos dos primeiros jônios.


Certamente, a arqueologia, aqui, está entre as bases necessárias para uma investigação milésia acerca da phýsis, despida dos interesses da escola aristotélica.


Essas conclusões de Heidel, relativas ao Perí Phýsis de Anaximandro, portanto, suscitaram o interesse da comunidade acadêmica de seu tempo. Os argumentos do autor foram mencionados por Guthrie a fim de avalizar as fontes pelas quais Anaximandro fora elucidado sem o auxílio da tutela peripatética. Na esteira de Heidel, Guthrie evocou, da cosmologia de Anaximandro, um conteúdo não mencionado pelas fontes aristotélicas. De acordo com o autor, no Da Natureza, “O objetivo de Anaximandro era oferecer uma descrição geográfica, etnológica e cultural da terra habitada e como ela veio a ser o que era.


A leitura de Guthrie sobre Heidel, para o qual as informações peripatéticas acerca de Anaximandro não captaram a noção total de sua phýsis, reclama, precipuamente, uma reconstrução e aproximação do que foi a cosmologia de Anaximandro. O método, evidentemente, se estenderia a todos os pré-socráticos anteriores ao período clássico da filosofia antiga. Tanto Guthrie como Heidel, reconhecem que os testemunhos provenientes do jargão aristotélico são partículas, uma migalha de informações duvidosas quanto à obra de Anaximandro.


Todavia, no caso em questão, a trama na qual repousa a investigação do pensamento antigo, notadamente entre os séculos VI e IV a.C., requer alguns cuidados. “Podemos admitir a possibilidade de que Aristóteles e seus seguidores mantivessem silêncio sobre partes do livro que não lhes interessavam; porém, ir demasiadamente longe em direção contrária é transgredir os limites dos testemunhos”.


Cabe sublinhar que as afirmações de Heidel acerca do conteúdo do livro de Anaximandro, obedeceram ao rigor dos critérios adotados por Guthrie. A direção contrária aos interesses de Aristóteles, para a qual Heidel empreendeu sua investigação, resultou em uma imagem até então nova. Imagem na qual Anaximandro compareceu como um geógrafo historiador. Essa análise, levada a cabo por Heidel, não obstante estar limitada pela escassa documentação literária, demonstrou que o interesse de Anaximandro não era por filosofia pura, senão por geografia. Nesse ponto, especificamente, não compartilhamos a opinião do autor. A ótica desta pesquisa, entretanto, se alinha com o que foi atestado pela tradição doxográfica segundo a qual Anaximandro foi o segundo filósofo Milésio.


É, portanto, válido assinalar que o esforço de Heidel, ao emergir um Anaximandro geógrafo em meio à historiografia pré-socrática, teve mérito por tratar-se de uma narrativa desaristotelizada acerca da phýsis, notadamente a partir do que pensou Anaximandro.


Diante dos aspectos apresentados pela doxografia, seja no âmbito da perspectiva aristotélica, ou em outras bases antigas, o problema sobre o conteúdo do livro de Anaximandro ainda persiste. Se aristotélicas ou não, ambas as interpretações refletem diretamente na resposta da pergunta elucidada no capítulo anterior, a saber: se a noção de arché – princípio ilimitado – seria para Anaximandro a negação de uma noção material preexistente na phýsis.


Precipuamente, de acordo com a delineação do presente trabalho sobre os testemunhos quanto ao sistema cosmológico anaximandrino, conclui-se que: em Anaximandro, a noção de arché não se dissocia da noção de phýsis. Este, hipoteticamente, seria o ponto de equilíbrio entre os dois extremos: a doxografia aristotélica, e os outros testemunhos supracitados, nos quais Heidel fundamentou sua argumentação favorável ao Anaximandro historiador e geógrafo.


Ademais, na esteira de Guthrie, esta dissertação entende que a noção de arché, embora seja equivalente à phýsis, em Anaximandro ela está adiante da materialidade na qual Aristóteles empreendera seus esforços, em seu tratado sobre a phýsis. Em suma, parafraseando Guthrie, certamente para Anaximandro a investigação acerca de um princípio não repousava sobre a noção de matéria. Essa noção, desconhecida entre os milésios, designava-se de modo diferente no vocabulário deles, a saber: a natureza, a phýsis.


Com efeito, a imagem cósmica criada por Anaximandro correspondeu estreitamente com a noção de phýsis de seu tempo, pois, nenhum exemplo seguro, que descrevesse a noção de natureza, apareceu dentre os fragmentos anteriores a Heráclito. Certamente, a conclusão a que chegou Guthrie, tem a ver com a possibilidade de uma possível contaminação dos fragmentos antigos por Aristóteles.


Ao propor o distanciamento da imagem cósmica do sistema de Anaximandro daquela cosmologia adotada por Aristóteles, Guthrie, em contrapartida, viu certa familiaridade da noção de phýsis em Anaximandro com a antiga tradição homérica. De acordo com o autor:


É provável que nenhum exemplo seguro desta palavra [natureza] apareça nos escassos fragmentos dos filósofos anteriores a Heráclito, mas em Homero aparece documentada em um sentido semelhante, […] Seu significado mais comum era o da constituição real ou natureza das coisas, incluindo o modo em que agem, embora também, possa significar “nascimento” ou “crescimento”.


Examinando o argumento de Guthrie, nota-se que, não obstante o livro de Anaximandro iniciar a ruptura da escrita em seu estilo poético com a escrita em prosa, também e, sobretudo, evocou algumas noções presentes na mentalidade anterior ao século VI a.C., dentre elas a noção de nascimento e crescimento imbricados com a noção de divino, na qual a phýsis, em sua totalidade, foi concebida pela remota literatura homérica.


O testemunho documentado na poesia homérica, notado por Guthrie, narra o momento em que Mercúrio descreve para Ulisses as características de uma planta. Guthrie, na esteira de Kahn, entendeu que a forma corpórea da planta, no sentido primitivo do termo, significava a phýsis pela a qual os milésios demonstraram interesse. Desse modo, ainda que em Homero a narrativa em voga não seja uma referência direta ao que se entende hoje por nascimento e crescimento, é possível que a noção de phýsis tenha origem em seus poemas.


A hipótese de Kahn e Guthrie, de que a noção de phýsis entre os milésios evocava a da natureza presente na poesia homérica, claramente evidenciou a intenção dos autores em seguir na esteira oposta da phýsis, descrita a partir da escola peripatética. Por um lado, a argumentação do que seria a phýsis, nela mesma, limitou-se frente à escassez de seus registros antigos. Por outro lado, o modo com o qual Aristóteles justificou seu sistema causal, na Metafísica, denunciou que a noção de phýsis entre os milésios estaria para além de suas pretensões concernentes à causa material.


A amplitude do legado do milésio, relativa à phýsis, marcou o século VI a.C. como um divisor de águas entre a concepção homérica do universo e a cosmologia dos primeiros físicos, operada a partir do intelecto. Entretanto, isso não significou que, nela, as nuanças divinas intrínsecas aos poemas de Homero seriam abandonadas. Não foi Anaximandro o filósofo que inaugurou uma investigação cujo núcleo continha a noção de uma matéria inerte. Esse pensamento acerca do princípio do movimento é uma herança aristotélica, conforme notado na Metafísica.


Quando os milésios inauguraram a investigação quanto ao elemento primordial da phýsis, os pressupostos ar, água, terra e fogo, não eram em si, apenas qualidades, mas as próprias potências constitutivas. No entanto, essas potências não eram oriundas de um mundo supranatural, do Olimpo. A explicação do mundo, a partir do pensamento milésio, partiu de uma relação intrínseca com a natureza, interna a ela e ausente de uma coação externa.


Portanto, considerando a análise de Vernant e Guthrie, foi em Anaximandro, especificamente em sua obra – Perì Phýsis – que a cosmologia do VI século a.C. marcará profundamente o modo pelo qual o mundo veio a ser. Seu livro documentou o nascimento da ciência jônica, uma investigação marcada pela geometrização do universo, porém, com a ressonância da tradição religiosa de seu tempo. Conforme notado por Vernant, “É nele [no Perì Phýsis], finalmente, que se encontra expresso, com o maior rigor, o novo esquema cosmológico que marcará de maneira profunda e durável a concepção grega do universo”.


Os ecos da tradição religiosa, na cosmologia de Anaximandro, também foram notados por Cornford. O autor considerou a sua cosmologia como uma retomada filosófica na esteira de uma narrativa poética cosmogônica. A descrição do autor centrou a noção de phýsis de Anaximandro sobre a construção mítica da religião grega. O posicionamento teórico de Cornford, acerca da semelhança entre geração divina e processo natural, foi assimilado por Vernant, que elucidou as vias pelas quais a mentalidade milésia concebeu a noção de phýsis. Vernant resume: “Dos mitos de gênesis os milésios tomam não só uma imagem do universo, mas ainda todo um material conceptual e esquemas explicativos […]”.


Todavia, apesar da correlação cornfordiana entre o teólogo e o filósofo e, sobretudo o que Vernant, ao contrário, assinalou sobre a não continuidade entre mito e filosofia, esta pesquisa entende que a linguagem mítica, presente na explicação de Anaximandro sobre o princípio da phýsis, denuncia uma transposição da mentalidade poética a um espírito científico.


A transposição, portanto, significa que o pensamento de Anaximandro a respeito da imagem cósmica amalgamou harmonicamente, em seu sistema, noções pré-filosóficas presentes no quadro mental mítico que o antecedeu. Transposição não se relaciona com continuidade. Se assim fosse, a cosmologia de Anaximandro seria uma extensão da cosmogonia homérica. Tampouco significa ruptura. Ignorar os significados da mentalidade mitológica significaria romper com o berço do pensamento grego pré-filosófico.


Destarte, conclui-se que a transposição operada por Anaximandro relacionou-se profundamente com a harmonia e a simetria. Ou seja, mesmo havendo disparidades entre o argumento mitológico e o racional, ambos não se desvencilharam, pois, foram constituintes de uma imagem cósmica harmônica, simétrica. Imagem para a qual a noção de divino era homóloga à noção de phýsis entre os milésios.


Pensar a cosmologia de Anaximandro não considerando os limites demarcados pela antiguidade milésia, seria recorrer a um anacronismo típico da modernidade que repousou o pensamento na tradição que o sucedeu. Parafraseando Guthrie, a explicação de Anaximandro sobre a phýsis foi o resultado de sua busca dentro da própria phýsis, não excluindo nenhum elemento de sua constituição.