segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Babalon Parte 1


Babalon é uma das figuras mais centrais no misticismo Thelêmico. A proposta de realização espiritual delineada em Thelema é descrita primeiro pela consecução do Santo Anjo Guardião (a experiência do guru em si mesmo; a conexão com a Verdadeira Vontade) e, depois, pela apoteose ante Babalon e sua taça (a diluição da vida pessoal no ventre da Deusa que personifica a vida impessoal do Universo). O Anjo nos coroa com o ouro de uma vida significativa – e então fundimos esse ouro no sangue de nossos corpos e o entregamos na taça Dela. Essa iluminação, baseada em renúncia, é a realização que minha Obra não se encerra em mim mesmo, mas atende à imensidão do panorama estelar, onde se relacionam todos os seres.

Mas as mais frequentes descrições sobre Babalon parecem condenadas ou à poesia dessa imagem mais transcendental, ou à redutiva imagem fetichista de uma mulher sedutora. (A linguagem trabalhará sempre com imagens de imagens – todas elas débeis e incompletas em si mesmas). Isso nos deixa uma questão operativa: o que será Babalon na prática? Como posso cultuá-la e aproximar-me da experiência dessa Deusa, eu, que estou tão longe de Sua iluminação derradeira?

Não ousaria fechar uma resposta, mas talvez seja possível oferecer caminhos na forma de mais imagens: mais imanentes e menos transcendentais.

Quando a maioria das tradições espirituais se referem à “Deusa”, geralmente se referem a uma realidade profundamente imanente: a natureza e suas estações; o corpo e suas sensações; os cinco sentidos; as vísceras e a superfície de contato; a Terra que nos nutre e nos devora; a Matéria, que é energia, em seu sentido mais profundo. Se o mundo da Deusa é a imanência, posso me conectar mais facilmente com Ela diante de uma mulher de carne e osso ou também pelas sensações do meu próprio corpo, em vez de abstrações cabalistas que situam a Deusa distantíssima, “acima do Abismo”, no tedioso desenho bidimensional da Árvore da Vida. Se a Deusa é a senhora da imanência, eu posso vê-la aqui e agora e não lá em cima. Se me permito reconhecê-la em cada evento, estarei mesmo tão longe de sua iluminação derradeira, como enganou-me o pensamento? Ou cada curva da minha experiência é, na verdade, um gesto Dela?

“Saudação da Terra e do Céu”, anuncia a Sacerdotisa na Missa Gnóstica, em sua chegada. Céu e Terra são um – reconhecidos como unidos na forma do corpo da Deusa. Transcendente e imanente devem se unir no paradigma do Novo Aeon.

Mas Babalon não é uma Deusa genérica. Ela é reconhecida como a “Mulher Escarlate” descrita no Livro da Lei, em quem está “todo poder dado” (Liber AL I:15). O tema dessa Mulher Escarlate, por sua vez, percorreu os lençóis freáticos do inconsciente coletivo e chegou até nós reunindo imagens mais antigas, a da “Mulher do Apocalipse” (vestida de Sol, com a Lua sob seus pés) e a “Prostituta da Babilônia” (que monta sobre a Besta), ambas presentes no Livro do Apocalipse cristão.

Essa é a matriz simbólica e principal especificidade de Babalon: ela é apocalíptica. Apocalipse é uma revelação, frequentemente sentida por quem estiver apegado ao passado como um fim dos tempos. Essa pessoa apegada não está de fato errada, afinal “o preço da jornada é pequeno, embora seu nome seja morte. Tu deves morrer para tudo que temes e esperas e odeias e amas e pensas e és (…) Pois tudo que tu tens, tu não tens; tudo que tu és, tu não és!” (Liber 418, Aethyr NIA).

Portanto, Babalon mata a velha identidade, o velho tempo e revela a nova identidade, o novo tempo. Essa dinâmica abre alas para a manifestação do Novo Aeon, cuja Lei está sintetizada na criatividade libertária do “Faze o que tu queres”. “Gerar é morrer, morrer é gerar. Lança a Semente no Campo da Noite” (Liber 333, o Sabbath do Bode).

Simbolicamente, Babalon é portanto uma Deusa de Morte e Geração. Na prática, ela se manifesta genericamente na matéria de nossos corpos e em cada ato de inovação, mas, muito mais especificamente, em mulheres criativas. Ora, mas se estamos falando de fórmulas de Magia, por que essa ênfase à mulher literal precisa ser feita? Porque existe algo que é exclusivo da criatividade da mulher, materializado no poder gerador do seu útero e dos ciclos naturais de seu corpo. Magia é imanente e se corporifica. Abstrair a realidade material do corpo da mulher é portanto uma invisibilização da Deusa: um dos principais – se não o principal – adoecimento do velho aeon.

Dentro desse paradigma de imanência, é rico exercitar uma visão focada no concreto, em vez de principiá-la na abstração do intelecto e só então mirar o fato, como acostumou-se a perspectiva ocidental. Portanto, é valioso que possamos enxergar Babalon a partir de cada mulher que já tenhamos conhecido, embora a Deusa não se restrinja a elas. Isso implica no exercício devocional de reconhecer que, primeiramente, no plano físico, Babalon está manifestada em toda mulher criativa (seja no sentido biológico, artístico, intelectual, emocional, sexual etc). Aqui há uma sutileza: enxergar Babalon numa mulher não implica idealizá-la (isto é, sobrecarregá-la com uma fantasia inconsciente), mas sim o exercício Thelêmico de reconhecer a atividade divina em tudo que é profundamente humano. Segundamente, no plano simbólico, Babalon se manifesta, independente do gênero, na dinâmica de morte e gestação espiritual em cada um de nós.

Mas como poderia um homem devotar-se ao limiar iniciático dos portais de Babalon e àquelas qualidades que ele convencionou chamar de femininas, se não tiver interesse genuíno de conhecer a experiência real de mulheres? Sem isso, “feminino”se tornaria uma abstração morta: muito frequentemente uma expressão estereotipada, velando preconceitos. Provavelmente, esse homem terá naturalizado projetar sobre as mulheres suas fantasias sobre o que uma mulher deve ser. Nesse caso, como ele poderia cuidar do “feminino”em si mesmo?

E como poderia uma mulher participar dos mistérios da criatividade se estiver alienada de seu corpo, de seus ciclos físicos e psicológicos, de sua lua e de seus hormônios, de seu poder de ação no mundo material? Sequestrada de si, facilmente ela se tornaria um joguete de forças maiores – de outras pessoas, da sociedade ou de seus demônios psicológicos -, talvez chegando a protagonizar o cenário trágico ameaçado no Liber AL III:43.

Por fim, o culto imanente a Babalon nos convida à Sua devoção quando criamos e promovemos aquelas(es) que criam, realizando-a aqui e agora, em nossos corpos, na esfera das sensações que mudam eternamente. Criação e gozo estão ligados desde o plano mais biológico ao mais sutil: essa é uma das verdades que o apocalipse de Babalon nos revela, desfazendo véus. Podemos talvez concluir que o “véu do abismo” (a metáfora do limiar de consciência que separa o humano do divino) possa ser uma atitude de velar e mortificar os nossos próprios corpos, o que é uma forma de velar e mortificar o corpo Dela: “Há um véu: esse véu é negro. É o véu da mulher modesta; é o véu da lamentação (…)” (Liber AL II:52).

O corpo da mulher, sua sexualidade e poder reprodutivo sempre foram alvos principais do projeto repressivo de nossa civilização – de uma forma diferente, o corpo masculino também foi distanciado de seu potencial orgástico. No entanto, os corpos ainda são tanto o palco como aparelho mais sofisticado que temos para unir os opostos (isto é, realizar a Grande Obra): dor e prazer, inferno e paraíso, samsara e nirvana.

Por essa natureza inclusiva, uma das atribuições de Babalon é que ela “a todos recebe”, pois por profunda compaixão Ela não rejeita a nada, nem ninguém: “Bela és tu, Babalon e desejável pois tu te entregaste a tudo que vive e tua fraqueza sobrepujou a força deles. Por essa união tu ‘compreendeste’” (Liber 418, Aethyr LOE). Babalon é “Entendimento” porque, ao ser atravessada por qualquer experiência, Ela a acolhe e processa em seu Corpo, que é o caldeirão alquímico da transformação espiritual. Nós podemos nos devotar ao entendimento por meio desse exemplo: acolher todas as sensações em nossos corpos, deixando-as surgir e desaparecer sem restrição. Sem bani-las, permitimos que o êxtase da experiência se realize. A vulnerabilidade de sentir se converte na mais poderosa fórmula de iniciação.

É responsável mencionar que pessoas maliciosas ou inconscientes têm usado essa descrição acolhedora de Babalon para sugerir que mulheres, a fim de “manifestar Babalon”, deveriam ser infinitamente acolhedoras (ou submissas) a qualquer circunstância que as rodeie. Tais pessoas têm falhado em experimentar, em suas vidas, o amor de estar espontaneamente aberto e por isso projetam sobre o feminino fantasias mórbidas de passividade e de disponibilidade, seja no campo “mágico”, afetivo ou sexual. Falham também em entender que, ainda que a imagem de Babalon cavalgando a sua Besta represente que Ela acolhe a selvageria de todo tipo de experiência, nas mãos d’Ela estão as rédeas do poder diretivo: “Amor sob vontade”. A Besta é puro instinto; Babalon é a sua Consciência. A imensa misoginia de pensar Babalon como “mulher passiva” perpetua simultaneamente consequências sociais opressoras e a paralisia espiritual do próprio machista, escravo de sua limitação.

Tendo feito esse breve panorama, podemos sumarizar a sugestão de alguns métodos de reconhecimento da presença de Babalon e de culto a Ela:

Reconhecê-la imanentemente em toda mulher, com especial atenção às suas expressões criativas (da gravidez literal a expressões intelectuais, artísticas etc.)
Reconhecê-la no ato de criar e inovar (o que implica na morte e destruição do velho): apocalipses e revoluções são sua seara
Reconhecê-la no ato de gozar; e então em toda sensação corporal
Após essa série de reconhecimentos pontuais, reconhecê-la em absolutamente todos os eventos, já que as múltiplas expressões do Universo material são resultado dos atos de amor da Deusa.