1. INTRODUÇÃO
Anna Kingsford foi uma grande pioneira em sua época. Dotada de faculdades psíquicas e de um intelecto brilhante, foi defensora incansável do vegetarianismo e uma militante contra a vivissecção de animais. Foi porta-voz dos direitos das mulheres, da doutrina da reencarnação e de uma nova interpretação simbólica (e não histórica) das Escrituras cristãs. Após ter presidido a Loja de Londres (LL) da Sociedade Teosófica (ST), fundou a Sociedade Hermética. Escrevendo sobre Anna Kingsford, por ocasião de sua morte, Helena Petrovna Blavatsky (HPB) reconhece suas imensas capacidades e o valor de seu trabalho, assim se expressando:
“Poucas mulheres trabalharam mais intensamente do que ela, ou em causas mais nobres; nenhuma com mais sucesso na causa do humanitarismo. (...) Poucas mulheres escreveram de forma mais gráfica, mais cativante, ou possuíram um estilo mais fascinante.
“O campo de atividades da Sra. Kingsford, entretanto, não estava limitado ao plano puramente físico, ou mundano, da vida. Ela era uma teósofa, uma verdadeira teósofa de coração; uma líder de pensamento espiritual e filosófico, dotada com os mais excepcionais atributos psíquicos. (...) embora suas idéias religiosas diferissem grandemente em alguns pontos da filosofia oriental, permaneceu um membro fiel da Sociedade Teosófica e uma amiga leal de seus líderes. Foi alguém cujas aspirações da vida inteira estiveram sempre voltadas para o eterno e o verdadeiro. Uma mística por natureza – das mais ardentes, para aqueles que a conheceram bem – ela era, ao mesmo tempo, mesmo na opinião de materialistas e descrentes, uma mulher extraordinária.” (CW IX, 89-90)
A Condessa de Wachtmeister, descrevendo a visita de alguns dias que Anna Kingsford fez a HPB em 1886, que estava então em Ostende, Bélgica, relata o embate intelectual que as duas senhoras travavam, partindo de pontos de vista aparentemente opostos e finalmente se encontrando:
“era interessante para mim ouvir diferentes pontos da Doutrina Secreta sendo discutidos dos pontos de vista oriental e ocidental do ocultismo. Os poderosos intelectos dessas duas talentosas mulheres se envolviam em animadas discussões, começando de pólos aparentemente opostos. Gradualmente, as linhas de seus argumentos pareciam aproximar-se, até que finalmente se fundiam em uma unidade. Novos tópicos então surgiriam, os quais seriam disputados da mesma maneira magistral.” (Wachtmeister, 58)
Sua linha de pensamento adaptada ao Ocidente, orientada para o resgate da tradição cristã esotérica do Ocultismo ocidental, bem como sua luta pelo vegetarianismo e seu amor pelos animais atraíram a atenção do Grande Chohan, provocando sua inusitada interferência na crise da Loja de Londres, como explicou o Mestre KH em carta para Sinnett, em janeiro de 1884:
“eu mesmo estou simplesmente cumprindo a vontade de meu Chohan (...) É suficiente que você saiba que a sua luta contra a vivissecção e sua dieta estritamente vegetariana, conquistaram completamente, para o seu lado, nosso austero Mestre.” (MLcr-119, 406; ML-86)
Quem era esta mulher que discutia de igual para igual com HPB e cujo trabalho cativou a atenção do Maha Chohan? Esse artigo oferece uma resposta a essa pergunta, apresentando um resumo da vida e dos trabalhos de Anna Kingsford, principalmente focalizado em seu envolvimento com HPB e com a Sociedade Teosófica.
2. EDWARD MAITLAND: SEU GRANDE COLABORADOR (1874)
Anna Bonus Kingsford nasceu em 16 de setembro de 1846, na Inglaterra. Em 1867 casou-se com o reverendo anglicano Algernon Godfrey Kingsford, com quem teve uma filha. Para desgosto do marido, em 1870 entrou para a Igreja Católica. Entre 1872 e 1873 editou um jornal ligado aos direitos femininos. (CW IX, 439) Em 1873 conheceu Edward Maitland o qual veio a ser, com o consentimento do reverendo Algernon, o acompanhante de Anna durante o tempo que estudou Medicina em Paris, a partir de 1874. Para evitar falatórios os dois se apresentavam como tio e sobrinha.
Anna tornou-se vegetariana nesse período e sua tese de conclusão do curso foi sobre a alimentação vegetariana para o ser humano. Posteriormente, ela foi revisada e publicada sob o título de O Caminho Perfeito em Dieta (The Perfect Way in Diet). O vegetarianismo e a luta contra a vivissecção se tornaram causas que defendeu publicamente pelo resto de sua vida. (Godwin, 335).
Edward Maitland foi seu grande companheiro de trabalho desde essa época até o fim de sua vida. Ele também era dotado de faculdades psíquicas. O psiquismo de Maitland era totalmente consciente, como um “datilografar automático”. (Godwin, 337) Em parte com o auxílio dessa faculdade ele escreveu dois livros. Num deles, The Soul and How It Found Me [A Alma e como Ela me Encontrou], ele descreveu suas experiências e sua nova visão das realidades espirituais que essas experiências lhe deram.
3. AS ILUMINAÇÕES DE ANNA KINGSFORD (1874-1888)
Anna Kingsford tinha faculdades psíquicas desde a infância. Na época do curso de Medicina, começou a ter experiências contendo mensagens inspiradoras, às quais deu o nome de “Iluminações”. Embora algumas fossem transmitidas por meio de um ditado quando ela estava em transe, a maioria era recebida por visões durante o sono natural, que ela descrevia assim que acordava.
Algumas das mensagens vinham em resposta às suas próprias dificuldades, outras como uma resposta imediata às perguntas mentais de Maitland, das quais muitas vezes ela não tinha conhecimento. Freqüentemente não conseguiam compreender as respostas no momento em que eram dadas, provando que elas eram independentes de suas limitações mentais:
“Entretanto, cedo ou tarde, elas nunca falharam em se demonstrar como sendo verdades necessárias e evidentes, inalteravelmente fundamentadas na própria natureza da existência; e nós nunca as aceitávamos e as utilizávamos até que assim fossem demonstradas e reconhecidas por nós dois.” (Clothed, xx)
Kingsford chamava aquele que a inspirava de seu “gênio” e o descreve como um “anjo”, cujo trabalho era “guiar, advertir e iluminar”. (Clothed, 36) Numa de suas Iluminações, ela fala sobre a relação entre o gênio, Deus e o homem:
“O homem é um planeta. Deus – o Deus do homem – é seu sol, e a lua desse planeta é Ísis, seu iniciador, ou gênio. O gênio existe para instruir ao homem e para lhe dar luz. Mas a luz que ele dá é de Deus, e não dele mesmo. Ele não é um planeta, mas uma lua, e sua função é iluminar os lugares escuros de seu planeta. (...)
“O gênio é a lua para o planeta homem, refletindo para ele o sol, ou Deus, dentro dele. Pois o Espírito divino que anima e eterniza o homem, é o Deus do homem, o sol que o ilumina.” (Clothed, 39)
Embora seu gênio conhecesse seu futuro, nada lhe dizia, exceto que podia ter certeza que teria problemas, pois “Nenhum homem jamais alcançou a Terra Prometida sem ter atravessado o deserto”. (Clothed, 37) Ela diz:
“Meu gênio se parece com Dante e, como ele, está sempre de vermelho. E tem um cáctus em sua mão, o qual ele diz que é meu emblema. (...) Ele me pede para dizer que a melhor arma contra os astrais [seres, entidades astrais] é a oração. Oração significa o intenso direcionar da vontade e do desejo em direção ao Alto; um propósito imutável de conhecer tão somente o mais Elevado. (...)
“Devo informar-lhes que o gênio nunca “controla” o seu cliente, nunca tolera que a alma saia do corpo para permitir a entrada de um outro espírito. A pessoa controlada por um astral ou elemental, ao contrário, não fala em seu próprio nome, mas naquele do espírito que a controla (...)
“Outro sintoma, diz ele, por meio do qual distinguir espíritos estranhos do seu próprio gênio, é o seguinte: – o gênio nunca está ausente. Desde que a mente se encontre em condições de ver, ele está sempre presente.” (Clothed, 36-37)
Maitland diz que essas Iluminações não eram o produto de qualquer estimulação artificial de suas faculdades, ou da indução de qualquer estado anormal, seja por meio de drogas, mesmerismo ou hipnotismo. Tudo o que se fazia era produzir as condições internas favoráveis para a recepção dessas Iluminações. Assim, elas eram o resultado:
“do intenso direcionar da vontade e do desejo para o Alto, e de uma imutável resolução de não ficar satisfeita com nada menos do que o mais Elevado, a saber, a idéia central e mais profunda do fato ou doutrina a serem interpretados”. (Clothed, xx)
Kingsford nunca disse ser uma médium ou uma clarividente no sentido comum dessas palavras. Ela se intitulava uma profetisa e assim explicava seu dom:
“Não tenho quaisquer poderes ocultos, e nunca aleguei possuí-los. Nem sou, no sentido comum da palavra, uma clarividente. Sou apenas uma “profetisa” – alguém que vê e sabe intuitivamente, e não pela utilização de qualquer faculdade treinada. Tudo que recebo vem a mim por “iluminação”, como para Proclus, para Jâmblico, para todos aqueles que seguem o método platônico. E esse “dom” nasceu comigo, e foi desenvolvido por uma regra e uma conduta especiais de vida. Ele é, me foi dito, o resultado de uma iniciação anterior num nascimento passado (...) Minha iniciação foi greco-egípcia e, assim sendo, recordo a verdade primariamente na linguagem e segundo o método dos mistérios de Baco, que são de fato a fonte e o padrão imediatamente precedentes dos mistérios da Igreja Católica Cristã.” (Clothed, xxii)
Essas Iluminações, recebidas ao longo de 14 anos, foram publicadas por Edward Maitland após a morte de Anna Kingsford, com o título de Vestida de Sol [Clothed With the Sun], em referência à alegoria da alma iluminada, que é representada no Apocalipse como “uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas em sua cabeça.” (Apoc., 12:1) Para eles a mulher, na Bíblia, era o símbolo da alma e da intuição – o princípio feminino no homem.
Kingsford e Maitland eram profundamente cristãos, mas incapazes de aceitar uma interpretação literal da Bíblia, ou o dogmatismo das igrejas. Para eles o Cristianismo era apenas uma das religiões da Antigüidade, cujos mistérios ensinavam as mesmas verdades sobre o destino da alma. As Iluminações confirmaram suas hipóteses, pois nelas os Evangelhos eram quase totalmente alegóricos – eles são uma descrição do destino da alma:
“A religião não é histórica, e de modo algum depende de fatos passados. (...) Jesus não era o nome histórico do iniciado e adepto cuja história é relatada. É o nome que lhe foi dado na iniciação. (...) As Escrituras dizem respeito à alma, e não aos sentidos externos. Toda a história de Jesus é um conjunto de alegorias, as coisas que ocorreram a ele sendo usadas como símbolos.” (Clothed, 86)
Cristo não é uma pessoa, mas o estado de um homem regenerado, no qual a alma se tornou “una com o Espírito Divino”. (Godwin, 338) E Jesus era um homem que havia realmente vivido e realizado esse estado de união, um iniciado cujo nome ela só conseguia ver a primeira letra – a letra “M”. (Clothed, 85)
4. OS HINOS AOS DEUSES GREGOS
Mas nem todas as Iluminações vinham numa linguagem estritamente cristã. Anna Kingsford tinha visões de deuses gregos, que brilhavam como prata, e que lhe ditavam arrebatados hinos, de uma beleza e de uma profundidade poética impressionantes:
“1. Como uma luz movendo-se entre o céu e a terra; como uma nuvem branca assumindo muitas formas;
“2. Ele desce e se eleva, guia e ilumina, transforma-se de pequeno para grande, de brilhante para sombreado, da imagem opaca para a névoa diáfana.
“3. Estrela do Oriente conduzindo os Magos: nuvem de cujo seio a sagrada voz fala: de dia, uma coluna de vapor, de noite uma chama brilhante.
“4. Eu vos contemplo, Hermes, Filho de Deus, matador de Argus, arcanjo, que conduzes o cetro do conhecimento, pelo qual são medidas todas as coisas no céu ou na terra.” (Clothed, 150)
O Hino ao Deus-planeta, Iacchos, e às Divindades Elementais, foi dado em sonho, no início de março de 1881, à medida que ela passava “com um grupo de iniciados, através de um vasto templo egípcio”. (Godwin, 338) O tema principal do Hino ao Deus-planeta é o êxodo místico, ou a libertação da alma do domínio do corpo, onde o Egito simboliza o corpo, e Israel representa a alma. (Clothed, 154)
“1. Oh Pai Iacchos; Vós sois Senhor do Corpo, Deus manifesto na carne;
“2. Duas vezes nascido, batizado com fogo, vivificado pelo espírito, instruído em coisas secretas embaixo da terra:
“3. Que vestes os chifres do carneiro, que montas sobre um asno, cujo símbolo é a videira e o novo vinho é vosso sangue;
“4. Cujo Pai é o Senhor Deus das Hostes; e cuja Mãe é filha do Rei.
“5. Evoi Iacchos, Senhor da iniciação; pois por meio do corpo é a alma iniciada.” (Clothed, 154) [Evoi: grito de invocação dos Mistérios de Baco.]
Os Hinos às Divindades dos Elementos são dedicados aos quatro grandes Gênios ou Anjos de nosso planeta, que são os espíritos dos elementos do macrocosmo e do microcosmo, representando os quatro estados “da carne, do intermediário, do humano e do divino (...) E as rodas de seu reino quádruplo englobam toda a terra”. (Clothed, 163) O primeiro hino é dedicado a “Hephaistos o Rei-Fogo, cujo símbolo é o leão vermelho, Senhor da serpente, da chama e das partes secretas da terra”. (Clothed, 160)
O segundo é um hino dedicado a Deméter:
“1. (...) justa Mãe-Terra (...) cujas mãos estão plenas de fartura e bênção.
“2. Anjo do cadinho [provação], guardiã dos mortos, que constróis e destróis, que agregas e dissolves, que fazes brotar vida da morte, e transformas todos os corpos.
“3. (...) de vosso ventre eles vieram, e para vós eles retornam, Oh Mãe do nascimento e do sono!
“4. Que fazes o volátil tornar-se fixo, e o real tornar-se aparente, quer no grande ou no pequeno, quer no externo ou no interno.” (Clothed, 161-162)
O terceiro hino é dedicado a “Poseidon, Senhor das Profundezas, Mestre da substância de todas as criaturas, que exibe a face de um anjo, pois ele é o Pai das Almas”. (Clothed, 162) E o quarto é para Pallas Athena, “virgem de olhos azuis, Senhora do Ar, com cabeça de águia, que dás a todos os corpos o alento da vida: mãe Imaculada da palavra da profecia, símbolo da essência divina”. (Clothed, 163)
5. A DOUTRINA DA REENCARNAÇÃO (JULHO DE 1881)
Pouco antes de deixar Paris, Kingsford e Maitland descobriram Ísis Sem Véu, e souberam da existência da Sociedade Teosófica (ST). Embora achassem Ísis desorganizada e desnecessariamente agressiva, estavam atônitos e encantados por encontrar outras pessoas realizando um trabalho paralelo ao deles. Indo a Londres, entraram em contato com espíritas, com pesquisadores psíquicos e com membros da ST Britânica. Em meados de 1881, proferiram várias palestras, que foram publicadas no início de 1882 como O Caminho Perfeito; ou, a Descoberta de Cristo [The Perfect Way; or, The Finding of Christ]. (Godwin, 339)
Esse livro causou grande polêmica no meio espírita, não tanto por apresentar um enfoque simbólico e não histórico do Cristianismo, mas principalmente por sua defesa da reencarnação. Mesmo nos meios espíritas da época não havia um consenso quanto a essa questão que gerava um debate quase permanente. Até então, os defensores mais fortes da doutrina da reencarnação eram os médiuns da escola francesa de Allan Kardec; e na Inglaterra, Lady Caithness, Anna Blackwell, Francesca Arundale, Isabel de Steiger e também o espírito Ski, que costumava falar através da Sra. Hollis-Billing. Contra eles estava a maioria dos médiuns ingleses e americanos, como P.B. Randolph, Stainton Moses e Emma Hardinge Britten.
É importante notar que a idéia da reencarnação não era uma idéia corrente na Sociedade Teosófica dos primeiros tempos. A própria HPB, durante a primeira parte de sua carreira pública, como em Ísis Sem Véu, parecia negar a doutrina da reencarnação. Somente mais tarde, quando já morava na Índia, é que HPB passou a se declarar publicamente a favor dessa doutrina. Olcott afirma que ele, pelo menos, não conhecia a doutrina da reencarnação:
“Naturalmente, não é da minha conta porque ela não nos foi ensinada (...) Não acredito que o mistério da incongruência dos ensinamentos de Nova Iorque de 1875, e os posteriores na Índia possa ser explicado, pelo menos a ponto de satisfazer aqueles que atacam o problema do ponto de vista da crítica literária: para aqueles que têm o poder de levantar o véu e estudar a questão a partir do interno, essa dificuldade desaparece. Mas não se pode esperar que estudantes limitados ao plano físico recebam como sendo conclusivas as explicações de alunos avançados da Loja Branca. A conclusão que cheguei há muito tempo é a de que essa questão deve simplesmente ser deixada como um mistério.” (ODL V, 38)
Não há dúvidas de que Olcott realmente não havia sido ensinado sobre a reencarnação. Mas, e com relação à Madame Blavatsky? William Judge afirma que, embora ela realmente não ensinasse ao público a doutrina da reencarnação durante essa época em Nova Iorque, “ela de fato a ensinou para mim e para outros, naquela época como agora. (...) HPB me falou muitas vezes, pessoalmente, da real doutrina da reencarnação, compelida pelo caso da morte de minha própria filha; portanto, eu sei o que ela conhecia e acreditava”. (Judge, 119)
Numa carta de março de 1875, para Corson, HPB se posiciona contra a reencarnação da maneira como os kardecistas a concebiam. (Corson, item 10). Eugene Corson, que publicou as cartas de HPB para seu pai, comenta sobre as razões da reencarnação não ser então ensinada por HPB:
“Ela [a reencarnação] era a idéia dominante em todo o Oriente. Era quase a nota tônica da filosofia de Platão. O neo-platonismo de Plotino e Proclus está repleto dela. (...)
“A única explicação que me vem à mente é que ela ficou em silêncio, como o fez em tantas outras coisas naquela época. Ela deveria estar consciente de que isso seria repugnante aos espíritas americanos, e eu não sei se mesmo hoje é aceita por eles. Também não acredito que seja aceita na Inglaterra. A maioria dos espíritas não são filosoficamente inclinados e não se preocupam em olhar além do mero fato da inter-relação entre os dois mundos. (...) Minha opinião é que ela permaneceu em silêncio, do mesmo modo como silenciou em outras questões, que foram extensamente elaboradas em seus escritos posteriores.” (Corson, item 27)
Sinnett chegou em Londres, vindo da Índia, para publicar seu livro O Mundo Oculto em fins de março ou começo de abril de 1881. O livro foi publicado em junho desse ano e ele retornou para a Índia em 04 de julho. Durante esse período que esteve em Londres, Sinnett encontrou-se com Anna Kingsford e Edward Maitland. Os três ficaram até tarde da noite discutindo a questão da reencarnação – eles a favor e Sinnett contra. (Credo, 5)
Porém, um ano após isso, Sinnett publica na revista The Theosophist de maio de 1882, uma crítica literária sobre O Caminho Perfeito, onde demonstrava ter passado a aceitar a doutrina da reencarnação. Isso, é claro, causou surpresa a Kingsford e Maitland, ao lembrarem do quanto ele havia sido enfático em negá-la, no ano anterior. Escreve Kingsford numa carta para Lady Caithness:
“O próprio crítico literário – o Sr. Sinnett – que escreve com tanta pseudo-autoridade no The Theosophist, no intervalo de um ano, alterou completamente suas visões em pelo menos uma questão importante – me refiro à reencarnação. Quando veio nos ver a um ano atrás, em Londres, ele veementemente negou aquela doutrina e afirmou, com imensa convicção, que eu estava completamente enganada em meu ensinamento referente a ela. Leu uma mensagem de Ísis Sem Véu para me contestar e discutiu longamente sobre a questão. Ele não havia então recebido quaisquer instruções de seu Guru indiano sobre ela. Agora ele foi assim instruído, e escreveu uma longa carta ao Sr. Maitland reconhecendo a verdade da doutrina que, depois que nos encontrou, foi ensinado.” (Shirley, 15)
Para Kingsford foi o fato dela ter exposto a reencarnação em O Caminho Perfeito que havia “provocado” uma reação dos Adeptos, que conseqüentemente teriam se decidido a expor essa doutrina. Em janeiro de 1883, numa carta a Sinnett, o Mestre KH lhe aconselha a escrever para Massey dizendo que isso não era verdade, uma vez que ele já havia sido ensinado sobre a reencarnação a partir de julho de 1881, vários meses antes do livro de Kingsford ser publicado. Entretanto, o fato é que isso ocorreu após sua longa discussão com Kingsford e Maitland. O Mestre KH diz:
“Apenas permita-me dar-lhe um aviso. Um incidente agora tão trivial, que parece ser apenas a inocente expressão de vaidade feminina, pode, se não for corrigido de uma vez, produzir conseqüências muito maléficas. Numa carta da Sra. Kingsford para o Sr. Massey, condicionalmente aceitando a presidência da S. T. Britânica, ela expressa sua crença – ou melhor, o aponta como um fato inegável – que, antes da aparição de O Caminho Perfeito, ninguém “sabia o que a escola oriental realmente sustentava quanto à reencarnação”; e acrescenta que “vendo o quanto foi exposto naquele livro, os adeptos estão se apressando em abrir seus próprios tesouros” (...) Então escreva, meu bom amigo, a verdade ao Sr. Massey. Diga-lhe que você possuía a visão oriental da reencarnação vários meses antes que o trabalho em questão tivesse aparecido – uma vez que foi em julho (18 meses atrás) que você começou a ser ensinado sobre a diferença entre a reencarnação à la Allan Kardec, ou renascimento pessoal – e a da mônada espiritual.” (MLcr-101, 342-343; ML-57)
Além da crítica literária de Sinnett, um artigo de Hume, contendo a publicação de mais algumas cartas dos Mahatmas, sob o título de Fragmentos de Verdade Oculta, e um editorial de HPB (CW IV, 119) o qual ela, privadamente, atribuiu ao Mestre KH, começaram a mostrar que os Adeptos, afinal, também estavam ensinando a reencarnação. Essa mudança de atitude causou polêmica na Loja de Londres, levando Massey a pedir a HPB que explicasse e esclarecesse a questão.
Madame Blavatsky, então, argumentou que, na verdade, havia duas maneiras de falar sobre o destino de um indivíduo. Do ponto de vista mais exotérico [externo], dado em Ísis, estava correto dizer que uma pessoa nunca reencarna. Porém, desde um ponto de vista mais elevado, uma individualidade o faz. Para ilustrar isso ela apresentou o esquema esotérico [interno] dos sete princípios do ser humano.
Segundo esse esquema os três princípios inferiores que compõem o Corpo, ou o “Ego terreno”, sempre morrem. Os dois princípios seguintes compõem a Alma, ou o “Ego pessoal”. Eles são destruídos após algum tempo e só reencarnam sob circunstâncias especiais, conforme escrito em Ísis Sem Véu. Finalmente, os dois princípios restantes que constituem o Espírito, ou “Mônada Espiritual”, são eternos e indestrutíveis. Esse esquema pode ser melhor compreendido observando-se o quadro abaixo:
GRUPO I |
ESPÍRITO |
7. Atma – “Espírito Puro”. 6. Buddhi – “Alma
Espiritual ou Inteligência”. |
Mônada Espiritual ou “Individualidade” – e seu veículo. Eterna e
indestrutível. |
GRUPO II |
ALMA |
5. Manas – “Mente ou Alma
Animal”. 4. Kama-rupa – “Desejo” ou
Forma “Passional”. |
Mônada Astral – ou o Ego pessoal e seu veículo.
Sobrevive ao Grupo III e é destruída depois de um tempo, a menos que reencarne,
como foi dito, sob circunstâncias excepcionais. |
GRUPO III |
CORPO |
3. Linga-sharira –
“Corpo Vital ou Astral”. 2. Jiva – “Princípio de
Vida”. 1. Sthula-sharira –
“Corpo”. |
Composto Físico, ou o “Ego terreno”.
Os três morrem juntos invariavelmente. (CW IV, 185) |
6. ANNA KINGSFORD PRESIDENTE DA LOJA DE LONDRES (JANEIRO DE 1883)
Em 1882, a Sociedade Teosófica Britânica estava em crise. Alguns de seus membros, ainda fervorosos espíritas, não aceitavam as críticas de HPB ao movimento espírita, e outros queriam provas da existência dos Mestres. Seu presidente, Wyld, havia renunciado. Pensando em ter mais seções dentro da ST, entre elas uma seção católica, Massey convidou Kingsford para juntar-se a eles. Ela, de início, entretanto, não aceitou o convite, pois tinha uma imagem bastante negativa da ST, conforme podemos ler nas palavras de Maitland:
“nós já sabíamos o bastante da ST, sua origem, motivos e métodos para não acreditar nela. Seus prospectos originais cometiam a flagrante inconsistência de declarar absoluta tolerância da Sociedade a todas as formas de religião e, depois, afirmar que um objetivo principal era a destruição do Cristianismo. Seus fundadores também a comprometeram com a rejeição da idéia de um Deus, pessoal ou impessoal, e isso ao mesmo tempo em que a chamaram Teo-sófica.” (Credo, 11)
Realmente, numa circular feita para divulgação da ST, em maio de 1878, quando seus objetivos ainda não tinham a formulação atual, se lia:
“Os objetivos da Sociedade são vários. (...) A Sociedade ensina e espera que seus membros exemplifiquem pessoalmente as mais elevadas moralidade e aspiração religiosa; oponham-se ao materialismo da ciência e a toda forma de teologia dogmática, especialmente a cristã, que os Chefes da Sociedade consideram como particularmente perniciosa; tornar conhecido nas nações ocidentais, os fatos há muito suprimidos sobre as filosofias religiosas orientais, sua ética, cronologia, esoterismo, simbolismo; contrapor-se, tanto quanto possível, aos esforços dos missionários de iludir aos assim chamados “Infiéis” e “Pagãos” com relação à real origem e dogmas do Cristianismo e aos efeitos práticos dos últimos sobre o caráter público e privado nos assim chamados países civilizados”. (CW I, 376-377)
Maitland diz que essa questão não foi adiante nesta época, mas:
“ficamos surpresos ao saber que Mary [nome que Anna Kingsford recebeu de seu gênio] foi reconhecida pelos misteriosos chefes da ST como “a maior mística natural de nossos dias, e com incontáveis idades adiante da grande maioria da humanidade”.” (Credo, 11-12)
Anna Kingsford finalmente aceitou sua indicação para presidente da Sociedade Teosófica Britânica após lhe terem dito “enfática e inequivocamente que nenhuma forma de obediência aos Mahatmas, a HPB ou a qualquer outra pessoa, real ou não, me seria exigida, mas apenas aos Princípios e Objetivos da ST”. (Credo, 19)
Sob indicação de Massey, ela foi eleita presidente da ST Britânica, em 7 de janeiro de 1883, com Maitland e Wyld como vices. Como nessa ocasião ela ainda estava na França, somente assumiu suas funções após 20 de maio, quando retornou a Londres. Um dia antes da posse de Kingsford, Sinnett recebeu uma carta do Mestre KH, onde lhe advertia que este seria o ano em que as sociedades seriam provadas e o resultado dependeria, portanto, do seu trabalho coletivo:
“Quatro europeus foram colocados em provação há doze meses; dos quatro – apenas um, você, se mostrou merecedor de nossa confiança. Este ano as Sociedades, ao invés de indivíduos, que serão testadas. O resultado dependerá de seu trabalho coletivo e o Sr. Massey engana-se ao esperar que eu esteja preparado para me juntar à heterogênea multidão de “inspiradores” da Sra. K. Deixe-os permanecer sob suas máscaras de São João Batista e aristocratas bíblicos semelhantes. Desde que estes últimos ensinem nossas doutrinas – por mais que misturadas com adições alheias – um grande ponto terá sido ganho.” (MLcr-101, 342; ML-57)
Anna Kingsford procurou realmente se empenhar em seu trabalho pela Loja de Londres, a fim de que se tornasse um corpo verdadeiramente influente e ativo, saindo da crise em que se encontrava. Para tanto, ela acreditava que seria importante que um dos objetivos especiais da Loja de Londres, a “reconstrução da religião numa base científica, e da ciência numa base religiosa; e a elaboração de um perfeito sistema de pensamento e regras de vida” (Ransom, 196) também fosse aplicada ao Cristianismo e não apenas ao Hinduísmo e ao Budismo. Ela escreve, em maio:
“Farei o máximo ao meu alcance para tornar nossa Loja de Londres um corpo realmente influente e científico. . . . Além disso, nós não queremos nos comprometer apenas com o Orientalismo, mas com o estudo de todas as religiões esotericamente, e especialmente àquele da nossa Igreja Católica ocidental. Teosofia é igualmente aplicável a tal estudo; mas o Orientalismo só pode se relacionar ao Brahmanismo e ao Budismo.” (Credo, 14)
Em outra carta ela diz:
“Tenho um plano que sinceramente espero ter, de algum modo, os meios pare colocá-lo em prática na próxima primavera. Trata-se de dar palestras em um dos auditórios em Londres sobre “Cristianismo Esotérico”. Eu explicarei o significado verdadeiro e oculto das doutrinas católicas – tanto quanto isso for possível, é claro – e o significa interno de todos os mitos sagrados. Já elaborei um esboço a partir de um pequeno esquema que, se puder se realizado, irá, estou segura, fazer mais pela nossa Teosofia do que qualquer quantidade de livros publicados.” (Credo, 14)
Em junho, a pedido de Anna Kingsford, os membros decidiram alterar o nome de Sociedade Teosófica na Grã-Bretanha, para Loja de Londres da Sociedade Teosófica, a exemplo dos movimentos maçônicos que eram um corpo único com várias subdivisões em Lojas.
7. A “DIVINA ANNA”
Entretanto, o desejo de Anna Kingsford de transformar a Loja de Londres num “corpo realmente influente e científico”, não comprometido “apenas com o Orientalismo, mas com o estudo de todas as religiões esotericamente”, dando especial ênfase ao estudo “da nossa Igreja Católica ocidental” (Credo, 14), era algo que não agradava HPB que tinha uma conhecida implicância com o Cristianismo dogmático, tendo uma preferência particular pela filosofia oriental.
Como já mencionamos, Anna Kingsford foi uma grande pioneira humanitária de sua época, especialmente em sua luta pelo vegetarianismo e pela defesa dos animais, enquanto que Madame Blavatsky não era nem mesmo vegetariana. Isso acrescentava mais um ponto de tensão entre elas.
Além do fato de que as linhas de trabalho de Anna Kingsford não eram as que mais agradavam à Madame Blavatsky, Kingsford se considerava uma profetiza, porta-voz de uma nova era e de um novo evangelho, e com um conhecimento que ela dizia ser superior àquele que HPB recebia, uma vez que era obtido diretamente, sem intermediários, em suas Iluminações, enquanto a Sociedade Teosófica:
“afirmava que suas doutrinas eram derivadas de fontes que, mesmo que tivessem existência real – uma questão da qual não tínhamos nenhuma prova – não podiam ser comparadas com aquelas das quais as nossas eram derivadas, enquanto que a doutrina em si mesma era palpavelmente inferior, até o ponto em que havia sido revelada, e isso tanto no conteúdo quanto na forma.” (Credo, 11)
Talvez essa seja a origem do apelido irônico com que HPB se referia a ela em suas cartas particulares para Sinnett: “divina Anna”. (LBS, 44) Embora publicamente Madame Blavatsky não demonstrasse seus sentimentos em relação a Anna Kingsford, em suas cartas para Sinnett ela os extravasava livremente, revelando suas críticas: “Eu era, desde o começo, contra sua nomeação, mas tive que segurar minha língua, uma vez que é a escolha de KH e que Ele percebe sementes tão maravilhosas nela, que Ele até mesmo desconsidera suas críticas pessoais arrogantes acerca Dele.” (LBS, 60). Ou, referindo-se à escolha dela por Massey:
“não foi ele, e somente ele que propôs e a elegeu como a única possível Salvadora da Sociedade Teos. Britânica? Bem, agora agradeça a ele e fique com ela para que os transforme todos numa geléia [um grupo amorfo, sem identidade]. É claro que ela irá lhe adular mais do que nunca. Eu sei que isto irá acabar com um escândalo.” (LBS, 22)
O fato é que a “divina Anna” também incomodava HPB em outros aspectos bem mais pessoais. Anna Kingsford era uma mulher de rara beleza. Maitland descreve a primeira vez que a encontrou com as seguintes palavras:
“Alta, esbelta e de formas graciosas. De aparência agradável e requintada. Brilhante e jovial em expressão. O cabelo longo e dourado, mas as sobrancelhas e os cílios escuros, e os olhos fundos e de cor castanho-claro, ora sonhadores, ora penetrantes. A boca harmoniosa, carnuda e perfeitamente formada. A larga sobrancelha proeminente e precisamente talhada. O nariz delicado, ligeiramente curvado, e proeminente apenas o suficiente para dar personalidade à face. E o vestido um tanto excêntrico, como se tornava sua aparência. Anna Kingsford parecia, à primeira vista, mais como uma fada do que humana, mais criança do que mulher. Pois embora na verdade tivesse vinte e sete anos, ela mal aparentava dezessete, e parecia particularmente feita para ser cuidada, mimada e satisfeita, e de modo algum para ser tomada seriamente.” (Shirley, 12)
Tamanha beleza parecia também incomodar Madame Blavatsky que nessa época já tinha a saúde comprometida e estava bastante obesa. Ela deixa isso claro pela maneira como descreve a aparência física e o modo de vestir de Anna Kingsford. HPB havia pedido a Sinnett um retrato dela, pois não a conhecia pessoalmente, mas, pouco depois lhe escrevia dizendo que Kingsford lhe havia sido mostrada:
“Diga, por que ela estava usando um vestido que parecia com “o pelo preto e amarelo das zebras da criação do Rajá do Kashmir?” E é verdade que usava rosas em seu cabelo “o qual é como um pôr de sol flamejante, amarelo dourado”? E por que – piedade! Por que ela tinha “suas mãos e braços pintados de preto, bem preto — até os cotovelos?” ou eram luvas? e mais, é verdade que naquela noite ela trazia uma bolsa de metal brilhante a sua frente, com fivelas e guizos e mais alguma coisa, e “tilintantes brincos de lua crescente” – simbólicos do crescente brilho da “Loja de Londres”? Essa lua tomou luz emprestada do Satélite. (...) Mas por que – por que ela, a “mística do século” tinha que usar tantas jóias! Como pode confabular com os deuses invisíveis quando se parece “com uma vitrine de uma joalheria inglesa em Delhi”? Bem, eu penso também tê-la visto, e gostaria de ter o seu retrato para comparar. Pois ela me foi mostrada. Não é alta, fina na cintura mas larga nos ombros, e muito bonita, bochechas ligeiramente rosadas e com lábios bem vermelhos, e um nariz que fica mais largo quando ela fala, do que quando está em repouso? Seus olhos são azul claro. Ela é fascinante; mas então, por que fazer seu lindo cabelo ficar parecido com “a mitra de um Dugpa Dashata-Lama”? Bem, tudo isso é besteira. Estou extremamente triste, e não tenho ânimo para brincar.” (LBS, 51-52)
8. SINNETT E A AUTORIDADE DO “BUDISMO ESOTÉRICO”
(JULHO DE 1883)
Em julho de 1883, Anna Kingsford fez sua primeira aparição pública como presidente da Loja de Londres, numa reunião para recepcionar Sinnett, que havia recém chegado da Índia e publicado seu segundo livro – Budismo Esotérico. Sua chegada e a publicação do livro modificaram completamente a Loja de Londres, pois ele chegava com o status de alguém que estava em contato com os Mestres. À volta do casal Sinnett reuniu-se um grupo de pessoas para estudar o livro, e a Loja passou uma resolução de que deveria se devotar “principalmente ao estudo da filosofia oculta como ensinada pelos Adeptos da Índia com quem o Sr. Sinnett tem estado em comunicação”. (Ransom, 187)
Kingsford e Maitland também se dedicaram ao estudo da obra Budismo Esotérico. O principal ponto criticado por eles era o fato de terem que aceitar uma autoridade, independentemente da compreensão, pois, desse modo, estariam criando um novo “sacerdotalismo” em relação a esses homens divinizados denominados Mahatmas. (Credo, 17) Na verdade, eles não negavam a possibilidade da existência de tais Seres evoluídos, mas questionavam o método de como verificar se eles eram realmente Seres dessa estatura. Maitland escreveu a esse respeito:
“Pois, assim como somente aqueles que possuem o espírito de Cristo, em alguma medida, podem reconhecer o Cristo, do mesmo modo apenas aqueles que são, eles mesmos, em alguma medida adeptos, podem reconhecer os Adeptos. E mesmo que o ensinamento em questão tenha vindo da fonte alegada, qual a garantia de que ele não tenha passado, na transmissão, por uma mudança suficiente para o deturpar?” (Credo, 16)
Essas diferenças de postura começaram a criar uma situação difícil dentro da Loja de Londres. Sinnett reclamava com HPB, a qual não podia compreender como os Mestres tinham Kingsford em tão alta consideração, uma vez que “a Sra. K. não acredita e, se acredita, não se importa nem um pouco com os Irmãos.” (LBS, 48) Porém, Madame Blavatsky logo começou a suspeitar que, por detrás da escolha da “divina Anna”, não estava apenas o Mestre KH, mas também seu Superior, o Grande Chohan:
“Por que o Mahatma KH teria imposto sobre a sua Sociedade um tal emplastro como parece ser a Sra. K., uma criatura arrogante, fútil e opiniática, um monte de presunção ocidental – “Deus” sabe, eu não. Eu acredito que o Chohan interferiu subitamente, como ele não raro faz. E agora vai haver uma bela confusão.” (LBS, 64)
9. O PROTESTO DE ANNA KINGSFORD E A ECLOSÃO DA CRISE
(OUTUBRO DE 1883)
Até então, o conflito na Loja de Londres estava restrito aos seus bastidores. Entretanto, em outubro de 1883, Maitland leu na Loja um discurso de Kingsford contendo duras críticas. O conflito interno começava a se exteriorizar, e surgiu um movimento pedindo que ela saísse da presidência da Loja. Anna Kingsford, então, escreve uma longa carta a HPB, expondo seus pontos de vista, e pedindo que os submetesse ao Mestre KH. Nessa carta ela se posiciona contra o sentimento de idolatria e submissão sem questionamento, que os membros, liderados por Sinnett, estavam nutrindo pelos Mestres. Ela achava que, além de que isso “deve ser desagradável aos próprios Mahatmas” (LBS, 70), esse tipo de sentimento estava criando para a Sociedade uma aparência de seita, o que era prejudicial para um movimento que pretendia atrair a atenção de líderes de pensamento:
“Isso é “insensato” porque num país “onde o olhar da crítica e da ridicularização hostil permanece fixo sobre qualquer novo movimento”, é “manifestamente imprudente nossa Sociedade apresentar-se diante do mundo sob a aparência de uma Seita, tendo chefes a quem se conferem poderes super humanos de grandeza”. Tudo isso levou o Standard a nos chamar de “uma Sociedade fundada sobre os alegados feitos de certos impostores indianos.” [itálico no original] “Esse incidente e outros episódios similares têm aborrecido e preocupado” a ela. Por mais que estime o Sr. Sinnett, ela pensa que “ele está cometendo um erro em aplicar neste país uma política idêntica à que está sendo seguida pela Sociedade na Índia. Ela será fatalmente destruidora de todas as nossas esperanças de atrair a atenção dos líderes de pensamento (...) e ciência, cuja cooperação seria inestimável para nós” etc., etc., etc.” (LBS, 70)
Para Kingsford a base da Sociedade deveria ser a de uma escola filosófica, “constituída sobre as bases herméticas antigas, seguindo métodos científicos e processos exatos de razão, independentes de qualquer autoridade absoluta de um tipo exterior, embora aceitando com reverência ensinamentos de fontes competentes”. (LBS, 70) Na Índia, onde o conhecimento sobre os Adeptos era algo comum, tal política poderia estar bem, mas em Londres essa conduta levaria a Sociedade:
“a ser considerada, por um lado, como demonstrando uma credulidade e uma ignorância fora do comum acerca dos métodos científicos; e, por outro, como um sistema que apresenta – para a mente protestante – uma impressionante semelhança ao sistema católico de mentores e confessores, com a requerida submissão do catecúmeno em relação a seu guru ou Mahatmas.” (LBS, 70)
Para HPB e outros chelas, como Subba Row, uma tal posição era um desrespeito inaceitável em relação aos Mestres, que lhes causava indignação:
“Ontem recebi uma carta de três jardas de comprimento da Sra. K. com sua comunicação confidencial; primeiro fruto da bondade de KH! Bem, isso é Carma do Chohan. Seja lá como for, de Subba Row até Brown, todos aqui estão indescritivelmente chocados com este panfleto ou esta crítica tão insolente e impertinente de Maitland. Ela pede que KH a torne “o apóstolo na Europa da Filosofia Esotérica Oriental e Ocidental”!!!!!” (LBS, 63)
HPB continua sua carta dizendo que, de acordo com o Mestre KH, esse já havia avisado a Sinnett que, a menos que ele criasse uma Seção secreta e também a presidisse, “enquanto que a Sra. K. seria o lindo e cintilante cartaz da “Loja”, representando o Cristianismo Esotérico ou qualquer outra tolice – eles (os Mahatmas) não teriam mais nada a ver com membros ingleses.” (LBS, 64) E que, sob ordens do Mestre M., Subba Row estava se encarregando de escrever uma resposta às críticas de Kingsford. Essa resposta, entretanto, só foi publicada três meses depois, no final de janeiro de 1884. Enquanto isso, HPB não continha suas críticas e continuava a reclamar junto a Sinnett e a seu Mestre, até que Ele lhe ordenou a ficar quieta. Ela assim escreve a Sinnett, em novembro 1883:
“pois eu sabia todo o tempo que fêmea esnobe insuportável era “a divina Anna”. Eu sabia, e o repeti e continuei protestando do início ao fim, até que meu PATRÃO M. me chamou de “chata” e uma “fêmea de visão curta” (...) e me ordenou a “calar a boca”, uma elegante expressão que ele pegou, eu creio, do estoque de palavras ianques de Olcott. Ainda assim, ele nunca disse que eu estava errada, mas simplesmente que a Kingsford vestida de zebra havia sido escolhida pelo teu protetor e guia KH, e que ELE sabia o que Ele estava fazendo – apesar de tudo. Bem, eu supus que fosse uma de suas costumeiras sinuosas experiências com a natureza humana, e assim calei a boca. Mas agora minha língua está mais uma vez livre. Ótimos acontecimentos!” (LBS, 65-66)
Mas, poucos dias depois, ela escreve para Sinnett: “Estamos fritos, tanto você quanto eu. (...) estamos fritos além de qualquer redenção”. (LBS, 69) Seu plano de tirar de cena a “divina Anna” – “uma criatura egoísta, fútil e mediunística, que gosta demais de adulação, vestidos e jóias cintilantes para ser do tipo certo” (LBS, 69) – havia falhado completamente, pois os Mestres haviam decidido que ela era necessária para o movimento e deveria permanecer. Com esses sentimentos em relação à “divina Anna”, HPB lhe respondeu com uma “longa, polida e, pelo que eu imaginava, diplomática carta”. (LBS, 71) Porém, para sua tristeza:
“eu mal havia acabado de copiar minha carta (inglês corrigido por Mohini), uma operação realizada no meu melhor papel e com minha caneta nova, que me tomou toda uma manhã, em detrimento de, e negligenciando outros trabalhos, quando o seguinte ocorreu. Minha carta de 8 páginas – foi silenciosamente rasgada, uma página após a outra, por meu PATRÃO!! Sua grande mão aparecendo na mesa debaixo do nariz de Subba Row (que queria que eu escrevesse de um modo bem diferente) e Sua voz dizendo um cumprimento em Telugú, o qual não devo traduzir, embora Subba Row parecesse me traduzir com grande júbilo. “KH quer que eu escreva de um modo diferente” – era a ordem. Eles (os Patrões) confabularam e decidiram que a “divina Anna” deve ser agradada. Ela é necessária para eles; ela é um maravilhoso paliativo (seja lá o que for nesse mundo que essa palavra signifique nesse caso!) e eles pretendem usá-la. Ela deve ser levada a permanecer como a presidente auréola, e você o presidente núcleo (ou nucleático?). Vocês devem ver um ao outro como os dois pólos, oportunidade guiada por Mestres, traçando finalmente o verdadeiro meridiano entre vocês dois, para [o bem da] a Sociedade. Agora, não imagine que eu ri ou caçoei. Estou num estado de mudo e impotente desespero – pois dessa vez estou perdida, se entendi o que eles pretendem! (LBS, 71)
Como entender que uma mulher que se referia com pouca veneração ao Mestre KH, pudesse receber esse tratamento? A essas reclamações de HPB, Djual Khool simplesmente lhe respondeu:
“As palavras de uma mulher, ferida em sua vaidade física, brava por não chamar a atenção do Mestre (KH) são menos que uma brisa passageira. Ela pode dizer o que quiser. Os membros cumpriram seu dever protestando, como fizeram, ela saberá melhor agora, mas ela deve permanecer, e o Sr. Sinnett deve se tornar o líder e presidente do círculo interno.” (LBS, 71)
Madame Blavatsky teve que “lhe escrever, em conseqüência, e dizer para ela todos os tipos de piedosas e mentirosas congratulações que eu não sinto”. (LBS, 72) E, se o fez, foi apenas porque devia obediência a seu Mestre, pois ela própria era claramente contrária, como escreve:
“Deixe o Carma disso cair sobre meu PATRÃO (“Boss”) – pois eu tenho sido única e exclusivamente seu instrumento e agente sem responsabilidade em tudo isso. E suponho que Mahatma KH atuou em primeiro plano e meu Patrão, em segundo, como de costume. E como você diz, eu tenho apenas que obedecer.” (LBS, 72)
E, abaixo dessa frase o Mestre M. precipitou o seguinte comentário: “Exatamente, pois essa é a melhor política”.(LBS, 72) No final da carta, para tranqüilizar Sinnett, o Mestre M. também precipitou a mensagem abaixo:
“Sinnett Sahib – você não deve estranhar. Nós temos o bem de todo o Movimento e da Sociedade no coração. Mesmo os desejos da maioria não devem prevalecer – os sentimentos da minoria menos iluminada também têm que ser consultados. Deve chegar o dia em que tudo será melhor compreendido. Enquanto isso a akhu tenta fascinar KH com seu retrato!” (LBS, 73) [Akhu: Inteligência, entre os egípcios. (Glosario Teosofico, 27)]
10. CARTA DO MESTRE KH PARA A LOJA DE LONDRES
(JANEIRO DE 1884)
O clima era cada vez mais tenso. Aproximadamente em 9 de dezembro de 1883, Anna Kingsford e Maitland publicam um panfleto com severas críticas ao livro de Sinnett, Budismo Esotérico. Logo após essa publicação, Kingsford recebe um telegrama do Mestre KH dizendo “Permaneça presidente”. (CW VI, xxiv) O Mestre KH também mandou um telegrama com o mesmo teor para Sinnett e uma carta que, embora escrita no dia 7 de dezembro, ele declara ter recebido em janeiro de 1884. Nela, o Mestre diz que havia chegado a hora de Sinnett provar sua boa vontade, seguindo seus conselhos, pois era o desejo de seu Superior, o Grande Chohan, que Anna Kingsford permanecesse como presidente. Escreve o Mestre KH:
“Em uma de suas cartas recentes para a “V.S.” [Velha Senhora, HPB], você expressa sua prontidão em seguir meu conselho em quase tudo que eu pudesse lhe pedir. Bem – o tempo chegou para você provar sua boa vontade. E como, nesse caso específico, estou simplesmente executando a vontade de meu Chohan, espero que você não experimente demasiada dificuldade em compartilhar de meu destino, agindo – como eu estou agindo. A “fascinante” Sra. K. tem que permanecer como presidente – jusqu’ au nouvel ordre [até nova ordem]. (...) Explicações detalhadas seriam uma tarefa por demais longa e tediosa. É suficiente que você saiba que sua luta contra a vivissecção e sua dieta estritamente vegetariana conquistaram completamente, para o lado dela, nosso austero Mestre. Ele liga menos do que nós para qualquer expressão ou sentimento de desrespeito externo – ou mesmo interno – aos “Mahatmas”. Deixe-a cumprir seu dever para com a Sociedade, ser verdadeira aos seus princípios e todo o resto virá no seu devido tempo. Ela é muito jovem, e sua vaidade pessoal e outras falhas femininas devem ser deixadas para o Sr. Maitland e o coro grego de seus admiradores.” (MLcr-119, 406; ML-86)
E o Mestre anexa a essa uma outra carta, para ser lida numa reunião geral da Loja de Londres, a respeito da qual comenta Virginia Hanson: “É uma das cartas mais importantes do livro, no que diz respeito à Sociedade Teosófica – especialmente no Ocidente”. (MLcr-120, 409; ML-85) Nessa, o Mestre KH começa dizendo que havia mandado os dois telegramas notificando Sinnett e Kingsford que ela deveria permanecer como presidente, e que esse não era apenas o desejo dele e do Mestre M., mas a vontade expressa do próprio Maha Chohan:
“A eleição da Sra. Kingsford não é uma questão de sentimentos pessoais entre nós e aquela Senhora, mas baseia-se inteiramente na conveniência de ter na direção da ST, num local como Londres, uma pessoa bem adaptada para o padrão e aspirações de um público (por enquanto) ignorante (das verdades esotéricas) e, portanto, malicioso. Também não é questão que tenha a menor importância se a dotada presidente da “Loja de Londres” da Soc. Teos. nutre sentimentos de reverência ou desrespeito para com os humildes e desconhecidos indivíduos que estão na direção da Boa Lei Tibetana – ou para com o autor da presente, ou qualquer de seus Irmãos – mas antes uma questão de se a mencionada Senhora está capacitada para o propósito que todos nós temos em nossos corações, a saber, a disseminação da VERDADE através de doutrinas esotéricas, transmitidas por qualquer canal religioso, e a atenuação do materialismo crasso e dos preconceitos e ceticismo cegos.” (MLcr-120, 409; ML-85)
O Mestre KH continua a carta dizendo que concordava com a Sra. Kingsford, quando essa dizia que o público ocidental deveria ver a ST como uma Escola Filosófica constituída sobre uma base Hermética, uma vez que esse público, nunca tendo ouvido falar do Sistema Tibetano, tinha uma noção muito pervertida acerca do Sistema Budista Esotérico, e que:
“Desse modo, e até esse ponto, nós concordamos com as observações contidas na carta escrita pela Sra. K para Madame B. [Blavatsky], com o pedido a essa última para “submeter a KH”; e lembraríamos a nossos membros da “LL”, com referência a isso, que a Filosofia Hermética é universal e não sectária, enquanto que a Escola Tibetana sempre será considerada, por aqueles que conhecem pouco, ou nada, sobre ela, como mais ou menos marcada pelo sectarismo. Uma vez que a primeira não está ligada a nenhuma casta, cor ou credo, nenhum amante da sabedoria Esotérica pode ter qualquer objeção ao nome o que, de outro modo, poderia sentir se a Sociedade à qual ele pertence fosse rotulada com uma denominação específica pertencente a uma dada religião. Filosofia Hermética adapta-se a qualquer crença e filosofia e não colide com nenhuma. Ela é o oceano sem limites da Verdade, o ponto central para onde fluem e onde se encontram todos os rios, assim como todos os riachos – estejam suas fontes no Oriente, Ocidente, Norte ou Sul. Assim como o curso do rio depende da natureza de sua bacia, assim o canal para a comunicação do Conhecimento precisa adaptar-se às circunstâncias à sua volta. (...)
“Portanto é evidente que os métodos do Ocultismo, embora no principal sejam imutáveis, ainda assim têm que se conformar às diferentes épocas e circunstâncias. O estado da sociedade inglesa como um todo – muito diferente daquela da Índia, onde nossa existência é um assunto de crença comum e, por assim dizer, inerente na população, e em vários casos de positivo conhecimento – requer uma política muito diferente na apresentação das Ciências Ocultas. O único objetivo pelo qual esforçar-nos é o melhoramento da condição do HOMEM por meio da difusão da verdade adaptada aos vários estágios de seu desenvolvimento e àquele do país em que ele habita e pertence. A VERDADE não tem marca de propriedade e não sofre por causa do nome sob o qual ela é promulgada – desde que o referido objetivo seja alcançado.” (MLcr-120, 409; ML-85)
11. A DISCÓRDIA É A HARMONIA DO UNIVERSO
Para o Grande Chohan, os dois – Sinnett e Kingsford – eram necessários, justamente por serem desiguais, por serem como “os dois pólos calculados para manter todo o corpo em harmonia magnética, uma vez que o criterioso emprego de ambos criará um excelente campo intermediário, que não seria obtido por qualquer outro meio; um corrigindo e equilibrando o outro”. (MLcr-120, 411; ML-85) E o Mestre KH continua falando da importância da diversidade de opiniões, da liberdade de pensamento, da “harmoniosa discordância” pois, a discórdia é a “verdadeira harmonia do universo”, e que esse era o segredo do sucesso da ST na Índia:
“Eu quase não precisaria salientar como o arranjo proposto está calculado para conduzir a um harmonioso progresso da “L.L. S.T.”. É um fato universalmente aceito que o maravilhoso sucesso da Sociedade Teosófica na Índia é devido inteiramente ao seu princípio de sábia e respeitosa tolerância às crenças e opiniões dos outros. Nem mesmo o Presidente Fundador tem o direito de, direta ou indiretamente, interferir com a liberdade de pensamento do mais humilde dos membros, e menos ainda procurar influenciar sua opinião pessoal. É apenas na ausência dessa generosa consideração que até mesmo a mais pálida sombra de diferença arma buscadores da mesma verdade, de outro modo sérios e sinceros, com o ferrão de escorpião do ódio contra seus irmãos, igualmente sinceros e sérios. Vítimas iludidas da verdade distorcida, eles esquecem, ou nunca souberam, que a discórdia é a harmonia do universo. Assim, na Sociedade Teosófica, do mesmo modo que nas gloriosas fugas do imortal Mozart, cada parte vai incessantemente ao encalço da outra, em harmoniosa discordância, nos caminhos do progresso Eterno, para encontrar e finalmente se fundir, no limiar do objetivo perseguido, em um harmonioso todo, que é a linha mestra na natureza. A Justiça Absoluta não diferencia entre os muitos e os poucos.” (MLcr-120, 412; ML-85)
Assim sendo, embora agradecendo à maioria dos teosofistas da Loja de Londres pela lealdade a eles, Instrutores invisíveis, era preciso lembrar que a Sra. Kingsford:
“também é leal e verdadeira – àquilo que ela acredita ser a Verdade. E como ela é assim leal e verdadeira às suas convicções, por menor que seja a minoria que a apoie no presente momento, a maioria, liderada pelo Sr. Sinnett, nosso representante em Londres, não pode, com justiça, atribuir-lhe a culpa, a qual (...) assim o é apenas aos olhos daqueles que forem por demais severos. Todo teosofista ocidental deveria aprender e recordar, especialmente aqueles que pretendam ser nossos seguidores – que em nossa Fraternidade todas as personalidades submergem numa idéia – direito abstrato e absoluta justiça prática para todos. E que, embora nós não possamos dizer como os cristãos “retribua o mal com o bem” – nós repetimos com Confúcio “retribua o bem com o bem; para o mal – JUSTIÇA”. Assim os teosofistas que pensam do mesmo modo que a Sra. K. – mesmo que eles se opusessem, sem tréguas, a algum de nós pessoalmente – são merecedores de tanto respeito e consideração de nossa parte e de seus membros companheiros com visões opostas (enquanto eles forem sinceros), quanto aqueles que estão prontos, junto com o Sr. Sinnett, a seguir incondicionalmente apenas nossos ensinamentos especiais.” (MLcr-120, 412; ML-85)
No início de fevereiro, o telegrama foi mostrado à Loja e Anna Kingsford confirmada na presidência. Como a situação na LL ainda estava confusa e as duas facções não estavam conseguindo chegar à harmonia pedida na carta, os membros decidiram postergar a eleição, esperando a vinda de Olcott e Mohini a Londres, para ajudar a resolver a questão, a qual, disse o Mestre KH, embora “dolorosa para alguns, e cansativa para outros, ainda assim é melhor isso do que se a velha calma paralítica tivesse continuado”. (MLcr-121, 413; ML-84)
12. O CHOHAN QUER ANNA KINGSFORD DENTRO DA ST
Tentando achar uma solução que permitisse que ela continuasse seu trabalho na Loja de Londres, Anna Kingsford propôs a criação de duas Seções. Uma seria formada pelos membros que quisessem seguir os ensinamentos dos Mahatmas, e também reconhecê-los como seus Mestres, com Sinnett como presidente. A outra encorajaria o estudo do Cristianismo Esotérico e também do Ocultismo ocidental, do qual ele surgiu. Essa última seria conhecida como Seção Católica, e seria presidida por ela. Nessa proposta, os membros poderiam atender livremente às reuniões das duas Seções. (Ransom, 197) Essa idéia era próxima ao que os Mestres queriam, com a criação de dois grupos dentro da Loja de L, uma vez que o Grande Chohan “que nunca interfere em nada teosófico, menos ainda europeu” (LBS, 90) desejava que Kingsford ficasse dentro da Sociedade, tendo seu espaço de trabalho preservado:
“Não sei o que é que o Mestre ordenou Olcott a fazer. Ele guardou segredo sobre sua instrução e não diz nada. Mas estou certa de que nem mesmo o Chohan a imporia à Sociedade contra a vontade da maioria. Deixe-a fundar uma sociedade separada da sua (...). Agora meu Patrão quer que ela permaneça como presidente – uma vez que o Velho Chohan está apaixonado pelo seu vegetarianismo e seu amor pelos animais – mas não necessariamente da sua Sociedade. O Chohan a quer dentro da Sociedade, mas não consentiria em forçar a opinião ou voto de um único membro da LL. Ele não influenciará o último deles, pois então ele não seria melhor que o Papa, que pensa que pode obrigar a uma obediência inquestionável e depois evitar que caia sobre si mesmo os carmas da pessoa. Isso é o que o Patrão acabou de me dizer para lhe escrever. Portanto, é melhor você se preparar e buscar o conselho e a opinião de cada membro que pensa como você, e estar pronto para se dividirem em duas Sociedades, pois isto é o que o Coronel tem que fazer – me foi dito.” (LBS, 81-83)
13. A DISTÂNCIA AUMENTA MINHA BELEZA (MARÇO DE 1884)
HPB, Olcott, Mohini, Padshah e o serviçal indiano Babula partiram da Índia em 20 de fevereiro de 1884, chegando a Marselha em 13 de março. Ela não queria ir. Ainda na Índia, em carta para Sinnett, de janeiro de 1884, lhe contou que só havia concordado em viajar para a Europa com a seguinte condição:
“Não preciso, não devo e não irei a Londres. Faça o que quiser. Nem mesmo vou me aproximar de lá. Mesmo que meu Patrão tivesse me ordenado isso – penso que preferiria enfrentar seu desagrado – e desobedecê-lo.” (LBS, 74)
Já na França, em março, HPB recebeu tantos convites insistentes para que fosse a Londres, que acabou respondendo-os na forma de uma circular, agradecendo aos convites, mas recusando-os, pois sua saúde não permitiria que ela fosse a Londres. Além disso, HPB escreve nessa circular:
“E qual seria a utilidade de minha ida a Londres? Que bem poderia eu fazer a vocês em meio a seus fogs misturados com as venenosas evaporações da “civilização superior”? (...) Estou eu adequada para tais pessoas civilizadas como todos vocês? Em apenas sete minutos e um quarto, me tornaria perfeitamente insuportável para vocês, ingleses, se eu tivesse que transportar para Londres minha enorme e feia pessoa. Eu lhes asseguro que a distância aumenta minha beleza, a qual eu logo perderia se estivesse próxima.” (Letters of HPB, VI)
Para Sinnett HPB também escreveu que Olcott e Mohini, com as instruções que tinham dos Mestres M. e KH, respectivamente, eram as pessoas adequadas para resolver a questão, pois:
“Eu faria o oposto. Eu não poderia (especialmente em meu atual estado de nervos) ficar por lá e ouvir calmamente as espantosas novidades (...) de que Sankara Charya era um teísta e que Subba Row não sabe do que está falando, sem que isso me mande de uma vez para a morte; (...) De fato eu não tenho mesmo vontade de ir para a Inglaterra. Eu amo todos vocês de longe, eu poderia odiar alguns de vocês da L.L. se tivesse que ir até lá. Você não entende por que? Você não pode compreender, com tudo o que sabe a meu respeito e da verdade (essa última é ignorada apenas pelos que não querem vê-la), que seria para mim um indizível sofrimento ver como os Mestres e sua filosofia são ambos mal interpretados?” (LBS, 78)
Em 5 de abril de 1884, pela manhã, Olcott partiu de Paris para Londres, deixando HPB que declarava não ter a menor condição ou desejo de ir a Londres, pois estava com seus nervos fragilizados pela tensão acumulada nos meses em que o caso Kingsford-Sinnett vinha se arrastando:
“Como posso encarar uma Sociedade onde alguns de seus membros nutrem tais pensamentos insultantes e os expressam por escrito? É por isso que não posso ir a Londres. Se fosse seguir os ditames da minha afeição por vocês dois, e o meu desejo de me relacionar pessoalmente com membros tão encantadores como a Sra. e a Srta. Arundale, o Sr. Finch, o Sr. Wade e outros, eu conheço os resultados. Ou eu iria saltar, rasgando o céu e o inferno na primeira oportunidade, ou teria que explodir como uma granada. Não posso manter a calma. Secretei e acumulei bílis por mais de seis meses durante esse embroglio Kingsford-Sinnett; segurei minha língua e fui forçada a escrever cartas civilizadas que são agora vistas como “correspondência simpática e encorajadora”. Eu – não importa o que tenha acontecido, e o quanto sofri dessa coléres rentrés [raiva reprimida]; minha doença atual é mais do que parcialmente devida a eles. Bem, não nasci para uma carreira diplomática. Eu entornaria o caldo – e não faria bem algum – de qualquer modo, não até que toda a coisa seja decidida e o equilibre théosophique est retabli [o equilíbrio teosófico seja restabelecido].” (LBS, 81)
14. HPB CHEGA INESPERADAMENTE A LONDRES (ABRIL DE 1884)
William Judge, que havia ficado com Madame Blavatsky em Paris, para ajudá-la com a Doutrina Secreta, descreve que na noite de 5 de abril, quando estavam sentados conversando, sentiu “o velho sinal de uma mensagem do Mestre, e vi que ela estava escutando.” (Caldwell, 172) HPB então lhe disse que o Mestre acabara de lhe ordenar que fosse para Londres pelo expresso das 7:45h da noite seguinte, e ficasse por lá apenas um dia, retornando no seguinte. Assim, inesperadamente, obedecendo a ordens, embora confessando que não estava entendendo, ela partiu para Londres no dia 6 de abril, ficando hospedada com os Sinnett.
No dia marcado para a eleição, 7 de abril, Maitland propôs a reeleição de Anna Kingsford, mas apenas um ou dois membros apoiaram a proposta. Sinnett então propôs Finch, que foi eleito pela maioria. Olcott sugeriu ao grupo de Kingsford que formassem uma nova Loja, que seria chamado de “Sociedade Teosófica Hermética” – o que foi aceito. (ODL III, 97)
Depois de resolvido o ponto mais delicado, eles passaram para a discussão da noite. Olcott tentou harmonizar as diferenças de opinião, mas sem muito sucesso, e o clima tornou-se tenso. Então HPB entrou inesperadamente na reunião, sentando-se no fundo da sala, ao lado de Archibald Keightley, que era um membro novo e ainda não a conhecia pessoalmente. Ele descreve que, no momento em que alguém lá na frente aludiu a alguma ação de Madame Blavatsky, a robusta senhora a seu lado confirmou, dizendo em voz alta: “É isso mesmo.” Nesse ponto, a reunião virou uma confusão e Mohini correu para jogar-se aos pés de HPB. (Caldwell, 175)
C.W. Leadbeater, que também era um membro novo e estava presente nessa reunião, descreve que uma robusta senhora, vestida de preto, havia entrado e sentado no fundo da sala. Após alguns minutos, demonstrando impaciência com a falta de progresso das discussões, ela pulou de seu assento e gritou num tom de comando militar: “Mohini!”, saindo para o corredor. Então:
“O altivo e sério Mohini veio correndo por aquela longa sala, na maior velocidade e, assim que alcançou o corredor, jogou-se incontinente, com sua face no chão, aos pés da senhora de preto.” (Leadbeater, 36)
Muitas pessoas levantaram-se, confusas, não sabendo o que estava acontecendo. Mas logo depois Sinnett, que também havia ido até o fundo, voltou e anunciou:
“Permitam-me apresentar à Loja de Londres como um todo – Madame Blavatsky!
“A cena que se seguiu era indescritível; os membros freneticamente alegres e, contudo, ao mesmo tempo, meio amedrontados, se juntaram à volta de nossa grande fundadora, alguns beijando suas mãos, vários ajoelhando-se diante dela, e dois ou três soluçando histericamente.” (Leadbeater, 37)
Ela então foi conduzida à plataforma onde, após ouvir explicações sobre o caráter insatisfatório da reunião, a encerrou e reuniu-se com os dirigentes. Relata Leadbeater que, após ouvir explicações de Kingsford e Sinnett, ralhou com ambos, como se fossem dois estudantes e fez com que dessem as mãos, numa demonstração de que suas diferenças haviam se encerrado! (Leadbeater, 37)
Como já vimos extensamente, os sentimentos de HPB estavam longe de serem imparciais e isentos, como aparentam ser na narrativa de Leadbeater. Após a reunião, Madame Blavatsky voltou para a casa dos Sinnett, e ficou em Londres por uma semana, antes de voltar a Paris.
O episódio acima narrado, em que Mohini atira-se aos pés da Madame Blavatsky, é muito interessante. Ele apresenta aspectos que dificilmente podemos entender completamente, pois estão na alçada da vida do Ocultismo, e não da vida comum. Isso porque, ainda em outubro de 1883, quando o Mestre decidiu que no ano seguinte Mohini iria a Londres com Olcott para ajudar a resolver a questão da Loja de Londres, HPB escreveu a Sinnett, alertando-o para o fato de que não deveria considerar o Mohini que ele havia conhecido como o mesmo que estaria em Londres:
“Em 17 de fevereiro Olcott provavelmente partirá para a Inglaterra para tratar de vários assuntos, e Mahatma KH envia seu chela, sob o disfarce de Mohini Mohun Chatterjee (...). Não cometa o erro, meu querido patrão, de tomar o Mohini que você conheceu pelo Mohini que irá. Há mais de uma Maya nesse mundo, da qual nem você, nem seus amigos e o crítico Maitland são sabedores. O embaixador será investido de uma vestimenta interna, bem como de uma vestimenta externa. Dixit.” (LBS, 65)
Do mesmo modo que HPB havia alertado Sinnett de que não considerasse Mohini como sendo o Mohini usual, o Mestre KH manda uma carta ao próprio Mohini, em março de 1884, lhe dizendo algo semelhante com relação à Madame Blavatsky e lhe orientando como deveria se comportar. Ele lhe diz que como as aparências eram importantes, especialmente entre os europeus, era necessário impressioná-los externamente antes que uma impressão interna, regular e duradoura, ocorresse. Por essa razão, o Mestre orienta Mohini que quando HPB chegasse a Paris:
“você irá encontrá-la e recebê-la como se estivesse na Índia e ela fosse sua própria mãe. Você não deve ligar para a multidão de franceses e outros. Você tem que impressioná-los; e, se o Coronel lhe perguntar por que, você lhe responderá que é o homem interior, o ocupante interno que você está saudando, não HPB, pois você foi avisado por nós nesse sentido. E saiba, para sua própria edificação, que Alguém muito superior a mim gentilmente concordou em inspecionar toda a situação, sob o disfarce dela, e então visitar, através do mesmo canal, ocasionalmente, Paris e outros locais onde membros estrangeiros possam residir. Você irá saudá-la desse modo ao vê-la e ao despedir-se dela, durante todo o tempo em que estiver em Paris – independente de comentários e de sua própria surpresa. Isso é um teste.” (LMW, 2nd S., 111)
Como vimos, HPB acabou inesperadamente indo a Londres e Mohini encontrou-a lá, e não em Paris, mas obedeceu literalmente às instruções de seu Mestre, jogando-se aos seus pés para saudá-la como faria com sua mãe na Índia. Ou, quem sabe, para saudar ao “Ocupante” interno que ali poderia estar.
15. A SOCIEDADE HERMÉTICA
Em 9 de abril a Loja Hermética foi organizada, com Olcott e Mohini presentes. (Ransom, 198) Entretanto, o problema não ficou resolvido pois poucos dias após a criação da Loja Olcott resolveu editar uma nova regra pela qual as filiações múltiplas ficavam proibidas. Isso significava, na prática, que os membros da Loja Hermética não poderiam freqüentar as reuniões da Loja de Londres, e assim se beneficiar das instruções lá oferecidas e vice-versa. Essa decisão transtornou os planos para a Loja Hermética e, em 22 de abril, o grupo de Kingsford decidiu devolver a carta constitutiva e formar uma sociedade independente da Sociedade Teosófica. (Ransom, 198)
Maitland diz que Olcott teria feito essa regra, que proibia a filiação múltipla, seguindo conselhos de Sinnett. (Credo, 24) Talvez seja a isso que o Mestre KH esteja se referindo nesta passagem abaixo, onde repreende Sinnett:
“Então você nega que jamais tenha havido qualquer rancor em você contra K. [Kingsford]. Muito bem; chame-o de qualquer outro nome que quiser; ainda assim foi um sentimento que interferiu com a estrita justiça, e fez O. [Olcott] cometer um erro ainda pior do que o que ele já havia cometido – mas que foi permitido seguir seu curso, pois se adequava aos nossos propósitos, e não causou nenhum grande mal, a não ser para ele mesmo – que foi tão mesquinhamente desdenhado por isso.” (MLcr-126, 424; ML-62)
Em 9 de maio a Sociedade Hermética foi fundada e logo se provou um grande sucesso, com as palestras de Anna Kingsford enchendo grandes salões. No final de 1884, Kingsford e Maitland saíram da Loja de Londres, mas não abandonaram a ST, permanecendo ligados a Adyar. Anna Kingsford e HPB ainda se encontraram em duas outras ocasiões, em julho de 1884 e em outubro de 1886. Esse último encontro foi o de Ostende, narrado pela Condessa de Wachtmeister e já citado na Introdução desse artigo.
A Sociedade Hermética funcionou regularmente, sobretudo com palestras de Anna Kingsford e Maitland, até o início de 1887, quando o estado de saúde dela já estava muito debilitado. Ela tinha problemas pulmonares crônicos e acabou morrendo de tuberculose, aos 42 anos, em 22 de fevereiro de 1888. (Godwin, 335)
Após sua morte, Maitland publicou dois livros em nome de Anna Kingsford. O primeiro, “O Credo do Cristianismo, e Outros Discursos e Ensaios sobre Cristianismo Esotérico” é composto de várias de suas palestras na Sociedade Hermética. O outro, como já vimos em As Iluminações de Anna Kingsford, é a compilação de suas Iluminações obtidas durante quase 14 anos, e que recebeu o título de “Vestida de Sol, o Livro das Iluminações de Anna (Bonus) Kingsford”.
Podemos agora avaliar melhor porque a Sociedade Teosófica perdeu uma grande oportunidade de se transformar naquilo que os Mestres tanto almejavam: um centro onde diferentes tradições pudessem conviver harmoniosamente, colocando em prática a tolerância que é a base do seu 1° Objetivo. Não há dúvidas de que, caso Anna Kingsford tivesse permanecido ativa dentro da Loja de Londres, como queria o Grande Chohan, isso teria marcado o início de uma abertura inédita na ST. Pois, como o Mestre KH escreveu:
“a Filosofia Hermética é universal e não sectária, enquanto que a Escola Tibetana sempre será considerada (...) como mais ou menos marcada pelo sectarismo. (...) Filosofia Hermética adapta-se a qualquer crença e filosofia”. (MLcr-120, 409; ML-85)
No entanto, a Sociedade Teosófica seguiu outro caminho, muito menos universal, e acabou desenvolvendo uma doutrina própria, com um perfil e uma terminologia bastante orientais, que passou a ser denominada de “Teosofia”. Assim sendo, não é estranho que o próprio Mestre KH – que seguindo a vontade do Chohan interferiu na crise da Loja de Londres – tenha feito um severo alerta quanto aos caminhos que estavam sendo seguidos pela ST escrevendo, em 1900, na última carta conhecida com a caligrafia dos Mestres:
“A ST e seus membros estão lentamente manufaturando um credo. Diz um provérbio tibetano: ‘credulidade gera credulidade e termina em hipocrisia’.” (LMW 1st S., 99)
Não há dúvidas, portanto, de que a Sociedade Teosófica perdeu uma grande oportunidade de se transformar naquele centro de vanguarda do pensamento que os Mestres tanto almejavam, especialmente no Ocidente. Um centro onde essas duas facções pudessem conviver harmoniosamente, demonstrando, na prática, a tolerância pregada no 1° Objetivo. Como bem notou P. Washington:
“O conflito entre Blavatsky e Kingsford era tanto pessoal quanto doutrinário. Duas mulheres fortes (...) estavam fadadas a entrar em conflito. (...)
“Essa foi uma oportunidade perdida. As duas mulheres tinham forças diferentes que poderiam ter sido complementares. Se Anna tinha vantagem sobre HPB na aparência, posses e posição social, HPB tinha o controle de uma organização internacional. Mas as diferenças foram longe demais. Elas são descritas pela própria Anna em termos de ocultistas orientais versus místicos ocidentais, e esse conflito ainda causaria freqüentes divisões dentro da Sociedade nos anos seguintes. Enquanto HPB rejeitava Kingsford como sendo uma médium comum, no livro de Anna sua rival era uma ocultista — e ocultistas estão bem abaixo na escala religiosa, em contato com o mundo dos espíritos apenas indiretamente.
“Pouco antes de sua própria morte, Anna K. afirmou ter sonhado que encontrou HPB no céu budista. Blavatsky ainda estava fumando seus desagradáveis cigarros, mas assim o fez somente após pedir humildemente permissão para o próprio patrão de Anna, Hermes (...). A cena é apropriadamente simbólica: a divisão entre as crenças ocidentais e orientais; a primeira, mas de modo algum a última rebelião daqueles que sentiam que a Teosofia estava se inclinando demais em direção ao Oriente e abandonando a tradicional fé cristã. Esse não era, de acordo com seus críticos, um sinal de universalidade religiosa, mas de uma ardorosa adoção de um credo estrangeiro.” (Washington, 77-78)
16. ANNA KINGSFORD E A GOLDEN DAWN (1886-1887)
A interpretação que Kingsford e Maitland fizeram das Escrituras cristãs naturalmente fez com que se interessassem pela Cabala, onde encontraram grandes semelhanças com as Iluminações de Kingsford. Isso os levou a uma relação com o barão Giuseppe Spedalieri, discípulo e editor literário de Eliphas Levi. Encontrando-se com ele em 1887, quando visitava a França, Maitland recebeu alguns manuscritos de Eliphas Levi e a sua cópia do tratado de Trithemius, De Septem Secundeis. Posteriormente, Maitland passou esse material para Wynn Westcott, o qual o editou como Ritual Mágico do Sanctum Regnum. (Godwin, 345)
Westcott era ligado à ordem secreta e oculta conhecida como S.R.I.A. ou Societas Rosicruciana in Anglia, da qual faziam parte Bulwer Lytton, John Yarker (que em 1877 havia concedido a HPB um diploma maçônico) e Samuel L. MacGregor Matthers. Westcott e Matthers foram também os principais fundadores da Golden Dawn, que inicialmente se apresentava como uma “ordem não maçônica, aberta a homens e mulheres”, a qual se intitulava “Os Estudantes Herméticos da G.D.” (Godwin, 223)
Tanto Westcott quanto Matthers eram muito ativos na Sociedade Hermética de Kingsford. Matthers deu duas palestras, uma sobre Cabala e outra sobre Alquimia, e durante o ano de 1886 trabalhou na tradução de um livro que Maitland e Kingsford haviam consultado no Museu Britânico. Quando publicado sob o título The Kabbalah Unveiled [A Cabala Sem Véu], o livro foi dedicado aos dois.
De acordo com o biógrafo de Matthers, Colquhoun, provavelmente foi sob a influência de Anna Kingsford que Matthers se tornou um feminista, pelo menos no que diz respeito a questões ocultas, insistindo para que as mulheres fossem admitidas na Golden Dawn em igualdade de condições com os homens. Mas as semelhanças entre a Golden Dawn e Kingsford vão muito além disso:
“Pode-se entender muito melhor a Golden Dawn após se conhecer o trabalho de Kingsford e Maitland. Seus rituais evocaram o mesmo universo iniciático que as Iluminações de Anna Kingsford haviam descrito: um universo cuja mitologia era Egípcia, Cabalística, Eleusiana e Cristã (Rosacruz). Era um complemento prático para os ensinamentos teóricos e morais de O Caminho Perfeito.” (Godwin, 362)
17. OS LIVROS SAGRADOS DE HERMES TRISMEGISTUS
Em 1884, Kingsford e Maitland publicaram uma tradução de A Virgem do Mundo de Hermes Mercurius Trismegistus, que continha textos herméticos muito raros. Além do fragmento que dá o título, contém: “Asclépios sobre Iniciações”, “Definições de Asclépios” e “Fragmentos”, que inclui os “Fragmentos do Livro de Hermes a seu Filho Tatios”, “Fragmentos dos Escritos de Hermes a Ammon” e “Vários Fragmentos Herméticos”. Desse último citamos a Parte III:
“Por isso a visão incorpórea sai do corpo para contemplar a beleza, elevando-se e adorando, não a forma, nem o corpo, nem a aparência, mas aquilo que por trás de tudo, é calmo, tranqüilo, substancial e imutável; aquilo que é tudo, sozinho e uno, aquilo que é por si mesmo e em si mesmo, semelhante a si mesmo, e sem variação.” (Virgin, 151)
Os livros sagrados de Hermes continham as leis, ciência e teologia do Egito, e os sacerdotes diziam que eles haviam sido escritos durante o reinado dos Deuses, que precedeu àquele de seu primeiro rei, Menes. Havia quatro livros que, subdivididos, compunham 42 volumes. Eles eram guardados no recinto mais sagrado do templo, e apenas os sacerdotes de uma ordem superior tinham permissão de consultá-los. Nas grandes procissões religiosas os livros de Hermes eram reverentemente carregados. (Virgin, i)
“Os principais sacerdotes levavam os dez volumes relacionados às emanações dos Deuses, à formação do mundo e à divina anunciação de leis e regras para o sacerdócio. Os profetas carregavam quatro, tratando de astronomia e astrologia. O líder dos músicos sagrados carregava dois, contendo os hinos aos Deuses e máximas para guiar a conduta do rei, as quais o cantor deveria saber de cor. A antigüidade e santidade desses hinos egípcios era tal que Platão afirmou que eles eram atribuídos a Ísis, e que se acreditava que teriam dez mil anos de idade. Os servidores do templo levavam mais dez volumes, contendo formas de oração e regras para os oferecimentos, festivais e procissões. Os outros volumes tratavam de filosofia e ciências, incluindo anatomia e medicina.” (Virgin, i)
O imperador romano Severus reuniu todos os escritos sobre os Mistérios e os queimou no túmulo de Alexandre o Grande; e Diocleciano destruiu todos os livros relacionados com a Alquimia. Os renomados livros de Hermes estiveram perdidos por 15 séculos. Nos primeiros séculos do Cristianismo, Hermes era considerado um revelador inspirado e seus escritos considerados a teologia que havia sido passada para Moisés. Essa opinião foi aceita até a Renascença por vários estudiosos, os quais consideravam os livros de Hermes como a fonte das iniciações Órficas e da filosofia de Pitágoras e Platão. (Virgin, ii)
Embora haja críticos contrários a essas conclusões, eles reconhecem uma grande semelhança entre essas doutrinas e as do Cristianismo e reconhecem, portanto, que o Cristianismo não era algo completamente novo quando surgiu, mas um desenvolvimento ou uma reformulação de uma doutrina há muito pré-existente. (Virgin, viii)
Maitland explica que o método Hermético para a obtenção da perfeição em qualquer plano – físico, intelectual, moral ou espiritual – é a pureza:
“Não apenas tendo, mas sendo consciência, o homem é homem e é capaz de perceber na medida em que for puro; a pureza completa implicando numa percepção total, até mesmo de ter a visão de Deus, como os Evangelhos o afirmam. Na mesma proporção ele também tem poder. O Hermetista plenamente iniciado é um mago, ou um homem de poder, e pode realizar o que para o mundo parecem milagres, e isso em todos os planos – físico, intelectual, moral e espiritual – pela força de sua própria vontade. Mas seu único segredo de poder é a pureza, do mesmo modo que sua única motivação é o amor.” (Virgin, xv)
As doutrinas herméticas falam da intuição como o modo essencial para o homem entrar em contato com seu ser mais essencial e permanente – a alma – e dela obter conhecimento das coisas divinas que obteve em épocas distantes de seu passado. A doutrina dos múltiplos renascimentos da alma num corpo físico e a doutrina da responsabilidade pelos frutos de suas ações também estão presentes nos ensinamentos Herméticos.
18. REVELAÇÃO
A curta vida de Anna Kingsford gerou muitos frutos, que ainda estão ao alcance das pessoas em suas obras, onde ela revela, através de suas Iluminações e filosofia, um caminho para o Oculto. É um valioso legado para aqueles que se dedicarem a trilhá-lo. Algo que ela mesma intuiu quando, poucos dias após a fundação da Sociedade Hermética, escreveu:
“O que realmente buscamos é reformar o sistema cristão e começar uma nova Igreja Esotérica. Uma vez que isso se inicie, poderá prosseguir indefinidamente, como acontece com a Igreja Exotérica. (...) Algumas vezes penso que as verdades e conhecimentos que possuímos são tão elevados e tão profundos que essa época ainda não está preparada para recebê-los, e que tudo que nos será possível fazer será formulá-los em algum livro, ou livros, para deixá-los como um legado ao mundo quando tivermos partido.” (Credo, 28)
Concluímos esse artigo sobre Anna Kingsford e suas relações com Helena Blavatsky, citando uma de suas Iluminações, “Sobre a Revelação”, onde se destaca a beleza, profundidade e poesia da mensagem:
“Todas as iluminações verdadeiras e valiosas são re-véu-ações, ou re-velações. Marque o significado dessa palavra. Não pode haver nenhuma iluminação verdadeira ou valiosa que destrua distâncias e exponha os detalhes das coisas.
“Olhe para esta paisagem. Contemple como suas montanhas e florestas estão banhadas com suave e delicada névoa, que meio encobre e meio revela suas formas e tons. Veja como essa névoa, como um delicado véu, envolve as distâncias e mescla as bordas da terra com as nuvens do céu!
“Quão belo é, quão ordenada e completa a sua adequação e a delicadeza de seu apelo aos olhos e ao coração! E quão falso seria aquele sentido que desejasse destruir esse véu sobreposto, para trazer para perto os objetos longínquos, e reduzir tudo a um primeiro plano, no qual apenas detalhes fossem aparentes, e todos os contornos fossem nitidamente definidos!
“A distância e a névoa fazem a beleza da Natureza: e nenhum poeta desejaria contemplá-la de outra forma que não fosse através desse adorável e modesto véu.
“E assim como na natureza exotérica, assim é com a natureza esotérica. (...)
“Assim, a doutrina dos mistérios é verdadeiramente re-véu-ação – um velar e um re-velar daquilo que não é possível para o olho contemplar sem violar toda a ordem e santidades da natureza.
“Pois a distância e os raios visuais, causando as diversidades do próximo e do distante, de perspectivas e nuances que se fundem, de horizontes e primeiros planos, são parte da ordem e seqüência naturais: e a lei expressa em suas propriedades não pode ser violada.
“Pois nenhuma lei jamais é quebrada.
“Os tons e aspectos da distância e da névoa realmente podem variar e se dissolver, de acordo com a qualidade e a quantidade de luz que cai sobre elas: mas elas estão sempre lá, e nenhum olho humano pode anulá-las ou aniquilá-las.
“Mesmo as palavras, mesmo as figuras são símbolos e véus. A própria verdade não pode ser jamais proferida, a não ser de Deus para Deus.” (Clothed, 9-11)
19. BIBLIOGRAFIA
Blavatsky, H.P. Glosario Teosofico. Ed. Kier, B. Aires, 1977.
Blavatsky, H.P. H. P. Blavatsky Collected Writings. (CW) TPH, Wheaton, 1977.
Blavatsky, H.P. Letters of H.P. Blavatsky. Blavatsky Archives, 1999. http://blavatskyarchives.com/
Blavatsky, H.P. Letters of H.P. Blavatsky to A.P. Sinnett. (LBS) TUP, Pasadena, 1973.
Caldwell, D. The Occult World of Madame Blavatsky. Impossible Dream Publ., Tucson, 1991.
Corson, E. Some Unpublished Letters of HPB. TUP Online Edition, 1999.
http://www.theosociety.org/pasadena/tup-onl.htm
Godwin, J. The Theosophical Enlightment. State Univ. of New York Press, Albany, 1994.
Hao Chin Jr., V. (ed.) The Mahatma Letters (in Chronological Seq.). (MLcr) TPH, Quezon City, 1993.
Jinarajadasa, C. (ed.) Letters from the Masters of the Wisdom, (LMW) 1st and 2nd Series. TPH, Adyar, 1973.
Judge, W.Q. Letters That Have Helped Me. Theosophy Co., Bombay, 1989.
Kingsford, A.B. Clothed With the Sun. Sun Publ. Co., Santa Fe, 1993.
Kingsford, A.B. & Maitland, E. The Credo of Christendom. Kessinger Publ. Co., Montana, 1916.
Kingsford, A.B. & Maitland, E. The Virgin of The World of Hermes Mercurius Trismegistus. Kessinger Publ. Co., Montana, 1885.
Leadbeater, C.W. How Theosophy Came to Me. TPH, Adyar, 1986.
Olcott, H.S. Old Diary Leaves. (ODL) TPH, Adyar, 1974.
Ransom, J. A Short History of the Theosophical Society. TPH, Adyar, 1989.
Shirley, R. Anna Kingsford & Edward Maitland. Mandrake Press Ltd., Thame, 1993.
Wachtmeister, C. Reminiscences of H.P. Blavatsky and The Secret Doctrine. TPH, Wheaton, 1976.
Washington, Madame Blavatsky’s Baboon. Schocken Books, N. York, 1993.