quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Soberano Príncipe Rosa-Cruz


A Maçonaria Templária

O Rito Escocês (REAA) nos seus graus capitulares, termina com o grau 18, que é denominado Soberano Príncipe Rosa-Cruz, ou Cavaleiro da Rosa-Cruz, como é chamado este grau na Maçonaria do Arco Real. Este grau foi introduzido nos ritos maçónicos pelos “maçons jacobitas”, como eram conhecidos os membros da Grande Loja de Inglaterra, que apoiaram os descendentes da dinastia dos Stuarts na sua pretensão de recuperar o trono inglês, perdido em razão da chamada Revolução Gloriosa. [1]


Os conflitos que dividia  a sociedade inglesa nas questões políticas causaram também a divisão dos maçons, uns apoiando as pretensões stuartistas, outros defendendo os hanoverianos, como eram chamados os partidários do príncipe Guilherme de Orange. Enquanto os hanoverianos se reuniam na chamada Grande Loja, praticando apenas os graus simbólicos (Aprendiz, Companheiro e Mestre) os stuartistas criavam o chamado Rito Escocês Antigo e Aceite (REAA), introduzindo o que hoje conhecemos como Ritos Superiores, que incluem a Loja Capitular, os Graus Filosóficos e os Graus Administrativos.


Através das chamadas Lojas Militares, fundadas pelos stuartistas, as tradições templárias entraram na Maçonaria. Segundo Baigent e Leigh (O Templo e a Loja , Madras, 2006), o Barão Hundt foi o primeiro Maçom a reivindicar a herança templária através do rito que ele fundou, o Rito da Estrita Observância. Este rito, embora seja praticado ainda hoje em diversas Lojas da Alemanha, não conseguiu fazer muitos adeptos e logo foi eclipsado por outros ritos.


Seria, entretanto, este ramo stuartista de Maçonaria que propagaria a Maçonaria de tradição templária pelo mundo e dela sairia, mais tarde, a Maçonaria do Arco Real, que viria a ser a principal denominação maçónica na América do Norte. Esta Maçonaria, fortemente alicerçada em tradições templárias, é aquela praticada nos chamados graus superiores do Rito Escocês, especialmente nos graus filosóficos, ou kadosh, e graus administrativos ou areopagitas.


As três vertentes da Maçonaria moderna

A chamada Maçonaria especulativa é a formula que surgiu da interacção entre as três grandes tradições que sobreviveram da cultura medieval, ou seja, a cavalaria, a tradição hermética e arquitectura. A cavalaria entrou com os motivos éticos e morais que nortearam aquela instituição, ligados principalmente aos exércitos cruzados, com ênfase especial nos cavaleiros templários, os cavaleiros do Hospital de São João de Jerusalém e os cavaleiros teutónicos, estes últimos ligados principalmente aos povos germânicos.


Quanto à arquitectura, é sabido que a base da pratica maçónica assenta sobre a tradição dos pedreiros livres, assim chamados os arquitectos e mestres de obras medievais, responsáveis pela construção dos grandes edifícios que ainda hoje encantam os olhos dos turistas por todo o mundo antigo. Estes profissionais, a par da ciência que praticavam, colocavam na sua profissão um carácter de sacralidade, que fazia dela uma verdadeira arte iniciática. Daí o carácter místico que lhes é atribuído e a profunda identificação com o pensamento que viria, já no século XVI, desembocar na chamada Maçonaria especulativa.


Quanto ao hermetismo, essa tradição foi inserida na prática maçónica através dos pensadores do chamado círculo da Rosa-Cruz. Este círculo abrigava uma plêiade de filósofos e praticantes de alquimia, os quais, em virtude da sua prática e da sua forma de viver e de pensar, eram hostilizados pela Igreja Católica.


Historicamente, sabe-se que a Rosa-Cruz, como instituição organizada, nunca existiu antes do século XX. Como entidade, hoje conhecida mundialmente pelo seu carácter filantrópico, filosófico e humanístico, a Rosa-Cruz (AMORC) foi fundada em 1915, em Nova Iorque. Mas como tradição, dedicada ao estudo e disseminação do pensamento filosófico-místico, ela existe como movimento desde os primórdios do século XVII, quando alguns alquimistas alemães, liderados por Johan Valentin Andreas, lançaram três curiosos manifestos, chamados Fama Fraternitatis, Confessio Fraternitatis e Núpcias Alquímicas de Christian Rozenkreuz, todos assinados por um personagem misterioso personagem chamado Christian Rosenkreuz, provavelmente um pseudónimo utilizado por Andreas, o líder desse movimento.


Estes manifestos reflectiam as questões religiosas e políticas que sacudiam a Europa naquele momento. Era a época da Reforma Protestante e da formação dos estados nacionais, envolvendo intensas disputas dinásticas, que ensanguentavam todo o Velho Continente.


As pesquisas de Serge Hutin e Frances Yates mostram o quanto os pensadores do circulo rosacruciano estivam envolvidos com as questões políticas e religiosas da época. E também com as diversas casas reais da Europa. O próprio Andreas, como apontam essas pesquisas, mantinha uma relação muito estreita com os príncipes alemães do Palatinado e com a família Guise, esta última ligada por laços de casamento à família dos Stuarts, então soberanos da Inglaterra. [2]


A Maçonaria especulativa, como se sabe, tem profundas ligações com os escoceses, desde a época dos Bruces, quando o rei Robert Bruce, ajudado por vários cavaleiros templários, conseguiu libertar a Escócia do domínio da Inglaterra. Foi este rei que fundou a Ordem dos Cavaleiros de Santo André do Cardo, para dar abrigo, na Escócia, aos proscritos cavaleiros templários que estavam sendo perseguidos pela Inquisição, em toda a Europa. Esta Ordem de cavalaria é constantemente lembrada como sendo um dos núcleos da Maçonaria especulativa, da mesma forma que, dois séculos mais tarde, a Royal Society inglesa seria o núcleo inglês da Maçonaria moderna.


A ideia que informa a Maçonaria moderna é, na sua face espiritualista, claramente uma inspiração rosa-cruciana. Foram os pensadores do círculo rosa-cruz que lançaram nos seus manifestos a ideia de “uma transformação no mundo da política e do pensamento”, a qual seria feita através da aplicação dos “segredos” que eles possuíam. Esta transformação traria uma “nova época de liberdade espiritual, na qual a humanidade seria libertada dos grilhões que lhes eram impostos pela Igreja Católica”. [3]


O homem que nasceria deste novo sistema seria um “homem novo”, religioso a sua maneira, mas informado pela verdadeira ciência e educado na filosofia que, naquele momento, estava encantando todos os intelectuais da época: o Iluminismo. Era esse homem “ de gostos morigerados, humor fino, educado nas ciências e nas artes”, como disse o Cavaleiro de Ramsay, que conduziria a humanidade ao seu glorioso destino. [4]


Este pensamento, como vimos, era o pensamento dos rosacrucianos. Foi disseminado em vários trabalhos publicados por notáveis pensadores e famosos alquimistas, que deixaram o seu nome na história. Esta tendência filosófica aparece nos trabalhos de John Milton, Francis Bacon, Marcilio Ficcino, Giordano Bruno, Voltaire, Thomas Morus e outros criadores de utopias políticas e literárias. Está presente também nas obras de diversos alquimistas como Nicolas Flamel, Teofrastro Paracelso, Van Helmont, Blaise Viginére, Françóis Rabelais  e outros. [5]


Na Maçonaria moderna a influência Rosa-Cruz aparece principalmente no grau 18 do Rito Escocês, denominado Soberano Príncipe da Rosa-Cruz, também conhecido como o Cavaleiro do Pelicano e Cavaleiro da Águia Branca, títulos esses que evocam as duas principais tradições que são contempladas neste grau, ou seja, a alquimia, simbolizada nas alegorias da procura da Palavra Perdida, o  Mito da Fénix e a Lenda do Pelicano, e as alusões aos princípios defendidos pela instituição da cavalaria.


O Mito da Fénix

No moderno ritual do Rito Escocês Antigo e Aceito, o Mito da Fénix é uma alegoria que aparece no grau dezoito, consagrado ao Cavaleiro da Rosa-Cruz. Por se tratar de uma alegoria essencialmente alquímica, ela integra a tradição hermética da morte ritual do adepto e do seu renascimento em outro nível de consciência. Isto era o que os alquimistas acreditavam poder fazer com o material trabalhado nos seus laboratórios, “matando” a sua estrutura de metal comum (chumbo, estanho) e “ressuscitando-o com a estrutura de um metal nobre (ouro, prata). E se assim era com os metais, isto também poderia ser feito com os seus próprios espíritos.


No ritual do grau 18, diz-se que o recipiendário “perdido nas trevas, na encruzilhada dos caminhos, perto do total abatimento e da morte, ouve uma voz misteriosa saída do fundo da sua alma”. (palavras do ritual do grau). É nesse momento que ele reencontra a Palavra Perdida, oculta sobre as asas da Fénix, no instante em que ela renasce das cinzas. A Palavra Perdida, aqui é chave do segredo do renascimento espiritual e a Fénix é o seu próprio espírito que se renova por conta dessa iniciação. E ele sente como se “um sopro o penetrasse, no momento em que murmura, afastando-se, a Palavra que para ele é a revelação de uma nova Luz.” E dali ele sai reanimado, renovado, porque agora sabe que a Palavra Perdida significa “ Igne Natura Renovatur Integra”. [6]


Ou seja, a natureza inteira renova-se pelo fogo, e essas palavras correspondem justamente às iniciais apostas sobre a cruz de Cristo (INRI). É nesse instante que ele tem a revelação final e fundamental do mistério contido na Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, ou seja, o verdadeiro significado desse mistério magno da cristandade.


Aqui se revela a tradição alquímica sendo aplicada no seu mais inspirado fundamento, ou seja, a de que a natureza produz a vida tirando-a da morte, da mesma forma que Deus fez o mundo tirando a luz das trevas e da mesma forma que Cristo, morto na cruz e ressuscitado ao terceiro dia significa a redenção para toda a humanidade. Assim, para que a vida se renove, é preciso a morte ritual do recipiendário, da mesma forma que a semente que dá vida precisa ser lançada à terra, para que, do fundo das trevas, fecundada pela água e pelo calor do sol, ela reviva e inicie a sua jornada em busca da luz.


Na Maçonaria o Mito da Fénix é invocado em toda a sua beleza iniciática para mostrar ao iniciado que natureza que se renova em toda a sua integridade, pela acção do fogo, que  aqui significa tanto o trabalho do alquimista no seu forno, cozendo e recozendo o material da Obra, quanto o baptismo cristão, conforme preconizado por João Batista, ou a ritualística iniciática. [7]


Todas são analogias que simbolizam a prática da doutrina renovadora da Maçonaria. E a Rosa Mística, centralizada no ponto de encontro dos braços da cruz é exactamente esse ponto crucial do universo, ou da alma humana, onde a Palavra Perdida é recuperada e faz nascer, da própria morte, a vida renovada. Aqui, a mística do ensinamento iniciático se alia à poesia para dizer ao espírito humano que existe uma esperança de vida, mesmo na mais sombria e aterradora das situações, que é a própria morte.


A tradição Rosa-Cruz diz que a luz do mundo morre e renasce no centro de uma cruz. Esta morte e renascimento eram comemorados pelos cavaleiros cruzados nas vésperas das sextas-feiras santas, em cerimónias que evocavam a última ceia de Cristo com os seus apóstolos, ocasião em que dividiam um carneiro. Neste significativo ritual promovia-se, não só uma evocação à Páscoa hebraica, mas também o retorno do sol no equinócio da Primavera, ocasião em que a natureza morta pela acção do Inverno, recomeça um novo ciclo. Esta era uma antiga tradição observada pelos gregos e egípcios por ocasião da celebração dos seus famosos “Mistérios”. Incorporada aos ritos templários, este mito foi cristianizado para simbolizar os próprios mistérios cristãos. E assim, Jesus, o Cristo, ressuscitado no terceiro dia após a sua morte, era a própria Fénix, que para a humanidade toda trazia a promessa da ressurreição. E por analogia, essa ressurreição aplicava-se ao iniciado Maçom após a sua elevação ao grau de Cavaleiro Rosa-Cruz.


A lenda do Pelicano

A Lenda do Pelicano é outra contribuição da tradição alquímica, trazida para a Maçonaria pelos rosa-crucianos. Conta uma lenda medieval que um pelicano saiu do seu ninho em busca de comida para os seus recém-nascidos filhotes. Não notou que por perto se escondia um predador, só esperando a sua ausência para atacar o ninho.


Mal o pássaro desapareceu no horizonte, o danado atacou os coitadinhos, que ainda não tinham aprendido a voar e nem a se defender.


O predador devorou a todos, só deixando como sobra as pequeninas ossadas com as penas que mal começavam a despontar.


Quando o papai pelicano voltou ao ninho viu a tragédia que ocorrera. Atirando-se sobre os corpos dos filhos chorou horas e horas, até que as suas lágrimas secaram.


Sem mais lágrimas para chorar pelos filhos mortos, começou a bicar o próprio peito, fazendo verter sobre o corpo dos pequeninos o sangue que jorrava dos ferimentos que ele mesmo provocara com aquela mutilação.


No seu desespero não percebeu que as gotas do seu sangue, pouco a pouco iam reconstituindo a vida dos seus filhos mortos. E assim, com o sangue do seu sacrifício e as provas do seu amor, a sua família ressuscitou. [8]


Provavelmente foi a partir desta lenda que o pelicano se tornou um símbolo de amor e sacrifício. Durante a Idade Média eram vários os contos e tradições em que esse pássaro aparecia como representação da piedade, do sacrifício e da dedicação à família e ao grupo ao qual se pertencia. Esta terá sido também, a razão de os cátaros, os Rosa-Cruzes, os alquimistas e outros grupos de orientação mística o terem adoptado nas suas simbologias.


Para os alquimistas o pelicano era um símbolo da regeneração. Alguns operadores alquímicos chegaram inclusive a fabricar os seus atanores – vasos em que concentravam a matéria prima da Obra – com capitéis que imitavam um pelicano com as suas asas abertas. Tratava-se de captar, pela imitação iconográfica, a mesma mágica operatória que a ave possuía, ou seja, aquela capaz de regenerar, com o seu próprio sangue, os filhotes mortos.


Os Rosa-Cruzes, na sua origem, na sua maioria eram alquimistas. Daí o facto de terem adoptado o pelicano como símbolo da capacidade de regeneração química da matéria não é estranho. E é compreensível também que nas suas imaginosas alegorias eles tenham associado esta simbologia com aquela referente ao sacrifício de Cristo, cujo sangue derramado sobre a cruz era tido como instrumento de regeneração dos espíritos, medida essa, necessária para a salvação da humanidade. Daí o pelicano se tornar também um símbolo cristão, representativo das virtudes rectificadoras do cristianismo, da mesma forma que a Rosa Mística e a Fénix que renasce das cinzas


A Maçonaria adoptou a lenda do pelicano por influência das tradições Rosa-Cruzes que o seu ritual incorporou. Por isso é que encontraremos, no grau 18, grau Rosa-Cruz por excelência, o pelicano como um dos seus símbolos fundamentais. O próprio título designativo desse grau é o  de Cavaleiro do Pelicano ou Cavaleiro Rosa-Cruz.


O simbolismo do pelicano é uma alegoria que integra, ao mesmo tempo, a beleza poética da lenda, o apelo emocional do mistério alquímico e o romanticismo do sacrifício feito em nome do amor. Pois tanto o Cristo quanto a natureza amorosa vertem o seu sangue para que os seus filhos possam sobreviver.


Eis aí, em toda a sua beleza simbólica, o conteúdo místico-filosófico do Grau 18, o Cavaleiro da Rosa-Cruz. Que os Irmãos possam apreciar este simbolismo com todo o fervor do seu espírito.


João Anatalino Rodrigues


Notas

[1] Guerra entre a dinastia Stuart e o Parlamento, que resultou na deposição e execução do Rei Charles I. A Revolução Gloriosa reconstituiu a monarquia inglesa, com o Parlamento oferecendo a coroa ao Príncipe Guilherme de Orange, da  Holanda.


[2] Frances Yates – O Iluminismo Rosa Cruz – Cultrix, 1967. Ver também João Anatalino, Conhecendo a Arte Real – Madras, 2006.


[3] Fama e Fraternitates, citado por Frances Iates op. citado.


[4] André Michel de Ramsay (1686 – 1743) foi um dos fundadores da Maçonaria moderna. É conhecido pelo seu famoso discurso no qual ele define a Maçonaria como “uma grande republica, disseminada pelo mundo inteiro, informada pelo princípio da ética, da moral, pela prática das ciências e das artes, e constituída por homens de gosto refinado e costumes morigerados. Sua origem seria, segundo informa, a interacção ocorrida na época das cruzadas entre os profissionais da construção e os Cavaleiros do Hospital de São João, razão pela qual as lojas maçónicas se chamavam Lojas de São João. Ver, a este respeito, a nossa obra “Conhecendo a Arte Real, citada. Ver também Jean Palou – Maçonaria Simbólica e Iniciática – Ed. Pensamento, 1986


[5] Conhecendo a Arte Real, citado. O Iluminismo Rosa-Cruz, citado.


[6] Cf. o Ritual do Grau


[7] “Eu na verdade, vos baptizo em água. Mas ele vos baptizará no Espírito Santo e no fogo“. João, 3:17


[8] João Anatalino – Mestres do Universo, Biblioteca 24×7-2011