sábado, 8 de dezembro de 2018

A Descida na Escuridão


Abandone a esperança, todos vós que entrais aqui!

—Dante, Inferno, Canto 3-

O que se segue é difícil e desconfortável. Hillman adverte que o nigredo “fala com a voz do corvo, predizendo acontecimentos terríveis”, e Dante nos diz: “Abandone a esperança, todos vós que entrais aqui”. Contudo, além dessas advertências, eu gostaria de fornecer algum encorajamento. O artista Ad Reinhardt apontou que temos uma tendência natural a nos afastarmos de tais experiências, mas ele nos encorajou a “esperar um minuto”, para manter-se firme – porque olhar para a escuridão requer um período de adaptação. A recompensa por ficar está disponível para aqueles que têm fé suficiente para resistir à “duração infinita”. Ficar com a escuridão permite que algo aconteça que nos escaparia se fôssemos precipitados. Se resistirmos à nossa tendência natural de fugir diante de experiências dolorosas, poderemos descer aos aspectos sombrios do inconsciente, o que é necessário se quisermos fazer contato com o que Goethe chama de “natureza infinita” . Virar-se para tal escuridão requer certa disposição para fazer companhia ao sofrimento e fazer uma descida ao inconsciente. A grande obra de Goethe, Fausto, foi essencial para Jung, que certa vez disse que “não se pode meditar o suficiente sobre Fausto” . Edinger também observou que esse trabalho é de “grande importância para a compreensão psicológica do homem moderno”.

Para Jung, Goethe estava nas garras de uma descida, um processo arquetípico, um processo também vivo e ativo dentro dele como substância viva, o grande sonho do mundo arquetípico. Era o principal afazer para Goethe e essencial para seu objetivo de penetrar nos segredos sombrios da personalidade. Na abertura de Fausto, magnum opus de Goethe, Fausto reflete sobre o nigredo da “noite”:

“Eu estudei agora, para meu pesar, Filosofia, Direito, Medicina, e – o que é pior – teologia de ponta a ponta com diligência. No entanto, aqui estou eu, um tolo miserável e ainda não mais sábio do que antes. Eu me tornei mestre e doutor também, e por quase dez anos eu levei meus jovens estudantes a uma feliz perseguição para cima, para baixo e de todas as formas – e descobrir que não podemos ter certeza. Isso é demais para o coração suportar! Bem posso saber mais do que todos aqueles idiotas, aqueles médicos, professores, oficiais e sacerdotes, não se incomodar com escrúpulos ou dúvidas e não temer o inferno nem seus diabos – mas também não me alegro com nada, não sei nada que eu ache que vale a pena e não imagine que o que eu ensino possa melhorar a humanidade ou torná-la piedosa. Nenhum cachorro iria querer ficar assim! … Ai! Eu ainda estou confinado à prisão, maldito buraco de pedra onde a luz do sol penetra através do vidro pintado. Restrito por esta grande massa de livros que vermes consomem, que a poeira cobriu e que até o teto-cofre estão intercalados com papéis sujos. E você ainda se pergunta por que seu coração está ansioso e seu peito contraído, por que uma dor que você não pode contar para inibe sua vitalidade completamente! Você está cercado, não pelo mundo vivo em que Deus colocou a humanidade, mas, em meio a fumaça e mofo, apenas por ossos de animais e dos mortos…sustentada pela esperança, a imaginação uma vez subiu ousadamente em seus voos sem limites. Agora que nossas alegrias estão destruídas no abismo do tempo, ela se contenta em ter um escopo limitado. No fundo do coração, ela rapidamente faz seu ninho, aí ela engendra tristezas secretas e, naquele berço inquieto, destrói toda a alegria silenciosa…”

Nessa condição da alma, neste berço de trevas onde a luz fraca do Sol mal penetra que encontramos o Sol Niger. Meu primeiro encontro com a imagem do sol negro começou inocentemente. Ocorreu enquanto trabalhava com uma mulher que relatou o seguinte sonho:

“Estou em pé na Terra. Eu penso: Por que eu deveria fazer isso quando posso voar?” Como estou voando, acho que gostaria de encontrar meu guia espiritual. Então eu noto, agarrando a minha cintura, uma pessoa. Eu acho que isso pode ser o meu guia. Eu ‘chego atrás de mim mesmo’ e puxo a figura para a frente para que eu possa olhar na cara. É uma jovem esquizofrênica. Eu sei que este não é o meu guia. Eu a coloquei de lado e continuei minha jornada para o sol. Pouco antes de chegar lá, um vento vem e me leva de volta à Terra.”

A jornada para o céu e para a ala solar é um tema comum, se não universal. James Hillman nos diz que “a vida humana não pode deixar de voar…enquanto respiramos ar e falamos ar, somos banhados em sua imaginação elementar, necessariamente iluminados, ressonantes, ascendentes”. Para ele, “aspiração, inspiração, o gênio é estruturalmente inerente, uma tensão pneumática dentro de cada alma”. A função da asa, nos diz Platão, é pegar o pesado e elevá-lo nas regiões acima, onde os deuses moram. De todas as coisas relacionadas com o corpo, a asa tem a maior afinidade com o divino. Temas semelhantes são confirmados na arte, no folclore, na mitologia clássica, na escultura e na poesia. O movimento para cima e para fora parece ter uma qualidade universal. Na festa de Ícaro, Sam Hazo escreve:

“O poeta imita Ícaro. Ele é inspirado a ousar a impossibilidade, mesmo que isso signifique que ele pode e possivelmente falhará na tentativa. Seu destino é tentar encontrar a língua do silêncio, para dizer o que está além dos dizeres, para cunhar do ar que ele respira um alfabeto que cativa como a música. Sua vitória, se é que chega, deve necessariamente ser uma vitória do instante, uma segunda fossa lírica de triunfo, rápida como um beijo”.

O estudo de Hazo sobre Ícaro valoriza a necessidade de fuga – se uma alma quiser ter um vida vibrante e criativa. É importante, como analista, aprender como sustentar essas ascensões pneumáticas e espirituais, conhecer o valor do espírito puro e, ao mesmo tempo, ter consciência dos seus perigos. Como uma mariposa atraída por uma chama, nossas almas icarianas estão em perigo quando, em nossas aspirações, nos esquecemos de nossos corpos na Terra e do chamado a uma vida integrada. Para analistas, se não para poetas, o “beijo rápido” deve estar ligado a um relacionamento mais estável com nossas possibilidades transcendentes, de modo que nossos olhos também estejam fixos em “asas de cera” e no perigo de almas queimadas e buracos negros.

Tivemos o benefício dos mitos de Phaethon, Ixion, Bellerephon e Ícaro para nos lembrar do lado perigoso de voar muito alto e muito perto do sol, de se tornar a presa de Poseidon. O problema para Ícaro não é que ele deseje voar (pois isso é uma emanação natural e saudável de nosso potencial constitucional), mas que há uma diferença importante entre uma imaginação corpórea fundamentada e um vôo gnóstico defensivo ou ingênuo que deixa o corpo e a escuridão para trás. Os analistas em geral aprenderam a olhar o “vôo” e o “espírito” com o olho de Brueghel, e não com o de Ovídio. Em Metamorfoses, Ovídio descreve “o espanto de um pescador, um pastor e um lavrador quando viram Dédalo e Ícaro voando pelo céu, um acontecimento que foi interpretado como uma epifania dos deuses.”

Esse espanto é ilustrado na queda de Ícaro por Petrus Stevens e Joos de Momper. Pieter Brueghel, por outro lado, em sua “Paisagem Com a Queda de Ícaro” (1558, Museu Real de Bruxelas), “inverteu o tema de Ovídio de enfatizar os humildes camponeses que continuam seu trabalho sem sequer olhar o céu ou, em Ícaro, este último reduzido a uma figura insignificante que caíra no mar.” Para os analistas, identificar-se com qualquer uma dessas perspectivas tem consequências ciclópicas. É importante olhar com os dois olhos, para ver através das perspectivas tanto de Ovídio quanto de Bruegel, com um olho para a epifania e para o mar da terra, ou nós mesmos estamos perdidos em unilateralidade.

O desejo de meu paciente de sair da Terra pode muito bem ter sido motivado espiritualmente, mas, em caso afirmativo, também foi uma fuga da dor associada à imagem da menina esquizofrênica limítrofe, uma imagem patológica de angústia psicológica. Pode-se imaginar a psique dizendo a ela: “Vire-se em direção a essa figura das trevas que se agarra a você. Esse é o seu guia.” Esse giro não era imaginável, e seu ego sonhador pneumático era dirigido com uma única intenção: ir para o céu, para o sol. Confrontando-se com essa direção estava o espírito do vento que a levou de volta à Terra e, no momento, a aterrou gentilmente. Na alquimia, é importante que o espírito pneumático permaneça em conexão com a Terra, como imaginado no Viridarium Chymicum de Stolcius. Na figura abaixo, o pássaro que voa alto está ligado à criatura pequena e lenta da Terra, que impede o espírito de voar para longe. Quando a ligação com a Terra não é honrada, o aterramento pode emergir inconsciente e severamente. Eu não posso dizer se o que se seguiu foi de alguma forma relacionado à negligência do lado sombrio da psique ou foi uma parte do seu destino biológico e espiritual, mas como o nosso trabalho continuou, encontramos um lado mais destrutivo da imagem do Sol Niger.

Em uma sessão analítica, minha paciente relatou que sentiu algo ameaçador em seu peito. Ela descreveu como uma bola escura que tinha longos fios atingindo todo o corpo. Sua inclinação era estender a mão e levantá-la. Entre as sessões, em uma imaginação ativa, ela desenhou a imagem que sentia estar alojada em seu peito. Era um sol brilhante com um denso centro preto e longos tentáculos fibrosos.

Depois de desenhá-lo, ela sentiu que a imagem não era suficientemente ameaçadora e sentiu a necessidade de desenhá-la novamente. Ela desenhou uma segunda imagem, na qual o centro preto tinha aumentado de tamanho e o brilho do amarelo foi substituído por um campo vermelho. As longas fibras negras permaneciam, e havia muitas formas negras circulares que meu paciente descreveu com horror como uma explosão de embriões mortos esqueléticos.

Era como se ela tivesse trazido à superfície um sol negro comprimido e explodindo que parecia prefigurar sua capacidade de verbalizar lembranças dolorosas de sua inquietação inassimilável e a loucura de seus sentimentos suicidas. Apesar dessa recuperação e do processo que iniciou, a imagem, como um demônio devorador, não diminuiu. Pouco depois, ela relatou um sonho em que sentia que uma guerra nuclear era inevitável. Enquanto lutava com essas imagens, ela sofreu um aneurisma na região anterior do cérebro e chegou perto da morte. Ela perdeu a visão em um olho, mas sobreviveu. Não pude deixar de sentir alguma ligação entre a imagem do sol negro e o incidente médico, que quase lhe custou a vida e levou à cegueira parcial. Isso me levou a pensar se havia algum incidente documentado de um tipo similar.

Ao pesquisar a literatura analítica, deparei com o caso de Robert, publicado pelo analista australiano Giles Clarke em Harvest (1983). Seu artigo é intitulado “Um Buraco Negro Na Psique”. Nele, ele descreve o caso de Robert, um homem de vinte e nove anos que estava lutando com algo que parecia impossível de integrar ou explicar em termos de teorias convencionais, psicodinâmicas. Clarke descreve um sonho de Robert, no qual há uma imagem de um buraco negro no qual o mundo todo desaparece. Astronomicamente, um buraco negro é um sol ou uma estrela que entrou em colapso sobre si mesmo, criando um vácuo que suga toda a matéria para dentro de si, uma “visão científica” do Sol Negro. Para Clarke, a psicologia do buraco negro está ligada ao fracasso da vida psíquica e a algo que é um objeto inassimilável e intolerável de ansiedade e pavor. Ele a conecta com uma espécie de atrofia crônica e psíquica que às vezes pode ser literalmente fatal. O sonho de Robert foi seguido por uma série de imagens perturbadoras e sintomas físicos debilitantes. Clarke relata imagens de um “bebê natimorto”, um “nascimento de mutante ou monstro”, abortos e um “aborto espontâneo”. Robert “desenvolveu enxaquecas, sua visão sofreu, seu paladar e olfato atrofiaram, e suas pernas formigaram e doeram”. Finalmente, Robert ficou gravemente doente e morreu de câncer.

Outro encontro com o sol negro é relatado no livro de Ronald Laing “O Self Dividido”, onde ele fala do surgimento do sol negro em seu tratamento de Julie, que foi diagnosticada com esquizofrenia. Por um lado, Julie imaginou ser qualquer um de um grande número de personalidades famosas, mas internamente não tinha liberdade, autonomia ou poder no “mundo real”. Como ela podia ser qualquer um que ela se importasse em mencionar, ela não era ninguém. Ela estava “aterrorizada pela vida: “a vida iria amassá-la como uma polpa, queimar seu coração com um ferro quente vermelho, cortar as pernas, mãos, língua, seios”. A vida foi concebida nos mais violentos termos e ferozmente destrutivos imagináveis. Ela afirmou que “nasceu sob um sol negro”, e as coisas que viviam nela eram bestas selvagens e ratos que infestaram e arruinaram sua cidade interior.

As imagens de Julie são ampliadas na descrição de Von Franz do  Sol Niger como o lado destrutivo do deus Sol, lembrando-nos que Apolo é o deus não só do Sol, mas também de ratos e lobos e que o lado escuro do Sol é demoníaco e seus raios queimam a vida até a morte. Ele é um deus sem justiça e traz a morte para os vivos. Laing prossegue observando que essa imagem antiga e muito sinistra do sol negro surgiu, para Julie, independentemente de qualquer leitura; ainda assim, ela descreveu a maneira como os raios do sol negro queimavam e a enrugavam, e sob o sol negro ela existia como uma coisa morta. Sua existência, então, foi retratada em imagens de dissolução e completamente árida. Essa morte existencial, essa morte-em-vida, era seu modo predominante de estar no mundo. Nessa morte não havia esperança, nem futuro, nem possibilidade. Tudo já havia acontecido. Não havia prazer, nenhuma fonte de satisfação possível, pois o mundo estava tão vazio e tão morto quanto ela.

Em Alchemy, von Franz escreve sobre o lado sombrio do Sol como destrutivo, injusto e demoníaco. Ela se refere a esse aspecto do Sol Negro, onde o sol é tão quente que destrói todas as plantas. Ela relembra uma história da Indochina que relata que um sol muito quente foi disparado ao amanhecer por uma figura de herói ligada a Saturno. Para Von Franz, a sombra do Sol como “um Sol sem justiça, que é a morte para os vivos”, reflete “uma consciência mal funcionante” que rejeita o lado de Deus. Ela afirma: “Se a consciência funciona de acordo com a natureza, a escuridão não é tão negra ou tão destrutiva, mas se o Sol ficar parado, fica enrijecido e queima a vida até a morte.””Quando a psique perde seu ritmo natural e se fixa em complexos, o inconsciente se torna destrutivo..

Essa versão do sol negro apareceu em minha análise de longo prazo com um padre católico. Houve um progresso significativo em sua análise de uma depressão séria e de desejos suicidas em curso, e ele estava em grande parte saudável, com exceção do que parecia ser um complexo crônico e mortal que ainda ocorria regularmente. Nestes momentos, ele sentia que estava em um “buraco negro”. Ele desligava o sentido maior de sua vida e queria morrer. Suas sensibilidades até então racionais pareciam estar ficando delirantes. Ele sentia que sua pele era muito ‘frágil’ para ele realmente aproveitar a vida e relatou que ele não poderia sair ao sol como pessoas comuns. Para ele, o Sol era vingativo e havia uma longa série de sonhos em que o Sol o queimava severamente.

O paciente relatou esse sonho: “eu estava descansando ao sol. Enquanto eu estava lá, o calor penetrou na minha pele e meus ossos se sentiram confortáveis. Em seguida eu estava tomando banho e mal pude tocar minha pele. Eu olhei com uma sensação de alarme, percebendo que minha pele estava muito vermelha em cada centímetro quadrado. Eu não sabia como isso aconteceu, exceto que a queimadura era completa. Minha pele estava vermelha e quente ao toque, tão queimada que mal consegui tocá-la. Eu sentia muita dor e não sabia o que fazer.” Nesse sonho, meu paciente pensava no sol como uma força hostil, não muito diferente daquela retratada pela pintura de William Blake, na qual ele é “uma esfera vermelha e sangrenta, desencadeando sua fúria em uma humanidade oprimida”.

No andamento dessa análise, o paciente e eu fomos capazes de descompactar uma quantidade considerável de significado relacionado a esse sintoma / símbolo / imagem do sol vingativo, incluindo um complexo paterno significativo, seu autodiagnóstico em chamas e as demandas abrasadoras de seu perfeccionismo e expectativas. Também discutimos a ideia do Self queimando suas inflações e ameaçando a postura do ego, fazendo com que seja doloroso até se mexer. Este trabalho provou ser valioso. Ao longo dos anos, houve períodos em que o Sol se tornou suave, aquecido e positivo, e sua pele estava bem bronzeada, integrando parte da escuridão. Na minha op  inião, ele era um padre que tinha aceitado uma boa parte da materia sombria, tanto pessoal quanto coletiva. Mas, apesar disso, seu sol hostil continuou a retornar. Depois de uma de nossas sessões, meu paciente escreveu a seguinte reflexão na qual ele estava tentando comunicar suas frustrações e a implacável dor que ele chamou de sua “barreira de pele”. Ele comparou isso ao seu trabalho nas escrituras e a um “texto teimoso” do qual não conssguia se livrar: “Isso desafia a interpretação que me satisfaz. Meu desejo é eliminar o texto, mas não posso. Eu não tenho escolha. O texto me confronta e tenho que lidar com isso. Eu muitas vezes odeio o texto! Eu gostaria que nunca tivesse sido escrito. Ainda tenho que lidar com isso. Meu refrão de pele é meu texto teimoso. Insisto em trazê-lo e voltar a ele, porque não estou satisfeito com nenhuma interpretação. Ainda não chegamos a algo com o que eu possa viver. É nesse momento crucial que digo que você não pode fazer nada por mim. Eu perco a confiança no nosso trabalho para resolver este problema.” Para meu paciente, tudo o que foi realizado não foi longe o suficiente. Ele estava pronto para parar o nosso trabalho “a menos que lidemos com o meu texto de pele teimoso para que eu possa viver”. Nossa capacidade de se relacionar com o que realmente se tornou um demônio ameaçador era, na melhor das hipóteses, uma tentativa que estragou a sua vida e o seu mundo tornou-se cada vez mais sombrio e deprimido. Ele afirmou que “a vida cheira mal” e que “o Sol” continuou a queimá-lo. Desde que ele sentiu que não havia razão para viver, a morte era a única coisa que era real.

Este aspecto do Sol Negro pode se mostrar quando a consciência se torna crítica. Alquimicamente, o calor é aumentado demais, e a pele do ego é queimada, enegrecida ou torturada com críticas pungentes, produzindo vergonha e ameaçando a integridade corporal. Hillman descreve um processo similar de mortificação – quando o ego se sente preso ou pregado. É um momento de sintomas e as “esmagadoras mortificações sádicas da vergonha” . Na figura abaixo, sentimentos semelhantes são expressos em um ponto de análise em que uma mulher estava revivendo sentimentos profundos de vergonha. Ela viveu “uma infância protegida” e descreveu “muita censura”, “sentir-se constantemente embaraçada” e inferior.

As faces masculinas da autoridade religiosa são “longas, severas, magras, com os olhos sem pestanejar”. Na pintura que ela fez, vemos o olho concentrado da autoridade masculina, que parece um mau olhado ou o lado sombrio dos “reis religiosos”, clérigos e bispos com suas mitras e custódia. Na extrema direita, uma figura segura a custódia, que aparece tradicionalmente como um raio de sol. A custódia é um utensílio que é usado para conter a presença da Hóstia consagrada, que se acredita ser a divindade viva, o Sol refletindo a imagem transformada do Deus-homem. Mateus 17: 2 diz: “e ele foi transformado diante deles e seu rosto resplandeceu como o sol, e suas vestes tornaram-se brancas como a luz”. Para nosso sonhador, o brilho do ostensório tornou-se monstruoso, as duas palavras – ostensório e monstruosidade – compartilhando a mesma raiz, e foi usado para envergonhá-la e atacá-la, funcionando como um Sol Negro, criando vergonha. O ataque de seus acusadores era também uma prova fálica prestes a arrebatar a mulher (note a cruz atrás dela).

Outra imagem do aspecto destrutivo do Sol Negro pode ser vista na vida do poeta Harry Crosby. A vida do poeta está em seus diários, intitulada Sombras do Sol, e na biografia de Wolff sobre ele, intitulada O Sol Negro: O Breve Trânsito e o Eclipse Violento de Harry Crosby. Crosby é descrito como um bonito e rico aristocrata que, com sua esposa, Caresse, escandalizou a sociedade de Boston. Caresse se divorciou de seu primeiro marido, Richard Peabody, sobrinho do lendário diretor de Groton, para se casar com Harry. Juntos, eles fundaram a Black Sun Press em Paris, que publicou excelentes edições das obras de Lawrence, Crane, Pound, Proust e outros. Um dos romances de Harry é retratado por Edward Germain em sua introdução a Shadows of the Sun. Ali, Germain sugere que é quase impossível não ler esses diários como o romance de oitenta anos do poeta com a morte, consumado no final da tarde de terça-feira, 10 de dezembro de 1929, em um apartamento emprestado em Nova York no Hotel des Aristes. Harry Crosby e uma de suas amantes tiraram os sapatos e deitaram-se juntos em uma cama. Então Harry apertou uma pistola automática belga de calibre 25 na têmpora esquerda de Josephine Rotch Bigelow e explodiu a cabeça dela. Por duas horas Harry pode ter ficado vivo ao lado dela com o braço embaixo da cabeça dela. Depois apontou a pistola para a testa e puxou o gatilho.

Para nossos propósitos, uma das conexões notáveis com nosso tema é a obsessão de Harry pelo sol, o que fica evidente em seu trabalho intitulado “Carruagem do Sol”. Alguns dos títulos de seus poemas são “Quadras do Dol”, “Rhapsodia Solar”, “Anjos do Sol”, “Sol-Fantasma” e “Sóis Em Perigo”. Muitos desses versos são obcecados pela morte, e pode-se imaginar como o biógrafo de Crosby, Geoffrey Wolff, que “o sol realmente derrubou Harry, inspirou-o e o cegou também” . Uma das imagens mais pungentes da obsessão de Harry com o Sol é retratada em seu poema “Heliofotografia”:

”Aqui encontra-se o Sol no meio da escuridão:

Negro Negro Negro Negro
Negro Negro Negro Negro
Negro Negro Negro Negro
Negro Negro Negro Negro

Sol

Negro Negro Negro Negro
Negro Negro Negro Negro
Negro Negro Negro Negro
Negro Negro Negro Negro”

Wolff está ciente de que “o sol negro não foi uma invenção de Harry”, e ele iguala-o ao Sol Níger dos alquimistas, “matéria prima, o inconsciente” no estado básico, não trabalhado. O que Germain sugere que Harry buscou, mas não conseguiu encontrar, foi a necessidade, como o Sol, de ressuscitar além de seu próprio pôr-do-sol, um projeto cheio de paradoxos e ambiguidades. Ele observa:

“O sol que deu mar, solo e vida também olhou para baixo sem piedade para suas criações e secou-as, queimou-as, e elas não conseguiram brilhar, piscando enquanto a vida falhava.”

Harry Crosby não foi o único poeta a lutar com o Níger Solis. Em sua obra intitulada “O Sol Negro: Depressão e Melancolia”, Julia Kristeva, linguista francesa e psicanalista lacaniana, escreve sobre o poeta Gerard de Nerval e seu poema “O Desdichado”, ou “Os Deserdados” (1859). Kristeva acredita que o poema foi escrito em um ataque de loucura em uma tentativa de superar um sentimento de privação e escuridão. Parece que Kristeva pode até ter derivado esse título de uma estrofe arrepiante no poema de Nerval que contém uma imagem do Sol Níger. A estrofe diz o seguinte:

“Eu sou saturnino – desolado, desconsolado,
O príncipe de Aquitânia que com a torre desmoronou: minha solitária estrela está morta – e é meu salário carregar o sol negro da Melancolia”.

O poema de Nerval é sua resposta à perda de um ente querido: “Minha solitária estrela está morta”. Para Nerval, ele é um despojado e seu mundo desmoronou, ou seja, a “Torre desmoronou”, por assim dizer, não “Sol Negro da Melancolia”. Para Kristeva, o “Sol Negro” é uma “metamorfose deslumbrante”, brilhante e negra ao mesmo tempo, um “coisa” que é acarinhada na ausência do olhar e marca uma perda irreparável. Tradicionalmente, pensa -se que o que se perde no luto comum não é isolado de um processo de luto em si, cujo resultado é perdido na memória ou, segundo Kristeva, na linguagem simbólica. No entanto, algumas pessoas que não podem deixar as coisas irem e que negam a perda, criam uma situação de luto irremediável e uma tristeza fundamental à qual se apegam. Para Kristeva, tal situação pode se expressar como um apego a um sol escuro, enterrado em uma cripta de inexprimível afeto saturnino. Esse tipo de presença interior é realmente uma ausência, uma luz sem representação, uma tristeza que é “a expressão mais arcaica de uma ferida narcisista não simbolizável e indizível” que se torna o “único objeto” de apego da pessoa deprimida.

Ao longo desse processo de pesar extraviado, a relação com um ente querido é transformada em apego a um afeto inexprimível, incorporado por engano. Esse afeto toma o lugar do outro; sua qualidade numinosa é mantida com adesão mística. Assim, em última análise, para Kristeva, o sol negro é uma “coisa”, uma marca de luto patológico, cujo brilho parece resumir a “força ofuscante de um humor desanimado”. Kristeva está ciente das associações alquímicas com Sol Niger e situa a melancolia de Nerval e o sol negro no contexto do nigredo alquímico, que “afirma a inevitabilidade da morte” e que, nesse caso, “é a morte do ente querido e do eu que se identifica com o próximo”. Para Kristeva, Nerval era um “viajante incansável” que, depois de um “ataque de loucur, retirou-se por algum tempo da cripta de um passado que o assombrava”. Seu mundo estava cheio de “sepulturas” e “esqueletos” e “inundado de irrupções de morte”. Foi em tal contexto, diz Kristeva, que Nerval escreveu “O Dedertado”.

Kristeva chama o poema de Nerval de “arca de Noé”, embora temporária – temporária porque Nerval parece ter cometido suicídio. Na madrugada de 26 de janeiro de 1955, Nerval foi encontrado pendurado na Rue de la Vieille-Lanterre. Na análise de Kristeva, embora o Sol Niger possa ter servido para inspirar o processo criativo de Nerval, isso significa, em última instância, repressão e morte em massa. Para Nerval, a aspereza de Saturno impedia a vida humana e ligava o deus ao aspecto literal da morte do sol negro e ao seu papel de ogro e pai terrível. Este aspecto de Sol Niger – a destruição como o resultado inevitável da criação – pode ter sido a origem do mito de Saturno devorando seus filhos assim que Rhea deu à luz a eles. Na pintura “Saturno e Seus Filhos”, de Marten van Heemskerck, Saturno é retratado como o impulso para devorar seus filhos, um processo que tem sido ligado à melancolia, e que está escrito na imagem ao lado de Saturno. Sua cor é considerada negra e também está associada ao inverno, à noite, à morte e à distância.

Jung e Von Franz ligaram Saturno a Sol Niger, e Hillman reuniu uma rica fenomenologia das características do deus “da astrologia, da medicina dos humores, da tradição e iconografia [e] das coleções dos mitógrafos. Hillman confirma o aspecto mortal de Saturno: “O emblema senex do crânio significa que todo complexo pode ser imaginado a partir de seu aspecto de morte, seu núcleo psíquico final onde toda a carne e aparência são removidas e não há nada desses pensamentos esperançosos que poderia vir a ser a interpretação ‘final’ do complexo no seu fim.” Além disso, e em conexão com seu aspecto da morte, Saturno também está ligado a ideias sobre a Terra e o tempo. Às vezes, Saturno é um grande mestre, como era o caso de um homem que, ao se aproximar da meia-idade, estava preocupado com o “tempo passando”, “envelhecimento” e, finalmente, com “morte”.

Um ex-paciente em minha clínica ilustrou alguns desses temas. O paciente tinha acabado de completar quarenta anos e estava lutando com o que passamos a chamar de questões da meia-idade, incluindo um confronto com doenças, pais idosos e a perda de um ente querido. Esses conflitos precederam o seguinte sonho: “estou em um espaço aberto. O chão é de cor alourada e há um círculo grande e muito escuro, com muitos metros de diâmetro, talvez uns quarenta. É uniformemente escuro (como a pele de um africano) com bandas concêntricas pouco visíveis que irradiam do centro. Muitos homens africanos altos aparecem. Eles são tão negros que quase têm um brilho azulado. Eu também faço parte de uma equipe e descubro que vamos fazer algum tipo de dança nesse círculo. Há um outro homem branco, e nenhum de nós está familiarizado com essa dança, então tentamos nos unir para não nos destacarmos individualmente. No entanto, outros homens africanos preenchem rapidamente o espaço entre nós e estamos separados. Os africanos são amigáveis, mas são ferozes. Todo mundo fica com as mãos como se estivéssemos prontos para fazer flexões, com as cabeças apontadas para o centro do disco preto. Nossas pernas irradiam para fora como os raios de uma roda. Agora temos que correr no sentido horário na posição de flexão, um pouco como um caranguejo. É muito difícil de fazer pois leva uma força considerável. Fico feliz de estar fazendo minhas flexões. Percebo que estamos fazendo algum tipo de dança do sol e que representamos os raios do sol enquanto percorremos seu perímetro”.

O paciente tinha muitas associações e lembranças ligadas a essa imagem. Aqui quero me concentrar em sua angústia em se tornar um homem de quarenta anos. Ele notou que não estava se sentindo bem e relatou uma condição terrível, incômoda, dores de cabeça e muitas idas ao médico. Ele afirma que estava começando a sentir os efeitos do tempo e da perda e que, recentemente, também havia sofrido muita exposição à mortalidade. Ele queria “fazer as pazes” com seus medos ou sentir que eles poderiam assustá-lo de outras maneiras “além do óbvio”. Ele comentou que “quando sua vida está cheia. . .então você sente a sombra como um ladrão” e lembrou-se de alguém dizendo que “é uma coisa assustadora amar o que a mão da morte pode tocar”. Ao participar do ritual temporal de se mover no sentido horário em torno de Sol Niger, o paciente se viu em um relacionamento com as mesmas coisas que ele teme. Sendo assim, era difícil, como fazer um exercício no qual ele se aproximava do núcleo escuro e depois empurrava para cima e para longe dele, o tempo todo se movendo para o lado como um caranguejo junto com o fluxo do tempo. É digno de nota que seu signo solar é Câncer, o caranguejo, e que o sonhador passou a sentir que seu movimento refletia sua própria identidade e destino. Na parte inferior da imagem original havia duas fotos não mostradas aqui para fins de anonimato: um dos sonhadores usando óculos de sol, com seu cachorro, e o outro de um africano tão negro que ele tem um brilho azulado.

Enquanto o sonhador refletia sobre o sonho, sentia que estava sendo iniciado no tempo e em sua mortalidade humana. Ele teve que se conectar com essa escuridão e se juntar à primordial dança humana com o ciclo do tempo. A importância da dança como uma forma primordial de encenação ritual é descrita pelo poeta Gary Snyder, que afirma que a dança já teve uma conexão com o “drama ritualístico, a imitação de animais ou o traçado do labirinto da jornada espiritual”. Snyder acredita que perdemos contato com essa conexão e que é tarefa do dançarino e do poeta recuperá-la – “para nos colocar em contato com nossas raízes arcaicas, com o mundo em sua nudez, é fundamental para todos nós: nascimento – amor – morte e o simples fato de estar vivo”. A importância do ritual e da iniciação como temas ligados à dança também é elaborada por Steven Lansdale, que observa que as cerimônias e danças iniciáticas têm a intenção de ensinar aos iniciados o que eles precisam para sobreviver em ambientes hostis. Para nosso sonhador, encarar as questões da meia-idade eram realmente duras realidades, e, neste caso e em escala pessoal, poderíamos imaginar a arte do sonho servindo uma função singular ao artista criativo ao atrair o espírito ascensional para o corpo, o sentimento e tempo. Esse movimento descendente também requer um tipo de morte, em que nos aproximamos das forças misteriosas da criação e da destruição.

A expressão espontânea do sol negro também pode ser encontrada na arte de crianças traumatizadas. Em seu trabalho, os pesquisadores Gregorian, Azarian, DeMaria e McDonald estudaram crianças armênias que foram traumatizadas por terremotos e que haviam testemunhado “morte e destruição esmagadoras”. Nestas imagens, o sol negro aparece frequentemente sobre o local em que o trauma aconteceu como experiência. Um exemplo particularmente notável é mostrado na figura a seguir, uma imagem feita por uma menina de sete anos de idade, Varduhy, que foi traumatizada por um terremoto. Aqui o sol negro está no céu acima dos prédios destruídos cercados por nuvens vermelhas de fumaça. Foi relatado que ela começou a temer tudo em seu mundo: o sol, a chuva, o raio, o granizo, os animais, os edifícios e assim por diante. Os autores notaram tiveram um espanto ao encontrar essa imagem “um tanto incomum” em seus estudos de arte infantil, mas também comentaram que as referências a ela “podem ser encontradas em muitas fontes diferentes”.

Por exemplo, existem vários tipos de sóis negros usados com significados diferentes nas tradições mitológicas e metáforas da poesia em todo o mundo. Primeiro de tudo, o sol negro tem sido referido como uma imagem apocalíptica indicando escuridão e melancolia, medo e terror, morte e não-ser, retribuição e esquecimento. É digno de nota que, nas passagens bíblicas, o sol negro está ligado a terremotos: a terra tremerá diante deles, os céus tremerão. O sol e a lua serão escuros.E, novamente, no livro de Apocalipse: Quando ele abriu o sexto selo, eu olhei, e eis que houve um grande terremoto; e o sol ficou negro.

Os autores do estudo das crianças mencionado anteriormente concluem que “quando terremotos e outros desastres naturais” ocorrem, “o senso de segurança é questionado e colocado em questão”. “O próprio sol sempre foi sinônimo de luz, compreensão, o racional, o lógico, o vivificante. No entanto, para essas crianças, o sol é pintado de preto. O doador de vida ficou escuro. O racional tornou-se irracional, a clara lucidez do sol foi eclipsada pela escuridão e a noite do desastre e do trauma. Essa descrição é pertinente à próxima série de pinturas, feitas por uma mulher em uma análise de longo prazo.

Sua primeira imagem tem um toque estranho. O sol negro acima é surpreendente já que a cena, reproduzida  em escala de cinza, na pintura original parece agradável e colorida. As montanhas verdes, as águas azuis e a vida aquática, à primeira vista, podem dar a impressão de que tudo está bem, o que nos leva a pensar sobre o surgimento do Sol Niger em tal contexto. Em uma inspeção mais detalhada, é importante notar que o rosto da sereia é altamente estilizado, feito com delineador, rouge, batom e assim por diante.

Essa persona foi um fator importante que encobriu sua escuridão interior. Outro detalhe que se pode ligar ao Sol Niger é a âncora negra na cauda da sereia, que talvez a esteja puxando para sentimentos mais profundos e que, curiosamente, chama nossa atenção para um tubarão que parece estar atacando ou pronto para atacar. O rosto da sereia, como o rosto do meu paciente, não registra a dor interior. Em outra pintura (não incluída neste livro), um tema semelhante é continuado em um retrato de uma mulher infantil com uma corda em volta do pescoço e um céu escuro atrás dela. Como a sereia, a figura tem um rosto sorridente incongruente e parece totalmente inconsciente das implicações horripilantes de sua situação. Mais tarde, o paciente escreveu o seguinte poema:

“Quebrado…
…como uma vidraça quebrada por uma tempestade
Cada minúsculo pedaço de mim está espalhado muito além do reparo…
Todos os meus brilhantes sonhos apenas caídos ali…”

O que aconteceu no decorrer da análise foi a história de uma infância horrível envolvendo abuso sexual emocional,) e físico. Minha paciente relatou que sua mãe a acorrentou ao berço, a abandonou e lhe disse que desejava que ela nunca tivesse nascido. Seus aniversários eram sempre marcados por essa declaração da mãe e, em vez de achar que seu nascimento era algo a ser celebrado, ela não sentia nada além de vergonha. Eventos como esses deixaram a paciente se sentindo muito pequena e alienada, trancada e desconsiderada, jogada no lixo.

A primeira é a imagem de uma criança pequena em uma cadeira gigantesca com enormes portas fechadas ao fundo; outra pintura retrata uma criança em uma lata de lixo com uma figura materna aparentemente jogando um sapato por uma janela. Parece que, para ela, o sapato caiu. Seguindo essas auto-expressões dramáticas, havia dois autoretratos. No primeiro, ela é uma árvore despojada; todas as suas folhas são azuis. Ela escreve em um dos ramos: “Sem respeito próprio”, e o sangue de seu coração se derrama sobre a cabeça como a vermelhidão da vergonha e da raiva crescente. Com o tempo, sermões e clichês do falso eu não mais funcionaram para ela, e seu humor sarcástico veio à tona. Em resposta àqueles que diriam coisas para ela, como “é melhor ter amado e perdido do que nunca ter amado”, ela escreve ao lado de seu segundo autoretrato estas linhas: “Sim, certo. E é melhor esquiar e quebrar todos os ossos do seu corpo do que nunca ter esquiado! E é melhor ter criado pitbulls e ser despedaçado do que nunca ter criado pit bulls! E suponho que é melhor ter bebido limpador de ralo e dissolvido suas entranhas do que nunca ter bebido limpador de ralo?” O peso desses sentimentos contribuiu para que ela se sentisse alienada de si mesma e de Deus, sem saber para onde ir. Às vezes, esses sentimentos levaram à ideação suicida e ao desejo de dizer adeus a esse mundo. Em um ponto de nosso trabalho, ela produziu o seguinte desenho que resumia seus sentimentos de estar oprimida por suas emoções.

(Imagem)

Este trabalho se assemelha a uma mortificação pessoal na qual ela enfatiza seus sentimentos de inadequação, aprisionamento, luto, imobilização, desesperança, inutilidade, fragmentação, desorientação, ressentimento, perda, caos e vazio. O polvo não é capaz de agitar-se para o alto e para fora das articulações, que se estendem, agarram-se e estão ligados a um centro escuro. Eu acho que não é muito difícil ver o polvo, com o seu centro escuro e penetrante, tentáculos semelhantes a raios, como a outra versão do Sol Niger.

Em nossa análise e descida à escuridão, descobrimos que o Sol Niger está presente em suas formas mais literais e destrutivas, em incidentes de destruição fisiológica e psicológica, aneurismas cerebrais, cegueira, câncer, esquizofrenia, delírios, desespero, depressão, mortificação narcisista, humilhação, dor, assassinato – suicídio, trauma e morte – é um spoiler geral da vida. Podemos começar a imaginar o que os alquimistas chamam de domínio da experiência nigredo. “Nicholas Flamel afirmou que na época do nigredo, a “matéria é dissolvida, é corrompida’”. Tais experiências têm estado conosco desde tempos imemoriais; a vida pode ser cruel, e a barbárie dos seres humanos em relação um ao outro reflete essa selvageria. O universo – apesar de toda a sua luz criativa e beleza – dá pouco consolo às almas devastadas enquanto viajam pela vida. À luz fria do sol negro, entendemos o que Conrad chama de “coração das trevas” e o horror do “choro” tão vividamente retratado por Eduard Munch e os alquimistas. A face fria do Sol Niger é, como observa a analista junguiana Sylvia Perera, “totalmente indiferente” e age como um franco-atirador ou terrorista com um abandono sombrio em nome de algum sol infernal para destruir a luz e a própria vida. Para Perera, esse é o reino da deusa suméria Ereshkigal, rainha do Mundo Inferior e dos mortos, “ilimitada, irracional, primordial”. Ela diz, ecoando o que foi documentado até agora, que esse reino contém uma energia que começamos a conhecer através do estudo dos buracos negros e da desintegração dos elementos, bem como através do processo de fermentação, decadência e atividades cerebrais inferiores que regulam o peristaltismo, a menstruação, a gravidez e outras formas de vida corporal.

Ereshkigal é como Kali, que através do tempo e do sofrimento implacavelmente desmorona todas as distinções em seus fogos indiscriminados. Ela simboliza o abismo que é a fonte e o fim, a base de todo ser. Nesse aspecto negro, Kali, a deusa hindu associada à morte e descrita como “uma das personificações mais inebriantes da energia primordial no drama cósmico” é adorada pelos tântricos.

Os tantricos acreditam que “sentar ao lado de cadáveres e outras (horripilantes) imagens da morte” no terreno de cremação acelera seus esforços para libertar-se do apego ao ego e ao corpo. A figura abaixo, uma imagem pintada pelo artista Maitreya Bowen, retrata o terrível aspecto de Kali em uma forma que lembra o sol negro. Em uma de suas mãos esquerdas, Kali segura uma cabeça decepada, indicando a aniquilação do ego, e em outra ela carrega a espada da extinção física. Em volta do pescoço estão muitos crânios humanos, que refletem o processo de morrer, que ela representa. Imagine cada um desses crânios como representando um caso em que o Sol Niger terminou com uma partícula da alma humana.

Vemos Kali em seu aspecto hediondo copulando com Siva. Seu ato de amor acontece no corpo de um cadáver que está queimando em uma pira funerária. Os cemitérios eram os lugares favoritos dos ritos tântricos porque o ser humano espiritual surge resplandecendo da morte simbólica do corpo. No poema “Kali, A Mãe”, Swami Vivekananda, um famoso discípulo de Sri Ramakrisna, que trouxe os antigos ensinamentos da Vedanta para o Ocidente, escreve sobre o terror e a necessidade de abraçar sua deusa:

“Kali, a mãe. As estrelas são apagadas.
As nuvens cobrem as nuvens.
É a escuridão vibrante, sonora.
No rugido, vento girando
São as almas de um milhão de loucos
Apenas soltos da prisão
Arrancando árvores pelas raízes
Varrendo tudo do caminho
O mar se juntou à luta
E agita as ondas da montanha
Para alcançar um céu inclemente
O lampejo de luz lúgubre
Revela por todos os lados
Mil e mil tonalidades de Morte sujas e negras – Dispersões de pragas e tristezas
Dançando loucas de alegria
Venha Mãe, venha! Pois o terror é o teu nome, a morte está na tua respiração, e cada passo tremendo destrói o mundo para você
Tu tempo, o Todo-destruidor!
Venha, ó mãe, vem!
Quem se importa com o amor da miséria
E abraça a forma da dança da Morte
Dança na Destruição, Para Ele a Mãe vem”

Para o poeta May Sarton, o que precisamos abraçar é expresso em um poema chamado “A Invocação de Kali”:

“O reino de Kali está dentro de nós. A destruidora, a deusa selvagem, acorda no escuro e tira nosso sono. Ela se move através do sangue para envenenar a gentileza. Ela nos impede de ser o que desejamos ser; a ternura murcha sob suas leis de ferro. Podemos segurá-la como um lunático, mas é ela que desce, que está sangrando com suas garras. Como, então, libertá-la ou chegar a um acordo com o próprio vulcão, o poder feroz da erupção de ferimentos, gritos de alarme? Kali entre seus crânios deve ter sua hora.

Um quadro de Kali do século XIX de Kali mostra um reino terrível, onde a cura e transformação permanecem como dúvida. Hillman distingue entre a jornada noturna do herói e a descida ao submundo. A principal distinção que Hillman faz é que o herói “retorna da jornada marítima noturna em melhor forma para as tarefas da vida, enquanto a nekyia leva a alma para a profundidade por si mesma, de modo que não há ‘retorno’”. Não há benefício óbvio para justificar a descida às trevas. Hillman, como Jung, vê com um olhar obscuro que se recusa a voltar-se para as devastações da alma humana através de qualquer perspectiva salvacionista teleológica ou simplesmente inocente. Sua visão é gelada e compara o inferno mais profundo com o reino dos pântanos de Cocytus, o lago congelado do nono círculo de Dante, onde há uma ausência de calor humano e onde o sentimento de escuridão é transmitido pela ausência de contraste na luz fraca

A estudiosa Dorothy Sayer diz: “Sob o clamor, sob os círculos monótonos, sob as chamas do Inferno, aqui no centro da cidade perdida, jaz o silêncio, a rigidez e o eterno frio congelador”. Uma das mais profundas descrições deste estado foi escrita pelo filósofo romeno Emil Cioran (1911-1995) em “Nas Alturas do Desespero”. Cioran foi chamado de “conhecedor do apocalipse, um teórico do desespero”. Aqui está uma passagem extensa de sua reflexão “sobre a morte”:

“Por que não queremos aceitar que se pode nutrir meditações vivas sobre a morte e o mais perigoso? Questão existente? A morte não é algo de fora, ontologicamente diferente da vida, porque não há morte independente da vida. Entrar nos estado de morte não significa, como comumente se acredita, especialmente pelos cristãos, dar o último suspiro e passar por uma região qualitativamente diferente da vida. Significa, ao contrário, descobrir no curso da vida o caminho para a morte e encontrar, nos sinais vitais da vida, o abismo imanente da morte. Para o cristianismo e outras crenças metafísicas na imortalidade, a passagem para a morte é um triunfo, uma abertura para outras regiões metafisicamente diferentes da vida. Ao contrário de tais visões, o verdadeiro sentido de agonia parece-me estar na revelação da imanência da morte na vida. Ver como a morte se espalha neste mundo, como mata uma árvore e como ela penetra nos sonhos, como ela murcha uma flor ou uma civilização, como ela atormenta o indivíduo e a cultura como uma praga destrutiva, significa estar além das lágrimas e arrependimentos, além de sistema e forma. Quem não experimentou a terrível agonia da morte, erguendo-se e espalhando-se como uma onda de sangue, como o aperto asfixiante de uma cobra que provoca alucinações aterrorizantes, não conhece o caráter demoníaco da vida e o estado de efervescência interna do qual surgem grandes transfigurações. Tal estado de embriaguez negra é um pré-requisito necessário para entender por que alguém deseja o fim imediato deste mundo. Não é a embriaguez luminosa do êxtase, em que as visões paradisíacas conquistam-no com seu esplendor e elevam-se a uma pureza que sublima a imaterialidade, mas uma louca, perigosa, ruidosa e atormentada embriaguez negra, na qual a morte aparece como uma horrível sedução. Experimentar tais sensações e imagens significa estar tão próximo da essência da realidade que tanto a vida quanto a morte abandonam suas ilusões e alcançam em você sua forma mais dramática. Uma agonia exaltada combina vida e morte em um horrível turbilhão: um satanismo bestial toma lágrimas da volúpia. A vida como uma longa agonia no caminho da morte nada mais é do que outra manifestação da dialética demoníaca da vida, na qual as formas são dadas apenas para serem destruídas. O sentimento do irrevogável, que aparece como uma necessidade inelutável indo contra a corrente de nossas tendências mais íntimas, é concebível apenas por causa do demonismo do tempo. A convicção de que você não pode escapar de um destino implacável e que o tempo não fará nada senão desdobrar o dramático processo de destruição é uma expressão de agonia irrevogável. O nada não é, então, salvação? Mas como pode haver salvação no nada? Se a salvação é quase impossível através da existência, como pode ser possível através da completa ausência de existência? Como não há salvação nem na existência nem no nada, que este mundo, com suas leis eternas, seja despedaçado!

Cioran, como Hillman, tenta enxergar além das fantasias salvacionistas. Sua descrição fere nosso narcisismo e afronta nossos egos e é uma violência para nossas identidades complacentes. Para o analista junguiano Wolfgang Giegerich, esse corte doloroso é necessário; a alma deve ser arrancada com violenta inversão de orientação. Para ele, o ‘mortificatio’ e o ‘putrefactio’ são operações lógicas no imaginário material e químico, mas, se o são, é importante não perder de vista o fato de que essas operações são dolorosamente pessoais e resistem à nossa dialética edificante. O último sentimento de Cioran é repetido em Job na excelente tradução de Stephen Mitchell. Job grita:

“Amaldiçoado o Dia em que nasci e a Noite que me forçou a sair do útero. Esse dia lance trevas na memória; deixe que nunca seja criado; deixe afundar de volta no vazio. Deixe o caos dominá-lo; deixe nuvens negras dominá-lo; deixe o sol ser arrancado do céu. Deixe o esquecimento encobrir isso; deixe os outros dias negarem isso; deixe os eons engolirem isso. Naquela noite, que nenhuma criança que nasceu seja bendita, que nenhuma mãe tenha gritado de alegria. Deixe os feiticeiros acordarem a Serpente para destruir esse dia com a praga eterna. Deixe as estrelas que brilhavam nesse dia se extinguirem!”

Fonte:https://www.projetozarzax.com.br/alquimia-proibida/