A letra א Aleph, é a primeira das letras do alfabeto hebraico. Em termos gerais א representa a unidade divina, o princípio primordial, a causa primeira de todas as coisas. Ela contém em si mesma a potencialidade de todas as letras e de todo o universo. É o silêncio e o vazio antes da criação mas no qual tudo que vai existir já existe. O mistério primordial que está além das palavras e conceitos humanos.
A cabala descreve a construção de א por uma letra י (Yod) acima, um י (Yod) abaixo e uma letra ו (Vav) inclinada conectando-a e separando-a simultaneamente. Algo muito parecido com o símbolo da divisão aritmética (÷), com a diferença de que em א os elementos do simbolos estão unidos entre si.
Este detalhe como veremos faz toda diferença pois a Cabala nos diz que א representa não a separação, mas a potência da dualidade (e portanto da existência tal como conhecemos). Assim Aleph é semelhante a outros símbolos de integração e unificação como o Selo de Salomão e o Taijitu chinês, pois nele os opostos são existentes mas não separados.
Observe com atenção o formato da letra. Moshe Cordovero ensina que o “Yod” superior representa Deus, o “Yod” inferior representa o ser humano e o “Vav” inclinado representa a Torá, ou as Mitsvoh seja, as Leis Divinas que conecta ambos. Note que o inicio dos Dez Mandamentos (Shemot 20:2) começa com א, a primeira letra da palavra אנכי – Anochi (“Eu”):
״אָנֹכִי יְהוָה אֱלֹהֶיךָ, אֲשֶׁר הוֹצֵאתִיךָ מֵאֶרֶץ מִצְרַיִם מִבֵּית עֲבָדִים״
“Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão.”
O Vav pode ser entendido também com um espelho no qual Deus reflete “sua imagem e semelhança.” Mas a ideia da unidade dentro da pluralidade percorre todo o א, e vai muito além da forma física da letra. Outra maneira de ver isso é por seu valor numérico. א é igual a um, mas o significado literal da palavra אלף (Eleph) é mil (1000). 1 representa o início de todo processo, o que chamaremos de causa primeira, 1000 são todos as causas e efeitos que partiram de 1. Modernamente isso se tornou muito mais fácil de entender após o desenvolvimento do sistema binário. Todos os computadores são baseados em uma série interminável de zero e um. Por mais que o computador pareça muito complicado (1000), na verdade é baseado na presença e ausência de 1.
Assim uma das lições iniciais de א é também o a lição mais importante da Cabala: a interconexão de todas as coisas. Ao comtemplar a forma e valor numérico desta letra nos lembramos de reconhecer Deus em todas as coisas e assim estabelecer uma conexão e um equilíbrio entre as dimensões material e espiritual de nossas vidas.
Deus e Adam Kadmon
“Shemá Yisrael, Ado-nai Elohenu, Ado-nai Echad”
(Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o Senhor é Um).
Devarim 6:4.
Em uma primeira leitura o Shema mostra que Adonai não é um Deus mas o único Deus. Uma leitura mais profunda nos diz que Deus não é apenas o único Deus, mas tudo o que foi criado é com ele Uno. A unidade na pluralidade tudo permeia.
Essa ligação ou paradoxo inclui a união/dualidade de Deus e do Ser Humano: Todos os nomes de Deus, mais nomes começam com a letra א do que qualquer outra letra: אֱלֹהִים (Elohim) , אֵל (El) , אֱלוֹהַּ (Eloah), אֵל שַׁדַּי (El Shaddai), אֲדֹנָי (Adonai) אֶהְיֶה (Ehyeh). Além disso, existem muitos epítetos usados para descrever Deus, como אדיר (Adir/Glorioso) e אדון (Adon/Mestre), razão ela qual a tradição ensina que Aleph, é uma letra muito piedosa.
Mas א também é a primeira letra de אָדָם קַדְמוֹן (Adam Kadmon), o Ser Primordial, o primeiro ser humano criado antes da separação homem-mulher. Conta a narrativa da criação que ele foi criado diretamente de אדמה (Adamah/Terra) para então receber uma alma vivente. א é também a primeira letra de אני (Eu) e אֶגוֹ (Ego) e אנכי (Eu enfático), três palavras usadas para se referir a senciência, a identidade pessoa, o senso de si mesmo.
No nível das almas, representa-se a unidade das almas. Foi-nos dito que, embora todos nós tenhamos almas individuais, e essas almas estejam conectadas a raízes de alma cada vez maiores, em última análise, todas as almas são concebidas como uma grande alma unificada. E mesmo esta grande alma unificada de a alguma maneira participa da natureza do Eterno.
Cabalisticamente o povo de Israel é o povo que aceitou essa unidade. No Shabbat Mincha dizemos algumas palavras extraídas de 2 Samuel 7:22-23 (glifo nosso)
Portanto, grandioso és, ó Senhor Deus, porque não há semelhante a ti, e não há outro Deus senão tu só, segundo tudo o que temos ouvido com os nossos ouvidos. E quem há como o teu povo, como Israel, gente única na terra.
E a benção final do Shabbat Mincha diz:
Abençoado és Tu, ó Eterno, nosso Deus, Rei do Universo, que faz separação entre o sagrado e o profano, entre a luz e as trevas, entre Israel e as nações, entre o sétimo dia e os seis dias de trabalho. Abençoado és Tu, ó Eterno, que fazes separação entre o sagrado e o profano. Amém.”
Há aqui outro paradoxo pois Israel é o povo que se separa dos outros povos por ser o povo que entende a unidade de tudo. Assim, o significado básico do א é o Deus infinito e uno relacionando-se com um mundo finito de dualidades e especialmente com o homem, e buscando a unidade dentro da pluralidade.
No Zohar
O Zohar relata que antes da Criação, cada letra do alfabeto veio diante de Deus, pedindo para ser a escolhida para iniciar o processo de criação. As letras se apresentavam em ordem inversa: primeiro veio ת – tav, a última letra do alfabeto. a seguir veio ש – shin, a penúltima letra do alfabeto, depois ר – resh, e assim por diante, até ב – bet, segunda letra do alfabeto, que inicia a palavra ברכה – beracah, “bênção”.
Bet implorou: “Que o mundo seja criado comigo, para que todos os seres me usem para abençoar a Deus”. E Deus consentiu.
Então Deus perguntou ao א, a primeira letra do alfabeto, que ainda não havia pronunciado uma palavra, por que estava em silêncio. א respondeu que em um mundo de pluralidade não havia lugar para ela, já que o valor numérico do א é 1.
Aqui א demonstra um profunda “Anavah” (Humildade) um conceito que Rabbi Yehuda Ashlag sempre destacou como importantíssimo. Anavah nos ensina que reconhecer nossa pequenez diante do Infinito e essencial para nos conectar com a força divina.
A história continua com Deus tranquilizando א, dizendo que mesmo que o mundo fosse criado com ב (Bet), א ainda seria a rainha do alfabeto. Ele disse: “Não tenha medo, א, você é um, e eu sou Um. Eu quero criar o mundo para que Meu espírito de unidade habite lá através do estudo da Torá e do cumprimento das mitsvot (os mandamentos).
A percepção da unidade de Deus que Apeh representa é ainda sugerida pela palavra hebraica פלא (“maravilha”), uma Temurah (Permutação) da palavra “Eleph”, um lembrete de como o Eterno estando disfarçado em cada detalhe da criação gera sentimentos de admiração e reverência.
No Sefer Yetzirah
A luz e a misericórdia de Deus são derramadas principalmente na criação por meio do ar, o principal veículo que Deus usa para manter a criação viva. É do conhecimento geral que um ser humano pode sobreviver dias sem beber ou comer, mas apenas alguns minutos sem respirar.
Por esta razão, o Sefer Yetzirah associa o Aleph (que é categorizado como uma das três “letras mãe”) com o Ar.
A palavra אויר (Avir/Ar) é composta por todas as letras encontradas na palavra אור (Ór/Luz) mais a letra י (Yod), cujo valor numérico é 10, fazendo alusão às 10 Sefirot (“emanações divinas”) da Criação, originado em Um. O Sefer Yetzirah afirma:
Três Mães: א (Aleph), ם (Mem) e ש (Shin) que no ano são o quente, o frio e o temperado.
O quente (ש) é criado a partir do fogo
O frio (ם) é criado a partir da água
E o temperado (א) da respiração, que decide entre eles.
Três Mães na alma, masculina e feminina, são a cabeça, a barriga e o peito.
A cabeça é criada a partir do fogo.
A barriga é feita de água,
E o peito da respiração, que decide entre eles.
Mais uma vez temos aqui א associado à unidade, mas não a uma unidade fixa e parada, mas sim um equilíbrio temperado (em oposição aos extremos de quente e frio). Sefer Yetzirah nos diz que א está enraizado na respiração e no peito. Por isso quando os desequilíbrios emocionais, perturbações intelectuais ou compulsões do corpo fazem com que percamos nosso centro, respirar profundamente nos traz de volta ao nossa visão clara da realidade enquanto recuperamos nosso estado natural e saudável de iluminação
A letra א e a respiração
A respiração correta mantém nosso equilíbrio e apoia nossas escolhas justas e éticas entre fogo e água. Ao inspirar, extraímos inspiração e nutrição do ar e dos céus. Quando expiramos, liberamos o que não é mais necessário.
O relato de Bereshit mostra que para tornar o primeiro ser humano criado do barro em uma alma vivente Deus, soprou em suas narinas o fôlego da vida. De acordo com numerosas fontes judaicas, a respiração profunda é vista como um instrumento-chave para entrar em contato com o Divino dentro de nós.
Também não é por acaso que o Livro dos Salmos termina com o versículo Kol ha’neshamah tehallel Kah: (“Toda alma louvará a Deus”) pois faça o que fizer, toda alma vivente dá testemunho do “Eu sou”. O Midrash nos convida a ler este versículo não como “Toda alma louvará a Deus – kol ha’neshamah הנשמה – mas como הנשימה: “Toda respiração louvará a Deus” – kol ha’neshimah.
De fato, um dos Nomes de Deus é Arich Apayim, que significa literalmente “Respiração Longa” (embora seja geralmente traduzido como “paciente”, “lento para a ira”). Ao imitar Deus com a respiração profunda, permitimos que o elemento ar tempere entre o excesso de água e o fogo (nossas emoções descontroladas), nos retorne ao ponto zero da criação e nos restabeleça o equilíbrio.