Templum é com certeza a delimitação “espacial simbólica” que move a humanidade desde os primórdios do seu pensar sagrado e esta delimitação possui a sua significação dentro de uma constelação própria de mitos que a alimenta e que define a sua estrutura. Aqui aterer-nos-emos ao mito de Hiram Abiff, que na Torá escreve-se com um heith (n) e não com um hê (n), de modo que a transliteração correcta é Chiram, que se pronuncia Riram.
Neste trabalho tentaremos perceber a senda simbólica do personagem acima citado, propondo-se a uma análise do seu mito e da influência que terá no rito de iniciação ao terceiro grau da “Maçonaria Simbólica”, para o qual é indispensável conhecer a narrativa da construção do primeiro Templo de Jerusalém (975 a.C.), sob o governo do rei Salomão.
Utilizando-se de uma hermenêutica simbólica, colocaremos em evidência as diversas matizes que tornam o mito o ponto culminante da maçonaria simbólica, bem como tentaremos perceber como se processa a ressignificação do personagem, uma vez que nos textos Hiram tem a função de fundidor, metalúrgico, mas nos ritos maçónicos ele é identificado com o tipo ideal do construtor, passando por uma nova significação que toma “cores” ilustrativas de elevados padrões morais.
Para esta hermenêutica alicerçar-nos-emos em três princípios: rito, mistério e iniciação.
Na construção destes três conceitos traçaremos a constelação em torno deste Imaginário, dando voz ao mito e também ao grupo social onde Hiram é o protótipo do “maçon” ideal.
Sobre rito, Barzán, dir-nos-á:
A palavra deriva do latim ritus, cujo equivalente em grego é thesmós (em dórico tehmós) e cujo significado no plural é: “tradições ancestrais, regras, ritos”… o rito carrega de sacralidade, ou seja, de vitalidade renovada e de energia, o tempo, o espaço e a casualidade empírica. Estas três condições da existência sensível possuem uma disposição que lhe é inerente para a mudança, a dispersão e a dissolução. (BARZAN, 2002, p. 50)
O rito como um ritmo básico permite que o tempo saia da sua linearidade e assuma uma forma espiralada de manifestação, onde cada volta encontra-se num patamar superior de significados, o tempo torna-se cíclico e a mudança, a dispersão e dissolução, numa certa medida, perdem as suas forças.
Os mistérios realizam a mesma finalidade em toda a sua extensão: “Imitam a natureza do divino, que rejeita a percepção directa”. Na realidade, permitem ao iniciado experimentar o segredo que se oculta nas formas e mudanças do cosmo. Sob os véus das celebrações mistéricas (acções, utensílios, mitos e discursos sagrados [hierós logos], a primeira coisa que salta à vista é a vida inesgotável da natureza e a sua circulação universal. (BARZÁN, 2002, p. 118)
A iniciação ao terceiro grau da maçonaria simbólica está fundada no mito de Hiram e o seu rito visa principalmente confrontar o iniciando com a angústia que o tolhe, quando colocado diante da finitude da vida. É uma morte simbólica, para um renascimento moral e social.
No mito, Hiram é morto por três companheiros que desejosos de adquirir a palavra de passe (senha) do grau de mestre – chave do conhecimento e do trabalho desta categoria, note-se que querem o “título” sem esforço, interpelaram-no violentamente, que não lha revelou. Frustrados no seu intento, eles o mataram e ocultaram o cadáver, que depois foi descoberto e colocado em sepultura adequada. Observemos que nesta narrativa há um elemento muito interessante: Hiram leva para o túmulo a palavra de passe; há uma descida do conhecimento ao mundo inferior. Outro ponto é que Hiram morre como “construtor”, mas o seu renascimento é como “arquétipo” moral.
Há diferentes nomes para os três maus companheiros, dentre os quais Boucher (2012) destaca:
Jubelas, Jubelos, Jubelum;
Giblon, Giblas, Giblos;
Habbhen, Schterke, Austersfurth; e
Abiram, Romvel, Gravelot,
Os criminosos fugiram, mas foram presos e condenados à morte.
É sobre a origem desta lenda, como toda a sua gama de imbricações que nos dedicaremos nas páginas a seguir.
Percepção imagética de Hiram e a Maçonaria Simbólica
Remontando a sua actual estrutura a 1717 – data da criação da Grande Loja de Londres – a maçonaria alega ser uma instituição essencialmente filosófica, filantrópica, educativa e progressista, que tem os seguintes princípios: a liberdade dos indivíduos e dos grupos humanos; a igualdade de direitos e obrigações dos seres e grupos sem distinção de raça, credo ou nacionalidade; a fraternidade universal, pois somos todos filhos do mesmo Criador (GOB, 2013).
A maçonaria moderna fixa o seu lema como “Ciência – Justiça – Trabalho”: ciência, para esclarecer e elevar os espíritos; justiça, para equilibrar as relações humanas; trabalho, por meio do qual os homens e mulheres se dignificam e alcançam a sua independência financeira.
São seus objectivos a investigação da verdade, o exame da moral e a prática das virtudes e embora não seja uma religião, é religiosa, vez que reconhece a existência de um único princípio criador, supremo e infinito, que denomina Grande Arquitecto do Universo, denominação que remonta a 1572, quando foi empregada por Philibert Delorme no seu tratado de arquitectura (REBISSE, 1998).
Dentre os postulados universais da maçonaria, interessante a este trabalho destacar (GOB, 2013):
a existência de um princípio criador, o Grande Arquitecto do Universo;
a divisão da maçonaria simbólica em três graus (aprendiz, companheiro e mestre);
a lenda do terceiro grau (lenda de Hiram) e a sua incorporação aos rituais;
a exclusiva iniciação de homens; e
a proibição de discussão ou controvérsia sobre matéria político-partidária, religiosa e racial, dentro dos templos ou fora deles, em seu nome.
Seus membros são denominados maçons e os candidatos devem submeter-se a um ritual de iniciação, pautada por mistérios que junto com os postulados morais lançam os alicerces dos pilares que sustentam a abordada da própria instituição.
Comumente a maçonaria é referida como uma sociedade secreta mas OLIVEIRA (2012, p. 1) afirma que: “[…] a Maçonaria não é uma entidade secreta. Os seus membros guardam sob sigilo apenas os sinais, toques e palavras utilizados para se reconheceram. A história e a finalidade da Ordem devem ser exaustivamente divulgadas.”
Nesta linha, não serão revelados detalhes dos rituais, de maneira que as informações aqui divulgadas não são do tipo que ferem os compromissos assumidos por maçons.
É esta discrição que faz a maçonaria permear o imaginário tanto dos seus membros como dos “profanos”, termo utilizado para definir os não iniciados nos seus mistérios. Nesta pertença, ser maçon implica numa série de discursos que possuem as suas origens em mitos que se perderam nas brumas do tempo.
Qual a relevância de um manipulador dos minerais, deste “alquimista”? Eliade traz-nos alguns pontos que achamos importantes.
Las sustancias minerales participaban del carácter sagrado de La Madre Tierra. No tardamos en encontrarnos con la idea de que los minerales «crecen» en el vientre de la Tierra, ni más ni menos que si fueran embriones. La metalurgia adquiere de este modo un carácter obstétrico. El minero y el metalúrgico intervienen en el proceso de la embriología subterránea, precipitan el ritmo de crecimiento de lós minerales, colaboran en la obra de la Naturaleza, la ayudan a «parir más pronto». En resumen: el hombre, mediante sus técnicas, va sustituyendo al Tiempo, su trabajo va reemplazando la obra del Tiempo. (ELIADE, 1974. p. 4)
Hiram a priori caracteriza-se como este interventor na embriologia subterrânea, a qual se opera entrando no subsolo.
Do ponto de vista iniciático, esta descida ao interior é tradicionalmente representada pelo acróstico VITRIOL, assim decomposto por Chevalier: “Visita interiorem terrae rectificando invenies operae lapidem, ou seja, segundo Jean Sevier, Desce às entranhas da terra, destilando, encontrarás a pedra da obra.” (CHEVALIER/GHEERBRANT, 2009. p. 982).
Hiram, pela sua pertença profissional e também pelas circunstancias da sua morte, num primeiro momento pode ser identificado com uma estrutura catamórfica [1] da imagem, por evocar a descida ao subterrâneo para a manipulação dos minerais e também pela morte, que é uma queda.
O profundo simbolismo de Hiram e os antigos mistérios
Hiram é o mestre artífice, ícone do terceiro grau e possui uma tamanha importância que está presente em todos os ritos, intocável na sua essência, a despeito das alterações que o sistema em geral possa ter sofrido ao longo dos tempos.
Qual a importância e o significado dessa lenda e por que ela se tornou indissociável da maçonaria?
Para responder a estas perguntas satisfatoriamente, retornemos aos mitos e às consequentes práticas iniciáticas de povos antigos, que os “maçonólogos” (nome pelo qual os maçons identificam os estudiosos da ordem) apontam como influências para o surgir da lenda de Hiram.
Sobre o significado da iniciação, Eliade fornece-nos o mais plural e ainda assim, completo possível, a saber:
Compreende-se geralmente por iniciação um conjunto de ritos e de ensinamentos orais que persegue a modificação radical do estatuto religioso e social do sujeito a iniciar. Filosoficamente falando, a iniciação equivale a uma mutação ontológica do regime existencial. No final das suas provas, o neófito goza de outra existência que a anterior à iniciação: torna-se um outro. (apud SAMY, 2008, p. 17)
E afirma ainda que a iniciação:
[…] introduz o neófito na comunidade humana e no mundo dos valores espirituais. Aprende comportamentos, técnicas e instituições dos adultos, como também mitos e tradições sagradas da tribo, nomes dos deuses e a história das suas obras; aprende, sobretudo, as relações místicas entre a tribo e os Seres sobrenaturais assim como foram estabelecidas na origem dos tempos. (apud SAMY, 2008, p. 17)
Definido o ponto de vista sobre o qual analisaremos o termo iniciação, devemos ter em mente que nos tempos antigos elas eram realizadas nas “escolas de mistérios”, nas quais o estudo das “forças superiores” era dividido entre mistérios menores e mistérios maiores.
Nos mistérios menores, o candidato, após prestar juramento administrado pelo mistagogo, recebia uma instrução preparatória, sendo alçado à condição de miste, iniciado.
E nos grandes mistérios, o conhecimento completo das verdades tratadas na iniciação era finalmente comunicado e dentre as várias cerimónias existentes, pode-se elencar como práticas semelhantes às da maçonaria especulativa: o afanismo (do grego; “destruição”, “morte”), desaparecimento ou morte (simbólica) do iniciado; o pasto, cama, caixão ou túmulo; a eurese (“descoberta,”, “invenção”), encontro do cadáver; e a autopsia, comunicação de todos os segredos e conhecimento integral, que tornavam o outrora profano num epopta, “testemunha ocular”, pois agora nada mais lhe era desconhecido (MACKEY, 2008, vol. I).
Este processo de autodescoberta recorre a arquétipos profundos, a um imaginário que unirá pessoa de diferentes credos, culturas e classes sociais, que se reconhecerão através de toques, palavras de passe e sinais.
Debrucemo-nos então sobre alguns mitos antigos que possuem relação com o de Hiram.
Comecemos então pelo mais elaborado e influente mito egípcio, o de Osíris, cujos mistérios eram representados no Lago de Sais e a origem remonta ao século XV a.C. ou alhures.
O deus Osíris, esposo de Ísis, foi morto e esquartejado por Seth, o seu irmão, e os restos do cadáver, lançados no Nilo, espalhando-se pela terra. Todavia, Ísis diligentemente procurou e recolheu as partes do corpo, com excepção do falo, segundo algumas versões.
Postumamente, Ísis concebeu Horus, que enfrentou e venceu Seth e completou o processo de ressurreição do pai. Tal mito ergue-se como parte essencial do imaginário egípcio sobre realeza e sucessão dinástica, sobre o conflito entre a ordem e o caos, e sobre a morte e a vitória sobre a morte pela imortalidade da alma.
Nas iniciações aos mistérios de Osíris, o candidato era submetido à repetição figurativa do conflito e morte de Osíris e da sua ressurreição, tornando-se apto a compreender a doutrina secreta daquele povo.
Ao longo dos séculos, em lugares e culturas diferentes foram encontrados mitos e iniciações semelhantes. Apuleio descreve minuciosamente a sua iniciação aos mistérios de Ísis: “Eu aproximei-me dos confins da morte, e ao pisar na soleira de Proserpina, eu voltei de lá, renascido por todos os elementos. À meia-noite eu vi o sol a brilhar com a sua luz radiante; senti a presença dos deuses abaixo e dos deuses do céu, aproximei-me deles e os adorei.” (MACKEY, 2008, vol. II, p. 62).
Na Fenícia, cultuava-se Adónis, filho de Cíniras, rei de Ciro, amante favorito de Vénus. Segundo o mito, ele foi morto por um porco do mato e ressuscitado por Prosérpina. Segundo Mackey (2008, vol. I), enquanto os filósofos o erigiram à condição de alegoria do sol, que se alterna entre presente e ausente sobre a terra, os iniciados aos mistérios entendiam a sua descida ao Hades e posterior retorno como tipo de imortalidade da alma.
De nosso interesse, destacou-se na Grécia, Roma, Síria e Ásia Menor os mistérios dionisíacos, que nas regiões ocidentais envolviam agentes tóxicos, geralmente vinho, para induzir transes. O Culto de Dioniso assentava em rituais que recontavam o seu assassinato pelos titãs, tendo por tema a morte e o renascimento.
Em todo este mito temos os mesmos Mitemas recorrentes, a morte por forças tenebrosas, a ressurreição como forma de vencer morte.
Sobre a iniciação aos mistérios dionisíacos diz-nos Mackey (2008, vol. I, p. 36):
Depois de várias cerimónias preparatórias, com o intuito de evocar toda a sua coragem e força, o afanismo ou morte mística de Dionísio também era exibido no cerimonial, onde os gritos e lamentações dos iniciados, com o confinamento ou enterro do candidato no pasto, cama ou caixão, constituem a primeira parte do ritual de iniciação. Daí começava a busca de Reia pelos restos mortais de Dionísio, que continuava entre cenas da maior confusão e tumulto, até, por fim, com o sucesso da busca, ver o lamento transformar-se em alegria, a luz suceder à escuridão, e o candidato tomar posse do conhecimento da doutrina secreta dos Mistérios – a crença na existência de um deus e um estado futuro de recompensa e punições.
Por oportuno, devemos lembrar que além de Hiram de Tiro e Hiram, o fundidor, a Bíblia cita dois outros personagens com este nome: Hiram, chefe de tribo (Gn 26, 40-43 e I Cr 1, 52-54); e Adoniram, filho de Abda, chefe de corveias (I Rs 15, ).
Sobre a arte da fundição no mundo antigo, Eliade (apud SAMY, 2000) cita a projecção sexual que o homem primitivo constituiu em torno das mais diversas ocupações, a exemplo do enxerto na agricultura, ou da fusão dos metais (como a liga de bronze), ou da associação das minas e cavernas ao útero da mãe terra. De acordo com ele, o vocábulo egípcio bi significa útero e galeria de mina, de maneira que tudo o que está no útero da terra se encontra em estado de gestação e demanda técnica iniciática própria para ser de lá retirado.
Eliade também mostrará a íntima associação entre guerreiros, ferreiros e mestres iniciadores, lembrando ainda que na Grécia arcaica, “certos grupos de personagens míticas constituem confrarias secretas, relacionadas aos mistérios, e guildas de trabalhadores de metais.” (apud SAMY, 2000, p. 83).
Por oportuno, recorde-se então que a palavra usada para designar os mestres maçons (operativos, pedreiros) do primeiro templo é menatzchim, do verbo natzach, que significa também “estar completo” e “ser aperfeiçoado”. Neste sentido, de acordo com
Christie (apud Mackey, vol. I, p. 71), os mistérios “eram denominados τελεται, perfeições, porque se supunha que induziam à perfeição da vida. Aqueles que eram purificados por eles eram intitulados τελονμενοι e τετελεσμενοι, ou seja, “trazidos à perfeição”.
O surgir da lenda de Hiram na maçonaria: O terceiro grau
A lenda de Hiram é posterior ao surgir da moderna maçonaria [2].
Na Inglaterra, a primeira menção ao terceiro grau dá-se em 12 de Abril de 1725, nas actas da Philo-Musicae et Architetura Societas, uma sociedade de músicos londrinos, enquanto na maçonaria regular seria mencionado em 1727, nas actas da Loja Swan and Rummer (GUILHERME, 2012).
Na narrativa da história da maçonaria contida na primeira edição das “Constituições dos Franco-Maçons”, de 1723, James Anderson não faz qualquer menção à lenda de Hiram Abiff, o que ocorrerá na segunda edição, datada de 1738, a saber:
Isto [o templo] foi finalizado no curto espaço de tempo de sete anos e seis meses, para o assombro de todos; quando a cumeeira foi celebrada pela fraternidade com grande alegria. Mas a alegria foi logo interrompida pela morte repentina do seu grande querido mestre, Hiram Abiff, o qual foi dignamente enterrado na Loja próxima ao templo, de acordo com o costume antigo. (apud MACKEY, vol. II, p. 60)
Para Anderson, Hiram era o maçon (operativo, construtor) “mais completo sobre a terra” e acreditava ainda:
[…] que a maçonaria esteve sob os imediatos cuidados e direcção do Céu, quando os nobres e os Sábios consideravam uma honra auxiliar a Mestres hábeis e a Artesãos e quando o Templo do Verdadeiro Deus tornou-se, para os Viandantes, a Maravilha por meio da qual, como o Modelo mais perfeito, rectificaram, no seu retorno, a arquitectura dos seus próprios países (apud SAMY, 2000, p. 79).
Todavia, o surgir da lenda de Hiram causou reacções as mais diversas. Vejamos as especulações de Cooper (2011, p. 142) a respeito da inicial rejeição dela pelas lojas escocesas, muito embora o terceiro grau viesse a ser adoptado pela Grande Loja da Escócia em 1800:
Antes da existência do 3° Grau ou Grau de Mestre Maçon, o Grau “mais alto” era o de Companheiro – e essa era uma cerimónia de pedreiros. Essa era uma cerimónia que numerosos não pedreiros tinham experimentado ao se tornarem membros das Lojas [os chamados maçons aceitos]. É possível imaginar os pensamentos e as reacções desses homens ao saberem do novo Grau de Mestre Maçon pelo qual eles, Companheiros, estavam sendo designados como vilões. Para piorar a situação os Companheiros de Ofício (pedreiros0 não eram vilões comuns, mas sim assassinos que cometiam os crimes maçónicos mais hediondos – o cruel assassinato do primeiro Grão-Mestre. Portanto, não é surpresa o facto de que poucas Lojas de pedreiros escoceses quisessem fazer parte do novo “sistema” maçónico ou da Grande Loja que os retractava como assassinos!
E o mesmo autor informa que lojas escocesas de maçons especulativos adoptaram prontamente o grau de mestre, enquanto muitas “lojas de pedreiros” (maçons operativos) não o fizeram porque: “[…] o terceiro grau somente veio a existir a partir dos anos 1720. Tratava-se de um produto da Maçonaria estabelecida em Londres, em 1717. As Lojas da Escócia que existiam antes desta data não tinham experiência na nova cerimónia.” (COOPER, 2011, p. 132) Na verdade, o lapso temporal entre a criação do novo grau e o seu surgir na Escócia permitiu “que até mesmo as Lojas que faziam parte da Grande Loja não conheciam o 3° Grau ou, pelo menos, não sabiam como conferi-lo.” (COOPER, 2011, p. 133).
Todavia, há quem afirme que na Irlanda o sistema de três graus já existia antes da sua adopção oficial em Londres, a exemplo de Robert Bashford, que informa que a sua adopção pelos irlandeses remonta a 1711 (GUILHERME, 2012).
Para David Murray Lyon, o terceiro grau na maçonaria inglesa deve-se a John Theophilus Desaguliers, responsável pela contratação de Anderson para a produção do texto das Constituições.
Para Richard Sandbach, em “Talks for Lodge and Chapter”, a elaboração do terceiro grau serviu para descristianizar e distanciar a maçonaria especulativa do seu vínculo originário com a destronada dinastia Stuart e aproximá-la dos Hannover, detentores da coroa inglesa até hoje (GUILHERME, 2012).
Viu-se anteriormente que Hiram iniciaria artesãos ao ofício dentro de padrões rígidos, desde que comprovada a capacidade para o exercício do mister, lembrando que à época a entrada no mercado de trabalho exigia além de habilidade, o ingresso em alguma guilda (corporação), requisitos olvidados na lenda da maçonaria especulativa.
É óbvio que não se alcançaria a ascensão profissional naquela distante época simplesmente tomando-se uma senha (palavra de passe, palavra de mestre) e os operários de então sabiam que a transposição para um grau mais elevado exigia uma ritualística própria. E ainda que o acesso a tal senha antes do tempo dotasse alguém de regalias indevidas, bastava Hiram Abiff ter-lhes dado uma palavra falsa; se existisse uma verdadeira, certamente os mestres construtores deveriam contar com treino adequado contra usurpadores de cargos, ficando claro que o relato sobre transmissão de senha naquele contexto histórico não possui qualquer fundamentação, nem mesmo lógica.
A inserção da lenda de Hiram nos rituais maçónicos em desacordo com os padrões iniciáticos dos trabalhadores daquele período é prova inequívoca da sua elaboração em data recente, a saber, no século XVIII, para enfatizar a importância do grau de mestre maçon, recentemente adoptado pela Grande Loja de Londres e para resgatar tradições iniciáticas dos povos antigos.
O mito de Hiram insere-se numa postura simbólica idêntica ao protótipo do “Cristo”, que assume o discurso fundante deste rito e também de outros ritos.
Nos rituais em geral, os três assassinos de Hiram Abiff representam a ignorância, o fanatismo e a ambição, o que, para Boucher (2012), transforma a lenda de Hiram numa alegoria moral, quando, para ele, os maus companheiros libertam o iniciado dos três planos do mundo profano (material, psíquico e mental) e permitem-lhe ressuscitar no plano divino, como um verdadeiro mestre.
Conclusão
Hiram assim como outros “mitos fundadores e civilizadores” permanecem num imaginário profundamente arraigado no pensamento do esoterismo ocidental, onde alquimia, mistérios iniciáticos antigos, guildas de construtores caminham lado a lado, produzindo uma troca simbólica, onde o fundidor que se tornar o arquiteto-mór do templo de Salomão, carrega em si significados que se misturam com mitos como o de Osíris e Adónis.
O mito de Hiram numa leitura pautada por Durand (2002), encaixa-se a princípio com o regime diurno, mas quando considerada toda a trajectória antropológica, descobrimos que os símbolos conduzem a nossa análise para uma aproximação com o regime nocturno, onde predominam atitudes cíclicas de intimidade e de inversão da imagem.
A descida ao interior da terra assemelha-se a uma decida ao interior da psique humana; o trabalho para com a pedra bruta é uma alegoria para a busca pela pedra da obra, na qual o artífice é também ao mesmo tempo, a própria pedra.
No regime nocturno, caracterizado pelo aspecto uterino da imagem, há um acolhimento, uma protecção, um “acto” de intimidade. É na morte que Hiram trava contacto com os minerais que ele ajudava a transmutar; é também neste momento que o seu mito se firma, não como o herói guerreiro de gládio em punho, mas como o herói que se doa em sacrifício.
Pelo mito de Hiram entenda-se então que o iniciando deve descer aos “mundos inferiores”, num acto de morte simbólica, de onde renascerá como um novo homem.
Ele também pode ser caracterizado como um símbolo de inversão, pois as imagens que a priori podem parecer diarécticas e antitéticas, trazem na sua profundidade elementos de uma resignificação cíclica.
O mito no seu caminho próprio utiliza-se do rito para refundar o mistério, e isto torna-se evidente a cada iniciação realizada.
Hiram com toda a sua ritualística e simbolismo é um personagem que se situa num tempo além do tempo, num tempo mítico/sagrado.
João Florindo Batista Segundo – Discente do Curso de Licenciatura em Filosofia pela FESC-FAFIC
José Carlos de Abreu Amorim – Discente do Curso de Graduação em Ciências das Religiões pela UFPB, membro dos Grupos de Pesquisa Videlicet/UFPB e Imaginarium Rosae Crucis – filosofia, história e Ciências das Religiões/URCI.
Notas
[1] ! Catamórfica, na Teoria Geral do Imaginário, proposta por Gilbert Durand, são as imagens referentes à queda, à descida e à introdução aos subterrâneos.!
[2] Por maçonaria moderna entendemos a maçonaria estruturada a partir da fundação da Grande Loja de Londres e a publicação das Constituições de Anderson de 1723.
Referências
BARZAN, Francisco García. Aspectos Incomuns do Sagrado. São Paulo: Paulus, 2002.
BERMANN, Roland. O Grau de Mestre Escocês de Santo André no Rito Escocês Rectificado. São Paulo: Madras, 2011.
BOUCHER, Jules. A simbólica maçónica. 15. ed. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix, 2012.
COOPER, Robert L. D.. A vingança dos operativos? In A historia da Maçonaria da Marca. São Paulo: Madras, 2011.
CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 24a Ed. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2009.
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. 3a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GRANDE ORIENTE DO BRASIL. O que é Maçonaria? Disponível em <http://www.gob.org.br/maconaria/o-que-e-maconaria.html> Acesso em 20 Jul. 2013.
GUILHERME, João. O nosso lado da escada: história, prática e faqs sobre os graus capitulares do Rito de York. Rio de Janeiro: edição própria, 2012.
MACKEY, Albert G. O simbolismo da maçonaria. vol. I. São Paulo: Universo dos Livros, 2008.
MACKEY, Albert G. O simbolismo da maçonaria. vol. II. São Paulo: Universo dos Livros, 2008.
OLIVEIRA, Almir de Araújo. Mídias sociais e a maçonaria. In Revérbero Maçónico. ano IV, n. 33, mar/Abr. 2012, p. 1 (GOB, 2013)
REBISSE, Christian. Ieschouah, Grand Architecte de l’Univers. In Pantacle, n. 6, Le Tremblay: Ordre Martiniste Traditionnel, Jan. 1998.