A primeira lenda de facto, no sentido cronológico do termo, mas, sem dúvida também uma lenda fundadora. Antes e depois, a Maçonaria especulativa não é bem a mesma coisa. A própria expressão maçonaria especulativa, onde a ambiguidade nunca será suficientemente salientada, lembra-nos exactamente dos um dos muitos problemas, ainda por resolver totalmente, pelo menos para esclarecer algumas coisas, relacionam-se até mesmo com a antiguidade desta lenda, e relatos de que ela poderia ter um fundo lendário tradicional, é o que chamamos desde o final século XIX um folclore específico das comunidades de construtores desde a Idade Média.
No quadro desta exposição, não se trata obviamente de esgotar um assunto tão vasto e cujos contornos são, afinal, difíceis de definir. Eu permitir-me-ia recordar que, por quase dez anos, me dediquei na revista Renaissance Traditionnelle a uma longa pesquisa, sem dúvida para retomar constantemente, e que para alguns pontos essenciais deste debate, referir-me-ei a ela ainda hoje.
Eu gostaria de abordar a questão das possíveis fontes desta lenda e propor algumas hipóteses plausíveis sobre as circunstâncias da sua formação. Eu gostaria também numa segunda etapa de examinar como a introdução desta lenda nos primeiros anos do século XVIII, em certo sentido modificou, e esta é certamente a tese que tentarei esboçar diante de vocês, profundamente a própria natureza da jovem instituição maçónica pré-especulativa ou melhor dizendo proto especulativa.
Os antecedentes do nome do Arquitecto nos Antigos Deveres
O primeiro problema é o do próprio nome de Hiram como designação do arquitecto no drama cuja tragédia é revelada na famosa divulgação de Samuel Prichard, Maçonaria Dissecada, publicada em Londres em 1730. A importância da divulgação de Prichard não é apenas de revelar pela primeira vez um sistema em três graus, culminando com o grau de Mestre – The Master’s Part. A sua profunda originalidade é propor a primeira versão conhecida e coerente da lenda, que deveria a partir dai constituir o cerne deste grau.
A primeira fonte de onde convém extraí-la são os Antigos Deveres. Na primeira geração destes textos, aquela que contém o Regius (por volta de 1370) e o Cooke (por volta de 1420), existe uma história tradicional do Ofício que, especialmente no segundo desses manuscritos contém muitos dados bíblicos ou patrísticos (filosofia cristã formulada pelos padres da Igreja nos primeiros cinco séculos de nossa era, buscando combater a descrença e o paganismo por meio de uma apologética da nova religião, calcando-se freq. em argumentos e conceitos procedentes da filosofia grega). Em nenhum outro lugar, no entanto, se menciona um arquitecto do Templo de Salomão, muito menos o nome dele. O Manuscrito Cooke contém apenas esta indicação:
“E durante a construção do templo na época de Salomão, diz-se na Bíblia, no terceiro livro dos Reis, capítulo cinco, que Salomão tinha oitenta mil maçons trabalhando. E o filho do rei de Tiro era o Mestre de Obras”.
Menção específica do nome deste artista aparece apenas na segunda geração dos Antigos Deveres, aquela que se abre com o Manuscrito Grand Lodge no 1 datado de 1583. Na narrativa histórica que o contém, encontramos, com efeito, a seguinte passagem:
“E depois da morte do Rei Davi, Salomão que era filho do rei Davi, completou o Templo que seu pai tinha começado.
E ele mandou procurar pedreiros em várias regiões, e os reuniu, de modo que tinha 80 mil trabalhadores, que trabalhavam a pedra e eram chamados Pedreiros, e ele escolheu três mil entre eles que foram designados para serem os Mestres e comandantes das suas obras. Além disso, havia um rei de outro reino que se chamava Iram e que amava muito o rei Salomão e que lhe enviou madeira de construção para as suas obras. E ele tinha um filho chamado Anyone (qualquer um) que era mestre em Geometria, chefe de todos os pedreiros, e mestre de gravuras e esculturas e de todos os outros processos de construção utilizados para o Templo”.
E isso está registrado na Bíblia, no terceiro capítulo do quarto livro de Reis. 2
De seguida, a aparição daquele que é chamado de “chefe dos pedreiros” – “Mestre em Geometria” – do Templo coloca uma questão quanto à sua identidade. A palavra Anyone, que significa simplesmente qualquer um, não nos informa coisa alguma. Devemos naturalmente nos perguntar sobre este nome pelo menos enigmático. Sabendo que o Manuscrito Grand Lodge nº 1 é provavelmente uma cópia de um texto mais antigo, pode ser simplesmente que o termo Anyone seja devido ao facto de que o escritor não conseguiu ler correctamente o nome que aparecia no manuscrito original.
Encontra-se, efectivamente, a partir desta época o nome do arquitecto em várias versões dos Antigos Deveres. As variações observadas são muito numerosas:
Em três textos, de 1600, 1670, 1700, encontramos o termo Amon;
numa série de seis textos, de 1670, 1680, 1693, 1700, 1702 e 1750, este personagem é chamado Aynon;
três versões, de 1670, 1680, 1690, dão Aymon;
podemos ainda trazer o texto de 1600 que mostra A Man;
também se devem salientar casos extremamente divergentes, tais como o texto de 1677 com Apleo de 1701 com Ajuon, ou mesmo aquele de 1714 com Benaim.
Para explicar a origem e o significado provável desses termos, duas hipóteses principais foram levantadas.
A primeira, a mais natural, propõe ver nestes diferentes termos uma série de sucessivas corrupções do nome de Hiram. Pode-se assim sugerir a seguinte sequência: Hiram – Iram – Yram – Yrane – Ynane- Ynone – Aynone – Anyone. Segundo essa tese, o Mestre dos Pedreiros dos Antigos Deveres teria sido sempre chamado Hiram, conforme indicado na Bíblia às quais esses textos se referem explicitamente, mas seu nome não teria sido em nenhum momento escrito correctamente mais ou menos de 1583 até1675…
Na verdade, é a partir dessa última data que certos manuscritos dão à personagem o nome que lhe é atribuído na Bíblia. Esta menção só está presente em dezoito versões posteriores a 1675, das quais muitas são até posteriores a 1723, data em que veremos posteriormente, aparece o nome Hiram Abif. A hipótese de um Hiram primitivo – e, naturalmente, esperada – depois corrompida e somente recuperada ao fim do século XVII é filologicamente engenhosa, mas dificilmente convincente, deve-se admitir. Não podemos, no entanto, excluí-la totalmente.
A segunda hipótese é que estes diferentes nomes nada mais são que corrupções de um nome que não é Hiram, mas que, no entanto, faz referência a uma figura importante no Ofício. Por outras palavras, deve-se reconhecer que o nome do homem enviado por Hiram de Tiro esteja efectivamente na Bíblia, Hiram, os Antigos Deveres teriam desde o final do século XVI dado outra, ligada, no entanto também à tradição do Ofício.
Reteve-se como forma inicial possível, o nome Amon, considerando que as formas Aynon, Aymon, seriam assim facilmente explicáveis por um pequeno erro na grafia da letra M. Mas, por que este nome?
Amon realmente aparece na Bíblia (Provérbios, 8, 30). E em hebraico amon (aleph, mem, vav, noun) significa trabalhador, artesão ou artista, mas também arquitecto, ou ainda tutor, mestre de obra. No texto bíblico, a Sabedoria se apresenta assim:
“[…] quando Ele [o Senhor] traçou os fundamentos da terra, eu fui mestre de obra ao seu lado” (versão TOB)
O sentido de artesão, colaborando com a obra, parece ser o mais classicamente aceito, especialmente na Vulgata, reflectindo as concepções mais antigas nessa área, e a partir da qual vêm todas as citações bíblicas medievais, onde São Jerónimo diz: “Quando appendabat fundamenta terrae, Cum eo eram, cuncta componens”. que se pode traduzir por: Enquanto ele estabelecia os fundamentos da terra, eu estava com ele, reunindo todas as coisas”.
Se esta hipótese relativa a Amon é sedutora, ela enfrenta, entretanto, algumas objecções: ela é principalmente a forma menos frequentemente atestada nas muitas versões das Antigas Obrigações e, sobretudo ela nunca foi conhecida como tal nas Bíblias ocidentais, pois amon é um nome comum, e portanto, sempre traduzido como artesão, arquitecto, etc.). Assim, emerge dessa análise que a hipótese Amon é antes de tudo um exercício de erudição hebraica que não tem em conta as condições nas quais os textos dos Antigos Deveres foram redigidos e transmitidos.
Aymon foneticamente idêntico em Inglês a Amon, pode ser proposto como forma inicial do nome do arquitecto. Aymon pode, por sua vez, por uma falha semelhante à que acabamos de mencionar, explicar a forma Aynon, e também muito facilmente as formas Amon, ou Anon. Não podemos, portanto, sugerir, numa primeira abordagem, que os Antigos Deveres dão testemunho de que existia uma tradição no Ofício que atribuía ao mestre de obra do Templo um nome que podia ser Aymon.
As Constituições de 1723 e os textos posteriores (Família Spencer, 1725-1739)
Apenas na História do Ofício contida no Livro das Constituições de 1723 que aparece, pela primeira vez num documento maçónico, note bem, o nome de Hiram Abiv, dado ao construtor do Templo de Salomão, também chamado de “Príncipe dos Arquitectos“. Foi assim somente depois do texto de 1723 que o nome de Hiram Abif – e não apenas Hiram –, que substitui o de Amon, ou Anon ou Aymon na maioria das versões dos Antigos Deveres posteriores: particularmente nos textos da Família Spencer. Seis textos são conhecidos, um dos quais foi até mesmo gravado, publicados entre 1725 e 1726 para quatro deles, 1729 e 1739 para os dois mais tardios.
Estas datas não são, obviamente, indiferentes, e pode-se notar aqui que este período de 1725-1730 é igualmente aquele em que parece se afirmar um terceiro grau agora baseado na personagem de Hiram, recém-promovida a um papel que parecia nunca ter desempenhado antes, pelo menos em relação aos textos. É bastante claro que a substituição do nome de Aymon pelo de Hiram Abiff – ou o de Hiram (simplesmente) presente em alguns textos depois de 1675 – está relacionada com o aparecimento do terceiro grau “hirâmico” que Prichard nos dá conhecimento da primeira versão conhecida.
Sobre a forma “Hiram Abif“
Devemos notar imediatamente que a escolha do termo Hiram Abif (adoptaremos esta grafia mais convencional) para designar nos textos maçónicos, o arquitecto do Templo de Salomão, por sua vez apresenta um problema.
A expressão Hiram Abif encontra-se em apenas dois lugares da Bíblia:
II Crónicas, 2 13, onde podemos ler: Huram Abi(aleph, beth, iod)
e II Crónicas 4, 16, onde temos: Huram Abiv (aleph, beth, yod, vav) A partir destes dados simples, três problemas se colocam:
1) Qual é o significado exacto desses termos?
A raiz ab significa pai, e abi tem um determinante que significa meu pai; quanto a abiv isso significa seu pai.
Portanto, de um ponto de vista puramente filológico, esses termos significam:
Huram abi = Huram meu pai,
Huram abiv = Huram seu pai,
duas expressões, devemos salientar, bastante enigmáticas. No entanto, é preciso lembrar que um significado mais amplo de pai, em hebraico, pode indicar a noção de mestre, instrutor ou conselheiro.
Vamos voltaremos mais tarde a tratar das consequências da natureza bastante obscura dessas duas expressões que nos limitamos apenas a registrar aqui.
2) Em / Reis 5, que é o terceiro local bíblico onde se fala do nosso Hiram – o artesão, não o Rei – deve-se notar que:
É Hiram e não Huram,
que não é absolutamente Hiram-Abi ou Hiram Abif, mas simplesmente Hiram, que vem de Tiro, o texto afirmando que ele é filho de um Tiriano, e de uma viúva da tribo de Naftali; ele é, pelo menos neste livro, exclusivamente um artesão do bronze, que fundia colunas, o mar de “airain” (liga de cobre, de onde vem a palavra inglesa ‘iron’), mas de forma alguma um arquitecto, nem um pedreiro.
As duas observações anteriores nos sugerem que se descrevem dois personagens notadamente diferentes, especialmente que as habilidades de Huram, em / / Crónicas, são muito mais amplas. Lemos, de facto, que este era um homem dotado para todos os tipos de trabalho, sabendo de facto trabalhar “o ouro, a prata, o bronze, o ferro, a pedra, a madeira, o escarlate, a púrpura, gravar de tudo e inventar tudo)). Este Huran é, por outro lado, filho de um Tiriano, e uma filha da tribo de Dan.
Se Hiram nos Livros dos Reis era apenas escultor de bronze, Huram Abi do Livro das Crónicas é muito mais ecléctico e, possivelmente, conhece o trabalho da pedra. No entanto, continua a ser artesão, e não, conforme indicam – e somente eles – os Antigos Deveres, o Mestre Pedreiro do Templo…
Pode-se assim concluir que o Hiram Abif da tradição maçónica, que só aparece em textos em 1723, é um personagem composto, emprestado de dois retratos muito diferentes, e que não é encontrado, como tal, em qualquer texto bíblico.
3) Um terceiro problema, que se junta em parte ao primeiro, deve ainda ser mencionado. Trata-se da escolha, precisamente, da expressão Hiram Abif para designar esse novo e singular herói. De facto, vimos o significado pouco claro da expressão.
Já na Vulgata, São Jerónimo traduz: Hiram patrem meum et Hyram pater ejus.
Pai de quem, exactamente? Poderíamos perguntar…
Na primeira Bíblia inglesa de Wyclif em 1380, lemos o mesmo: Hyram my fader e Hyram the fader of Salomon.
A Bíblia chamada Grande Bíblia de 1539, propõe: meu pai Hyram e Hiram seu pai, a tradução mais tarde assumida pela célebre Versão Autorizada do Rei James, em 16???
A Bíblia de Bishop de 1572, e a Bíblia de Barker em 1580, retomam também essas fórmulas. Esta última, notável por suas glosas marginais, indica em parte que “seu pai” pode significar que Hyram é o pai do trabalho que está sendo feito no Templo…
A partir dessa data até hoje, todas as Bíblias em inglês trazem: Hiram meu pai e Hiram seu pai e sempre sem dar uma explicação.
É provavelmente essa falta de qualquer sentido aparente que levou alguns tradutores a pensar que Hiram Abi talvez fosse um nome próprio, que não exigia tradução. Foi Lutero quem primeiro pensou nisso. Nos anos 1520, publicando a sua tradução alemã, ele traduziu simplesmente o primeiro: Hiram Abi e Hiram Abif.
Mas, em 1528, Coverdale, um dos líderes da Reforma na Inglaterra, foi a Hamburgo e lá se juntou a William Tyndale, e realizou com ele a sua tradução do Pentateuco. É assim que em 1535, Coverdale terminou sozinho uma tradução baseada essencialmente sobre o trabalho de Lutero. A Bíblia de Coverdale, em Inglês, foi publicada três vezes em 1535, 1536, 1537, e reeditada em 1551, e foi ela quem, pela primeira vez na Inglaterra, indica: Hiram Abi e Hiram Abif.
A Bíblia de Matthews, em 1537, retoma esta tradução, mas, a partir de 1539, com a Grande Bíblia já citada, encontramos as traduções clássicas, e novamente a tradução Hiram Abi ou Hiram Abif (excepto na única reedição em 1551).
Devemos, portanto, lembrar-nos de que as expressões Hiram Abi e Hiram Abif aparecem apenas em duas Bíblias publicados entre 1535 e 1537 e que caíram bastante rapidamente em desuso.
Daí surge uma questão: se a escolha do termo Hiram Abif foi feita, e claramente sob a influência da Bíblia de Coverdale, mas porque, em 1723, teria surgido a necessidade de manter esta tradução incomum, tirada de uma Bíblia em desuso por cerca de dois séculos? Anderson explica, em parte, mas de uma forma muito pouco clara, numa nota de pé de página da sua História do Ofício (Craft).
Não se poderia também sugerir que a expressão em questão já existia na tradição maçónica desde a segunda metade do século XVI? Enfatizamos, ocasionalmente, a probabilidade de uma mutação pré especulativa na Inglaterra neste momento. No entanto, é preciso reconhecer que esta hipótese é bastante frágil. A ideia de um Hiram Abif criado bastante recentemente a partir de todas as peças e dotado de um novo nome parecia ao final desta análise, muito mais plausível.
Uma reacção hostil? O Documento Briscoe (1724)
Se o nome de Hiram Abif, para designar o “arquitecto” do Templo, atestado desde 1723, talvez tivesse sido introduzido muito mais cedo na tradição do Ofício, resta, entretanto certo de que a lenda de que ele é desde o início o herói trágico lhe confere um novo status. Se o nome de Hiram tem talvez certa antiguidade no Ofício, a personagem da lenda aparece bem nestes anos 1720, como um recém-chegado.
Convém aqui citar um texto que poderia ser um testemunho indirecto. Ele apareceu em Londres em 1724 sob a forma de um livreto de 64 páginas, e teve duas outras edições no ano seguinte.
Ele reproduz-se numa primeira versão as Antigas Obrigações pertencentes à segunda geração, e que se pode ligar à Família Sloane. Este texto dá especialmente Aynon como o nome do Mestre Maçon do Templo de Salomão. Ele é seguido por copiosos comentários intitulados “Observações e Notas Críticas”, num tom muito crítico, na verdade, visando corrigir os erros que, segundo o autor, o Pastor Anderson tinha cometido em grande número no seu History of the Craft.
Tratava-se da passagem que se refere ao Templo de Salomão, o autor orienta a controvérsia em torno da personagem de – Hiram Abif. Ele se surpreende, de facto, que sejam concedidos a ele talentos tão diversos e que
“O nosso sábio Doutor em Leis [ou seja, Anderson] para valorizar as suas extraordinárias conferências, [emprega] tanto esforço para provar que este Hiram, o Fundidor de Bronze, um Tiriano, não era Hiram Rei de Tiro […] ”
Mais ainda, ele se apega ao “mui engenhoso Doutor Désaguliers“, que, para justificar a variedade dos dons reconhecidos em Hiram refere-se a uma “Carta de Recomendação que o rei Hiram mandou a Salomão […]”. O autor destacou que nada disso aparece no Livro dos Reis, e finge ignorar que esses detalhes se originam nas Crónicas.
Qualquer que seja a fraqueza do argumento, a importância do documento reside simplesmente na denúncia feita aqui da artificialidade da personagem Hiram Abif. Podemos, naturalmente, perguntar-nos sobre a personalidade exacta de Samuel Briscoe, de quem nada sabemos. No entanto, ele parece ter sido claramente consciente dos usos e das práticas maçónicas de seu tempo.
Mas, a sua hostilidade em relação à introdução da personagem de Hiram Abif não pode não ser relevada. Nenhuma alusão é feita, de resto, em qualquer grau, de que esta personagem seria o herói, mas é claro, no entanto que algumas pessoas que conheciam bem a Maçonaria e os seus textos fundamentais consideravam, início da década de 1720, que a personagem de Hiram Abif era um intruso, e que o papel que parecia dever desempenhar era sem dúvida usurpado, pelo menos até então desconhecido. Não se poderia ver ai, mas esta não é evidentemente uma mera hipótese, o traço das primeiras agitações causadas pela introdução de um novo grau de Mestre centrado em torno de uma lenda colocando em cena um Hiram que vimos, como o próprio Briscoe, representa, em relação ao personagem bíblico, uma figura composta que pode muito bem ser devida, de facto, à imaginação dos “sábios Doutores” estigmatizados por Briscoe…
As fontes da lenda
Tentar traçar as origens da lenda de Hiram, é um exercício mais difícil do que parece, se queremos permanecer rigorosos.
Pode-se, naturalmente, atribuir a esta lenda diferentes fontes mitológicas e encontrar, procurando um pouco na história de antigas tribos e religiões egípcias, greco-romanas ou celtas, muitas das narrativas sagradas e mitos que podem constituir modelos. E autores que se debruçaram sobre esta questão, de resto, não faltam. Não vamos, por nossa parte, retornar a estes antecedentes distantes, que pode, no máximo, ser evocados no máximo como arquétipos, figuras universais, heróis ou o “deus que morre” (Frazer). Estas referências podem, com efeito, parecer atraentes, no entanto eles certamente não são relevantes.
O erro que cometem geralmente, por diferentes razões, aqueles que apresentam essas fontes alegadas, é acreditar, ou fingir acreditar, que essa lenda vem das profundezas dos tempos, como herança natural dos mitos mais remotos, dos quais ela seria uma das últimas crias. Nós vimos, e ainda teremos a oportunidade de mostrar a seguir, que ela não é. A artificialidade da lenda de Hiram, a sua criação moderna, provavelmente nos primeiros anos do século XVIII não pode mais deixar qualquer dúvida. O problema da sua origem é, portanto, colocado de maneira muito diferente.
Para resolver isso, é importante não ignorar o clima intelectual e espiritual em que evoluíram as fontes históricas e tradicionais, de que dispunham aqueles que, naquela época, eram capazes de forjar essa lenda. Mas, esses ambientes, se não são explicitamente conhecidos, são, entretanto bastante claramente identificáveis. Em torno de Desaguliers e Anderson está um mundo – novo no Ofício – de estudiosos e “sábios Doutores” mergulhados em estudos bíblicos e clássicos, mas também ansioso por se vincular às tradições antigas do Ofício. Não nos esqueçamos de que Anderson fez um considerável esforço para mostrar contra todas as evidências, que a Grande Loja de 1717, criação profundamente original, inédita naquele país, não era a ressurreição “revival” de uma Grande Loja mítica e ancestral na qual todos queriam acreditar.
Os antecedentes imediatos da lenda: o Manuscrito Graham (1726)
As diferentes hipóteses propostas, como vemos, para tentar encontrar as origens da lenda de Hiram, na maioria das vezes enfrentam consideráveis dificuldades. Além delas, pedir empréstimos a temas míticos ou lendários geralmente sem relação real e clara com o Ofício, eles costumam conter apenas elementos daquela lenda, em essência, o assassinato do construtor. Poder-se-ia, de resto, examinado a história geral da Inglaterra desde o século XVII, encontrar outros assassinatos injustos, e vários autores não deixaram de construir teorias, as mais diversas, e muitas vezes as mais fantasiosas.
Um documento contrasta, no entanto, com todas estas fontes alegadas e aproximadas. Trata-se de um manuscrito datado de 24 de Outubro de 1726, o Manuscrito Graham, desconhecido por muito tempo, e que foi apresentado e estudado pela primeira vez pelo famoso pesquisador britânico H. Poole, em 1937. A contribuição deste texto para a busca de fontes da lenda de Hiram parecia fundamental.
O documento se apresenta primeiro, como um catecismo, em muitos aspectos comparável àqueles conhecidos para os anos 1724-1725. Algumas perguntas e respostas nele contidas são encontradas, com efeito, quase literalmente em alguns daqueles textos, especialmente num manuscrito de 1724, The Whole Institution of Masonry, e num documento impresso de 1725, The Whole Institutions of Free-Masons Opened. Estas semelhanças são importantes de serem ressaltadas, porque elas estabelecem que o Manuscrito Graham não seja apenas um texto isolado e atípico, mas que ele se insere incontestavelmente numa corrente de instruções maçónicas reconhecidas e divulgadas na Inglaterra, nesta época. Deve-se finalmente, notar particularmente o tom cristão fortemente afirmado das explicações simbólicas que são ali propostas.
Ao final do catecismo propriamente dito, aprendemos que “pela tradição e também por referência às Escrituras“, Sem, Cam e Jafé foram visitar o túmulo de seu pai Noé para tentar descobrir ali algo sobre ele os guiasse até o poderoso segredo detido por este famoso pregador”.
Seguem agora, três narrativas distintas, três lendas que devem ser examinadas em detalhe.
Primeira Lenda:
“Estes três homens já tinham concordado que, se eles não descobrissem o verdadeiro segredo em si, a primeira coisa que ele descobrisse assumiria para eles o lugar do segredo. Eles não duvidavam, mas acreditavam muito firmemente que Deus poderia e iria revelar a sua vontade, pela graça da sua fé, da sua oração e da sua submissão, de modo que aquilo que eles iriam descobrir se revelaria também útil para eles como se eles tivessem recebido o segredo desde o início, de Deus em pessoa, directo da própria fonte.
Eles chegaram ao túmulo e nada encontraram, excepto o cadáver quase totalmente decomposto. Eles seguraram um dedo que se soltou, e assim de junta em juntar, até o pulso e o cotovelo. Então, eles levantaram o cadáver e o apoiaram contra si, pé contra pé, joelho contra joelho, peito contra peito, rosto contra rosto e mão nas costas, e exclamaram: ” Ajuda-nos, oh Pai“. Como se tivessem dito, “Oh Pai no céu nos ajude agora, porque o nosso pai terreno não o pode fazer”.
Eles descansaram, a seguir, o cadáver, não sabendo o que fazer”. Um deles disse, “Existe a medula nesses ossos” [Marrow in this bone]; o segundo disse:” Mas é um osso seco “, e o terceiro disse: ” Ele fede“.
Eles concordaram então em dar a isso um nome que ainda é conhecido da Maçonaria dos nossos dias”.
Segunda Lenda: (Ela é exposta sem conexão aparente com a anterior.)
“Durante o reinado do Rei Alboin nasceu Bezalel, que foi chamado assim por Deus antes mesmo de ser concebido. E este santo sabia por inspiração que os títulos secretos e os atributos essenciais de Deus eram protectores, e ele construiu com base neles, para que nenhum espírito mau e destrutivo se atrevesse a derrubar a obra das suas mãos.
Também as suas obras se tornaram tão famosas, que os dois irmãos mais novos do rei Alboin, já nomeado, quiseram ser instruídos por ele sobre a sua nobre maneira de construir. Ele aceitou com a condição de que eles não revelassem, sem que qualquer que estivesse com eles pudesse compor uma tripla voz. Então eles juraram e ele lhes ensinou as partes teóricas e práticas da construção, e eles trabalharam. […]
Assim, Bezalel, sentindo se aproximar a morte, desejou ser enterrado no Vale de Josafá, e um epitáfio foi gravado segundo seus méritos. Isto foi realizado por estes dois príncipes, e foi registrado da seguinte forma: “Aqui reside a flor da arte construtiva, superior a muitos outros, companheiro de um rei, e irmão de dois príncipes. Aqui jaz o coração que soube guardar todos os segredos, a língua que nunca os revelou”.
Terceira lenda: (Sem qualquer transição, novamente, uma última narrativa é proposta ao leitor).
“Aqui está tudo que se relaciona com o reinado do rei Salomão, [filho de Davi], que começou a construir a Casa do Senhor: […] lemos no Primeiro Livro dos Reis, capítulo VII, versículo 13, que Salomão mandou buscar Hiram em Tiro. Este era o filho de uma viúva da tribo de Naftali, e seu pai era um Tiriano que trabalhava em bronze. Hiram era cheio de sabedoria e habilidade para executar todos os tipos de obras em bronze. Ele foi até o Rei Salomão e dedicou a ele toda a sua obra. […] Assim, segundo esta passagem da Escritura, devemos reconhecer que esse filho de uma viúva, chamado Hiram, tinha recebido uma inspiração divina, assim como e sábio Rei Salomão ou ainda o santo Bezalel. No entanto, a Tradição relata que, durante esta construção, teria havido disputas entre trabalhadores e os pedreiros sobre salários. E para apaziguar todo mundo e chegar a um acordo, o rei sábio teria dito” que cada um de vocês seja satisfeito, porque todos vocês vão ser pagos da mesma forma”. Mas ele deu os pedreiros um sinal de que os trabalhadores não tinham conhecimento. E aquele que podia fazer esse sinal onde os salários eram pagos, recebia como pedreiro; e os trabalhadores que não o conheciam, eram pagos como anteriormente. […] Assim, o trabalho evoluiu e progrediu e ele não poderia dar errado, já que eles trabalhavam para um mestre tão bom, e tinha o homem mais sábio como supervisor. […] para ter a prova disso, leia o 6 º e 7 º [capítulos] do primeiro Livro dos Reis; você encontrará ali o maravilhoso trabalho de Hiram durante a construção da Casa do Senhor.
Quando tudo acabou, os segredos da construção foram colocados em boa ordem, como eles são agora e serão até o fim do mundo […]”
Medimos facilmente a importância e o interesse maior das três narrativas principais. Sublinhemos apenas os pontos essenciais.
A primeira narrativa do Manuscrito Graham também é o primeiro texto da história maçónica que descreve um rito de erguimento de um cadáver associado aos Cinco Pontos do Companheirismo, atestados por sua vez, desde 1696 nos textos escoceses. O objectivo é tentar encontrar um segredo – não sabemos a que de resto se refere – que se perdeu com a morte de seu detentor. Associa-se a ele um trocadilho provável com “Marrow in the Bone” evocando bastante claramente uma expressão em M. B. É evidente que isso está relacionado “ao nome que ainda é conhecido pela Maçonaria de hoje”, que aparece como uma alternativa secreta. A característica mais notável é que não se vê aqui qualquer ligação com a arte da Maçonaria, especialmente que a personagem central não é Hiram, mas Noé…
A segunda narrativa descreve a personalidade de Bezalel possuidor de segredos maravilhosos relacionado com o Ofício, que serão comunicados apenas a dois príncipes. O ponto importante parece-nos aqui ser o epitáfio, evocando “o coração que soube guardar todos os segredos, a língua que nunca os revelou”. Este tema devemos observar, está ausente da primeira lenda.
Enfim, a terceira narrativa coloca em cena Hiram, “supervisor mais sábio da terra“, e que controlava provavelmente a transmissão aos bons trabalhadores do “sinal “, que dava direito ao pagamento de “pedreiros“. Notem-se especialmente aqui os segredos estão e permanecem bem guardados, que Hiram conclui o Templo, e que ele não morre de morte violenta…
A simples leitura destas três narrativas impõe uma constatação imediata: a sua superposição nos dá quase inteiramente em substância a lenda de Hiram conforme relatada pela primeira vez em 1730 por Prichard. A grande inovação é que Hiram-, cujo papel, respeitável, mas modesto, no Manuscrito Graham, é consistente um pouco com o que se costuma dizer sobre ele nas Antigas Obrigações-, e agora substitui Noé no rito de recuperação. É a Hiram, aliás, e não a Bezabel que agora pertencem “o coração que soube guardar todos os segredos, a língua que nunca os revelou”. Mas a terceira lenda do Manuscrito Graham não indica que Hiram teria recebido uma inspiração divina como “o santo Bezalel“?
Lembremos para o momento em que a natureza compósita da personagem de Hiram Abif da lenda do terceiro grau de Prichard, já evocada por várias razões, nós vimos, aparece aqui inequívoca. A lenda de Hiram, que se pode ou se deseja vincular a alguma fonte inspiração mais ou menos antiga é, sem dúvida, uma síntese tardia de várias lendas cuja antiguidade continua a nos ser desconhecida. A lenda dos três filhos de Noé, dado o papel que desempenha este personagem na história tradicional do Ofício dos Antigos Deveres, bem como a versão da vida de Hiram, relatada no Manuscrito Graham, são tão consistentes com os mais antigos textos da tradição maçónica Inglesa, que podemos sugerir fortemente, é claro, sem poder afirmar, que eles provavelmente eram parte de uma lenda bastante antiga, própria do Ofício.
De qualquer forma, foi estabelecido que em 1726 – ano em que, pela primeira vez nos anais da Maçonaria, temos provas documentais de iniciações em um terceiro grau em Londres – um texto maçónico nos mostra, portanto, que essa síntese, se já tivesse sido feita, nem sequer nos era ainda conhecida. Isso deve ser enfatizado, é uma conquista importante da pesquisa.
Interrompo aqui a análise das fontes desta lenda, sabendo que muitos outros pontos, poderiam ser levantados, e que várias questões correlatas permanecem sem resposta. Eu simplesmente quis pegar o exemplo desta lenda importante da tradição maçónica para sugerir como a maçonaria foi capaz de desenvolver e demonstrar como, sobretudo a complexidade que se encontra escondida debaixo da aparente simplicidade da maçonaria transmitida desde cerca de 270 anos.
Uma transição importante?
Eu gostaria, para encerrar, de propor algumas observações mais gerais.
Quando em 1691, um clérigo escocês, Robert Kirk definiu a maçonaria, ele simplesmente escreveu:
“É uma espécie de tradição rabínica em forma de comentário sobre Jackin e Boaz, os nomes das colunas do Templo de Salomão”.
Maçonaria é assim simples – o que não significa que ela não seja rica – e parece estruturada pelas duas colunas do Templo de Salomão. Esta é uma maçonaria sem lenda operativa se me permitem esta expressão. Neste sentido, o grau de Mestre hirâmico introduziu uma inovação pelo menos tão considerável quanto à formação de uma Grande Loja desde 1717, mas especialmente entre 1719 e 1723. Poderíamos, de resto, levar as duas iniciativas ao crédito dos mesmos personagens, ouvir os mesmo “sábios Doutores” tão violentamente denunciado por Briscoe em 1724.
Quando alguém se lança, como tentei fazer aqui numa espécie de arqueologia da lenda de Hiram, pode-se ver sem dificuldade que ela foi habilmente concebida para adornar uma maçonaria de um novo tipo, mais subtil, mais sofisticada, como se quisesse, talvez também mais aristocrática e mais selectiva, mais substancial para os espíritos elevados. Trazendo nos rituais o mesmo refinamento literário, bíblico e lendário numa palavra, que Anderson tinha agregado, ele mesmo, na reescrita completa da História do Craft à qual ele se entregou, em nome da Primeira Grande Loja, poucos anos antes – ou talvez precisamente na mesma época e num mesmo movimento.
Quero sugerir aqui que, se a história da lenda de Hiram não é exactamente sobreponível à história do grau de Mestre, que a inclui sem se inscrever inteiramente, essa lenda constitui certamente uma importante transição na história da primeira Maçonaria especulativa. Ao contrário das lendas do Ofício, mais ou menos modificadas, de tempos em tempos, de acordo com as transmissões, memória mais ou menos fiel e do imaginário colectivo, sem perspectiva ou plano concertado, todas as coisas que ela pode inspirar como vimos, a lenda de Hiram traduz, por outro lado, uma vontade, e é um facto radicalmente novo. Ela é o resultado de uma acção consciente e calculada visando à elaboração de conteúdos renovados, a serviço de uma visão diferente da instituição maçónica. A intenção era, através da estruturação de outro grau, criar menos uma aristocracia maçónica que favorecer uma maçonaria aristocrática. Esta lenda, que revela irresistivelmente um trabalho de estudioso, foi muito provável, no seu próprio princípio, um instrumento político na jovem Grande Loja de Londres.
De toda forma a história, como acontece tantas vezes, veio a transcender seus actores mais do que acreditam demasiado facilmente os autores. A lenda de Hiram, a sua missão cumprida, o novo grau de Mestre implementado e imposto gradualmente começou a viver a sua própria vida, incontrolável e imprevisível. Ela criou um novo conceito, prometeu um destino fabuloso, e que devia se declinar até o infinito nos altos graus de que ela foi o modelo fundador. Não é claro que o mais velho desses destes altos graus repouse sobre glosas, às vezes laboriosas e dolorosas, nos bastidores, os antecedentes ou as consequências da morte de Hiram?
Fomos, de resto, questionados sobre o que teria acontecido de a lenda não tivesse sido concluída, assim como Prichard a relatou, por uma palavra perdida, uma palavra substituída e um arquitecto tragicamente desaparecido. Vemos, com efeito, sem dificuldade a falha deste esquema: seria necessário reencontrar a palavra perdida e substituir o arquitecto, aqui está algo para escrever cinco ou seis outras lendas e um número igual de graus. Se a maçonaria se lançasse imediatamente, e por várias décadas, numa maravilhosa e às vezes louca empresa criadora de graus em busca da Palavra perdida, não é simplesmente porque os autores da lenda fundadora a construíram como uma narrativa aberta e inacabada? Imperícia ou génio? Ninguém pode responder.