A Astrologia nos 12 Poemas de Mar Português de Fernando Pessoa
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!
Algumas Sincronicidades
Fernando Pessoa, autor destes poemas e Vitorino de Sousa, que os interpretou astrologicamente, nasceram, ambos, sobre o signo de Gêmeos.
Considerando que este signo zodiacal é representado pelo mito dos dois irmãos gêmeos Castor e Pólux, lê-se o seguinte no livro A Mitologia, de Edith Hamilton: “(…) Havia dois irmãos muito célebres e populares, CASTOR e PÓLUX, que, segundo consta na maior parte das histórias, viviam metade do tempo na Terra e a outra metade no Céu. Eram filhos de Leda, e são considerados habitualmente deuses protetores dos marinheiros”.
Portanto, quem melhor do que estes dois gêmeos poderiam “proteger” este trabalho sobre os grandes marinheiros portugueses, elaborado pelo geminiano Fernando Pessoa e comentado pelo geminiano Vitorino de Sousa?
Poema I
Áries – O Infante
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
Como facilmente reconhecerás, o título deste primeiro poema refere-se, evidentemente, ao infante D. Henrique (1394 – 1460), o grande obreiro dos Descobrimentos Portugueses. Ele foi o pioneiro dessa aventura, o homem destemido e indomável que se propôs iniciar a concretização desse projeto que abriu «novos mundos ao mundo».
Infante significa «filho do rei» (D. João I). Vamos encontrar este mesmo termo (Filho) na trilogia cristã, posicionado entre o Pai e o Espírito Santo; da mesma forma, também este conjunto de 12 poemas está posicionado, no livro Mensagem, entre a primeira parte (Brasão) e a terceira (O Encoberto).
É interessante verificar que, se puseres em paralelo a trilogia cristã e os três capítulos de Mensagem, encontras as seguintes correspondências:
1 – Deus – «Brasão»
2 – Filho – «Mar Português»
3 – Espírito Santo – «O Encoberto»
Apesar das acepções de «Brasão» e de «O Encoberto» utilizadas no contexto do livro, é caso para perguntar:
1 – O que é Deus senão um «Brasão», um símbolo da verdadeira Nobreza?
2 – O que é «Mar Português» senão o «filho» dileto dos feitos da nação portuguesa?
3 – E o Espírito Santo? Enquanto veículo do Amor de Cristo, não tem andado «encoberto»?
Esta noção de trilogia está bem patente, também, no fato de este poema ter três quadras.
Finalmente, logo no primeiro verso;
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Fernando Pessoa refere as três condições que intervêm na Manifestação, o último estágio da progressiva densificação da energia.
Igualmente, quando ouves referir Deus, também três ideias, pelo menos, devem ocorrer imediatamente na tua mente:
1 – Criação
2 – Compaixão
3 – Fogo Criador
Quanto à primeira ideia – Criação – decerto te ocorrerá fazer, outra vez, aquela velhíssima pergunta que todos os humanos, desde sempre, não se cansam de repetir: Quem é o Autor da Criação?
Cada vez que, ao longo dos séculos, reformulaste esta questão, pretendias, evidentemente, recolher uma resposta. Mas quando, nos primórdios do Tempo, colocaste esta questão pela primeira vez, recebeste como resposta o Silêncio Absoluto. Na altura, deves ter interpretado que ninguém te respondeu. Talvez por isso, tens vindo a repetir a mesma pergunta milhões de vezes.
Esqueces-te, todavia, que aquele Silêncio Absoluto que recebeste do Alto como resposta significou então, e significa agora, que nada se pode dizer acerca do Criador!
Só um mortal, do alto da sua magnífica ignorância, poderá imitir uma definição sobre o Autor a Criação. Porém, tal coisa só prova que não pode estar a falar Dele; quanto muito estará a falar da sua concepção pessoal acerca do assunto.
Por conseguinte, todas essas concepções pessoais não definem, nem podem definir a Divindade; limitam-se a criar a confusão. E como a confusão é, evidentemente, o resultado da ausência de Luz – que é clareza – resulta que todo este processo se transforma num tremendo equívoco, num círculo vicioso, numa impossibilidade, enfim, num entretenimento intelectual.
Portanto, se me permites, poderias colocar a questão doutra maneira: como é que o corpo mental concreto (função do terceiro chacra, plexo solar) poderá ser capaz de definir «Deus» (função do sétimo chakra, coronal), se até mesmo nas decisões mais comezinhas ele é incapaz de escolher no sentido de servir a alma?
Aquilo a que chamas «Deus» é sinônimo de Sabedoria e, por isso, não pode ser encontrado com a mente excitada pelo impulso de fazer perguntas.
É por isso que, quem sabe, não pergunta, limita-se a saber e a estender essa Sabedoria!
Mais: quem vive significativamente não concebe Sabedoria sem Amor.
É por isso que, quem ama não faz perguntas; limita-se a amar e a estender esse Amor!
Quanto à segunda ideia suscitada pelo conceito de Deus – Compaixão – convém esclarecer o que é o verdadeiro sentimento da compaixão: sentir compaixão é ser capaz de reconhecer o Espírito por detrás de todos os corpos/ego, quer eles sejam bonitos ou feios, de raça branca ou negra amarela, homens ou mulheres, etc. Por outras palavras, ver o verdadeiro Ser por detrás das aparências físicas, das particularidades de caráter, dos atributos da personalidade, da constituição do ego, etc. Ao contrário do que julgas, compaixão não é «ter pena de».
Quanto à terceira ideia suscitada pelo conceito de Deus – Fogo Criador – verificamos que o Fogo é o Elemento de Áries, o 1º signo do Zodíaco, ao qual este primeiro poema está, naturalmente, associado. O segundo verso da primeira estrofe;
Deus quis que a terra fosse toda uma,
expressa perfeitamente esta ideia de Deus como fonte da Vontade (quis) que está ligada ao Fogo Criador. Por seu turno, o verso seguinte;
Que o mar unisse, já não separasse.
ao referir o mar, orienta-se para o arquétipo de Peixes- o signo anterior a Áries- o qual é regido por Netuno, o Senhor dos Oceanos e dos Mares.
Esta menção ao encerramento do ciclo zodiacal que o transforma numa unidade, é uma referência clara à ideia de que Fogo Criador de Deus bafeja todas as coisas.
A propósito da sequência dos signos, convém dizer o seguinte: os 12 arquétipos zodiacais não são compartimentos estanques, alinhados numa sequência aleatória; cada um deles, apesar da sua identidade própria, é, simultaneamente, um modelo bem definido e uma resposta ao signo anterior. Tanto assim que a sua polaridade e gênero se vão alternando.
Se o DNA é o código da vida no plano físico, o Zodíaco é o código da vida no plano simbólico.
Por conseguinte, Peixes, o último signo do Zodíaco, une e integra em si todos os antecedentes. Com esta síntese, encerra um ciclo e abre outro; tal como a audácia do Infante D. Henrique em aventurar-se (Áries) nos Descobrimentos dos Mares (Peixes) fechou um ciclo da História de Portugal – caracterizado pela fundação da nacionalidade e subsequente conquista e estabelecimento das fronteiras terrestres – e abriu outro. Este novo ciclo iria cumprir-se através, já não da criação de uma nacionalidade, mas sim da universalidade; já não através da conquista de fronteiras terrestres, mas sim de «fronteiras» marítimas…se é que podem pôr-se fronteiras numa coisa que é global por natureza!
É curioso notar que a última palavra da primeira quadra;
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.
remete para o mito de Afrodite, a que nasceu da espuma do mar.
Afrodite é uma deusa do Panteão Grego a quem os romanos chamavam Vénus. Ora, Vénus é o regente de Libra, o signo oposto a Carneiro, cujo regente é Marte. Esta oposição zodiacal entre Marte e Vénus representa um desafio de complementaridade, já que, por aqui, estas duas entidades já foram casadas.
Ao escrever O Infante, Fernando Pessoa, que era um conhecedor profundo da linguagem astrológica, considerou a forma mais salutar de interpretar o Zodíaco: avaliou cada signo/regente como complementar do seu oposto.
Se não repara: em tudo o que tem um início (Áries), ou representa um início (O Infante), está implícita uma promessa de expansão e de esperança que assentam no entusiasmo, na coragem e na firmeza (Áries). Esta ideia de movimento para frente em direção a algo que o complementa está bem expressa nos primeiros versos da segunda quadra;
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Se notares, algo isolado – a orla branca – saiu em busca do complemento. Fê-lo correndo até ao fim do mundo. E, como os esforços são sempre recompensados;
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Ou seja, uma coisa encontrou a outra!
Falta dizer que este desafio do «um» encontrar o «dois» é o propósito profundo do eixo que liga o arquétipo de Carneiro/um/sozinho ao arquétipo de Balança/dois/acompanhado.
Estes dois últimos versos da segunda estrofe reforçam a evidência de que Fernando Pessoa se serviu do código da Astrologia para poetar sobre a saga dos descobridores portugueses.
Aqui, o termo terra inteira haverá de ser entendido, não como a larga paisagem que se apresentava perante o olhar dos navegantes, mas sim como a «visão» que se abria perante eles, uma outra dimensão, superior, não terrena, cheia de possibilidades. Ora, graficamente, o Zodíaco tem uma forma redonda e representa, simbolicamente, a interligação do que está «em cima» com o que está «em baixo», isto é, o relacionamento da vida nesta dimensão com a dimensão superior, não terrena.
Se leres estes itens considerando o enorme impacto que «a missão divina» dos Descobrimentos Marítimos portugueses provocou no mundo do século XV, decerto perceberás por que Fernando Pessoa utiliza a expressão azul profundo neste contexto.
Estou em crer que ele não se referia à cor do mar. Profundo como era, o poeta decerto estava a pensar na primeira alínea das atribuições do 5º Raio!
No entanto, e apesar de tudo, a terceira estrofe diz;
Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
Para terminar esta análise de O Infante, resta chamar-te a atenção para o seguinte: a palavra que inicia (Áries) o poema é:
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
E a palavra com que termina é:
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
Portanto, a primeira palavra – Deus – remete para Aquele que tudo inicia e onde tudo se inicia; a última palavra – Portugal – remete para um país do último signo, Peixes, aquele onde tudo se acaba no indefinido e no oculto.
Ora, o teu país ficou na História, precisamente, devido à ousadia (Áries, o primeiro) de dar início a uma nova forma de afrontar a vastidão desconhecida, oculta, dos oceanos (Peixes, o último). Fernando Pessoa sustenta esta tese denunciando a vertente divina, oculta, dos Descobrimentos.
Poema II
Touro – Horizonte
Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
‘Splendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da longínqua costa –
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha.
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp’rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –
Os beijos merecidos da Verdade.
O que ressalta imediatamente deste poema é a utilização de termos que referem os elementos típicos da Natureza primaveril do seu planeta quando está no auge da sua criatividade. Ora, estes termos são, exatamente, os mesmos que referem o arquétipo Touro. Este signo astrológico é regido por Vênus, a deusa da Arte, do Amor e da Sedução a qual, naturalmente, expressa os valores taurinos de beleza e de sensualidade.
Para que isto fique mais claro, gostaria de destacar esses termos e as expressões que, em Horizonte, «escondem» a presença dominante de Touro/Vénus:
Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
‘Splendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da longínqua costa –
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha.
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp’rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –
Os beijos merecidos da Verdade.
De todas estas referências, típicas de uma primavera que desabrocha (Touro/Vénus – Abril/Maio), a mais clara e inequívoca está, sem dúvida, no quinto verso da primeira estrofe:
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
Touro é um signo de Terra. Este Elemento diz respeito às vertentes práticas da vida baseadas na experiência passada (concretização) e à realidade perceptível do presente (evidência). Por ser preservador e conservador, a Terra está pouco interessada no futuro.
Ora, como se pode verificar, a Terra está bem presente neste poema, quer nos termos característicos da sua vertente material e física (aves, flor, árvores, praia, fonte, etc.), quer, precisamente, no sentido das acima citadas concretização (baseada na experiência passada) e evidência (realidade perceptível do presente).
Comecemos pela concretização (baseada na experiência passada): na primeira estrofe, o verbo está no pretérito perfeito (tempo passado):
Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Este tempo de conjugação pressupõe que, agora, os medos já «não têm» coral e praias e arvoredos. Logo, a presença do Elemento Terra está em que algo se concretizou no sentido de alterar a definição deles.
Quanto à evidência (realidade perceptível do presente): na segunda estrofe, os verbos estão no presente do indicativo (tempo presente):
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha.
Portanto, não se pode negar a presença do Elemento Terra em Horizonte: como vimos, a concretização remete para uma realização prática ocorrida, ou baseada, no passado, ao passo que a evidência refere uma objetividade que pode ser provada através da realidade perceptível no presente.
Outra referência clara ao Elemento Terra é o próprio título do poema: Horizonte.
Um horizonte pode ser, evidentemente, apenas uma linha que, aparentemente, assinala o fim do planeta. Porém, para os navegantes portugueses que procuravam novas terras, decerto se refere ao avistamento e posterior alcance de algo sólido, alguma coisa de concreto que se visse, sentisse, tocasse e cheirasse (Terra), alguma coisa que se pudesse possuir e preservar (Touro), alguma coisa que se pudesse fruir, amar e contemplar (Vénus).
Este poema também denota uma presença bem vincada do signo oposto. Neste caso é Escorpião – um arquétipo de mistério, profundidade, noite, breu, transcendência, morte, regeneração, inconsciente profundo, etc.
A terminologia típica deste arquétipo oposto a Touro pode ser encontrada em:
Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
‘Splendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da longínqua costa –
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha.
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp’rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –
Os beijos merecidos da Verdade.
Perante isto, será lícito acreditar que Fernando Pessoa decidiu deixar de lado a profundidade dos seus conhecimentos esotéricos, optou por dispensar a maturidade da sua alma e preferiu limitar-se a utilizar, nos seus poemas, termos que constam de qualquer compêndio básico de Astrologia? Fará algum sentido considerar a magistral composição deste poema como uma simples superficialidade inspirada? Será por acaso que Touro e Escorpião estão aqui codificados? Será coincidência? E como comentar o que se passa nos outros poemas?
Fernando Pessoa tinha Ascendente em Escorpião. Esse gosto pela investigação, pelo contato com o oculto e com o enigma forçou-o, evidentemente, a ir bem mais fundo. Toda a sua obra assegura isso mesmo.
É um fato indesmentível que, por detrás da exaltação da bravura da viagem física, externa, dos navegadores (que serve de «pretexto» aos 12 poemas), está a demanda do Gral – a viagem espiritual, interna, o trabalho alquímico, as iniciações, o autoconhecimento, enfim o empenho na tarefa de, progressivamente, ir substituindo a consciência terrena e mundana, por uma outra, divina e transpessoal.
É assim que, em Horizonte, encontrarás expressões e ideias que apontam claramente para os interesses espirituais do poeta. Os dois últimos versos da primeira estrofe são bem explícitos:
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
‘Splendia sobre as naus da iniciação.
Repara que Longe está escrito com letra maiúscula; não refere, portanto, a distância física que separava os navegadores das terras onde pretendiam chegar; é outro tipo de Longe.
Além disto, as naus deixam de ser os veículos da descoberta marítima para passarem a ser os veículos da iniciação.
Outro exemplo de expressões e ideias que apontam claramente no sentido da viagem espiritual, do trabalho alquímico, da iniciação e do autoconhecimento, é toda a terceira estrofe, especialmente o seu início:
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp’rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –
Os beijos merecidos da Verdade.
O que poderão ser estas formas invisíveis da distância imprecisa senão aquelas que o desdobramento da energia do teu ser multidimensional podem assumir na distância imprecisa dos vários planos das distintas dimensões dos diversos Universos?
Qual poderá ser esta Verdade maiúscula senão a da nossa origem cósmica e divina?
Que «lábios» darão estes beijos merecidos da Verdade, senão os do nosso Pai?
Quem os receberá senão a tua alma resgatada?
Se caíres na ingenuidade de pensar que vais sentir esses beijos na pele da tua fronte, suada pelas agruras do Caminho, desilude-te porque, nessa dimensão, não precisas de um corpo físico para nada.
Em termos de expansão da consciência, o objetivo a atingir é, evidentemente, que consigas realizar o sonho de ver, de seres capaz de reconhecer as formas invisíveis da distância imprecisa que estão escondidas no futuro por desvendar. Por outras palavras: tu não acabas no ponto onde termina a consciência que tens acerca de ti mesmo.
Sem entenderes isto, permaneces, é claro, dentro do mistério.
Assim, esta dramática situação impele milhões de pessoas a peregrinar erraticamente em busca de orientação, do sentido e do propósito da existência, o que faz com que o momento de recebimento dos tais beijos merecidos da Verdade vá sendo sistematicamente adiado.
Dito por outras palavras, a pessoa que, há milhares de anos, se entretém com o tão propalado mistério do sentido da vida, há milhares de anos que orienta a sua pesquisa nas seguintes direções:
. O seu local de origem. (De onde venho?);
. A conscientização do grau de evolução que possui (Quem sou eu?);
. A busca do ponto de chegada (Para onde vou?).
Esquece-se, porém, (ou recusa lembrar-se!) que:
. Conhece perfeitamente o local de origem do seu ser, de onde ele vem: vem de outra dimensão, onde deixou a sua matriz perfeita, aquilo que existe para o ajudar a orientar-se neste mundo das formas, desde que solicite e aceite, incondicionalmente, essa ajuda.
. Conhece perfeitamente o grau de evolução que possui, sabe quem é: é um ser multidimensional, um núcleo de consciência superior, incomensurável. É um Filho da Luz que, junto com muitas outras, resolveu experimentar a densificação a sua própria energia para ver como a criatividade da Fonte se manifestaria nesses planos densos. Esta decisão, porém, implicou na descida um espesso véu sobre o conhecimento da Essência; a consequência foi essa espécie de amnésia cósmica que o aflige;
. Conhece perfeitamente o ponto de chegada, sabe para onde irá: irá para outra dimensão, para aquela de onde saiu, temporariamente, para fazer esta experiência. Tal como o filho pródigo, voltará para Casa do Pai, esse estado de paz que lhe pertence por direito e de onde jamais poderá ser expulso.
Portanto, o célebre mistério da Vida não tem mistério nenhum!
Através de tudo isto – e do resto que a tua mente humana não tem como explicar – Fernando Pessoa convida o leitor a refletir acerca da sua condição de estar encarnado neste mundo, embora não seja deste mundo.
Estás aí, na Terra, preso nessa densíssima dimensão, para reconhecer o que está por detrás do véu que tu próprio ajudaste a tecer e permitiste que, no momento do nascimento físico, descesse sobre o Conhecimento Essencial da tua verdadeira Origem. Tu estás aí para, como diz o poeta:
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –
Os beijos merecidos da Verdade.
Ou seja, tens de ativar aquele instinto do salmão que faz com que, depois de muitos anos no mar, procure o rio onde nasceu. Portanto, decide sair desse teu mar assustador; ativa o instinto de retorno à Fonte e demanda o Rio de Luz onde nasceste, procura o Rio de Luz que, afinal, és tu.
Quando estiveres em ti, quando recuperares a condição de Tudo, receberás os tais beijos merecidos da Verdade e, finalmente, perceberás que beijas a ti mesmo!
Repetindo o jogo de relacionar as primeiras e as últimas palavras do poema, podes ver em;
Ó mar anterior a nós, teus medos
uma invocação ao mar ancestral e primordial.
Trata-se desse Oceano da Totalidade onde flutua o Ovo Cósmico, esse mar que, necessariamente, é anterior a nós, na medida em que somos o fruto manifestado da Sua criatividade.
A ternura inerente a essa Fonte volta a aparecer no último verso
Os beijos merecidos da Verdade.
já que o Criador, depois de ter aguardado que completasses a viagem iniciática ao longo de inumeráveis encarnações, recebe-te de volta e permite que te fundas, de novo, com Ele, por forma a Ele e tu sejam Um, como sempre foram e serão.
O Pai beija e, no beijar, unifica.
Poema III
Gêmeos – Padrão
(13 DE SETEMBRO DE 1918)
O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.
O aspecto mais interesse deste poema é o fato de ser o único em que o autor – apesar de se identificar com a figura de Diogo Cão – se expressa na primeira pessoa. Esta exceção deve-se, decerto, à circunstância de Padrão corresponder a Gêmeos, o signo natal de Fernando Pessoa (13-6-1888, 15.20 h de Lisboa).
Quando se descreve o signo de Gêmeos costuma referir-se a sua acentuada mutabilidade e dispersão, assim como a tendência para intelectualizar as experiências. Com base nestes parâmetros, veja-se, então, como Fernando Pessoa se definiu a si próprio:
Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou. (…) Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são «desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por demais inteligente. (…) Todo o meu caráter consiste no ódio, no horror e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, física e mentalmente, para atos decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma decisão nascida do autodomínio, jamais traí externamente uma vontade consciente. Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinários, inexpulsáveis associações de ideias cujo termo era o infinito. Não posso evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil inter-associações, e não tenho força de vontade para os eliminar ou deter, nem para os reunir num só pensamento central em que se percam os pormenores sem importância mas a ele associados. (…) O meu caráter é tal que detesto o começo e o fim das coisas, pois são pontos definidos.
De fato, notável! Tu, que adoras definições, poderás investigar os inúmeros compêndios de astrologia disponíveis nas livrarias; contudo, atrevo-me a dizer que dificilmente encontrarás uma descrição que melhor defina o arquétipo Gêmeos.
Em Padrão, mais uma vez, Fernando Pessoa usa as navegações, os marinheiros e as viagens pelos maravilhosos mares ignotos desse planeta para falar da sua «viagem» espiritual. Di-lo, claramente, no primeiro verso da primeira estrofe. Decerto baseado na sabedoria adquirida por via da inevitável renúncia do mundo e das suas vãs glórias, reconhece:
O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
Porém, destes mesmos versos – que assinalam a propensão geminiana de se movimentar permanentemente para diante – pode tirar-se um outro significado. Vejamos: nesta estrofe, Fernando Pessoa identifica-se com Diogo Cão e confessa-se navegador, o que é uma forma de se reconhecer como um pesquisador peregrino das rotas (Mar, Peixes, Portugal, Espírito) que conduzem à Origem. E, lembrando-se do monumento de pedra (padrão) que os Portugueses erguiam e deixavam nas terras que iam descobrindo, diz:
O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
Tentemos traduzir:
1-O termo padrão – que, ao dar nome ao poema, reforça a sua regência sobre ele – certamente poderá ser entendido como o próprio trabalho literário do poeta. Este trabalho é essa obra de incrível beleza, originalidade e profundidade que deixou nesse planeta, particularmente o livro, Mensagem, ao qual pertencem estes 12 poemas, cuja análise astrológica te envio desde este “assento etéreo onde subi”, como diria Camões.
2-A expressão – ao pé do areal moreno – é, seguramente, sinônimo das praias desse Portugal à beira mar plantado onde nasceste, as quais se tornaram célebres por terem assistido, durante séculos, à presença angustiada dos seres humanos, principalmente mulheres, que ficavam pregadas no areal, angustiadas e chorosas, olhando o horizonte, depois de terem visto zarpar os seus maridos e filhos.
Um parêntesis: Embora seja matéria do 10º poema (Mar Português) – quiçá o mais belo e conhecido dos 12 que fazem parte deste conjunto – cabe transcrever como Fernando Pessoa expressou este drama, que ainda hoje continua a desenrolar-se no areal moreno de Portugal:
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
3-A expressão – E para diante naveguei – poderá ser interpretada, sem dúvida, como uma forma de Fernando Pessoa dizer que cumpriu a tarefa a que se propusera. Ou seja, escreveu e avisou o que havia para escrever e para avisar. Depois, como convém a qualquer ser humano, não se apegou à sua criação e seguiu para diante, em busca de novas rotas, novas terras, novos portos. Assim se purificou, sabendo que haveria de continuar a evolução noutras dimensões, tendo como objetivo último a Luz Suprema.
E, como se a primeira estrofe não bastasse para confessar o objetivo a que dedicou toda a sua vida, começa a segunda retomando o mote espiritual:
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
Quer o poeta dizer, certamente, que os humanos não podem fazer tudo. (Bom, não podem fazer tudo, mas podem fazer muito para que a obra, ainda imperfeita, se torne divina como a alma)
A partir do momento em que – apesar de serem seres cósmicos altamente desenvolvidos – tenham decidido desacelerar a vibração da vossa energia fazendo-a baixar para essa terceira dimensão, ou seja, desde que a vossa alma, apesar de divina, tenha de se confrontar com o peso da matéria, só poderão fazer o que estiver ao vosso alcance.
Por isso, a obra é imperfeita !
Mas, apesar de tudo, o que é que está ao vosso alcance?
O que está ao vosso alcance é usarem o livre-arbítrio da única maneira que vos é favorável, escolhendo a via da dedicação ao aprofundamento espiritual. Esta escolha é fundamental para que, um dia, depois de éons de tempo, se libertem desse mesmo livre-arbítrio e, finalmente, possam fazer a vontade do Pai sem se entregarem a apreciações intelectuais sobre se essa Vontade Superior coincide ou não com a vossa vontade inferior.
O que está ao vosso alcance é tornarem sagrada a vossa consciência terrena, fazerem com que ela seja à imagem e semelhança da vossa Consciência Cósmica.
Ainda nesta segunda estrofe, Pessoa, considerando a sua obra com a consciência tranquila, garante:
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
Sim, da obra ousada, ele fez o que era possível ser feito.
Ora, Fernando Pessoa alcançou o que estava perfeitamente ao seu alcance!
Se mais não fez foi porque O por-fazer é só com Deus.
Este último verso da segunda estrofe, refere a Fonte de todas a humanidades e de tudo o resto que existe. Trata-se, como é sabido, do Criador, neste caso sob a denominação Deus.
Ora bem, o signo complementar de Gêmeos é Sagitário, o Iluminador do Caminho, o modelo do Mestre, do Guru, do Hierofante (sabedor de uma ciência ou de um mistério). Dito de outra forma, Sagitário é, precisamente, o arquétipo que tem como função religar as criaturas à sua Origem – seja qual for o nome que se lhe dê – o que ele faz ensinando a reconhecer o que se esconde por detrás das aparências.
O Centauro Arqueiro treina-se para acertar no alvo do significado profundo, abstrato, filosófico e metafísico daquilo que acontece.
E já que, a propósito de Sagitário, estamos a falar de Deus, o Supremo Senhor do Universo, relembremos que Sagitário, é regido por Júpiter/Zeus, o Supremo Senhor do Olimpo.
O segundo verso desta estrofe:
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
refere, claramente, os elementos dos signos que integram este eixo de signos – Gêmeos e Sagitário – isto é, o Ar (vento) e o Fogo (Céus), respectivamente.
A associação entre o elemento Ar e o vento é óbvia. Todavia, o mesmo poderá não acontecer com a conexão Fogo/Céus. Se te parece que o Fogo tem uma relação longínqua com Céus, afina a tua mente para a vibração espiritual e lembra-te do Fogo Criador do Pai.
Padrão é o terceiro poema deste conjunto, tal como Gêmeos, é o terceiro signo do Zodíaco, o qual, como já sabes, é o signo de nascimento de Fernando Pessoa.
Podemos, então, recuperar aqui a terceira pessoa da Santíssima Trindade, essa vibração a que a Igreja Católica resolveu chamar Espírito Santo. Embora devesse ser conhecida como Mãe – esse manto de estrelas onde o Universo se envolve – pois uma família composta por um Pai, um Filho e uma Pomba é algo que dá que pensar.
Seja como for, Mãe, Pomba ou Espírito Santo são tudo nomes que definem algo, e nomes que definem algo são coisas que só existem aí na Terra, uma escola cujos alunos adoram definições!
Os nomes não definem, identificam.
Fernando Pessoa sabia que, embora a fingir, (o poeta é um fingidor), o Caminho é individual e solitário. Ele o diz:
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.
Talvez por isso, Pessoa tenha optado pelo discurso na primeira pessoa do singular. Ao falar diretamente de si próprio, talvez tenha querido aproximar-se mais intimamente do leitor, na esperança de que essa proximidade ajudasse a reconhecer a premência – e a importância – de trocar todas as perguntas por UMA só resposta. Talvez tenha pensado que a denúncia da sua experiência pessoal (ainda que cifrada na poesia) incentivasse outros a seguir-lhe o exemplo.
Isso certamente te ensinou que quem tiver a coragem de lançar a sua consciência em direção ao céu
Só encontrará de Deus na eterna calma O porto sempre por achar.
Para aliviar um pouco a densidade desta prosa, vamos brincar um bocadinho com as primeiras e últimas palavras deste Padrão.
É sabido que os deuses não te pedem aquilo que facilmente podes realizar; isso seria equivalente a uma condenação a ficares encalhado no mesmo lugar. Se permitissem tal coisa, esse universo terreno estaria muito mais cristalizado do que já está.
Todos vocês sabem (embora muitos prefiram esquecer), que só afrontando os desafios é que a Roda, individual e coletiva, se mantém em movimento. Fernando Pessoa, mais do que ninguém sabia disso. Assim, as primeiras palavras deste Padrão:
O esforço é grande e o homem é pequeno
e as últimas:
O porto sempre por achar.
proporcionam o seguinte arranjo:
O esforço é grande, o homem é pequeno e o porto está sempre por achar.
Poema IV
Câncer – O Mostrengo
(9 DE SETEMBRO DE 1918)
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: ‘Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?’
E o homem do leme disse, tremendo:
‘El-Rei D. João Segundo!’
‘De quem são as velas por onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?’
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
‘Quem vem poder o que eu só posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?’
E o homem do leme tremeu e disse:
‘El-Rei D. João Segundo!’
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
‘Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo;
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!’
Neste poema, Fernando Pessoa aborda a missão da alma, simbolizada pelo homem do leme, em face do destino, simbolizado pelo Mostrengo, missão que, como tu já sabes, resume-se a vencer o medo, precisamente o que sente o homem do leme quando se defronta com o Mostrengo!
No Zodíaco, esta polaridade está contida no seguinte eixo de signos opostos e complementares:
. 4º Signo – Caranguejo – regido pela Lua, símbolo do mundo interior: inconsciente, noite, alma, emoções orientadas para os valores familiares e patrióticos.
. 10º Signo – Capricórnio (que, em relação a Caranguejo está no ponto oposto, no fim do mundo) – regido por Saturno, símbolo do mundo exterior: trabalho, responsabilidade, obra, destino, medo, carma.
Ambos, cada qual à sua maneira, gerem as memórias das tuas experiências passadas, as quais, inevitavelmente, condicionam, no presente, as respostas que escolhes dar aos estímulos exteriores que te chegam a cada instante. É claro que, em muitíssimas situações, as tuas respostas são escolhas automáticas condicionadas por hábitos ancestrais. Realmente, quando uma situação se relaciona com algo que, quer te lembres quer não, te amedrontou no passado, imediatamente esse medo original é acionado, mesmo que, de fato, não haja razão para isso. Muito sinceramente, espero que não entres em pânico cada vês que deparas com um inofensivo ratinho!
Quanto tu te aperceberes de que o medo não existe, também deixarás de entrar em pânico.
O mostrengo que está no fim do mar
O 4º signo do Zodíaco, Câncer, naturalmente, está associado à Casa IV, a qual, por se encontrar na parte inferior da mandala astrológica, toma o nome específico de Fundo do Céu. Esta zona do mapa astral simboliza o fim das coisas (a forma como acabas o que se começaste), o teu «Fundo», o fim do mar das tuas emoções, o «Fundo» das tuas fundações psicológicas e físicas (família e bens de raiz), bem como o aglomerado de irmãos do mostrengo que pululam no teu subconsciente.
Ora, Fernando Pessoa começa por dizer isto mesmo. E, sabendo que esses medos, mais cedo ou mais tarde, sairão a voar da noite de breu para aflorar à superfície da consciência, acrescenta:
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
Se tiveres isto em consideração, facilmente reconhecerás Saturno na figura assustadora, severa e ameaçadora do Mostrengo (medo) que sai do útero onde reside (subconsciente/Câncer) e se mostra ao apavorado, mas corajoso, homem do leme. Ou seja, porque as suas águas foram perturbadas (Câncer/ Água), a energia salta para o seu oposto complementar (Capricórnio/Terra), mostrando-se, tornando-se real através de uma figura assustadora.
Externamente, ele simboliza o cabo do mundo que tem de ser vencido (dobrado) com valentia, sob pena de não se chegar à Índia, o término da viagem; Internamente, ele simboliza a iniciação que tem de ser feita, com entrega, sob pena de não se chegar à Luz, o término da viagem.
Seguro do seu poder de manipular a vontade humana, mas surpreendido com a visita, o próprio Mostrengo interroga, ao longo das três primeiras estrofes do poema:
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: ‘Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?’
E o homem do leme disse, tremendo:
‘El-Rei D. João Segundo!’
‘De quem são as velas por onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?’
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
‘Quem vem poder o que eu só posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?’
E o homem do leme tremeu e disse:
‘El-Rei D. João Segundo!’
Novamente, aqui, está bem clara a viagem espiritual da Humanidade da Terra e o desafio de enfrentar o desconhecido (inconsciente/Lua).
Peço-te para imaginares a situação do homem do leme, símbolo de Câncer: está longe da segurança da pátria (Câncer), desterrado dentro de uma caravela no meio do oceano longínquo, acerca de cujas águas (Câncer) nada sabe. De fato, quem eram os seus habitantes? Como terminavam? Que surpresas reservavam? Além disto, o homem do leme está rodeado por ventos e tempestades, mergulhado na escuridão noturna (Câncer), enfim, lutando contra o seu próprio desamparo. Ora, esta situação de um caminheiro marítimo ter de dobrar um cabo no fim do mundo, onde se levanta e berra a configuração monstruosa dos próprios medos sob a forma de um Mostrengo, para poder chegar à Índia, não é muito diferente daquela que um caminheiro espiritual enfrenta para poder chegar ao seu Oriente.
Assim, em O Mostrengo, o homem do leme é um peregrino.
Em O Mostrengo, portanto, se o homem do leme é um peregrino que luta por ultrapassar os seus limites, já El-Rei D. João II representa o divino dentro do humano, o divino guardado nos átomos do corpo físico – aquilo que um dia se transformará no fogo que te elevará a outra dimensão, tal como o fogo da fogueira eleva o ar de que se alimenta.
Mas para que te serve a Vontade do Eu Superior, se não a puseres em prática?
No entanto, precisamente por ser Superior, esta Vontade não te obriga a que a ponhas em prática. Ela não viola o teu livre-arbítrio que te leva a continuar a alimentar desequilíbrios e a lamentar perdas, não contraria a tua renitência em que o teu próprio Espírito seja apresentado à tua personalidade. Não. A tua Vontade Superior ama-te. Por isso, apesar de reconhecer os caprichos do teu ego, limita-se a esperar que te decidas a aceitar o Seu desígnio.
Em O Mostrengo, o homem do leme atingiu esse ponto de consciência e decide pôr em prática a Vontade do seu Eu Superior, neste caso, El-Rei D. João II. Já sem um ego que o comande, acolhe o seu desígnio superior. Por isso, bravamente responde ao Mostrengo:
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
‘Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo;
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!’
E assim, tremendo, mas cumprindo o desígnio superior, enfrenta a noite de breu para se defrontar com os seus monstros pessoais, o medo imundo e grosso que reside nos esconsos da mente.
Numa perspectiva astrológica, a figura de El-Rei D. João Segundo (o poder temporal por detrás dos Descobrimentos), simboliza a Pátria (Câncer/Lua). Repescando o poema anterior direi que, desse “areal moreno” o homem do leme se afastou, ali deixando mulheres pregadas no areal, angustiadas e chorosas, olhando o horizonte, depois de terem visto zarpar os seus maridos e filhos.
Sacrificando-se, o homem do leme de tudo isto se afastou e, seguindo a Voz Maior, ousou entrar nos domínios do Mostrengo, adentrando territórios desconhecidos.
Numa perspectiva espiritual, El-Rei D. João Segundo é equivalente a essa Voz Maior que o peregrino ouve, a qual, a partir de um certo ponto, não pode deixar de ser ouvida, e muito menos abafada.
Sacrificando-se, tudo abandona, do mundo se desidentifica, ali deixando muitas pessoas “angustiadas e chorosas”, principalmente aquelas que ainda não perceberam que, quando é hora, é tempo de partir!
Na expressão três vezes, que tão insistentemente surge ao longo do poema, podemos ver, também, conotações espirituais e astrológicas.
Espiritualmente, pode ver-se nela uma nova referência à Santíssima Trindade; astrologicamente, relembra os três signos/Elementos que antecedem Câncer: Áries, Touro e Gêmeos, isto é, o impulso (Fogo), a determinação (Terra) e o discernimento (Ar) necessários à decisiva empresa de mergulhar nas profundidades e reconhecer o que está oculto na essência de cada ser humano.
Vamos agora juntar o primeiro verso:
O mostrengo que está no fim do mar
com o último;
De El-Rei D. João Segundo!
para ver se podemos esticar um mais a criatividade:
O mostrengo que está no fim do mar de El-Rei D. João Segundo!
Uma vez que a língua portuguesa é muito traiçoeira (como vocês gostam de dizer), pode levantar-se agora a questão de saber o que é que é de El-Rei D. João Segundo: o mostrengo ou o fim do mar? Assim, deve ler-se:
O mostrengo, que está no fim do mar, de El-Rei D. João Segundo.
Ou
O mostrengo, que está no fim do mar de El-Rei D. João Segundo?
Por aqui se vê como uma simples vírgula, a mais ou a menos, pode alterar o sentido de um texto. Na primeira hipótese, se tirares a oração intercalada (que está no fim do mar), tens pela frente a mostrengo particular de El-Rei:
O mostrengo (…) de El-Rei D. João Segundo.
Vejamos: Por detrás do título de rei está um homem como qualquer outro e, portanto, possuidor dos seus próprios medos, hospedeiro do seu mostrengo particular, assim como se a alimária fosse uma espécie de camareiro sombrio, que não o larga nem quando se vai deitar. Medo todos vocês têm, como se tem visto. Porém, pelo fato de ser Rei, talvez esses medos fossem até bem maiores do que aqueles que perturbavam o comum dos mortais da época.
No caso de optarmos pela segunda hipótese:
O mostrengo, que está no fim do mar de El-Rei D. João Segundo.
é o fim do mar, não o mostrengo, que o pertence ao monarca português.
Perguntarás, e com muita razão:
Como é que D. João Segundo podia possuir uma coisa que era de todos? Como podia ser ele o senhor de algo que ninguém sabia como acabava?
E eu respondo:
Podia sim, senhor, porque tu também possuis o medo, algo que é de todos e também não sabes como acaba!
Como vês isto é uma coisa muitíssimo concreta que decorre de coisas tidas por abstratas!
Portanto, é indiferente uma hipótese ou outra, uma vez que – sem quaisquer especulações – é do confronto entre o sonho e o medo que depende a realização ou o fracasso de um destino.
Se não me engano era isso mesmo que Fernando Pessoa queria dizer. Mas tu, que vives dentro da sentida alma portuguesa, decerto sentirás melhor do que eu!
Poema V
Leão – Epitáfio de Bartolomeu Dias
Jaz aqui, na pequena praia extrema,
O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro,
O mar é o mesmo: já ninguém o tema!
Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro.
À primeira vista, este poema é difícil de interpretar. Analisemos as duas ordens de razões para que assim seja.
1ª – Não faz sentido que o menor poema, de tamanho modesto, corresponda ao signo que gosta da opulência e da grandiosidade;
2ª – O próprio título remete para a escuridão e para a morte, isto quando se sabe que Leão é regido pelo Sol, símbolo da vida e da Luz.
O sentido profundo deste Epitáfio só fica perceptível quando encaramos esta sequência de poemas sobre a perspectiva de uma viagem espiritual, tal como temos vindo a fazer, sobrepondo esse ângulo de visão com a Astrologia. Todavia – e isto pode parecer uma afirmação surpreendente – falar de trajeto espiritual ou de Astrologia é exatamente a mesma coisa, uma vez que esta pode ser o veículo daquele.
Há, sem dúvida, muitas formas de praticar a Astrologia. No século XXI, porém, não faz sentido fazer outro uso dela que não seja o de reconhecê-la como uma técnica de compreensão humana que, se assim o quisermos, poderá contribuir para a expansão da consciência. Dito de outra maneira, poderá ser uma bússola sempre ao dispor de quem já se sente atraído, conscientemente, pelo caminho inevitável da iluminação.
Por conseguinte, a iniciação conseguida através da superação do ego e dos seus inevitáveis medos, dá acesso, evidentemente, a um Homem Novo. Nada mais natural, portanto, do que lavrar um epitáfio que recorde o criatura deixada para trás – a personalidade que morreu para dar lugar a outra, mais madura, isto é mais significativa.
Jaz aqui, na pequena praia extrema,/O Capitão do Fim: quer dizer que aqui ficou o velho ser, aquele que comandou a sua nau até à fronteira de uma nova dimensão espiritual.
Dobrado o Assombro, ou seja, depois de vencido o medo monstruoso:
O mar é o mesmo:/já ninguém o tema!
Dito de outra maneira: continuamos aqui, vivendo, mas deixou de haver razão para recear!
E onde está a referência ao signo oposto e complementar daquele a que esse poema diz respeito? Aqui, em Leão, temos de ver de que forma Aquário está codificado dentro deste Epitáfio.
Aquário é o futuro. Representa a abertura mental necessária ao crescimento, principalmente espiritual. Aquário pretende projetar-se para a frente e realizar os seus ideais de elevação, ao mesmo tempo em que vai deixando para trás o lastro do interesse e do empenho pelas coisas terrenas, as quais, por via do seu peso, não só dificultam o caminho rumo à transparência e à leveza, como ainda impedem a capacidade de respirar o ar puro das Alturas.
Daí o seu amor ao desapego e o seu apreço pela impermanência!
Ao fim e ao cabo, Aquário é um arquétipo de esperança e simboliza a certeza de que a Humanidade, reprogramando a sua mente e alinhando-a com a intuição (Urano, regente de Aquário) e com o espírito, passará a conduzir-se habilmente por ter recuperado o conhecimento da Essência.
Assim sendo, fica claro que este Epitáfio é o paradigma do salto para a frente.
Acima, falamos da superação do medo. Ora, neste poema, é disso mesmo que se trata: depois de enfrentado o Mostrengo (o poema anterior) e vencidos os seus medos, o Ser fica muitíssimo mais leve.
Além disso, esta libertação ainda tem a vantagem de facilitar os movimentos que hão de ser dados a seguir. Aquário não pode alçar a alma para o alto se o porão da nau estiver a abarrotar de pesos indesejáveis.
Se assim acontecer – Atlas, (não) mostra alto o mundo no seu ombro!
Quando acima falamos do descarte dos lastros que atrapalham a navegação, estávamos a pensar no lastro-mor que, como já ficou evidente, se chama medo.
Este poema é pequeno, mas, mesmo assim, é perfeitamente possível juntar as primeiras palavras e as últimas, na esperança de que façam algum sentido. Portanto, juntemos – Jaz aqui – com – o mundo no seu ombro:
– Jaz aqui, o mundo no seu ombro.
Curiosamente, como Atlas não é referido, o ombro deixa de lhe pertencer, para passar a ser de quem jaz (no poema) ou seja, de Bartolomeu Dias. Portanto, o mundo jaz no ombro de Bartolomeu Dias. É mais coerente que seja assim, não pelo fato de ele ser português, mas por se tratar de um ser humano cuja coragem (e o poder de persuasão do Infante D. Henrique) fez dele um herói e um exemplo. Atlas, por seu lado é, apenas, uma figura mitológica que existe, precisamente, para servir de referência a criaturas da dimensão deste navegador.
Mas que mundo jaz no ombro deste Capitão do Fim? Decerto o mundo completo, já que, antes da passagem pelo Cabo das Tormentas (Boa Esperança) os ocidentais só conheciam as coisas pela metade, sendo que o mesmo se podia dizer dos orientais. Através desse navegador nos conhecemos uns aos outros e encetamos uma longa história de trocas a todos os níveis.
Poema VI
Virgem – Os Colombos
(2 DE ABRIL DE 1934)
Os outros haverão de ter
O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.
Mas o que a eles não toca
É a Magia que evoca
O Longe e faz dele a história.
E por isso a sua glória
É justa auréola dada
Por uma cruz emprestada.
Este é um texto bem complicado de analisar. Não sei se Fernando Pessoa fez de propósito mas a verdade é que um dos atributos de Virgem é precisamente a tendência para complicar!
Todavia, há muito a dizer. Assim, onde vamos encontrar referências ao Elemento de Virgem (Terra) e ao signo oposto, Peixes?
Este poema, no seu conjunto reflete sobre um mundo de posses, equivalente ao da Terra (ter e dar, possuir e perder, produzir e vender, semear e colher, etc.). Logo nos dois primeiros versos se encontra uma referência clara a quem tem ou não tem, a quem perdeu ou a quem achou.
No que diz respeito ao signo oposto, Peixes, toda a segunda estrofe se espraia pelos símbolos piscianos.
Fala-se de Magia, de evocar, de Longe, de auréola. A linguagem já não refere, como na estrofe anterior, as coisas concretas do ter ou não ter mas um ambiente evasivo, diáfano, misterioso e, até, transcendente. Há, inclusivamente, uma clara referência à característica pisciana de não querer ter nem sequer possuir: é quando o poeta diz que a justa auréola dada provém de uma luz emprestada.
Mas, se repararmos bem, o que é que este poema tem a ver com os Descobrimentos portugueses?
Objetivamente, nada. Mais: se só há um Colombo, por que se chama este poema Os Colombos?
Parece que os colombos representam aqueles navegadores e descobridores que fizeram exatamente o que os portugueses fizeram (navegar, descobrir terras, etc.), mas a quem faltava uma coisa essencial: serem portugueses! Se dizemos isto, não é, evidentemente, pelo fato de nós sermos melhores do que eles; é pelo fato de eles terem nascido fora do país que, segundo Pessoa, tinha por missão divina expandir os caminhos marítimos deste planeta e, conseqüentemente, espalhar por esse mundo o pacífico, criativo, condescendente e sensível DNA pisciano/português.
Isto poderá ser muito polêmico, mas é o que pode deduzir-se de:
E por isso a sua glória
É justa auréola dada
Por uma cruz emprestada.
De fato, dá a sensação de que os colombos (todos os outros navegadores estrangeiros) apanharam a onda que, divinamente, aos portugueses fora destinada. No entanto, como era inevitável que navegadores de outras nacionalidades se predispusessem a contribuir para essa aventura, Fernando Pessoa presta-lhes homenagem, classificando de justa a auréola que, historicamente, ficou rodeando as cabeças deles apesar de provir de uma cruz (destino) emprestada.
Poderá haver quem se espante ou desconfie deste espírito de missão dos portugueses (irremediavelmente piscianos), o qual atingiu o auge no século XV. Mas há coisas que, embora possam passar despercebidas aos distraídos, convém prestar alguma atenção.
Eis três dos muitos exemplos que poderiam apresentar-se:
1 – Por que se dirá que Portugal é um país de poetas, de gente ingênua, devota e caritativa, sabendo-se que a Poesia, a devoção, a ingenuidade e a caridade são atributos de Peixes?
2 – Que outra nação poderia possuir o mito do Encoberto (que voltará numa manhã de nevoeiro), isto quando se reconhece que nevoeiro, indefinição, sonho, saudade e simbolismo são atributos de Peixes?
3 – Quem mais faria uma revolução (25 de Abril de 1974), onde, os representantes dos poderes caídos, os responsáveis por mortes, assassinatos políticos, fome, atraso e repressão, em vez de serem julgados, como seria justo, foram misericordiosamente tratados e, já envoltos num perdão inquestionável, acabaram por viajar, na maior tranquilidade, ao encontro do sol acolhedor do país irmão, do outro lado do Atlântico? E, enquanto estas cenas perfeitamente surpreendentes se iam desenrolando, rubras flores enfeitavam os canos das espingardas, portadas por soldados de lágrima no olho, desejosos de abraçar toda a gente, talvez até aqueles a quem, pouco tempo antes, julgavam impossível perdoar por lhes quererem tirar a vida!
A minha faceta universalista, simbolizada pelo ascendente em Aquário, impede-me de sentir os arrebatamentos típicos promovidos pelas emoções desencadeadas pelo nacionalismo. Na verdade, a tendência é para ficar distanciado e divertido, como é apanágio de Aquário.
Porém, apenas uma resposta apetece dar às perguntas feitas acima: apesar de calorosos e ingênuos, de brutos e generosos, de provincianos e infantis, de terríveis e corajosos, só os portugueses poderiam vivenciar uma revolução como a de 1974.
Sem dúvida, é uma questão de natureza da nossa Alma.
A frase – Outros haverão de ter (…) uma luz emprestada – é o que resulta da combinação das primeiras e das últimas palavras deste poema. É óbvio que Fernando Pessoa nada tem a ver com este verso. E dificilmente poderia assinar uma coisa destas já que, interpretando-o à luz da espiritualidade, embora seguindo uma orientação diferente da que foi usada na análise a Os Colombos, trata-se de um enorme disparate! Assim é porque ninguém poderá ter ou beneficiar de uma luz emprestada. Luz, não é coisa que se empreste. Aliás, sequer é coisa que se dê. Por que razão haveria o leitor de oferecer o mesmo presente duas (ou mais) vezes, se, da primeira vez, a dádiva foi feita com o todo o altruísmo, isto é, sem esperar nada em troca? Assim, Luz é algo que não devemos esperar de ninguém. Acresce, ainda, ser escusado buscá-la seja aonde for, exceto num lugar: no chacra do coração! Em termos dessa dádiva, não há graus, porque ela foi absoluta. Onde esses graus já se verificam é na noção que cada um de nós tem da quantidade e qualidade de luz que irradia. Dito de outra forma, o que está em causa é a maior ou menor conscientização que cada um possui do quanto já tirou daquilo que obscurecia, e nos casos mais graves encobria completamente, a Luz. Deus não empresta nada. Nem dá! Isto poderá parecer um sacrilégio imperdoável passível de fogueira. Deixa, todavia, de sê-lo se nos lembrarmos que a Origem já deu tudo o que tinha a dar quando nos criou à sua imagem e semelhança. O resto, tem sido, é e será da responsabilidade de cada um de nós!
Contudo, devemos evitar interpretar literalmente este à sua imagem e semelhança, para não corrermos o risco de imaginar Deus com dores de estômago, talvez careca ou bronzeado do Sol e, quem sabe, até, sócio honorário do Futebol Lisboa e Benfica. Foi isso mesmo que fizeram muitos dos nossos antepassados, e continuam a fazer muitos dos nossos coevos, sendo por isso que o imaginam velho e barbado (o Big Bang já ocorreu há imenso tempo), sentado lá em cima, extremamente preocupado, incapaz de tirar os olhos dos bilhões de filhos que gerou e, tendo em vista um futuro e implacável ajuste de contas, fazendo questão de apontar num caderninho todas as patifarias que a nossa cegueira sugere e todas as traquinices que a nossa imaturidade sempre convida a fazer!
Não admira que tenham medo dessa figura que o seu medo criou!
Por isso, leitor, aplaque a sua consciência, pois, enquanto ser divino, você não tem culpa e, ainda por cima, está isento de pecado. Aquela parte de si que sente culpa e remorsos pelos pecados cometidos, não foi criado pelo Pai. Realmente, quando a criação é perfeita, contem em si a possibilidade de escolha, pois, de outra forma, o Criador não passaria de um reles e lamentável ditador.
Como se compreenderá, aquilo que nos impede de reconhecer a Verdade – a tal Luz que é nossa desde o Princípio – é, precisamente, as consequências dessas escolhas inábeis, egoístas. Para quê, então, buscar a Luz fora ou procurar quem lha possa fornecer emprestada se, desde sempre, essa portentosa vibração vive dentro do seu coração?
Poema VII
Balança – Ocidente
Com duas mãos – o Ato e o Destino –
Desvendamos. No mesmo gesto, ao céu
Uma ergue o facho tremulo e divino
E a outra afasta o véu.
Fosse a hora que haver ou a que havia
A mão que ao Ocidente o véu rasgou,
Foi alma a Ciência e Corpo a Ousadia
Da mão que desvendou.
Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal
A mão que ergueu o facho que luziu,
Foi Deus a alma e o corpo Portugal
Da mão que o conduziu.
Comecemos por analisar o título escolhido para este sétimo poema – Ocidente.
Como se sabe, o sétimo signo do Zodíaco é Balança e está associado à Casa VII, cujo grau inicial se chama Descendente (por oposição à 1ª Casa, cujo grau inicial toma a designação de Ascendente). Assim, Ascendente e Descendente formam um eixo. Se o Ascendente astrológico é o grau do signo que estava a ascender no horizonte – a oriente – no momento do nascimento da pessoa, o Descendente é, portanto, o grau do signo que estava a descender no horizonte – a Ocidente – nesse mesmo minuto. Logo, Fernando Pessoa não poderia ter escolhido um título mais apropriado para este sétimo poema, o qual tem a ver com o ponto – a Ocidente – onde o Sol se põe! Deste modo, o sétimo signo e a Casa VII referem-se ao outro, ao par, à complementaridade, na medida em que, na roda zodiacal, está em frente de Câncer, 1º signo, o arquétipo da individualidade. De um lado está, portanto, o um (Eu); do outro lado está o dois (o Outro). E é, precisamente, por aí que Pessoa começa, dizendo:
Com duas mãos…
E prossegue, sempre colocando em paralelo duas ordens de valores, necessárias para realizar qualquer empresa – Com duas mãos – o Ato e o Destino (…) Foi alma a Ciência e Corpo a Ousadia (…) Foi Deus a alma e o Corpo Portugal.
A primeira estrofe reforça bem esta necessidade de cooperação, nascida da complementaridade típica do signo de Balança, onde cada uma das partes da parceria se encarrega da sua função específica:
Uma ergue o facho tremulo e divino
E a outra afasta o véu.
A segunda e terceira estrofe confirmam esta ideia: a segunda diz que a mão que desvendou teve como alma a Ciência e corpo a Ousadia; a terceira assegura que a mão que conduziu teve em Deus a Alma e no corpo Portugal.
Por conseguinte, cada mão fez a sua parte: uma desvendou e a outra conduziu.
Numa outra perspectiva, Fernando Pessoa, mais uma vez, afirma que a missão de Portugal tinha um caráter divino:
Foi Deus a alma e o corpo Portugal.
Portanto, Deus (a alma do projeto), ao determinar que essa tarefa de desvendar fosse realizada, precisava de um corpo que, no mundo físico, e usando duas mãos hábeis e corajosas (o Ato e o Destino), a levasse a cabo. E escolheu as de Portugal.
Aquilo que nós desvendamos está referido através de duas imagens:
um véu que se rasga (segunda estrofe), e
o facho que luziu (terceira estrofe).
Esta ideia, onde se mesclam desvelamento e iluminação, é típica do ponto zodiacal chamado Descendente (Ocidente). De fato:
Desvelamento: é nesse ponto do Horizonte que o Sol se põe. É o momento a partir do qual outras realidades são desveladas em consequência da diminuição da luz e a chegada da noite.
Iluminação: é a partir desse ponto que, visto da Terra, o sol parte para iluminar o outro lado do mundo, envolto da escuridão noturna.
Acima, a palavra Horizonte aparece escrita em itálico porque foi com ela que Pessoa intitulou o segundo poema desta série, o qual está associado a Touro. É certo que, neste contexto, a palavra foi escolhida e usada por mim, o que poderá tornar um tanto forçado o que vai seguir-se. A verdade, porém, é que quer Touro, (Horizonte), quer Balança (Ocidente) são regidos por Vénus. Ora esta entidade – também conhecida por Afrodite, a Sedutora – é a deusa quer do namoro (fase do relacionamento em que uma mão se dá à outra), quer do casamento (fase do relacionamento em que, tradicional ou simbolicamente, o homem pede a mão da mulher). O problema é que esse tomar da mão é usado frequentemente para possuir (Touro) e não para compartilhar (Balança). Ora, como pode facilmente comprovar-se, a posse acaba por gerar outros usos da mão: a pessoa que possui poderá alçar a mão para agredir quando se vê perante a ameaça de perda; a pessoa que é possuída poderá usar a mão para desenhar no espaço o gesto de despedida. O melhor, portanto, será manter o contato, segurando sem agarrar.
Resta lamentar que Fernando Pessoa, enquanto homem, não tenha encontrado a sua outra mão. As razões por que assim aconteceu são, decerto, várias e complexas. No entanto, tentou – o que é louvável!
Leia-se este excerto de uma carta que enviou à sua célebre amada Ophélia, em 1.3.1920:
Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar a mal? A Ophelinha pode preferir quem quiser: não tem obrigação – creio eu – de amar-me, nem realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama. (…) Porque não é franca comigo? Que empenho tem em fazer sofrer quem não lhe fez mal – nem a si, nem a ninguém -, a quem tem por peso e dor bastante a própria vida isolada e triste, e não precisa que lha venham acrescentar criando-lhe falsas esperanças, mostrando-lhe afeições fingidas, e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça. Reconheço que tudo isto é cômico, e que a parte mais cômica disto tudo sou eu.
Pela sua maneira honesta, aberta e sincera de encarar o relacionamento com a Ophelinha, Fernando Pessoa parecia ter tudo para ser bem sucedido.
Para que resulte, porém, é preciso que hajam duas mãos!
Estas palavras, com que se inicia Ocidente, podem juntar-se às últimas para dar – Com duas mãos (…) o conduziu.
Conduziu o quê? O processo de translucidez da alma!
As duas mãos, a direita e a esquerda, podem ser entendidas como símbolos dos dois hemisférios cerebrais, o direito/intuitivo e o esquerdo/racional. A integração destas duas polaridades é um passo indispensável para conseguir-se colher a Unidade.
A utilização exclusiva (se tal é possível) ou preferencial de um deles, necessariamente concorre para o desequilíbrio. Quem, como a maioria dos seres humanos, utiliza mais o cérebro esquerdo, acaba por se transformar num culto intelectual ou num arguto cientista; talvez seja, até, uma sumidade, um perito em análise, dedução e raciocínio. Todavia, corre o risco de, por falta da colaboração (ou estímulo) do hemisfério complementar, assumir uma postura fechada e céptica em relação à linguagem simbólica e subjetiva.
Por outro lado, quem privilegia o hemisfério direito em detrimento do esquerdo, poderá cair na falta de lógica, expressar-se através de um discurso descabelado e utópico e, o que parece ser mais grave, carecer da capacidade de integração e aplicação da riqueza de todos os símbolos na dimensão concreta e mensurável do quotidiano.
Assim, aqui, como em qualquer outra dimensão da vida, não se trata do radical e escorpiano “ou… ou”, mas sim de um mais saudável, conciliador e libriano “não só… mas também”. Destas deduções se deduz facilmente que quem quiser fundir-se com a Unidade, não deve incorrer em radicalismos, nem deixar nada de fora. Quem conseguiu levar “O Carro” do seu Destino até à estação final, chamada Iluminação, decerto Com duas mãos (…) o conduziu.
Por isso é que o sétimo signo (Balança – Ocidente) é o arquétipo da complementaridade.
Desconhecemos se é pela mesma razão que, no Tarô, O Carro aparece em sétimo lugar na ordem dos 22 Arcanos Maiores!
Poema VIII
Escorpião – Fernão de Magalhães
No vale clareia uma fogueira.
Uma dança sacode a terra inteira.
E sombras disformes e descompostas
Em clarões negros do vale vão
Subitamente pelas encostas,
Indo perder-se na escuridão.
De quem é a dança que a noite aterra?
São os Titãs, os filhos da Terra,
Que dançam da morte do marinheiro
Que quis cingir o materno vulto –
Cingi-lo, dos homens o primeiro –
Na praia ao longe por fim sepulto.
Dançam, nem sabem que a alma ousada
Do morto ainda comanda a armada,
Pulso sem corpo ao leme a guiar
As naus no resto do fim do espaço:
Que até ausente soube cercar
A terra interna com seu abraço.
Violou a Terra. Mas eles não
O sabem, e dançam na solidão;
E sombras disformes e descompostas,
Indo perder-se nos horizontes,
Galgam do vale pelas encostas
Dos mudos montes.
É óbvia a associação deste poema com Escorpião quando se repara que o texto aborda a morte de um navegador. O ambiente que se respira ao longo das quatro estrofes é escuro, mágico, mítico, assombroso, aterrador, pesado, descrevendo, perfeitamente, o mundo escorpiano.
Basta recordar o mito de Plutão, regente deste signo, para ressaltar essa analogia: no panteão olímpico, ele era e única divindade cuja palavra, uma vez dada, não podia ser alterada ou revogada pelos outros Deuses e, muito menos, pelos mortais.
Morte, regeneração e transcendência estão associadas a esta fase do ciclo porque não é possível viver a ascensão a estados de consciência mais elevados (fase seguinte, Sagitário) sem que, antes, tenha ocorrido uma profunda metamorfose, a qual, normalmente é vivida através de uma crise mais ou menos perturbadora. Fernando Pessoa, enquanto astrólogo e entidade altamente desenvolvida, sabia-o perfeitamente. Por isso, aborda a morte neste 8º poema e, ao 9º (correspondente a Sagitário), dá o título de Ascensão de Vasco da Gama.
Escorpião é um signo de Água (emoção, sensibilidade) e das profundidades. É um arquétipo telúrico, regente das entranhas da Terra e das suas convulsões. Ora, é sabido que, no nível humano, não existem maiores convulsões do que aquelas provocadas pelas erupções emocionais que ascendem das profundezas da psique. Daí a má fama deste signo.
Poucos são aqueles que gostam de mudar. Efetivamente, raras são as pessoas que aceitam a impermanência de tudo o que existe manifestado neste plano físico. A verdade, porém, é que a palavra crise contém uma faceta de perigo e outra de oportunidade.
É claro que quem pretende, através do seu ego, conter e represar as forças da natureza psíquica, está condenado a, mais cedo ou mais tarde, ser arrasado e destruído. O que destruído, todavia, é a decisão de recusar o que deveria de ser bem acolhido. O resultado é o renascimento de um novo ser; sem este renascimento não é possível a fase seguinte que se caracteriza pela ascensão.
Esta profunda purificação a todos os níveis é a função de Escorpião e do seu regente Plutão.
A viagem à volta do mundo empreendida por Fernão de Magalhães pode ser comparada com a viagem à volta ao Zodíaco. Quem quiser completar a jornada tem de predispor-se a morrer na 8ª fase.
O que fez Fernão de Magalhães? – Violou a Terra.
O navegador teve o atrevimento de desvirginar a esfericidade da Terra, o maior segredo que, porventura, o planeta ainda escondia. Tamanha ousadia foi paga com a morte, ainda antes da empresa concluída. Plutão fez-se pagar pesadamente.
Porém, com – um pulso sem corpo ao leme a guiar, – a prova foi superada!
Fernando Pessoa não esconde esta temática escorpiana e o seu vocabulário habitual e, no poema, há imensas referências que eliminam todas as dúvidas: Uma dança sacode a terra inteira (…) sombras disformes e descompostas (…) Em clarões negros do vale que vão (…) Indo perder-se na escuridão (…) De quem é a dança que a noite aterra? (…) Que dançam a morte do marinheiro (…) Na praia ao longe enfim sepulto (…) Do morto ainda comanda a armada (…) As naus no resto do fim do espaço (…) Violou a Terra. Mas eles não/O sabem e dançam na solidão (…)
Da mesma forma que não é possível fazer uma Ascensão sem que uma iniciação prévia abra as portas da Totalidade, também o feito de Fernão de Magalhães abriu, amplamente, a noção que o Homem quinhentista detinha acerca do planeta onde vivia. Mas essa expansão de consciência, inclusivamente científica, só foi possível através do sacrifício do navegador.
De fato, Plutão mostrou-se e Caronte exigiu o pagamento!
Este poema reflete tão perfeitamente o arquétipo escorpiano que resiste a não se deixar adulterar quando se juntam as primeiras e últimas palavras dele. O sentido essencial permanece:
No vale (…) dos mudos montes.
Ora, Escorpião tem excelentes relações com o silêncio!
No imaginário humano, se há lugar onde reina a paz que convida ao recolhimento, à devoção, ao agradecimento e à gratidão, é no vale nos mudos montes. É quando nos retiramos e recolhemos nele, física ou mentalmente, que podemos ter a consciência do quinhão da Obra Divina que nos é pedido.
Vimos, no poema anterior, que tudo há de ser conduzido com as duas mãos, contemplando a união das duas polaridades. Isto é, os relacionamentos são essenciais. Porém, o movimento de O Carro, não pode ser impedido, nem atrapalhado pela presença das pessoas e das coisas mundanas, umas e outras ruidosas por natureza. Há que respeitar o afastamento dos outros que caracteriza a iniciação, como foi citado, também, no 7º poema (Ocidente).
Mesmo correndo o risco de cair na vulgaridade (o que, afinal, não envolve risco nenhum), terminaríamos esta 8ª secção relembrando que melhor do que pescar um peixe, é não desistir de pescar!
Poema IX
Sagitário – Ascensão de Vasco da Gama
(10 DE JANEIRO DE 1922)
Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da sua guerra
E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus
Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,
Primeiro um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro,
E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.
Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta
Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões,
O céu abrir o abismo à alma do argonauta.
Este 9º poema é, nitidamente, a continuação do anterior (8º, Escorpião), dado que estamos no ponto crucial entre a 8ª e a 9ª fase do processo de evolução espiritual da Humanidade terrena.
Efetivamente, na via espiritual, não há ligação mais estreita nem uma continuidade mais óbvia do que na ponte que liga o momento da morte de uma velha etapa de vida ao momento de Ascensão para outra etapa de dimensão superior. Uma coisa é consequência da outra. E, essa ponte, chama-se iniciação!
Assim, tal como ao oito se segue o nove, também à morte (de Fernão de Magalhães – VIII) se segue a Ascensão (de Vasco da Gama – IX).
Os primeiros versos deste poema denunciam claramente essa continuidade, pois neles persiste o ambiente escorpiano descrito no poema anterior (Fernão de Magalhães – Escorpião):
Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da sua guerra
E pasmam.
E se, nesse 8º poema, o ambiente foi caracterizado por o ódio da sua guerra (o clima típico de Escorpião, no 9º, temos a grandiosidade e a elevação que tão bem caracterizam Sagitário. Este é o reino de Júpiter/Zeus, o deus dos Deuses, o Senhor do Olimpo e, enquanto planeta, o gigante do Sistema Solar.
Pessoa refere isso logo no primeiro verso:
Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Mas há, pelo menos, mais duas referências a Júpiter/Zeus, o Senhor do Raio: a primeira está contida no último verso as primeira estrofe (E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões) Este verso descreve a imagem clássica de Zeus, recostado numa nuvem, fazendo relampejar (para se entreter, castigar ou simplesmente assustar os humanos), sempre que usa o seu Raio; a segunda referência está, ainda mais nítida, no segundo verso da segunda estrofe (Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões).
Aliás, é interessante verificar que, ao entrarmos nos domínios do Senhor do Olimpo, a Morada dos Deuses, encontremos – pela primeira vez desde que partimos do primeiro poema, O Infante – o termo Deuses.
A presença do signo oposto a Sagitário, Gêmeos, não é muito clara, exceto se repararmos que Ascensão de Vasco da Gama trata, efetivamente, de uma questão que tem a ver com o reconhecimento da comunicação entre o que está em cima e o que está em baixo. Ora, a temática da comunicação é o fulcro do arquétipo Gêmeos, regido por Mercúrio, uma entidade que, além de desempenhar o papel de Mensageiro dos Deuses, era filho de Júpiter/Zeus.
Portanto, os regentes do eixo Gêmeos, /Sagitário, estão, mitologicamente falando, ligados por laços familiares bastante estreitos.
Além disto, se Júpiter/Zeus é Senhor e pai, Mercúrio, enquanto filho, deve obedecer-lhe e respeitá-lo. Astrologicamente falando, também a mente racional (Mercúrio) deve ceder perante a abrangência e a sabedoria (Júpiter).
E, se nos reportarmos aos irmãos gêmeos (Castor e Pólux) que formam o símbolo de Gêmeos, verificamos que um deles era mortal (terra) e o outro imortal (céu). Portanto, mesmo sem sair de Gêmeos – o terceiro signo do Zodíaco – a mensagem permanece: sendo o movimento ascensional, o gêmeo terreno tem de morrer para dar o lugar ao seu irmão divino, pois só assim se consegue plantar um Padrão (III) nos novos territórios conquistados!
No que toca aos respectivos Elementos – o Fogo de Sagitário e o Ar de Gêmeos – é sabido que o Fogo sempre foi considerado um Elemento de purificação. Veja-se, a título de exemplo, a queima dos livros empreendida fanaticamente pelo III Reich ou a queima dos hereges durante o período da Inquisição. Assim, o Fogo, entendido espiritualmente, representa a purificação da alma, um processo feito através da combustão de todas as impurezas (fundamentalmente de uma, chamada ignorância), cujo peso adia o destino inalienável da alma, o qual é ascender.
Quanto ao Ar, ele detecta-se claramente reparando que Pessoa personificou a Humanidade na figura de um pastor que usa o sopro (Ar) para tocar a sua flauta.
E por que terá escolhido Vasco da Gama para protagonista desta Ascensão?
Decerto porque ao poema correspondente ao signo regido pelo maior planeta do Sistema Solar, tinha de corresponder aquele que é considerado o maior de todos os navegadores portugueses.
Embora esta analogia possua força suficiente para encerrar a análise deste poema, ainda há mais para dizer. Vamos tentar expressá-lo através do verso agora mesmo criado com as primeiras e últimas palavras de Ascensão:
Os Deuses da tormenta (…) do argonauta.
Podemos perguntar: mas quem são estes deuses da tormenta do argonauta?
Talvez sejam aquelas entidades que presidem, guardam e preservam o manancial de informação assimilado durante o período de formação da personalidade. Todavia, quem não experimentou ainda a desconfortável experiência de verificar que muitos desses conceitos, ensinamentos ou diretivas, afinal, pouco ou nada têm a ver com a nossa natureza intrínseca e essencial? Não obstante, são esses os deuses a quem oramos, enquanto os não percebemos como falsos. Quando – finalmente – nos damos conta disso, encetasse então um longo e inquietante período de substituição desse valores (deuses) por aqueles que vamos percebendo como intrinsecamente nossos, aqueles que, fruto da maturidade, só agora ascenderam à superfície da consciência.
Nesse rol de conceitos, ensinamentos ou diretivas que pouco ou nada têm a ver com a nossa natureza, incluem-se os falsos moralismos, a obscura e perigosíssima sexualidade, a distorcida noção de individualidade, a confusão entre independência e egoísmo, o equívoco que paira sobre os conceitos de piedade e compaixão e, ainda mais, a enorme panóplia de preceitos éticos, religiosos políticos e sociais, etc.
Não queremos dizer com isto que todos esses ensinamentos sejam errados; o que pode acontecer é que pouco ou nada tenham a ver com a natureza essencial da pessoa que os recebeu. Aplicamos praticamente tais coisas porque no-las ensinaram e porque nunca nos demos ao trabalho de verificar se fazem sentido para nós ou, melhor ainda, se nos alimentam ou desgastam. Ou seja, se são deuses que adoramos ou demônios que rechaçamos!
Não é fácil o trabalho de descartar esta bagagem sem arriscar a ilegalidade judicial, a marginalidade social, o isolamento fraternal, o ostracismo familiar ou a excomunhão religiosa. Mas é difícil, sobretudo porque tudo isso funciona como apoio para a nossa insegurança interna.
Aprender a andar suportado apenas pela habilidade e firmeza das nossas pernas é uma tarefa gigantesca. Por isso mesmo, amedronta. A prova está na frequente dificuldade e, em alguns casos, na recusa implacável, de conquistarmos a nossa autonomia. Sabe-se lá o porquê, teimamos em viver, estupidamente, sob o jugo tirânico dessa espécie de imperialismo educacional, cujas regras aprendemos de pais, professores, educadores, catequistas, etc. Tudo isto em nome de quê? Em nome de uma moral que prega o crime e o castigo, o pecado e a redenção, com o objetivo de condicionar o nosso comportamento em relação àqueles que nos rodeiam. Poderá ser uma armadilha. E, segundo parece, esta opinião não nasceu agora, neste momento, aqui em frente deste computador. Fernando Pessoa, com toda a sua argúcia e veemência já sustentava o seguinte:
(…) De tal modo estão as coisas arranjadas por ela (a natureza) neste mundo que servir-se cada um a si, completamente, energicamente e competentemente é ainda o melhor meio de servir os outros (…)
Portanto, quanto aos deuses que fazem a tormenta dos dias do argonauta (esse Peregrino que todos nós somos), só há uma coisa a fazer: apeá-los do panteão, convocá-los para a terra que pisamos e – baseados na Força de Quem está acima de nós (e deles) dizer-lhes que, de deuses como eles, está o inferno cheio!
Poema X
Capricórnio – Mar Português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem de passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
As duas estrofes deste magnífico texto encerram a essência de todo o capítulo central do livro Mensagem – estes 12 poemas que temos vindo a analisar. De fato, “Mar Português”, além de dar o nome ao capítulo e de codificar a essência espiritual do descobrimento individual, guarda ainda a essência dos Descobrimentos, os quais, segundo Fernando Pessoa, foram divinamente encomendados aos portugueses. Neste sentido, veja-se o que ele diz num texto que intitulou Princípios de Metafísica Esotérica:
(…) qual a razão porque este trabalho sai primeiro em português (…)? Porque isso tem de ser assim, dado o grande Destino oculto que Portugal tem de cumprir, continuando o que já cumpriu, aquele destino que o Senhor da Ciência segredou ao Infante D. Henrique em Sagres, para que ele o pusesse em prática.
Neste ponto, convém lembrar que a essência de Capricórnio é, precisamente, a realização de uma obra no cumprimento de uma vocação específica, segredada ou não pelas Altas Instâncias!
Estas duas estrofes são o exemplo acabado da polaridade Câncer/Capricórnio. Vejamos mais de perto o primeiro pólo: sabemos que Câncer é o signo da mãe, do filho, da família e da pátria de origem. E, se nos lembrarmos das suas pinças, verificaremos que também gosta de agarrar, isto é, possuir. Além disto, este signo pertence ao Elemento Água, o qual tem a ver com emoção, sensibilidade e, portanto, devoção, lágrimas, choro, lamentação, etc. À luz destas palavras-chave, volte a ler a primeira estrofe e repare como está embebida do 4º arquétipo do Zodíaco.
O segundo polo é Capricórnio, signo do Elemento Terra e, portanto, do destino, da determinação, da paciência, do paulatino vencimento das adversidades até que o cume da montanha seja atingido. Este é o modelo da construção, da forma e da estrutura, as quais, espiritualmente falando, representam a construção, a forma e a estrutura do Reino do Pai, ou da missão que Ele destinou, o que vem a dar no mesmo. Acresce que Capricórnio é o arquétipo do medo, da dúvida, da falta de confiança e de fé. Por isso, Fernando Pessoa começa por fazer uma pergunta capricorniana:
Valeu a pena?
Mas, logo de seguida, dá uma resposta magistral:
Tudo vale a pena/Se a alma não é pequena.
Esta segunda estrofe contem a chave do processo de ascensão de um mero ser humano até atingir a o reconhecimento da sua condição divina. O que se entende, porém, por essa metamorfose? Limita-se a ser o sentido e o objetivo da vida de todos os seres humanos que já existiram, existem ou existirão neste planeta: largar o lastro instintivo e animal, e alçar-se à condição de indivíduo, de criatura individual, o que é sinônimo de estar não separada da sua origem divina. Portanto, ao estar não-separada, há de estar religada (do latim religare – religião). E, o que é mais, há de ter consciência dessa não-separação. Trata-se, ao fim e ao cabo, de um processo alquímico que, não só durante a época medieval mas, também, ainda hoje (embora em menor escala) era executada, no plano físico, através das sucessivas manipulações do chumbo (por sinal, o metal de Saturno, regente de Capricórnio) até se obter ouro (Sol, símbolo espiritual de iluminação). Mas nunca é demais recordar que as transformações evolutivas que se iam verificando na amálgama material e física, levadas a cabo pelo alquimista, eram concomitantes com as transformações que iam ocorrendo dentro dele. Obter-se o ouro físico era equivalente a atingir-se a iluminação. Se o manipulador fosse um mero trabalhador de retortas, nada feito!
É claro que, mais uma vez, esta verdade alquímica surge mascarada com a roupagem das navegações e dos descobrimentos:
Quem quer passar além do Bojador
Tem de passar além da dor.
Por via indireta, Fernando Pessoa fala, de novo, do medo, esse ex-libris capricorniano, dizendo, de uma forma maravilhosamente poética, que as coisas não são só o que parecem ser: o medo e a coragem são, apenas, as duas faces da mesma moeda:
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Enfim, quem quiser um (o céu), tem de afrontar o outro (o perigo/abismo), pois um e outro são a mesma coisa, aliás como os taoístas andam há séculos a sustentar através do entrelaçamento gráfico do Yin e do Yang.
Portanto, na primeira estrofe, temos uma espécie de lamentação de caráter íntimo e patriótico, de quem ficou na praia cheio de saudades e a sofrer por quem partiu (Câncer); na segunda estrofe, reside um elevado sentido realista de quem partiu (com o coração desfeito, porém indiferente à choradeira), e que foi bem sucedido porque sabia ser essa a sua obrigação e responsabilidade (Capricórnio).
Todavia, enquanto desafio de vida, enquanto desafio divino no sentido de que cada um enfrente o seu Mostrengo (título do 4º poema/Câncer) e descubra o longe que tem dentro de si, tudo isto só faz sentido para aquele cuja alma não é pequena. Esse, é o tal que, embora integrando, infelizmente, um grupo minoritário, sabe e sente que Quem quer passar além do Bojador não tem outro remédio senão a passar além da dor!
De fato, há que invocar o início do poema (Ó mar salgado) e colá-lo ao fim dele (espelhou o céu), para ficarmos a saber, por experiência própria, ser aconselhável que o que está em baixo se decida – finalmente – a “espelhar” o que está em cima, porque a verdade é que o que está em baixo almeja o que está em cima. Dificilmente poderá deixar de ser assim, na medida em que o que está em cima concebe o que está em baixo, já que o que está em cima é análogo ao que está em baixo. Enfim, o que está em cima e o que está em baixo, limitam-se a ser dois aspectos da mesma coisa, apenas vibrando em registros diferentes, tal como os infravermelhos e os ultravioletas são, ambos, vibrações extremas da escala cromática.
E, assim, de novo nos confrontamos com a questão das polaridades, essas manifestações separadas da Unidade!
Por isso, Saturno, regente do signo correspondente a este Mar Português, através da sua incomensurável sabedoria, ensina que se vivemos o Alfa de uma área de vida através de frustrações, bloqueios, contrariedades e sofrimentos, também temos a capacidade de poder vir a viver o Ômega dessa mesma área de vida através duma maestria inultrapassável, cujos pilares são a serenidade, a maturidade e a segurança!
Poema XI
Aquário – A Última Nau
Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre os choros de ânsia e de pressago
Mistério.
Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.
Ah! Quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlântica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou ‘spaço.
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.
Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.
Neste poema, a figura central é um rei. Em nenhum outro texto deste conjunto isso se verifica, tal como não se verifica em nenhum outro verso dos 12 poemas de Mar Português a ocorrência de um termo tipicamente aquariano – Deus guarda o corpo e a forma do futuro.
Ora, rei equivale a Leão, signo oposto a Aquário. Não se trata, porém, de um rei qualquer; é D. Sebastião (1554/1578), nascido precisamente sob o signo de Aquário (20 de Janeiro), cuja personalidade rebelde e controversa reflete, perfeitamente, o seu arquétipo solar de nascimento.
E por que razão Pessoa encena aqui o desaparecimento de D. Sebastião, rei, símbolo do Sol?
Antes de tentar responder a esta pergunta, convém explicar um aspecto técnico da Astrologia:
Cada signo tem o seu regente. Quando, numa carta astrológica, o regente de um signo se encontra colocado no signo oposto, diz-se que está em exílio ou exilado. Trata-se de uma situação em que a energia está deslocada, fora do contexto, longe do meio a que pertence. Em decorrência disso, as suas características não podem expressar-se plenamente. No que toca ao eixo Leão/Aquário, a energia em jogo é precisamente a do Sol, porque, ao reger Leão, está, portanto, exilada em Aquário. É por isso que Leão, dispondo do Sol em regência, tende a brilhar para seu próprio gosto e proveito, enquanto que Aquário, recebendo o exílio do Sol, tem um caráter mais associativo e fraternal, onde o ego não joga um papel tão preponderante. De fato, a postura de Aquário é muito pouco solar porque as posições e interesses meramente pessoais (Sol/Leão) apagam-se e colocam-se ao serviço fraternal da comunidade.
Por conseguinte, pode-se interpretar a decisão de D. Sebastião de se envolver na aventura de Alcácer Quibir, como uma situação onde as qualidades e atributos do rei estavam exiladas. As consequências desta decisão parecem ser o resultado de um Sol que passa para o oposto complementar: o Sol (rei), símbolo da vontade pessoal, decide em função do coletivo (a expansão do império). Assim, este Sol afastou-se, arrefeceu, apagou-se e desapareceu. Convém estar ao serviço dos outros, mas, desta vez, a coisa correu mal. Pessoa reconhece-o quando, na primeira estrofe, adjetiva de aziago o sol que iluminava a última nau no dia da partida.
No entanto, existe uma passagem intrigante neste poema que só pode ser entendida se for iluminada por uma outra luz, que não a das Descobertas: que razão leva Pessoa a considerar a nau onde embarcou de D. Sebastião como a última, uma vez que as navegações portuguesas não acabaram ali?
A resposta não é nada fácil. Arrisco, no entanto, a seguinte interpretação: o 11º signo, Aquário, é o último antes da dissolução final (Peixes). Assim, Aquário pode ser entendido como a última oportunidade de iluminação antes do ato de desencarnar. Dito de outra forma, o Sol, por estar em exílio, longe do seu trono em Leão, tem como atribuição fundamental reconhecer-se como uma luz que não foi criada pelo ego, mas sim pelo Pai. A partir dessa constatação, restam-lhe poucas opções, sendo que a mais recomendada será transformar-se na Luz da fraternidade e, a seguir, fundir-se com o Todo!
No caso da evolução espiritual do poeta parece ter ocorrido isso mesmo, já que, na última estrofe, diz: Surges ao sol em mim, e a névoa finda.
Ou seja, ao desaparecer a confusão que caracteriza quem ainda está preso às ilusões do mundo, tudo fica claro. Trata-se, evidentemente, de uma questão particular, alquímica, que só ao manipulador diz respeito. Tanto assim é que, inesperadamente, Pessoa põe o verbo na primeira pessoa, como se enaltecesse o que D. Sebastião representa: aquilo que há de voltar numa manhã de nevoeiro (símbolo da confusão que grassa no coração dos homens), para finalmente despertar, dentro de cada peito, a Luz do Pai! E acrescenta, reforçando – A mesma, e trazes o pendão ainda / Do Império.
É, decerto, uma referência ao V Império, o Reino do Espírito Santo, ou seja o último argumento do Pai, que volta para fazer valer a Mensagem de Cristo (o Filho).
A palavra ainda é importantíssima aqui, na medida em que parece destacar a fidelidade do Espírito Santo: apesar da longa espera e da tolerância sobre a loucura dos homens, apesar disso, ainda porta o pendão supremo do Império!
Quanto à resposta à segunda questão levantada acima, é claro que, para o que Pessoa pretendia dizer, o local geográfico de chegada do rei não interessa para nada. Ilha ou continente, tanto faz. O poeta novamente se serve de um episódio da história portuguesa para abordar uma questão mais transcendente. Ele sabe que, no que toca ao seu percurso espiritual, pessoalmente, está prestes a fazer uma grande iniciação E, apesar de viver numa sociedade majoritariamente composta por gente adormecida, está confiante. Por isso diz – Ah! Quanto mais ao povo a alma falta, / Mais a minha alma atlântica se exalta / E entorna…
É por causa desta devoção que o poema final desta série (correspondente ao signo que fecha o Zodíaco – o devocional Peixes), se chama Prece!
Convidamos agora o leitor a tentar fazer um verso com as primeiras e as últimas palavras deste poema.
Seja qual for a combinação tentada, nenhuma faz sentido suficiente… tal como não faz muito sentido o episódio histórico que esta Última Nau aborda.
É estranho que assim seja?
Talvez! Mas esta exceção à regra não haverá de causar admiração. Estamos navegando nos reinos de Aquário e do seu surpreendente, imprevisível e, fundamentalmente, excepcional Urano!
Poema XII
Peixes – Prece
(31 DE DEZEMBRO DE 1921 – 1 DE JANEIRO DE 1922)
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.
Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.
Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância –
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
O paralelismo deste último poema com o último signo zodiacal, começa logo no título. Prece é sinônimo de oração, o que pressupõe ligação, reverência e reconhecimento do plano divino ou, no mínimo, uma ânsia de contato com ele. Essa é a atitude do arquétipo pisciano. Realmente, Peixes passa a maior parte da vida com saudades do divino, sendo por isso que lhe é difícil lidar com o materialismo, a fealdade e a violência do plano terreno. Por isso, tende a retirar-se para o claustro, para o mosteiro, convento ou só para dentro de si mesmo para reatar os laços que o ligam às dimensões transcendentes.
Porém, se a espiritualidade ainda estiver adormecida, essa fuga do mundo poderá ocorrer através de tácticas de evasão e escapismo (ilusões, irrealismo, fantasias, drogas, etc.), ou por via da doença. Torna-se, então, num ser desamparado onde, muitas vezes, impera a chantagem emocional e a auto piedade.
Portanto, é razoável começar o poema com uma invocação da divindade:
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Este poema tem três estrofes e cada uma delas refere os três patamares do Tempo: a primeira estrofe aborda o Passado – Senhor, a noite veio e a alma é vil/Tanta foi a tormenta e a vontade!
Todavia, a forma como decorreram as coisas no passado condiciona a forma como estamos no Presente – Restam-nos hoje, no silêncio hostil/O mar universal e a saudade.
Mas como a segunda estrofe remete para a vivência do Presente, é claro que a esperança não pode morrer. Por isso, constata-se objetivamente – Mas a chama, que a vida em nós criou/Se ainda há vida ainda não é finda.
Nem jamais poderá sê-lo!
Nesta segunda estrofe, Pessoa volta a referir o Divino como essência do Presente – O frio morto em cinzas a ocultou:/A mão do vento pode erguê-la ainda.
Esta constatação introduz a terceira estrofe onde se fala do Futuro. Aqui encontramos aquela evidência (Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia -/Com que a chama do esforço se remoça) que abre as portas para futuras realizações e gera a determinação para percorrer outro plano da espiral evolutiva – E outra vez conquistemos a Distância/Do mar ou outra, mas que seja nossa!
Estas três estrofes também referem claramente aos quatro Elementos.
Releia-se a primeira estrofe (Passado) deste poema correspondente a um signo de Água (Peixes), e notar-se-á que refere, é claro, este Elemento. Porém, como a Terra é harmônica com a Água (a Terra confina, segura e dá forma à Água, enquanto a Água, fertiliza, embebe e amacia a Terra), reconhecemos a Terra em:
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
A associação de tormento e hostil com a Terra fica mais clara sabendo que este Elemento representa os tormentos inerentes à densificação máxima da energia (materialização), bem como a hostilidade dos desafios inerentes a essa situação.
A segunda estrofe (Presente) contém a referência aos outros dois Elementos (Fogo e Ar), cuja ação centrífuga tende a dirigir a energia para fora e para cima. Também eles são naturalmente harmônicos entre si, já que o Fogo aquece e faz movimentar o Ar, e o Ar atiça e vivifica o Fogo.
O terceiro verso desta segunda estrofe (O frio morto em cinzas a ocultou), refere particularmente a ausência deles: Frio e cinzas para o Fogo; morto para o Ar.
Se o leitor estranhar a associação do Ar com morto, experimente deixar de respirar por uns minutos!
Finalmente, como se de um crescendo se tratasse, a terceira estrofe do poema (Futuro), refere os quatro Elementos, associados na sua relação harmônica (Ar/Fogo e Terra/Água). Nos dois versos iniciais reconhecem-se o Ar e o Fogo:
Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –
Com que a chama do esforço se remoça,
Nos dois versos finais ressalta o poder da Terra e a posse da Água:
E outra vez conquistemos a Distância –
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
Resta acrescentar uma curiosidade final (diria sincronicidade) que tem a ver com esta questão da passagem de um ciclo para outro, de um estado para outro que caracteriza a iniciação espiritual – a qual teve uma presença persistente ao longo deste trabalho. Trata-se da circunstância de Prece ter sido escrito na passagem do dia 31 de Dezembro de 1921 para o dia 1 de Janeiro de 1922!
Considerações Finais
Cremos ter ficado claro o fato de este conjunto de poemas referir-se a outro tipo de viagens, que não só aquelas que os navegadores portugueses empreenderam por mares nunca antes navegados.
Enquanto seres espirituais em evolução, cada um de nós encarna periodicamente neste planeta para que, enquanto Infante, possa empreender uma expedição aos seus mares internos, desconhecidos e amedrontadores, onde reina um Mostrengo que adora agigantar-se, mas cuja descoberta e conhecimento garante uma Ascensão.
E porque não importa o que, por ter sido transcendido, ficou para trás, sente-se um impulso de lavrar um Epitáfio em sua homenagem e lembrança.
Internamente, o Peregrino que existe em cada um de nós, deve afrontar um novo Horizonte navegando para Ocidente e, com orgulho, plantar um Padrão em cada novo território que vai desvelando. Um dia, inevitavelmente, construirá, aparelhará e embarcará na sua Última Nau. E, quando estiver à beira do fim do seu tempo, decerto vai querer encomendar-se a Deus através de uma Prece. Depois, desejará desencarnar em paz e tranquilidade para que possa renascer num tempo e locais propícios.
Trata-se um empreendimento solitário. Não há Colombos que nos valham!
Ao fim e ao cabo, ambas as viagens, quer as empreendidas ao mundo da matéria sólida e líquida (Terra e Água), quer as realizadas ao mundo da matéria subtil da vontade e da mente (Fogo e Ar) – as quais duram o tempo necessário para conhecermos os segredos de manifestação máxima dos 12 arquétipos zodiacais – simbolizam a semente (I) e o fruto (XII) da Evolução:
(I): Deus quer, o homem sonha, a obra nasce
(XII): … conquistemos a Distância –
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
Por isso, escolhemos para epígrafe deste pequeno trabalho, dois versos de Pessoa, os quais, por nos parecer oportuno, relembramos aqui:
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!