quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

A Sabedoria no Martinismo


“Eu não tenho nenhuma dúvida de que ela possa nascer no nosso melo. Eu não tenho nenhuma dúvida de que o Verbo Divino também possa nascer aqui dessa forma, como nasceu em Maria.”

– Louis-Claude de Saint-Martin em carta ao Barão de Kirchberger


Louis-Claude de Saint-Martin, nosso querido filosofo low-profile dizia que todos nós somos de uma certa maneira, viúvos. A razão desta afirmação repousa no ensinamento gnósticos perpetuado pelo martinismo de que Adão, o ser humano original cujo germe todos carregamos perdeu em sua queda sua esposa celestial, Sophia.


Ensina o gnosticismo que Sophia é a parte feminina de Deus. E antes que alguém venha dizer que gênero não existe no plano espiritual é bom esclarecer que não estamos falando aqui de papeis culturais estabelecidos por primatas na terceira pedra depois do Sol, mas sim daquilo que os hermetistas chamam de lei da polaridade e o caibalion de Princípio do Gênero.


Há muito a se entender neste ensinamento. Sophia significa Sabedoria e por este nome é chamada em vários momentos na bíblia, principalmente nos livros Sapienciais do Antigo Testamento. 


No Livro da Sabedoria (7,22-30), um livro que se encontra nas versões mais antigas da bíblia mas que foi colocado como um apêndice por Lutero e posteriormente removido da bíblia pelos luteranos encontramos a informação de que Sophia é uma emanação puríssima do próprio Deus todo poderoso:


Tudo que está escondido e tudo que está aparente eu conheço: porque foi a sabedoria, criadora de todas as coisas, que mo ensinou. Há nela, com efeito, um espírito inteligente, santo, único, múltiplo, sutil, móvel, penetrante, puro, claro, inofensivo, inclinado ao bem, agudo, livre, benéfico, benévolo, estável, seguro, livre de inquietação, que pode tudo, que cuida de tudo, que penetra em todos os espíritos, os inteligentes, os puros, os mais sutis. Maiságil que todo o movimento é a sabedoria, ela atravessa e penetra tudo, graças à sua pureza.


Ela é um sopro do poder de Deus, uma irradiação límpida da glória do Todo-poderoso; assim mancha nenhuma pode insinuar-se nela.É ela uma efusão da luz eterna, um espelho sem mancha da atividade de Deus, e uma imagem de sua bondade. Embora única, tudo pode; imutável em si mesma, renova todas as coisas. Ela se derrama de geração em geração nas almas santas e forma os amigos e os intérpretes de Deus, porque Deus somente ama quem vive com a sabedoria! É ela, com efeito, mais bela que o sol e ultrapassa o conjunto dos astros. Comparada à luz, ela se sobreleva, porque à luz  sucede a noite, enquanto que, contra a sabedoria, o mal não prevalece.


Também em Provérbios (8,22-31), Sophia compartilha o trono celestial com Deus e colabora com este na criação do mundo:


“lahweh me possuiu no princípio de seus caminhos e antes de suas obras mais antigas.  Desde a eternidade, fui ungida; desde o princípio, antes do começo da terra.  Antes de haver abismos, fui gerada; e antes ainda de haver fontes carregadas de águas. Antes que os montes fossem firmados, antes dos outeiros, eu fui gerada. 26 Ainda ele não tinha feito a terra, nem os campos, nem sequer o princípio do pó do mundo.

Quando ele preparava os céus, aí estava eu; quando compassava ao redor a face do abismo; quando firmava as nuvens de cima, quando fortificava as fontes do abismo;  quando punha ao mar o seu termo, para que as águas não trespassassem o seu mando; quando compunha os fundamentos da terra, então, eu estava com ele e era seu aluno; e era cada dia as suas delícias, folgando perante ele em todo o tempo, folgando no seu mundo habitável e achando as minhas delícias com os filhos dos homens.


A participação da Sabedoria da Criação do Mundo també fez com que muitos autores a relacionasse com aquilo que Platão chamou de “Alma do Mundo” (Anima Mundi) e que explorou em obras como A República, Leis e Timeu. Esta ideia foi bastante influente no ocultismo em especial na alquimia e portanto merece ser aqui relembrada. A Alma do Mundo e um conceito cosmológico anterior ao Corpo do Mundo, mas que é agora inseparável da matéria.  É uma inteligência compartilhada, uma alma regente do universo através da qual o pensamento divino se manifesta em leis que afetam e conduzem a matéria. Segundo Platão, esta Alma foi formada (emanada diriam os neo-platônicos) pelo Demiurgo e envolve desde então todo Corpo do Mundo, e assim era identificada como a Abobada Celeste e colocando-se como uma mediadora entre Deus nas Alturas e sua criação terrena e um canal para que as energias divinas encarnassem no nosso universo.


Estes ensinamentos não foram explicitamente endossados por Aristóteles mas ressurgiu muitas vezes na história da filosofia, primeiro entre os estóicos e neoplatônicos e então reformulada entre os filósofos e alquimistas renascentistas.


Sophia na Mística Cristã

Sophia existe desde o início dos tempos, participou da criação do cosmos a renova esta criação desde então. Não é a toa portanto, em especial após a influência de Anselmo de Catenbury, os comentadores cristãos rapidamente a identificaram como uma antevisão do Logos, e portanto uma imagem de Cristo,  como vemos em João 1:1-3:


No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.

Ele estava no princípio com Deus.

Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.


A associação do Messias com este lado feminino e materno chegou ao ponto dele ser chamado ‘Jesus-Nossa-Mãe’. Citamos aqui Juliana de Norwich, famosa mística cristã e anacoreta inglesa em sua obra Revelações do Amor Divino (glifo nosso):


“É uma característica de Deus vencer o mal com o bem.


Jesus Cristo, portanto, que venceu o mal com o bem, é nossa verdadeira Mãe. Dele recebemos o nosso ‘Ser’ e é aqui que começa a Sua Maternidade E com ela vem a amável Proteção e Guarda do Amor que nunca deixará de nos envolver.


Assim como Deus é nosso Pai, Deus também é nossa Mãe.


E Ele me mostrou esta verdade em todas as coisas, mas especialmente naquelas doces palavras quando Ele diz: “Sou eu”.


Como se dissesse, eu sou o poder e a bondade do Pai, eu sou a Sabedoria da Mãe, eu sou a Luz e a Graça que é o amor abençoado, eu sou a Trindade, eu sou a Unidade, eu sou o supremo Bondade de todas as coisas, sou eu que te faço amar, sou eu que te faço desejar, sou a realização sem fim de todos os desejos verdadeiros.

Nosso Pai Altíssimo, Deus Todo-Poderoso, que é ‘Será’, sempre nos conheceu e nos amou: por causa desse conhecimento, por sua maravilhosa e profunda caridade e com o consentimento unânime da Santíssima Trindade, Ele quis que a Segunda Pessoa se tornasse nossa Mãe, nosso Irmão, nosso Salvador.

É assim lógico que Deus, sendo nosso Pai, seja também nossa Mãe. Nosso Pai deseja, nossa Mãe trabalha e nosso bom Senhor o Espírito Santo confirma; estamos, portanto, bem aconselhados a amar o nosso Deus por quem temos o nosso ser, agradecê-lo com reverência e louvá-lo por ter nos criado e rezar com fervor à nossa Mãe, para obter misericórdia e compaixão, e rezar ao nosso Senhor , o Espírito Santo, para obter ajuda e graça.


Os cabalistas cristãos como Marsílio Ficino e Pico dela Mirandola associaram Sophia com Shekinah, a “presença de Deus” sentida e experimentada no mundo, como na sarça ardente de Moisés, no Tabernáculo e no Templo de Salomão. Dentro da cabala cristã Shekinah é entendida como idêntica ao “Espírito Santo”, e assim o aspecto feminino foi reconhecido mais uma vez dentro da trindade.


Também alquimistas como como Paracelso, Giordano Bruno, enxergaram na figura de Nossa Senhora a manifestação histórica da Sabedoria. A virgem foi associada ao Mercúrio Filosofal, um conceito que é virtualmente idêntico ao Anima Mundi de Platão.


O importância de Sophia na Criação foi ainda destacada por diversos místicos cristãos, entre eles o rosacruz Henri Khunrath que a descreveu como a grande mediadora no casamento alquimico entre o Cristo e o homem.  Um século antes Valentin Weigel,  importante percursor luterano da teosofia no século XVI diz em sua obra diz que apenas pela União dos Aspectos masculinos e femininos de Deus, o Divino pode sair da eternidade e revelar-se no universo na figura do Messias.


Sophia no Martinismo

Dentro do martinismo esse assunto também foi bastante explorado. Jacob Boehme, como outros antes de depois igualou a Sophia a Sabedoria Bíblica e a Alma do Mundo platônica.


Boehme dizia poeticamente que Sophia é a Luz que jorra das sombras no momento em que Deus se revela. Assim ela surge primeiro instante da Criação e como a Virgem Celestial é o espelho no qual a própria  Divindade Se contempla. Como reflexo de Deus ela contém potencialmente todas as manifestações celestiais. Portanto podemos dizer que Sophia é inseparável do Adão primordial, a virgem viril feito de luz e não de carne.  Enquanto ele refletia os atributos divinos era um só com sua esposa celeste e por ela estava unido a Deus, quando se afastou destes atributos, perdeu seu corpo luminoso e ganhou um corpo de carne. Eis a queda do homem.


Tornando-se viúvo da Sabedoria, adquiriu um corpo de carne em uma grosseira aproximação de sua glória original e se dividiu em dois seres, homem e mulher, Adão e Eva expulsos do Paraíso. Eternamente em busca no outro do que falta em si mesmos. Este ensinamento antecipa em muitos séculos algumas ideias de psicanálise junguiana, mas ensina também que os seres humanos só poderão retornar a plenitude quando se reunirem de novo com Sophia, e isso só será conquistado após muito trabalho de regeneração espiritual conduzido pela via cardíaca.


Por sua situação atual esta união não está acessível facilmente ao homem encarnado. Ela só pode ser experimentada em ocasiões de intensa elevação espiritual. Nestes momentos privilegiados, ensina o martinismo, é possível aprender mais em alguns instantes do que seria possível aprender em toda uma vida de estudos e leituras.


Alguns discípulos de Boehme como  John Pordage e Jane Lead deram grande enfase a veneração de Sophia. Lead por exemplo registra que durante certa experiência espiritual viu uma mulher majestosa de rosto radiante pairando em nuvens de luz, identificando-se como “A Eterna Sabedoria de Deus” em imagens muito semelhantes as aparições marianas registradas pela história.


Outro estudante de Jacob Bohne, o pietista Johann Georg Gichtel escreveu de forma poética sobre o assunto em “Mistério da Sophia ou Sabedoria Divina” onde descreve Sophia como presidindo o casamento que une a alma regenerada ao seu corpo de luz reencontrado, habilitando-a a retornar a Deus.


Em “Ministério do Homem-Espirito” e ““O Quadro Natural das relações que existem entre Deus, o homem e o universo”, Louis-Claude de Saint-Martin, também trata dos mistérios de Sophia. Em sua obra Ela aparece tanto a fonte da Criação e a mediadora do processo de reintegração universal. Sophia reparece em seus livros como e espelho no qual a imaginação de Deus se reflete e se expande, e desta forma é indissociável da Unidade Divina. Ele também aprofunda a questão de sua ligação com o Adão Primordial e esclarece que ela era não apenas o “corpo glorioso” mas toda a Terra Espiritual na qual o este corpo foi formado. Quando este Adão Primordial voltou-se ao Mundo Material, cometeu uma espécie de adultério que o separou de sua esposa celestial e trocou sua morada como seu corpo espiritual pela matéria.


Saint-Martin também ensina que após a queda, Sophia interviu na encarnação do Cristo, pois antes de fazer-se carne revestiu-se de um corpo glorioso projetado no “Espelho da Eterna Sabedoria”. Assim podemos dizer que Sophia encarnou junto com Cristo no ventre de Maria de Nazaré, seu equivalente humano. A própria encarnação humana é um espelho do que veio antes quando Sophia acolhe Cristo em primeiro lugar, dai a importância de Maria entre os alquimista.


Em “Ministério do Homem-Espírito”, Saint-Martin sugere que esta mesma união é possível também a qualquer ser humano, após uma devotada via de evolução e purificação espiritual:


 “Não conseguiremos facilitar esta reintegração de princípios se  não tivermos feito renascer em nossa alma uma eterna virgem na qual possa se incorporar o filho do homem com suas virtudes e seus poderes, da mesma forma que não podemos fazer renascer em nós esta eterna virgem se não reanimarmos em nós mesmos o nosso corpo primitivo ou o elemento puro.”


Esta pureza é adquirida elevando-a gradativamente primeiro deixando que a Virgem Celeste desça e nos habite, depois acolhendo em seu Coração o Cristo e por fim promovendo o união de ambos para nos tornar novamente o espelho límpido da Realidade Divina. Para fazer isso é preciso nos vestirmos com o Manto de Elias, ou seja subirmos os Sete Mundo Celestes,  então nos tornarmos dignos de nos reunirmos a nossa perdida esposa celeste.

Jacques Bergier - Melquisedeque

  Melquisedeque aparece pela primeira vez no livro Gênese, na Bíblia. Lá está escrito: “E Melquisedeque, rei de Salem, trouxe pão e vinho. E...