sábado, 20 de março de 2021

Os Arcanos Profundos do Criptojudaísmo

 


O livro “Os Arcanos Profundos do Criptojudaísmo” conta uma história por muito tempo olvidada. Por meio de pesquisa em fontes inéditas e também pela reinterpretação de fatos tradicionalmente já estudados foi possível revelar a existência de uma dimensão mais profunda, propositalmente escondida, insuspeita para a maioria dos estudiosos, dentro do chamado criptojudaísmo. A “história subterrânea” dos sefarditas conversos e judaizantes, chamados de “cristãos-novos”, revela a existência de uma camada inusitada: o cabalismo praticado por meio de um rico sistema de símbolos e costumes esotéricos, como a forma mais acabada da resistência cultural ao etnocídio que o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição intentou executar contra eles durante os tempos modernos nos países ibéricos e suas possessões coloniais. 

Prefácio

Em As letras do Alfabeto na criação do mundo, publicado em 1992, Elias Lipiner, um dos principais mestres e pioneiros nos estudos acerca da perseguição aos judaizantes e do imaginário religioso cristão-novo na Modernidade luso-brasileira, assim se referia aos escritores da tradição cabalista:

Acabaram por inventar a existência surpreendente de uma nova categoria alfabética: as letras brancas. Tais signos, invisíveis ao olho do leigo, estariam povoando os claros, ou seja, os espaços entre as palavras e as linhas, expandindo-se, carregadas de mensagens místicas, em direção a regiões ilimitadas e inatingíveis. Dessa forma, os espaços aparentemente submersos de modo passivo na sua própria brancura passaram a representar um papel dinâmico no pensamento humano e as letras saíram para mais além de sua função fonética para realizarem-se no plano emocional.

A minúcia, os discretos indícios, o detalhe nem sempre percebido aos menos atentos e, quase certo, impossível aos não iniciados, é que davam novo caráter e significado às tradições do Povo do Livro. Mas vai além: uma revolução que não se encerra nos limites do papel e do que faz dele a escrita: em tempos de exclusão persecutória, os antigos judeus transformados em cristãos entre fins da Idade Média e inícios da época Moderna ibéricas se viram obrigados a reinventarem-se e a reinventar, cotidianamente, sua própria forma de estar no mundo. O drama dos judeus ibéricos, vitimados por seguidas diásporas de Espanha e Portugal, ao mesmo tempo expulsos e impedidos de irem embora, batizados em pé e transformados em cristãos-novos, proibidos de permanecer no Judaísmo mas não aceitos por completo no catolicismo que lhes impunham goela abaixo, viviam na lâmina, equilibrando-se numa linha de fronteira que não reconhecia – e, de certa forma, mesmo impedia – sua saída de um lado para entrar em outro, perdidos no espaço, coagidos a abandonar a substância do que eram, obrigados a negar suas tradições e aceitar outras, que não os aceitavam. Dependendo do local e das contingências, comportavam-se como cristãos ou como judeus, vários dentre eles, com o passar dos tempos, desconhecendo ambas as crenças em sua essência. Restavam poucas opções: deixar a Ibéria não foi tarefa fácil nem mesmo desejada por muitos, seja pelas dificuldades de deslocamento ou pelas raízes milenares e laços de vida que mantinham na região. Para os que ficaram, sob a pele de seguidores de Roma, ou aceitavam a Igreja e renegavam a fé de outrora, ou lutavam por ela, recolhendo cacos de memória que deveriam ser rearrumados e feitos invisíveis, sob o risco da perseguição social – violentamente aumentada com o reforço inquisitorial, tornando-se os neoconversos suspeitos de judaizar em segredo, por isso denominados criptojudeus, dos principais atingidos pelo Santo Ofício. Mas é exatamente deste lodo onipresente que brota o novo: a historiografia acerca da perseguição aos neoconversos e suas estratégias de resistência continua dando mostras de que a violência que vitimou os sefarditas foi respondida com capacidade ímpar de reinvenção: as práticas judaizantes, embora limitadas ao possível, adaptadas ao tempo, ao espaço e às condições específicas de cada realidade vivenciada, posto que cada neoconverso vivia um drama ao mesmo tempo universal e particular, davam origem a variadas formas de se “sentir judeu”.
Anita Novinsky caracterizava estes indivíduos como homens divididos , tramados entre o que eram e o que diziam ser, tal qual gritava em causa própria um dos principais representantes deste “cabalismo de resistência”, o teatrólogo setecentista António José da Silva, imortalizado pelo epíteto d’O Judeu, que perderia a vida nas chamas inquisitoriais por culpas de judaísmo: Sou, enfim, morto vivo, e vivo morto.
Da antiga tradição escrita judaica, dos tempos de livre crença, o criptojudaísmo tornou-se, em grande medida oral, repassado não mais em sinagogas, por rabinos ou pela leitura dos textos sagrados: foi transmitido oralmente, no segredo das residências, tendo as mulheres como grandes responsáveis por ensinar aos filhos a história e valores de seu povo. Abandonou costumes mais denunciadores e ganhou outros, menos conhecidos da sanha persecutória que buscava enxergar em qualquer cisco de estranhamento à norma católica uma trave de heresia e continuidade judaica. Com a Cabala, não seria diferente. Foi readaptada para ganhar sobrevida, infiltrada nas entranhas de ideias e comportamentos que buscavam disfarçar sua percepção aos que não tinham olhos de ver... Conscientemente ou não, formaram-se estratégias de resistência e manutenção religiosa, montaram-se redes sociais de auxílio e proteção aos cristãos-novos – fossem eles judaizantes ou não – que se capilarizavam pelos quatro cantos do mundo – Europa, América, África, Oriente próximo ou distante... E o Brasil rapidamente virou lugar de destaque aos neoconversos que fugiam da intolerância reinol e da mão pesada do Santo Ofício. Por aqui, sem um tribunal estabelecido, pelo menos nos primórdios da colonização, tiveram vida mais “leve” do que no reino, alguns erguendo sinagogas clandestinas, respeitando os jejuns e dias festivos, achando que a Inquisição não iria atravessar o Oceano para atormentá-los. Ledo engano... Não tardaria a criação de uma atmosfera de controle, uma espécie de Big Brother colonial, a chegar visitadores, a espalharam-se fuxicos e denúncias sobre comportamentos heréticos, a ser gestada uma engrenagem de vigilância e a institucionalizar-se o medo, a aparecerem ameaças de delação, a montar-se uma eficiente rede de funcionários e representantes inquisitoriais que vasculhavam a colônia e desvelavam um intenso processo de resistência judaica (como também de continuidades religiosas que perdiam seu sentido com o passar do tempo, comportamentos de que se desconhecia por completo a origem), enviando réus e mais réus para serem julgados em Lisboa...
Nas páginas de denúncias e processos de indivíduos da América que passaram pelo Santo Ofício, vemos em detalhes seus esforços para manter viva a fé herdada dos antepassados: as práticas cotidianas, os meios de disfarçar comportamentos, a reinterpretação de um judaísmo que, conforme avançavam as gerações, nunca chegaram a conhecer em seu extrato. Embora limitado e resumido, foi assim que conseguiu, contra tudo e todos, resistir a quase trezentos anos de intolerância. O livro de Marcos Silva e Isis Carolina Garcia Bispo conta-nos, com brilhantismo, uma parte intensa desta memória. Percorrem os meandros e as entranhas desta história – arcanos profundos –, ao mesmo tempo tão próxima e tão desconhecida. Focando no cabalis-mo, desnudam um riquíssimo sistema de símbolos e costumes esotéricos adotados, conscientemente ou não, pelos cristãos-novos em suas formas de resistir ao catolicismo dominante. Afinal, o misticismo torna-se, dentre os cristãos-novos, parte fulcral da explicação histórica dos dramas e esperanças de redenção de seu povo. O fato é que os autores colocam luz em episódio pouco lembrado ou conhecido neste processo de resistência criptojudaica. E o fazem no melhor estilo que a História exige de seus pares: com intensa pesquisa e sem conclusões simplificadas, mergulhando cuidadosamente nas malhas do texto, filtrando os dados, fazendo as perguntas necessárias, arrancando dele todo e qualquer indício, seja dos tratados cabalistas, seja dos textos literários de escritores da época, seja dos documentos deixados pela Inquisição, em forma de confissões, denúncias e processos. Mostram, assim, como a Cabala serviu, mais do que se imagina, de base e influência para a cosmovisão neoconversa como um dos elementos do processo de continuidade e resistência do judaísmo, (re)dimensionando sua cultura e muitas das lógicas de sobrevivência da fé em tempos de perseguição. Mas não a Cabala de outrora, pregada em tempos de liberdade, debatida e vivenciada às claras, mas sim o “cabalismo possível”, disfarçado no que os autores definem como “camuflagem cultural”, adaptado à nova realidade de opressão e perseguição religiosa, ao trágico momento de Inquisição. E mais: como desvendam Marcos Silva e Ísis Bispo, o cabalismo sefardita acaba por enveredar nos limites da Maçonaria, unidos pela defesa da liberdade de pensar e pelos ideais liberais. Não à toa, já inválidos os estatutos de pureza de sangue que separavam cristãos velhos de novos desde o Pombalismo, vai caber a Hipólito José da Costa, homem de letras, intelectual respeitado, diplomata, maçom, jornalista, fundador daquele que é considerado o primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense ou Armazém Literário, a desgraçada honra de ser um dos últimos réus do Santo Ofício português, acusado de disseminar ideias maçônicas pela Europa. Ou seja: não só os criptojudaizantes, mas também o próprio monstro inquisitorial se reinventava, buscando novas vítimas.
Com pequenas ranhuras entranhadas na identidade cristã-nova, permitiram os cabalistas da Modernidade iberoamericana a continuidade judaica, escondidos (será?) de tudo e todos, por vezes até mesmo de si. Produziram uma penumbra entre mil sóis, numa luta incansável para manter a crença pela qual lutaram e o direito de ser quem queriam ser.

Introdução

A diáspora  Atlântica dos sefarditas deu origem nos tempos modernos a importantes redes comerciais e de solidariedade por meio das quais eles compartilhavam não somente interesses materiais, mas, também, uma cultura comum. Seguindo o costume dos intelectuais, a partir do humanismo renascentista, de formar a “república das letras”, os sefarditas engendraram “círculos literários”, como o de Ferrara, na Itália, e “circuitos culturais” de dimensões variadas. Neste livro, investigamos algumas dessas expressões culturais dos sefarditas exilados durante os tempos modernos - alguns dos quais foram julgados e condenados pela Inquisição. Procura-se demonstrar como a Cabala, cujo conhecimento era transmitido através dessas “comunidades de saber esotérico”, constituiu-se em elemento estruturante de sua cosmovisão, de suas crenças e estilo de vida de acordo com a matriz judaica.
No nosso entendimento, “cosmovisão” compreende um conjunto de pressuposições que alguém sustenta sobre a formação básica do mundo e que fornece explicação sobre a realidade primordial, a origem da vida, sobre o ser humano, sobre a morte, sobre padrões de comportamento e sobre o significado da história humana. O conceito será tomado como o elemento central que desempenha um papel diretriz na vida cultural e identidade de um povo. Na diáspora, os sefarditas se esforçaram por preservar um princípio de identidade coletiva. Através da designação de “gente da nação”, evocavam sua origem portuguesa e espanhola e sustentavam uma subjetividade com um distintivo duplo: sua origem ibérica e sua ascendência judaico-religiosa.
A esse respeito, Wachtel (2002, p. 30) pergunta: “Quais eram então as componentes da sensação de identidade própria da <<gente da nação>>?” Mais adiante, ele tenta sintetizar uma resposta ao dizer que “a identidade da <<gente da nação>> definia-se, em certo sentido, como reacção ao ódio que as outras nações lhe dedicavam (...), mas envolvia, ao mesmo tempo, uma componente fundamental e positiva: a fidelidade aos antepassados...” O que ele vai chamar de “fé da lembrança”. Em função disso, os laços de família e as relações de parentesco adquiriram uma importância cultural central para as comunidades de criptojudeus, que passaram a alimentar a ideia de “um destino em comum” baseada no matrimônio endogâmico. Na realidade, o criptojudaísmo dos sefarditas não se caracterizava por uma ritualística ou pela observação de práticas, mas por uma consciente integração com a “lei de Moisés”. Para esse tipo de consciência, os laços étnicos da comunidade formam o passo fundamental para o processo de integração social e religiosa. (CONTRERAS, 1991, pp. 127 e 130). Sabe-se que o elemento místico tem sua origem e alcança camadas de significação mais profundas em tempos de crise e tribulação. Assim, a religiosidade das comunidades atlânticas sefarditas era vista, pelo próprio status quo do judaísmo dominante, como heterodoxa, principalmente devido à influência predominante da Cabala. É dessa religiosidade duplamente herética que tratamos aqui. Fazemos uma análise documental e revisão bibliográfica de alguns casos de praticantes da Cabala, já mencionados na historiografia, que foram julgados e condenados no Tribunal do Santo Ofício pelo crime de práticas judaizantes. O cabalismo de alguns, porém, passou despercebido. Isso porque essa forma de vivência profundamente car-regada de símbolos confundiu em muitos momentos os sensores da Inquisição católica, não iniciados no hermetismo da Cabala, embora esta não tenha sido a sorte de uma boa parcela deles. Obras como Consolação às Tribulações de Israel, de Samuel Usque, Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, produzidas em meados do século XVI e também escritos posteriores, como as peças de Antônio José da Silva, da primeira metade do século XVIII, revelam aspectos importantes da cosmovisão dos sefarditas conversos judaizantes. Pensando em um contexto histórico de perseguições e intolerância religiosa, que foram os tempos modernos, elas são, por influência do seu espaço e tempo, uma alegoria das perseguições sofridas por esse povo disperso. Assim, livros produzidos em meio à diáspora Atlântica, pelos próprios exilados, podem revelar estruturas de pensamento que forjaram durante os tempos modernos a cosmovisão desse povo perseguido. Essas expressões artísticas não mostram explicitamente como se formou a identidade sefardita na diáspora, porém, deixam nas entrelinhas resquícios do inconsciente coletivo e das estruturas de pensamento que sustentaram a construção dessa subjetividade nos tempos modernos. Conceito constituído por Carl Gustav Jung, o inconsciente coletivo “não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tomar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência.” (JUNG, 2000, p. 54). Na explicação de Alfredo Bosi (2002, p. 18) “a literatura, com ser ficção, resiste à mentira. É nesse horizonte que o espaço da literatura, considerado em geral como o lugar da fantasia, pode ser o lugar da verdade mais exigente”. Pois, “o texto literário revela e insinua as verdades da representação ou do simbólico através de fatos criados pela ficção.” (PESAVENTO, 2006, p. 8). A escolha de trabalhar com uma fonte pouco explorada por historiadores não foi fortuita. Partindo do princípio que a grande maioria dos pesquisadores do criptojudaismo embasam suas pesquisas em documentos produzidos pelos Arquivos do Tribunal do Santo Ofício, por que não utilizar como fonte registros escritos pelos sefarditas? Privilegiando uma interpretação de baixo para cima e dando voz aos perseguidos. O interesse em entender as manifestações culturais e a visão de mundo dos sefarditas, a partir de obras literárias por eles próprios escritas, tem o intuito de perceber como se davam as conexões mentais que influenciaram o desenvolvimento de um movimento de resistência cultural que trabalhou, de forma subterrânea, nas brechas que o sistema lhes fornecia. A partir dessas considerações, e conforme Le Goff (2006, p. 54) enfatiza, acreditamos que “o documento não é inocente [...] é produzido consciente ou inconscientemente pelas sociedades do passado. Assim, é preciso desestruturar o documento para descobrir suas condições de produção” desconfiando e treinando o olhar para perceber nas entrelinhas aspectos ainda não explorados ou negligenciados.
A aproximação com a literatura faz com que tenhamos um acesso privilegiado ao imaginário social. Segundo Pesavento (2006), por vezes, a coerência de sentido que o texto literário apresenta é o suporte necessário para que o olhar do historiador se oriente para outras tantas fontes e nelas consiga enxergar aquilo que ainda não viu, podendo ter acesso a outro viés que as fontes tradicionais não alcançam ou suprimem. E assim, podemos estabelecer uma nova postura no diálogo entre as fontes. Nesse livro, intentamos fazer esse percurso: a partir do sentido fornecido pelas fontes literárias, procuramos subsídios para interpretar as fontes tradicionais. Nesse contexto, conforme explicado por Roger Chartier na sua obra clássica “A História Cultural: Entre práticas e representações”, não dá para:

Pensar de outra forma estas várias relações (entre a obra e o seu criador, entre a obra e o seu tempo, entre as diferentes obras da mesma época) exigia que se forjassem novos conceitos: para Panofsky, o de hábitos mentais (ou habitus) e o de força criadora de hábitos (habit-forming force); para Febvre, o de utensilagem mental. Em ambos os casos, devido a estas novas noções, ganhava-se uma distância relativamente aos processos habituais da história intelectual e, por isso, o seu próprio objeto encontrava-se deslocado. (CHARTIER, 1990, p. 36).

Então, a partir da História Cultural, à luz dos conceitos difundidos por Roger Chartier, como mentalidades coletivas, visão de mundo e utensilagem mental, podemos estabelecer parâmetros para a interpretação dos diferentes documentos históricos. Desse modo, a ‘verdade’ contida no texto literário encontra-se cifrada, apresentada por meio de metáforas. O que permite ao historiador acesso ao imaginário social e a outras dimensões que as fontes tradicionais silenciam. (PESAVENTO, 2006). A literatura produzida em meio à diáspora pelos de origem sefardita traz a marca do exílio aliada à promessa messiânica. Segundo Scholem (1995) este processo histórico de exclusão ajudou a definir os elementos apocalípticos e messiânicos do judaísmo com os aspectos tradicionais da Cabala. Sua finalidade era preparar a comunidade hebraica para o advento do messias, ressaltando a esperança da restauração de Israel. Dessa maneira, foi acalentada nas gerações pós-expulsão a promessa messiânica de libertação do povo israelita. Mesmo aqueles que haviam rompido externamente com a sua fé ancestral não deixavam de se identificar. A ideia messiânica não se esgota com a mera negação das pretensões de Jesus. A recuperação da ‘Terra Prometida’ continuou a ocupar uma parte importante nas esperanças e orações dos sefarditas conversos judaizantes. (ROTH, 2001, p. 121). Como dito por Angel (1991), a primeira empreitada intelectual dos ilustrados da diáspora após a expulsão foi entender as circunstâncias adversas em que eles se encontravam. E, para isso, nada mais significativo do que transparecer esse sentimento nas obras produzidas por eles nesse contexto. Quando ocorreu a expulsão dos judeus de Portugal (1496) ainda eram percebíveis nas comunidades judaicas portuguesas resquícios da influência do banimento dos judeus da Espanha. Entretanto, os que optaram em permanecer em Portugal foram obrigados a se converter ao cristianismo católico romano. Mas, muitos mantiveram preservados de forma secreta os aspectos essenciais da sua religião ancestral. Então, foi nesse contexto de perseguições e censuras que autores como Samuel Usque e Bernardim Ribeiro, na Europa, e Bento Teixeira, na América portuguesa, se aventuraram a escrever. Não se furtando de transparecer nas entrelinhas a problemática do criptojudaísmo e trazendo à tona os seus mais recônditos anseios que interagem com o judaísmo de resistência. Assim, a dispersão dos sefarditas pelo mundo atlântico, a partir do final do século XV, contribuiu para a constituição de uma minoria com características psicossociais peculiares. Isso ocorreu em função da campanha de extermínio cultural movida pelo Tribunal do Santo Ofício contra os elementos judaizantes espalhados pelos territórios sob domínio das coroas portuguesa e espanhola. Muitos trabalhos sobre as práticas culturais de resistência dessa minoria já foram publicados e a palavra “criptojudaísmo” se consagrou como a melhor expressão para designar o conjunto de artifícios, costumes e artifícios mentais que configuraram essa contracultura que subsistiu oprimida durante a época colonial. Apesar do título do Best Sellers de Richard Zimler, narrando o massacre que vitimou os sefarditas lisboetas em 1506, O último Cabalista de Lisboa, numa leitura apressada, ser interpretado como sugerindo um possível fim desses personagens, os cabalistas sefarditas não entraram em um processo de extinção em função da diáspora e perseguição. Mas, a partir da fecundação de ideias advindas de Safed, cidade localizada na Palestina e que abrigou o principal centro de estudos cabalísticos a partir de meados do século XVI, o cabalismo espalhou-se entre as comunidades de criptojudeus servindo como principal instrumento de acobertamento simbólico de suas reais intenções religiosas. Sob a orientação principal de dois rabinos, Moisés Cordovero (1522-1570) e Isaac Luria (1534-1572), a principal inspiração dessas comunidades foi o Zohar, grande fonte de ensinamentos da Cabala, escrito no século XIII por Moisés de Leon, na Espanha. Segundo Bension (2006, p. 303) afirmou: “(...) O Zohar impediu que os grupos sefaraditas caíssem no poço do desespero, nos diferentes países onde foram obrigados a se integrar”. Todas as ações da vida das comunidades da diáspora foram impregnadas pela visão mística do Zohar, de tal modo que ocorreu uma proliferação de “costumes místicos” no cotidiano dos sefarditas. Dentre esses costumes estão aqueles ligados à escuridão, à meia-noite. Em Safed, durante o século XVI, os judeus místicos costumavam acordar cada noite para recitar orações, exatamente à meia-noite, lembrando o momento mais escuro da vida espiritual do povo judeu, a destruição do Segundo Templo, em 70 da era comum, pelos  romanos. Isso deu origem ao costume de uma vigília à meia-noite, chamado de Tikun Hatsot. Além do simbolismo da escuridão também se passou a evidenciar o simbolismo lunar. A Lua e seus mistérios que indiciam ritmos de permanente transformação e esmaecimento da luz, através da fase do quarto minguante, foi tomada como o arquétipo principal da catástrofe do exílio e o período da Lua Nova, representando a promessa de redenção. Assim, o dia da Lua Nova (Rosh Hodesh), antigamente celebrado em Israel, foi revitalizado em Safed nessa época, sendo antecedido por jejuns e dedicado à meditação sobre a experiência da diáspora. Passou a ser denominado de Yom Kipur Katan (um dia do perdão mensal, de menor força sígnica) (ANGEL, 2009).
Scholem (1978, p. 9), demonstrou como a experiência espiritual dos místicos se emaranhou quase que inextrincavelmente com a experiência histórica do povo judeu. Entre os judeus cabalistas de Sefarad eram comuns as constantes correlações entre a Torá e as leis cósmicas, bem como da história do povo judeu com o desfecho histórico e escatológico universal. Além disso, um elemento básico que acompanhou por muito tempo esse povo foi a constante menção do mito de exílio e redenção, tão vivo no psicológico mesmo das gerações posteriores. Esse livro introdutório tem por finalidade demonstrar que, embora pouco mencionado pela historiografia especializada, a Cabala foi um elemento constituinte central da cultura e cosmovisão dos sefarditas judaizantes dispersos pelo mundo Atlântico.
O problema que se procurou esclarecer ao longo da investigação foi: Que elementos da Cabala são encontrados na cultura dos sefarditas conversos judaizantes e em que medida o cabalismo pode ser tomado como elemento constituinte de sua cosmovisão, conforme revelado na literatura por eles produzida e em processos da Inquisição de acusados de serem sefarditas conversos judaizantes? Assim, ao longo de nosso estudo, procuramos evidenciar elementos da Cultura sefardita na diáspora olvidados pela historiografia tradicional. Acreditamos, dessa forma, poder proporcionar aos descendentes dos sefarditas conversos e judaizantes uma oportunidade de conhecer mais sobre suas origens, entender práticas difusas em seu cotidiano que possuem uma história milenar.
Perseguindo esses objetivos, entendemos, primariamente, que a Inquisição foi um instrumento de controle social e político. Nesse sentido, as confissões, as denúncias, as transcrições de depoimentos, os relatórios dos autos-de-fé e as correspondências, esse corpus documental produzido pelo Tribunal do Santo Ofício, não são isentos de manipulação. Sendo assim, a “verdade” contida nessa documentação não contrapõe os interesses da autoridade religiosa opressora que o controla. Porém, é possível o historiador trabalhar com esse tipo de fonte desde que defina critérios de autenticidade aplicáveis aos documentos inquisitoriais, tal como o historiador Israel Salvador Révah explicitou. (DIÁRIO DE LISBOA, 1971).
 A grande questão para os estudiosos dos sefarditas submetidos ao tribunal é se os documentos inquisitoriais dizem a verdade ou exageram, adulteram, e falsificam os relatos da experiência daqueles tidos como judaizantes. (GITLITZ, 2002). Nessa perspectiva, os especialistas defendem a posição de que o retrato global que os documentos da inquisição pintam da vida dos criptojudeus é confiável, embora ocasionalmente alguns registros possam ser suspeitos. Os documentos contêm informações relatadas por três tipos de pessoas: inquisidores, informantes e acusados – todos estes têm motivos para mentir e razões para dizer a verdade. (GITLITZ, 2002). Os inquisidores foram invariavelmente clérigos cujo sentido de justiça e rigor tem de ser considerado no contexto de seu compromisso de erradicar a heresia. Eles tendiam a relatar a verdade como eles a viam, mas, as lentes através das quais eles percebiam sua verdade induziam a um astigmatismo de parcialidade. (GITLITZ, 2002). Para a maioria dos inquisidores os judaizantes eram satanicamente induzidos à heresia, perniciosos e perigosos. Eles estavam predispostos a reagir à heresia emocionalmente e com severidade. Interpretavam o que viam e ouviam contra um modelo de preconceitos sobre o criptojudaísmo que adquiriram tanto da sua educação formal e da mitologia popular, e que foram habilmente codificados nos Editos de Graça e nos próprios manuais de interrogatório. Estavam muito menos tendentes a anotar observações objetivas do que estavam a gravar as declarações que corroborassem seus preconceitos. Outro aspecto que deve ser enfatizado é o fato de que a Inquisição não foi meramente uma expressão de autoridade religiosa, nem foi somente um instrumento de controle social e político. Ela foi também uma arena onde diferentes culturas travaram relações e colidiram no universo da “civilização Atlântica”. Expressão utilizada por Felipe Fernández-Armesto (1999, p. 26) para designar a civilização Ocidental agrupada em torno do Atlântico e que, na segunda metade do segundo milênio, daí partiu para “controlar, explorar e moldar o resto do mundo”. Nesse sentido, a perspectiva ampla de interpretação do processo histórico vivenciado pelos sefarditas conversos judaizantes nos tempos modernos é de uma guerra cultural multisecular, travada no cenário dessa “civilização Atlântica”, contra as forças do catolicismo antissemita reacionário, representado pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, que tentou esmagar qualquer manifestação dessa cultura milenar nos domínios da Civilização Ibérica. Pensamos que podemos contribuir através do que será exposto nesse livro, fruto de uma pesquisa histórica fundamentada em fontes literárias e inquisitoriais, para ampliar a compreensão de como se deu a resistência dos sefarditas conversos e judaizantes a essa tentativa de etnocídio movido contra os mesmos pelos poderes constituídos do chamado “antigo regime”. O texto do livro segue estruturado perseguindo um ordenamento cronológico mínimo. No primeiro capítulo, partimos do processo histórico vivenciado no mundo ibérico que culminou na expulsão dos judeus sefarditas a partir do final do século XV. Em seguida, procuramos caracterizar essa civilização de Diáspora, especificando sobretudo as suas formas de resistência cultural contra a perseguição inquisitorial. O segundo capítulo demonstra a importância de duas cidades principais para a resistência cultural dos sefarditas dispersos ao longo do século XVI; Safed, na Palestina, principal berço da reação mística ao exílio, e Ferrara, na Itália, onde eles instalaram uma impressão gráfica para divulgar suas ideias. Nos capítulos três, quatro e cinco, apresentamos o trabalho literário dos que foram pioneiros na utilização da pena como forma de assegurar a sobrevivência de sua cultura oprimida. Os dois capítulos seguintes abrodam um tema que representa um ponto delicado na compreensão da histórica cultural sefardita, qual seja, a proposição de uma explicação histórica para o fato da dimensão mística da cultura sefardita de resistência ter sido tão pouco estudada pela historiografia tradicional especializada.
Depois da exposição de alguns casos representativos de sefarditas conversos judaizantes que cultivavam o cabalismo, apresentamos uma hipótese de como pode ter ocorrido a evolução da dimensão mística do criptojudaísmo até o fim da perseguição inquisitorial e seus desdobramentos históricos.

Capítulo 1
Uma Civilização de Diáspora

Durante a Idade Média e início dos tempos modernos a Península Ibérica se destacou em relação à Europa Ocidental porque foi uma parte do continente que vivenciou o domínio muçulmano. No caso específico a dominação foi secular, entre 711 e 1492. Os reinos ibéricos eram considerados uma área periférica da cristandade Ocidental justamente devido à longa influência da civilização islâmica. Para termos uma ideia das diferenças desses reinos peninsulares para com o resto da Europa, nos séculos XII e XIII, a aparência dos habitantes dos reinos espanhóis era semelhante a dos asiáticos devido ao seu vestuário muçulmano. A Península Ibérica era um cadinho cultural. Nesse meio, os judeus se equilibravam política e socialmente, segregados legal e fisicamente, vivendo em bairros isolados, chamados de “judiarias”. À medida que os cristãos retomaram o domínio do território, dois princípios passaram a reger a relação com os mesmos. A tolerância, em função da expectativa de sua conversão futura e o aviltamento, decorrência da pertinácia dos mesmos não aceitarem a verdade da Igreja, resultando o dever de denegri-los e aviltá-los (POLIAKOV, 1996). Para além dos Pirineus, durante o século XIII, os judeus que estavam no caminho dos cruzados foram massacrados. Os da Inglaterra e França foram expulsos. Nos reinos espanhóis, devido a um lento e complexo processo psicossocial, começando por Sevilha, os judeus passaram a sofrer perseguição sistemática a partir de 1391. De tal forma que, no século XV, Portugal era o último lugar da Península Ibérica onde os judeus ainda conseguiam viver de forma razoável (FELDMAN, 2009).
Assim, a história dos judeus em Portugal nesse período é tema bastante abordado e tem se concentrado nos processos de segregação atenuada em vista da proteção dos reis que garantiram a existência de cerca de cento e quarenta comunidades organizadas. Os historiadores também destacam a participação de judeus ilustres em altos postos da corte, misturados com a aristocracia, e na economia portuguesa, sobretudo como mercadores e financistas. Além da necessidade de nuançar o perfil social da comunidade judaica de Portugal, dividida entre uma oligarquia poderosa de médicos, grandes mercadores e funcionários e o povo comum; artesãos e artífices (alfaiates, ourives, ferreiros, armeiros e sapateiros), peque-nos comerciantes e os indigentes, é importante destacar o substrato cultural desta comunidade, sob a designação de sefarditas. (BOXER,2002, pp. 25-26).
O vocábulo ‘sefardita’ geralmente tem sido usado para adjetivar judeu, ou seja, serve para distinguir os judeus por meio do local de onde são originários (Espanha, Península Ibérica). A aliança do espaço Sefarad, da religião judaica e do sangue, ou etnia, dos judeus constituem os três pilares onde se assenta o conceito de sefardita. (FRADE, 2008, p. 04). Segundo Díaz-Mas (1993) o topônimo hebreu Sefarad é mencionado pela primeira vez na profecia de Obadias (versículo 20) como um dos lugares onde habitavam os deportados de Jerusalém. Este local que a Bíblia se refere parece ser a antiga Sardis, cidade da Ásia Menor, mas, a tradição judaica – principalmente a partir do século VIII tendia a identificar Sefarad como no extremo Ocidente, ou seja, a península Ibérica. Foi durante a Idade Média, especialmente na época de ouro da cultura hispano hebraica e na diáspora que esse termo se consolidou e os judeus espanhóis se autodenominaram Sefaradi (sefarditas). Desde os tempos remotos da destruição do Primeiro Templo Sagrado até o século XV a comunidade hebraica habitou a península Ibérica. Quando veio o domínio islâmico a região tornou-se um dos mais importantes e prósperos centros culturais do Ocidente. Isso só foi possível graças ao intercâmbio multiétnico ali estabelecido entre os cristãos, judeus e muçulmanos. Uma convivência que oscilava entre integração e conflitos. Nas palavras de Anita Novinsky:

Em nenhum país da Europa, desde sua dispersão, puderam os judeus desenvolver tão amplamente sua criatividade, como na Península Ibérica, durante e após o período de ocupação Moura. Viveram em Portugal em ampla liberdade, e podemos dizer que, apesar de terem aumentado as medidas restritivas depois da ascensão da dinastia de Avis, desfrutaram ainda condições extremamente favoráveis até o reinado de Afonso V, quando ainda os encontramos ocupando cargos públicos e convivendo largamente com os cristãos. (NOVINSKY, 1990/91, p. 69).

Inclusive trocas culturais ocorriam comumente na Espanha das três religiões, chamada de Al-Andaluz. Esse período ficou sendo conhecido como “La Convivência”. Segundo Poliakov (1996), os judeus espanhóis se destacaram na transmissão dos conhecimentos do mundo antigo e oriental. Também se notabilizaram nas atividades científicas e nas traduções de textos por serem grandes conhecedores de línguas, sobretudo o árabe. No dizer de Faingold (1993) foram os judeus aqueles que conquistaram os maiores progressos científicos da época. Produzindo astrolábios, bússolas, tábuas para calcular a força das marés e calendários náuticos. Instrumentos de valor inestimável na expansão ultramarina de Cristóvão Colombo, Sebastião Elcano, Caboto ou Fernando de Magalhães.
Contudo, tal conjuntura começou a ruir em meados do século XIII com a Reconquista Cristã e o fracionamento de Al-andaluz em taifas (pequenos reinos muçulmanos). Mesmo assim, em alguns reinos cristãos, durante um bom tempo, os judeus puderam prosperar e viver em relativa tranquilidade. Inclusive, em Toledo a partir da sua reconquista os judeus alcançaram uma alta posição na sociedade junto ao rei, ocupando postos de suma importância, como o de médico da casa real, de almojarife ou emissário junto às cortes estrangeiras e de intérprete ou sábio. (TELLO, 1992). De tal forma que na história do judaísmo espanhol podemos identificar duas etapas: A primeira abrange a coexistência pacífica dos diferentes grupos religiosos, conforme apresentada sucintamente acima. E a segunda etapa compreende o auge da intolerância religiosa com os editos de expulsão e a instauração da inquisição moderna. Porém, apesar da alteração radical no cenário de convivência, Cecília Macedo, analisando a herança cultural desses povos, afirmou:

Mas a marca judaico-islâmica na Espanha permanece, e pode ser vista, por exemplo, pela escrita ajamiada, que aparece em obras posteriores escritas em espanhol utilizando-se de caracteres árabes ou hebraicos. Outro ponto que pode ser levantado é que, apesar da Inquisição e dos decretos de expulsão, as culturas árabe e hebraica continuaram a florescer em ambiente cristão mediante a expressão poética, a apropriação de elementos culturais e políticos, a participação social dos conversos que se recusaram a deixar a península, os esforços de tradução das obras de autores judeus e islâmicos, dentre outras manifestações. (MACEDO, 2003/2004, p.15).

Os expoentes da cultura mosaica que se sobressaíram até o contexto da expulsão (1492/1496-97), dentre outros, foram: Ibn Shaprut(910-970), Salomão Ibn Gabirol (1022-1053/1070), Abraham Bar Hiyya11 (1065-1136), Yehudá ha-Leví (1075-1141), Moisés Ibn Ezra (1060-1139), Abrahão Ibn Ezra (1089-1164), Yehudá al-Harizi (h.1170-1235), Bahya Ibn Paquda, Maimônides (1135-1204), Ben Sahl (1212-1251), Ibn Falaqera (1225-1295), Moisés de Leon (1240-1290), Hasdai e Yehudá Cresques, Abrahão Zacuto (1450-1522), Leão Hebreu ou Yehudá Leon Abravanel (1460-1521) e Iehuda Abravanel (1465-1534).

Características da Cultura Sefardita

A cultura da comunidade judaica de Portugal, no meio século que antecedeu à diáspora sefardita, apresenta algumas características específicas que devem ser consideradas para o correto entendimento do processo histórico-cultural vivenciado pelas comunidades da diáspora. Na explicação de Carsten L. Wilke, a “relativa fraqueza da infraestrutura cultural da comunidade judaica portuguesa se deve à proximidade dos centros espanhóis, para onde acorriam os jovens portugueses para estudarem nas importantes yeshivas de Castela. (WILKE, 2009, p. 49). Por outro lado, este quadro não pode ser estendido a todo o país, uma vez que a capital, Lisboa, que contava em meados do século XV com uma população de cerca de 40 mil habitantes, muito maior que a segunda cidade do reino, Porto, com no máximo 8 (oito) mil habitantes, era uma cidade dinâmica e que na época abrigava a única Universidade do Reino, fundada por D. Diniz em 1290. Nessa linha de raciocínio, o filósofo português João Vila-Chã afirmou que, nos finais do século XV, dentre as comunidades judaicas, a comunidade de Lisboa era considerada como um dos centros culturalmente mais proeminentes em toda a Península Ibérica. (HEBREU, 2001). Porém, não há porque negar a influência cultural decisiva da comunidade judaica da Espanha. Outra característica significativa da cultura da comunidade judaica portuguesa foi “o alto grau de interpenetração dos saberes religioso e profanos”, exemplificado, sobretudo na obra de Isaac Abravanel. (HEBREU, 2001, p. 50). Fernand Braudel acrescenta mais uma característica cultural peculiar da comunidade judaica de Portugal, qual seja, seu entusiasmo pela imprensa. Não foi a toa que a introdução da imprensa em Portugal foi uma realização do espírito empreendedor dos judeus, que a trouxeram da Itália e a instalaram entre 1485 e 1487, sendo o primeiro editor Samuel Gacon, que publicou obras em hebraico. Para eles, “fundar uma tipografia, é obra pia”. Na sua explicação: “A imprensa, para além de ter servido as suas querelas, serviu aos Judeus como elemento de união. Estes livros decisivos, facilmente multiplicados, quem poderia queimá-los ou sequestrá-los todos de uma só vez?”  (BRAUDEL, 1995, p. 167). O corolário desse estado de coisas foi o desenvolvimento de uma cultura literária entre os judeus portugueses. De modo geral, seguindo proposta de Marc D. Angel, o currículo nas escolas das comunidades judaicas sefarditas incluía, além do estudo da Torah e do Talmud, duas disciplinas principais, a Halakhah, a lei judaica, e a Kabalah, o misticismo judaico. (ANGEL, 1991). Essa tradição mística vinha de muito longe. Entre os séculos III e IV da era comum surgiu o Sefer Yetzirah (Livro da Criação), o qual já apresentava uma constituição dos “32 caminhos místicos” da Cabala (10 mandamentos somados às 22 letras do alfabeto hebreu). A partir daí se esboça o que será um dos princípios da Cabala: a busca da presença de Deus por meio dos números e das letras. No Medievo, esses ensinamentos místicos são cultivados por duas figuras principais: Abrahão B. David de Posquières e seu filho, Isaac O Cego (m.c. 1235), na Provença (sul da atual França). Mas, o marco definitivo se deu no século XIII, na Espanha. Nessa época surgiu o Sefer ha-Zohar , que estabeleceu as principais diretrizes da Cabala. Alguns aspectos presentes na obra são o panteísmo (influência neoplatônica), o teísmo, elementos de feitiçaria e demonologia medievais, unidos a um sentimento nacionalista judaico. A Cabala era uma mistura de tradição oral (a interpretação de textos sagrados), especulações e preceitos místico-esotéricos da filosofia religiosa judaica, influenciados por outras doutrinas. Com o Zohar (Livro do Esplendor), a Cabala deixa de ser um movimento organizado e transforma-se numa doutrina sistematizada. Porém, o Livro do Esplendor não foi sacramentado de imediato, antes, seria necessário metade de um século para que ele fosse aceito, e não sem hesitações. Talvez essa resistência por parte dos líderes judaicos tenha acontecido por conta do caráter contraditório da obra: ao mesmo tempo em que se apresenta como defensor da religião tradicional regulamentada pelo Talmud coloca -se acima dessa tradição na medida em que afirma a superioridade da doutrina esotérica sobre os estudos do Talmud. Apesar dessa controvérsia latente a lei judaica determinava a estrutura e a vida das comunidades e o misticismo guiava a busca individual por piedade. Os dois aspectos, o legalismo e o misticismo, atuando de forma inter-relacionada e interdependente, moldavam uma visão espiritual de mundo unificada. Na explicação de Gershom Scholem, as forças criativas oriundas de novos estímulos religiosos, que não tinham condições de se expressar por meio do judaísmo haláchico, se manifestaram no movimento cabalístico. A Cabala influenciou as comunidades judaicas da Península Ibérica ao longo de mais de dois séculos, desde quando se instalou no círculo rabínico de Gerona, na Catalunha, no início do século XIII e daí se espalhou entre os sefarditas. (SHOLEM, 1989, p. 5). Este movimento, importado do Sul da França, recebeu a dupla influência da antiga tradição gnóstica judaica e das tendências filosóficas da época, notadamente o neoplatonismo. Esse aspecto filosófico da Cabala talvez explique porque em Portugal a mesma se disseminou não apenas entre os pobres como Léon Poliakov defende para o caso da Espanha. Segundo ele, existia um conflito interno nas comunidades judaicas da Espanha, tanto social quanto religioso, pois a oposição entre o relaxamento e indiferença religiosa e a piedade tradicional correspondia à oposição entre ricos e pobres. Enquanto as classes abastadas estavam abertas à influência do racionalismo greco-árabe, as classes populares desenvolveram o misticismo da Cabala e o messianismo. (POLIAKOV, 1996). Em Portugal, ao contrário do quadro desenhado por Léon Poliakov para a Espanha, encontramos indivíduos da mais fina aristocracia judaica, como Dom Isaac Abravanel e seu filho Judá Abravanel, entre os estudiosos dos segredos da Cabala e adeptos do neoplatonismo. Além disso, no principal centro de cultura da época renascentista, a Itália, pensadores como Giovanni Pico della Mirandola e Egidio de Viterbo, se interessaram pela Cabala e seu método simbólico de interpretação da realidade. João Lucio D’Azevedo mostra que, efetivamente, a Cabala gozou de uma aceitação generalizada entre muitos intelectuais renascentistas. Em suas palavras:

Com a paixão da arte, o desejo de saber invadia os espiritos de escol, e os doutos da época, saturados já das linguas clássicas, voltavam também para o hebraico sua attenção. Isso lhes revelou um thesouro de poesia e de especulações philosophicas, accumulado por séculos, o qual, patente só aos iniciados, e occulto pelo obstáculo da lingua, a imprensa agora divulgava, e o trabalho diligente ia facultando aos estudiosos. A Cabala, principalmente, pseudo sciencia, que procurava interpretar os innumeros cryptogrammas, existentes, diziam os adeptos, na Biblia, e por tal meio descortinar os mysterios do porvir, a Cabala tinha particular seducção, nesta época de immoderado gosto pelas sciencias herméticas, e em Itália, Allemanha e França eram em quantidade os seus cultores. D’ahi resultou o maior apreço das classes illustradas pela raça perseguida, e para esta a consciência mais viva do seu valor, com o redobrar dos anhelos que lhes são caros, e que o ínfimo dos seus membros jamais de todo abandonou. (D’AZEVEDO, 1922, pp. 67-68).

Grosso modo, este era o cenário cultural das comunidades sefarditas de Portugal na época da expulsão. Os aspectos políticos, econômicos e sociais dessa catástrofe para os judeus da Península Ibérica já foram bastante analisados. Para esse estudo, interessa perceber os aspectos culturais do acontecimento. A esse respeito, é interessante a opinião de Marc D. Angel, que analisou o significado cultural da expulsão dos judeus da Península Ibérica. Segundo ele, a expulsão foi um ponto crítico de viragem na história dos judeus sefarditas. Após séculos de tradição espiritual e intelectual na Península Ibérica, as gerações que se seguiram à expulsão tiveram de integrar suas tradições culturais em novas circunstâncias, influenciadas pelos novos ambientes para onde emigraram, produzindo novos insights sobre o significado da vida judaica. (ANGEL, 1991, p. 9) 

A Cultura Sefardita na Diáspora

A promulgação do Decreto de Alhambra que ordenava a expulsão ou conversão forçada da população judaica da Espanha em 1492 marca o fim de um período e início de outro na história dos sefarditas. Os agora chamados de “cristãos-novos”, membros da nação judeu-espanhola-portuguesa, que trilharam os caminhos do desterro, sobretudo nos séculos XVI e XVII constituíram comunidades compostas por judeus e conversos rejudaizados na Europa Ocidental e mais tarde no Novo Mundo. Sobre isso, Kaplan (1992, p. 77) pontua que “O ‘cristão novo’ que ocultamente judaizava na Espanha e Portugal, tratando de fugir do olho vigilante dos tribunais inquisitoriais se converte, em seu novo refugio, em ‘judeu novo’” retornando às suas tradições, costumes e práticas religiosas ancestrais. O interessante é perceber que mesmo com os reveses do desterro e as subsequentes tribulações os sefarditas continuaram se mantendo fiéis ao núcleo da sua identidade ancestral e utilizando como suporte identitário a memória judaica nos novos centros da diáspora. Sendo assim, Jacques Le Goff está certo em dizer que “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos (...)” (LE GOFF, 1990, p. 477).
Já Wasserman complementa dizendo que “a identidade conforma-se a partir de experiências reais e significativas. A identidade, enquanto sentimento de pertencimento é simbólica e abstrata, mas é originária de vivências, experiências e afetos concretos.” (2002, p. 94). Mesmo “à beira de um naufrágio cultural”, segundo expressão de Fernand Braudel, como o que aconteceu no final do século XV com os sefarditas, os judeus salvaguardaram “a sua personalidade de base”. Permaneceram no coração das suas crenças, no centro de um universo do qual nada os desalojava. Especialmente na prática de sua religião. Este seria o garante de uma civilização judaica, autêntica, que se irradia, resiste, aceita e recusa, apesar de relativamente enraizada nas outras e movimentando-se seguindo o curso das mesmas, formando uma verdadeira civilização de diáspora. (BRAUDEL, 1995, p.166).
A diáspora do povo de Israel da península Ibérica foi um processo lento e contínuo de emigração dos sefarditas para territórios que garantissem condições mais favoráveis para a conservação de suas tradições. Assim, o êxodo dos judeus da Espanha e de Portugal constituiu uma etapa penosa do Judaísmo Ibérico. Porém, o fluxo migratório dos criptojudeus ibéricos em sua grande maioria era de conversos portugueses. (KAPLAN, 1992) Expatriados, tendo que fugir e refugiar-se em terras “estranhas” para escapar da malha inquisitorial, o exílio-expulsão reforçou os laços de solidariedade entre os membros dessa comunidade perseguida e manteve vivo o pertencimento à sua terra natal. Em resumo, a diáspora trouxe consigo a ideia de um pluri-pertencimento a um modo de viver e pensar particular ao povo judeu dos reinos hispânicos. Conservando estreitos laços sociais e familiares os de origem mosaica criaram centros diaspóricos da “gente da nação” nos países que os acolhiam, nos quais, prevalecia o culto e práticas religiosas e culturais do judaísmo ibérico. Contudo, a fuga em massa dos filhos de Israel impulsionou as redes de comércio abrindo novos caminhos ao redor da bacia do Mediterrâneo e do Atlântico e mais tarde no Índico e no Pacífico. Os destinos preferidos dos sefarditas para as migrações a partir do final do século XV foram os grandes centros econômicos da época. Léon Poliakov sintetiza esse processo: (...) seguindo a conjuntura do momento, os marranos foram instalar-se, no século XVI, em Antuérpia, Veneza, Ancona, Salonica, Bórdeus, e, no século XVII, em Amsterdã, Hamburgo e Londres, ao mesmo tempo que se dispersavam continuamente pelo Novo Mundo. (POLIAKOV, 1996, p. 210). As rotas de fugas escolhidas pelos “senhores do desterro”18 seguiam uma constante e mudavam a partir do clima de perseguições e das concessões de privilégios e garantias. Deste modo, Kaplan (1992) observa que os sistemas econômicos criados pelas comunidades de judeus novos vão facilitar a sua aceitação nos países mercantilistas. A expulsão da comunidade judaica dos reinos hispânicos e a sua dispersão pelo mundo vão determinar aspectos fundamentais da identidade dessa minoria perseguida durante os tempos modernos, consolidando, assim, aspectos essenciais da identidade e da cultura deste povo. É nesse contexto de perseguições e constantes emigrações que a identidade dos sefarditas conversos é sedimentada, no qual, são formadas comunidades judaicas altamente desenvolvidas. Essa realidade foi assim explicada por Yosef Kaplan: O judaísmo sefardita ocidental, no entanto, foi criado por aqueles que durante gerações haviam sido afastados da fé judaica oficial, e viveram desconectados de suas fontes e valores. Seus fundadores retornaram ao judaísmo após uma longa ruptura e de um prolongado distanciamento de suas raízes e formas de expressão. A repressão inquisitorial negou-lhes o acesso aos textos básicos da herança judaica clássica e rabínica e impediu-os do conhecimento direto da tradição histórica hebreia. Os processos inquisitoriais desde a metade do século XVI em diante, tanto na Espanha como em Portugal, revelam a existência de um cripto-judaísmo desnutrido, carente de conhecimentos fidedignos da religião israelita, também coberto com uma camada de sincretismo teológico, com forte influência do cristianismo católico. Como era de se esperar, este passado converso e os valores internalizados no mundo ibérico marcaram profundamente a mentalidade e as orientações ideológicas dos “novos judeus”, mesmo depois de retornar publicamente ao judaísmo (KAPLAN, 1992, p. 03, tradução nossa). Em que pese essas palavras, os sefarditas que optaram pela diáspora não esqueceram os laços que os mantinham conectados ao judaísmo Ibérico. Mesmo longe muitos se recusavam a abandonar a sua identidade judaico-portuguesa. Como exemplo disso temos a obra “Consolação às Tribulações de Israel” de Samuel Usque que, mesmo escrita e impressa em Ferrara, o seu autor optou por redigi-la na “língua que mamou”. 

Nas palavras do próprio autor:
Alguns leitores quiseram dizer antes que soubessem minha razão,que fora melhor haver composto em língua castelhana, mas eu creio que nisso não errei, por que sendo o meu principal intento falar com Portugueses e representando a memoria deste nosso desterro buscar-lhe por muitos meios e longo rodeo, algum alívio aos trabalhos que nele passamos, desconviniente era fugir da língua que mamei e buscar outra prestada para falar aos meus naturais [...] (USQUE, 1989, p. 65)

Samuel Usque mostrava assim, como ainda eram fortes os laços que o uniam a Portugal e ao mesmo tempo imprimindo na sua obra a sua experiência diaspórica. Além disso, era comum entre os judeus portugueses na diáspora, ao publicarem suas obras, deixar explícito a indicação de sua nacionalidade. Mesmo em face da constante mobilidade geográfica e da flexibilidade religiosa os judeus da Península Ibérica mantiveram entre si as redes de solidariedade que já mencionamos acima. Criou-se uma identidade distinta, uma casta dentro do sistema e ao invés de perderem a identidade o que houve foi um sentimento de compromisso duplo. (BIRNBAUM, 2005).

Segundo Kaplan:
Os diferentes ramos desta diáspora mantinham entre si dinâmicas relações econômicas, sociais e culturais, e estavam marcadas por uma constante mobilidade, tanto geográfica como social e religiosa. Junto aos criptojudeus que vinham dos horrores da inquisição e retornavam a sua identidade judaica ancestral nos ‘países livres’ [...]. (1996, p. 29).


Além do destaque na área econômica, os sefarditas também estiveram em evidência na produção de conhecimento científico. Podemos destacar a importância da tradução e impressão, em fins do século XV, das obras de vários autores judeus, inclusive, as primeiras obras impressas em Portugal, como já mencionado, foram produzidas por tipógrafos de origem mosaica vindos de diversas partes da Itália.
No dizer de Peter Burke: “A prática da impressão gráfica se espalhou pela Europa com a diáspora dos impressores germânicos. Por volta de 1500, haviam sido instaladas máquinas de impressão em mais de 250 lugares na Europa — 80 na Itália, 52 na Alemanha e 43 na França”. (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 24).
A comunidade judaica sefardita legou uma rica e vasta produção intelectual onde se destacam obras de teor teológico, literário, na área da jurisprudência e nas ciências naturais. Sendo assim, os judeus foram responsáveis pela transmissão de um corpus científico e filosófico de forte influência na Ibéria medieval e moderna e que foram determinantes na construção de novas visões do mundo. Dentre os intelectuais de origem sefardita que se destacaram em plena diáspora podemos destacar: Pedro Nunes19 (1502-1578), Samuel Usque (que escreveu a famosa Consolação às Tribulações de Israel, Ferrara, 1553), Baruch Spinoza (1632-1637), Menasseh ben Israel (1604-1657), Isaac Oróbio de Castro (1617-1687), Amato Lusitano20 (1511-1568), Rodrigo de Castro21 (1546-1627), Francisco Sanches (1551-1623), Estêvão Rodrigues de Castro (1559-1638) e Manuel
Bocarro (1588-1662). A herança de teor científico-cultural legada por estes ilustres pensadores de origem judaica apresenta-nos como foi importante o substrato cultural produzido pelos sefarditas no avanço do conhecimento científico, literário e artístico-cultural. De modo geral, foi este o cenário histórico-cultural das comunidades sefarditas nos séculos XV e XVI. Assim, neste estudo destacamos os aspectos culturais produzidos por esse ambiente de perseguições e ressaltamos o papel da diáspora ao redor da bacia do Mediterrâneo e do Atlântico na construção da cosmovisão Sefardita. Inclusive, Ray (2008) publicou um texto dedicado ao tema, com o título “New Approaches to the Jewish Diaspora: The Sephardim as a Sub-Ethnic Group”. Nele alude, sobretudo, que essa identidade sefardita baseada em uma cultura comum só foi forjada lentamente, sendo produto do processo de longa migração e reinstalação. Grosso modo, mostra que a cultura sefardita formou-se a partir do contexto de exílio-expulsão. Além disso, destacamos que os laços genealógicos, culturais, religiosos e a origem comum geográfica, agregam em si, nesse contexto, elementos primordiais que vão caracterizar uma identidade diaspórica. Os sefarditas procuravam preservar sua experiência por meio da produção literária. Onde obras como “Menina e Moça” e “Consolação as Tribulações de Israel” teriam o propósito de “despertar os conversos portugueses para as consequências metafísicas de terem abjurado a sua fé e indicar-lhes o caminho da salvação espiritual assim perdido.” (MACEDO, 1977, p. 88).
Os termos “exílio” e “saudade” são temas recorrentes nas produções sefarditas depois da expulsão dos judeus da Espanha (1492) e de Portugal (1496). Essas obras refletem o desterro político vivenciado pelos de origem mosaica na península Ibérica. Assim, os judeus da diáspora encontraram uma forma de conservar viva a sua identidade ancestral, utilizando para isso signos e mecanismos de dissimulação do seu verdadeiro significado para a preservação identitária, definindo assim, temas e modelos de conduta literária. O desterro histórico vai ser mascarado nos romances pastoris, nos quais o exílio pela desilusão amorosa vai corresponder à peregrinação judaica. Com ênfase no Quinhentismo português, podemos perceber o florescimento de um tipo específico de literatura pastoril, em que o tema em voga é o pastor exilado. (NEPOMUCENO, 2000). Portanto, a produção literária dos sefarditas conversos judaizantes traz a marca residual do sofrimento e do exílio, temas pertinentes para a situação de perseguição em que viviam. Contudo, os sefarditas que se aventuraram rumo ao desconhecido mantinham viva a recordação da sua terra. Não abandonando sua cultura e língua, mantendo, assim, a sua origem luso-espanhola e sua identidade judaica ancestral preservada. Expatriados, tendo que fugir e refugiar-se no estrangeiro para escapar da malha inquisitorial o exílio-expulsão reforçou os laços de solidariedade entre os membros desta comunidade perseguida. Em síntese, a diáspora trouxe consigo os conceitos de memória, exílio e identidade, por meio dos quais os sefarditas em vez de se dispersarem se mantiveram unidos, forjando uma nova cosmovisão,com base em seus ancestrais culturais.


Capítulo 2
Safede e Ferrara, bastiões da resistência cultural sefardita

Como foi ressaltado anteriormente, a diáspora sefardita ao redor da bacia do Mediterrâneo e do Atlântico formou uma complexa rede de comunidades, unidas por interesses comerciais e culturais. Os destinos das migrações, a partir do final do século XV, foram múltiplos: o norte da África (Fez, Arzila e Tânger), o Império Turco, destacando-se Constantinopla e Salônica, o Oriente e, a partir de uma primeira parada em Antuérpia ou Amsterdam as rotas de fuga se dirigiam para a França, Inglaterra, Itália, Hamburgo e o norte da Europa. A consequência foi não apenas o desenvolvimento econômico. No século XVI, além do comércio, os sefarditas passaram a se destacar internacionalmente em ramos como o da medicina, da literatura, das finanças, da ciência, da filosofia, nas Universidades e na imprensa. Em realidade, a primeira tarefa intelectual que se colocou para os líderes das comunidades na diáspora após a expulsão foi interpretar as circunstâncias desnorteadoras em que eles próprios se encontravam. (ANGEL, 1991, p. 9). Comentando também as reações dos sefarditas à catástrofe de 1492, Rachel Elior afirmou que a expulsão foi percebida como parte de um processo mais amplo, interpretada pela maioria de seus líderes em termos religiosos, despertando tendências messiânicas nas gerações pós-expulsão. A reação espiritual dos exilados se deveu à propagação do Zohar, revelando os segredos cabalísticos e gerando esforços para apressar a vinda do messias. (ELIOR, 1986, p. 35). Com a posterior migração dos judeo-espanhóis para a Palestina, formou-se um núcleo de influentes cabalistas em Safed. Foi nessa cidade que ocorreu a transformação da Cabala, a partir de uma tendência caracterizada pela busca do êxtase e da liberdade. Nesse contexto dois cabalistas se destacaram: Moisés Cordovero e Isaac Luria. Esse último viria a ser o grande formador de opiniões durante a diáspora sefardita. Comentando também esta “convulsão na consciência judaica” sefardita Gershom Scholem explicou que, como consequência da combinação entre misticismo e apocalipse messiânico, a Cabala tornou-se uma “força histórica de grande dinamismo”, vindo a penetrar em muitas áreas da fé e dos hábitos populares. Uma corrente de interesse pela Cabala desenvolveu-se na diáspora, destacando-se as cidades de Ferrara e Veneza, na Itália, Salônica, na Turquia e, sobretudo, Safed, em Eretz Israel, que se tornou, a partir de 1530, o centro espiritual dos sefarditas por duas gerações. (SCHOLEM, 1989, pp. 61-63).

A Influência de Safed sobre a Diáspora Sefardita

O que ocorreu foi uma transformação radical no pensamento místico judaico em decorrência da experiência do exílio. Os fatos que deram origem a esse fenômeno, com ampla repercussão entre as comunidades judaicas e criptojudaicas espalhadas pelo mundo, aconteceram em terras do Império Turco Otomano (1299 a 1922). Devido à relativa liberdade que gozavam os judeus nesse amplo império, ele se tornou um polo de atração para esse povo em sua dispersão. Importantes cidades atraíram milhares de sefarditas, destacando-se Salônica, Esmirna, Edirne e Istambul. Porém, um significativo grupo de sefarditas, durante o governo de Solimão, o Magnífico (1520-1566), se refugiou na distante região da Galileia, no Norte da Palestina, numa pequena cidade chamada de Safed. A escolha de Safed como destino de sua imigração não foi casual. Próximo à cidade está o Monte Meron (27,8 Km), onde se localiza o túmulo do Rabi Shimon Bar Yohai (Séc. II ec.), personagem central e inspirador do “Zohar, O Livro do Esplendor”. De tal forma que, a oportunidade de viver na área onde Shimom Bar Yohai e seus discípulos haviam supostamente vivido, estudado e morrido tornou-se um atrativo irresistível para os entusiastas da Cabala. (FINE, 2003). As peregrinações ao Monte Meron reportam pelo menos ao século XIV. A partir da chegada de judeus espanhóis e portugueses com espírito empreendedor, a cidade tornou-se um centro têxtil e comercial que abastecia toda a terra de Israel. Eles mantinham contato comercial com Beirute, Damasco, com a cosmopolita capital do Império Otomano, Istambul e, através do porto de Sidon, com outras regiões mais distantes. O artesanato florescia e além dos tecelões, encontravam-se ourives, curtidores, alfaiates e construtores. A comunidade judaica chegou a abrigar entre oito e dez mil pessoas na segunda década do séc. XVI. A cidade tornou-se tão importante que, em 1549, Solimão construiu uma muralha ao redor da mesma e lá estacionou uma guarnição de soldados turcos. Estas condições materiais deram suporte a uma grande comunidade espiritual. Nessa época, cerca de trezentos rabinos atuavam em Safed, haviam dezoito seminários rabínicos e em torno de uma centena de Sinagogas que representavam comunidades de judeus da maioria dos países do Mediterrâneo e da Europa.
No período entre 1530 e 1590 a criatividade religiosa dos que compunham essa comunidade deixou um impressionante legado para a posteridade da religião judaica, de tal modo que os historiadores denominaram essa fase como um “renascimento cultural”. Algumas importantes realizações atestam esse fato, quais sejam:
- Rabi Joseph Caro (1488-1575), codificou a lei religiosa judaica, a Halakhah, em uma obra chamada Shulkhan Arukh, que significa “mesa posta”.
- A mais famosa liturgia do serviço da Sexta-Feira à noite foi composta pelo Rabino Shlomo Halevi Alkabetz (1500-1580), o Leha Dodi, uma canção com a qual se inicia o Shabat. O mais amado poema de todo o Shabat foi rapidamente integrado e aceito no mundo judaico por suas boas vindas à Rainha do Shabat, a Shekinah, e seu relacionamento com o exílio e redenção do povo de Israel. (VITAL, 2005).
- O Rabino Moisés Cordovero (1522-1570) escreveu o Pardes Rimonim, a mais organizada apresentação da Cabala espanhola, uma verdadeira enciclopédia temática da tradição do Zohar. Outra importante contribuição de Moisés Cordovero foi popularizar a Cabala entre os estudantes para o rabinato em Safed. Um de seus discípulos, o Rabino Menahem Azariah de Fano (1548-1620) disseminou as ideias de Cordovero na Itália. Porém, a contribuição mais significativa oriunda da comunidade judaica de Safed veio do trabalho do Rabino Isaac Luria (1534-1572). Ele mudou inteiramente o entendimento e prática judaica da Cabala pelos próximos quatro séculos. (VITAL, 2005).
Até então, sob a influência do Zohar, os cabalistas haviam concentrado sua reflexão em questões cosmológicas, a Cabala luriânica vai tomar o conceito de exílio como fundamento e concentrar sua reflexão na redenção. Na concepção luriânica, o exílio é o pré-requisito para a criação e a causa do mal. O exílio resultou de uma contração de Deus em si mesmo, uma retirada divina de si mesmo. O exílio é o exílio da parte feminina de D’us, a Shekinah. (VITAL, 2005). Essa “teologia do exílio” ficou conhecida como a doutrina do Tsimtsüm.
O ensinamento cabalístico de Isaac Luria coloca o ser humano no centro do cosmos e reveste suas ações, especialmente o cumprimento das mitzvot, com um significado cósmico. Se um indivíduo cumpre os mandamentos com a intenção apropriada, a Shekinah pode ser restaurada a partir de seu exílio e reunificada com D’us. (DWECK, 2011).

A Propagação da Cabala Luriânica pelo Mundo Judaico

Na ocasião em que esse renascimento cultural judaico acontecia, ainda sob o influxo generalizado da revolução da prensa gráfica, o norte da Itália era uma das poucas regiões da Europa Ocidental com uma contínua, apesar de precária, comunidade judaica. Cidades como Mântua, Ferrara e Ancona atraíam conversos sefarditas, fugitivos da Península Ibérica. A prensa que foi instalada em Ferrara, em meados do século XVI, revela a resistência cultural desse povo. Porém, a cidade italiana que desempenhou a principal função nesse processo cultural dos sefarditas foi Veneza. Situada na encruzilhada entre a Europa Ocidental e o Império Otomano, constituindo um poder marítimo com relações comerciais com esses dois universos, Veneza abrigava uma comunidade judaica pujante que se tornou a responsável pela disseminação das novidades religiosas oriundas de Safed. (DWECK, 2011). A difusão da Cabala luriânica pelo mundo judaico foi favorecida não somente pelo papel desempenhado por Veneza, mas, outro fator, que já vinha concorrendo para tanto desde o século XV, era a apreciação que a Cabala desfrutava entre alguns pensadores renascentistas e de alguns segmentos cristãos, muito bem representados na pessoa do filósofo Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494). Além disso, na segunda metade do século XVI a imprensa judaica no Norte da Itália publicou as principais obras da Cabala medieval, tais como o Zohar e o Sefer Yetzirah. Na última década do século XVI, Safed entrou em declínio econômico e a criatividade religiosa cessou. Porém, em torno de Isaac Luria construiu-se um amplo repertório de histórias lendárias enfatizando seu poder como verdadeiro feiticeiro, capaz de feitos maravilhosos.
A partir dessa época, viajantes vindos de Safed espalharam em Veneza essas histórias espetaculares sobre Isaac Luria. Dentre esses propagadores da Cabala luriânica destacou-se a figura do Rabi Israel Sarug, que, provavelmente, havia sido discípulo de Isaac Luria. Entre 1592 e 1598, Israel Sarug criou um grupo de mística judaica em Veneza e desenvolveu um pensamento cabalístico original. Dentre seus alunos destacaram-se importantes cabalistas, tais como: Menachen Azarya de Fano (1548 - 1620), propagador da Cabala já mencionado, e o judeu descendente de espanhóis, Abraham Cohen de Herrera (c. 1570 - c. 1635). (SABAN, 2012). Ele também disseminou a Cabala em suas viagens pela Grécia e Europa Central. Israel Sarug, utilizando técnicas cabalísticas, atraiu um significativo número de membros da comunidade judaica de Veneza e causou um impacto tão grande entre esses que Leon de Modena (1571 - 1648), um rabino e intelectual que vivia na cidade nessa ocasião, representando um judaísmo mais conservador, reagiu e notabilizou-se pelas críticas que dirigiu à mística judaica. Ele escreveu um livro intitulado Ari Nohem, onde demonstra que o Zohar, ao contrário do que defendiam os cabalistas, não foi escrito pelo Rabi Shimon Bar Yohai, mas foi uma “criação pseudoepigráfica” de Moisés de Leon, sendo, portanto, de origem recente, quer dizer, do final do século XIII. De modo geral, Leon de Modena, considerava a Cabala um “politeísmo judaico”. Mas, em que pese a oposição da corrente conservadora judaica, a propagação da Cabala luriânica cobriu o vasto território da diáspora sefardita. Através de Abraham Cohen Herrera, que se estabeleceu em Amsterdã no início do século XVII, a Cabala luriânica chegou à mais importante comunidade de judeus retornados da Europa Ocidental. Yosef Kaplan que escreveu um livro intitulado “Judíos nuevos em Amsterdam”, sobre a história social e intelectual do judaísmo sefardita no século XVII, apresenta como essa comunidade, formada, em sua grande maioria, por ex-criptojudeus e descendentes de conversos que haviam fugido da Península Ibérica para retornar ao judaísmo, possuía o ideal de formar uma “sociedade tradicional”, isto é, seguidora da halakhah judaica, mantendo acesa a chama do judaísmo rabínico. (KAPLAN, 1996).
Ele explica como esse importante centro para cultura sefardita converteu-se, também, no cenário da confrontação entre os conservadores do judaísmo normativo e os críticos da tradição rabínica que acabaram sendo excomungados por suas ideias heterodoxas, tais como Uriel da Costa e Baruch Espinosa. Outros importantes embates intelectuais que essa comunidade enfrentou foram contra o movimento messiânico de Sabatai Tsve (o que nos interessa de perto por sua origem influenciada pela Cabala) e as ideias caraítas, criticando o judaísmo talmúdico e rejeitando a Lei Oral. Esse último embate ocorreu no início do século XVIII. (KAPLAN, 1996). O pensamento cabalístico no seio da comunidade de judeus novos de Amsterdã não foi analisado por Yosef Kaplan nessa obra. Porém, Abraham Cohen Herrera escreveu dois tratados sobre Cabala em Amsterdã, destacando-se um intitulado Puerta del Cielo e fez dois importantes discípulos nessa comunidade, os rabinos Menasseh ben Israel (1604 – 1657) e Isaac Aboab da Fonseca (1605 – 1693).
Quando Abraham Cohen Herrera morreu, o manuscrito de Puerta del Cielo foi entregue ao rabino Isaac Aboab da Fonseca para ser publicado. Ele só o fez em 1655, depois de sua passagem pelo Brasil, e mesmo assim apenas um extrato em hebraico. A Puerta del Cielo ganhou ampla difusão quando o cabalista cristão Christian Knorr von Rosenroth (1631 – 1689) publicou seu texto integral em latim em 1677, chegando a ser lida e comentada por Leibniz, Newton, Locke e Schelling. (POPKIN, 1998). O livro de Abraham Cohen Herrera tem o crédito de haver transmitido a Cabala de Isaac Luria nos moldes do neoplatonismo e ser a única obra de um cabalista escrita em espanhol até aquele momento. 
Mas, nem só da Cabala teórica vivia a comunidade sefardita de Amsterdã. A maré messiânica, um grande movimento religioso de massa, que inundou toda a diáspora sefardita em meados do século XVII, o movimento shabetaiano, iniciado em 1665, e que derivava sua fundamentação religiosa de Safed, também atingiu a principal comunidade de judeus retornados. Segundo Scholem (1989, p. 236), “nas congregações constituídas em grande parte de antigos marranos – tais como as comunidades ‘portuguesas’ de Amsterdã, Hamburgo e Salônica – o fervor messiânico era particularmente forte.” Poliakov (1996, p. 221) reforça a informação ao afirmar que “através de toda a dispersão “dos sefarditas”, de Amsterdam a Livorno, e de Salônica a Fez, ricos e pobres, com a aproximação da data fatídica (o ano da redenção, 1666) começaram a liquidar seus bens e aprestavam-se a partir para a Terra Prometida”.
Para se aquilatar a influência do movimento de Shabatai Tsevi em Amsterdã, o membro mais rico da comunidade, um judeu chamado Abrahão Pereira, um homem profundamente devoto, reuniu um grande séquito e partiu em direção ao Levante para encontrar o messias cabalístico. (SCHOLEM, 1989). Mais significativo ainda, Arnold Wiznitzer, em seu livro “Os Judeus no Brasil Colonial”, informa que Isaac Aboab da Fonseca, o primeiro rabino das Américas que, após a expulsão dos holandeses do Recife em 1654 voltou para a Europa e assumiu importante cargo de rabino na Congregação Unida Talmud Torah de Amsterdã, por seus “pendores para o misticismo” foi, em 1665, “um dos principais adeptos do falso messias Sabbatai Zevi”. (WIZNITZER, 1966, p.150).
Cecil Roth também identificou a ampla propagação do movimento de Sabatai Tsevi, “em todo o mundo marrano”. Segundo ele, foi em Amsterdã que a mania atingiu maiores proporções, chegando a despertar o interesse do próprio Benedito Espinosa. Na sua explicação, “gerou-se entre estes uma forte corrente de misticismo.” (ROTH, 2001, p. 166). O que não significa que o movimento de Shabatai Tsev tenha sido uma unanimidade entre os membros da comunidade de Amsterdã. Houve também uma resistência organizada e de parte até de reconhecidos cabalistas, como foi o caso do rabino Jacob ben Aaron Sasportas (1610-1698).
Na realidade, em se considerando um contexto mais amplo, a corrente de misticismo por ele identificada não deve ser vista, sobretudo, como consequência desse movimento messiânico. Porém, seguindo a explicação de Gershom Scholem, o movimento sabatianista, ocorrido entre 1665 e 1666, que atingiu um “grupo numerosíssimo de pessoas”, propagou-se tão rapidamente porque as condições já estavam preparadas pela influência do novo cabalismo, oriundo de Safed. (SCHOLEM, 2008, p. 322).
Na opinião de Maurice-Ruben Hayoun, “sem o pano de fundo da mística loutiânica, o pseudomessias jamais teria tido aquela armadura espiritual que canalizou o seu movimento e lhe permitiu introduzir-se insidiosamente no mais profundo das massas e das elites judias da época.” (HAYOUN, 2007, p. 106).
Quando ocorreu a conversão de Shabatai Tsev ao Islã, “os recursos dialéticos da Cabala permitiam, de fato, interpretar misticamente sua apostasia, apresentar essa traição suprema como sua suprema prova de Messias...” (POLIAKOV, 1996, p. 222).

A Importância de Ferrara para a Resistência Cultural dos Sefarditas

Paralelamente a tudo isso, ao longo do século XVI formaram-se também círculos literários, com atividade editorial própria, nas cidades italianas de Veneza e Ferrara. Em função da produção literária dos membros desses círculos, os estudiosos falam de um “movimento humanista judaico-português”.
Porém, muito mais do que a adesão ao humanismo renascentista do quinhentismo, os judeus sefarditas procuravam mesmo era preservar sua experiência por meio da produção literária. Legítima estratégia de resistência cultural em face da coerção, as obras produzidas em meados do século XVI podem revelar aspectos essenciais da cultura e identidade desse povo, conforme se consolidou na diáspora.
Segundo Carsten L. Wilke “as publicações de Ferrara ligavam assim a vida religiosa dos cristãos-novos, regressados ao judaísmo, às suas fontes medievais.” (WILKE, 2009, p. 110) Isso significa que elas refletiam o ambiente cultural em que estavam inseridos os sefarditas da diáspora.
Nessa época, a leitura era vista como uma atividade perigosa, demonizada pela Igreja Católica. Dois exemplos dessa situação são mencionados por Peter Burke: “Em Veneza, no fim do século XVI, por exemplo, um trabalhador do ramo da seda foi denunciado à Inquisição porque “lê o tempo todo”, e um ferreiro de espadas porque ‘fica acordado a noite inteira lendo.’”(BRIGS; BURKE, 2006, p. 70).
Em função dissso foi que Moshe Lazar, em seu texto sobre o judaísmo dos sefarditas forçados à conversão ao catolicismo, afirmou que os inquisidores e as instituições inquisitoriais iniciaram suas ações com a queima de manuscritos e livros para impedir à força a difusão de crenças contrárias aos seus próprios dogmas. Ao falharem em erradicar a fé e as práticas rituais dos hereges, então eles apelaram para a tortura mental e física, forçando a conversão. Porém, os acusados de “falsos conversos”, teimosos e adeptos em segredo de sua antiga fé eram destinados a serem queimados em uma estaca. A queima de livros, portanto, frequentemente é um prelúdio clássico para a queima de pessoas. (LAZAR, 1991)
Esse estado de coisas que já se manifestou em diversos momentos da história demonstra a importância da literatura para a conservação da cultura e identidade. Conforme Stuart B. Schwartz enfatizou, entre os séculos XVI e XVII “os livros e a capacidade de lê-los,usá-los e pensar sobre eles estavam intimamente associados à ideia de liberdade de consciência.” (SCHWARTZ, 2009, p. 225). O contexto histórico em que esses sefarditas produziram suas obras obriga à consideração da existência de uma censura autoimposta pelos autores. Também traz a necessidade de um trabalho exaustivo para perceber o significado e a mensagem nas entrelinhas ou na linguagem cifrada que foi utilizada para transmitir um recado que deveria ser compreendido apenas pelos iniciados no movimento judaizante.
Conforme Roth (2001), o primeiro lar da literatura dos sefarditas conversos judaizantes teria sido Ferrara, na qual foi instalada,no início da segunda metade do século XVI, a primeira prensa para a produção de obras espanholas e portuguesas lançadas por sefarditas vindos da Espanha e Portugal. Aproveitando então a “segunda onda” das revoluções nas comunicações, a comunidade instalada em Ferrara foi capaz de desempenhar um importante papel de resistência cultural na história desse povo por meio da atividade de impressão nela desenvolvida por Abraão Usque, cujo nome português era Duarte Pinel.
João Lúcio D’Azevedo reforça essa informação com as seguintes palavras:
A Itália foi o primeiro país onde os judeus se aplicaram a tipografia, e com ardor […] Em 1475 havia imprensa hebraica em várias cidades. Tão compenetrados se achavam eles da importância da nova arte, para o ensino e conservação dos seus dogmas, que ao exercício dela qualificavam de Trabalho Sagrado e os obreiros grande orgulho tinham da profissão. (D’AZEVEDO, 1922, p. 36). 
As obras produzidas nessas prensas possuíam um teor apologético ao judaísmo, utilizando os sofrimentos da diáspora para incitar e orientar os sefarditas forçados à conversão ao catolicismo no regresso à sua religião ancestral. Exemplo de uma produção apologética do judaísmo é “Consolação às Tribulações de Israel” (1553) de Samuel Usque. Uma obra escrita com a intenção de consolar os exilados, mantendo viva, em face às tribulações, a promessa messiânica de libertação do povo de Israel entre profecias e mistérios cabalísticos.
Essa literatura engajada estava intimamente ligada ao contexto sócio-político da época, podendo revelar estruturas de pensamento que formaram nos tempos modernos a cosmovisão dos sefarditas exilados.
Os membros dos círculos literários de Veneza e Ferrara mantinham entre si intensas relações. Como escreveu Cecil Roth:
A vida intelectual na Diáspora marrana estava até certo ponto centrada nas academias literárias, tão caraterísticas do período, que floresceram na Holanda e na Itália, tal como florescido na Espanha. Nestas juntavam-se homens e mulheres cultos para lerem e discutirem as suas efusões poéticas (...) (ROTH, 2001, p. 222).
Dentro desse contexto, Abraão e Samuel Usque instalaram a sua tipografia na cidade de Ferrara, atraídos pela relativa tolerância em relação aos judeus. Sobre a utilização do pseudônimo Usque por três personagens ligados às edições de Ferrara; Abraão, Samuel e Salomão, muito mais do que indicativo de relação familiar entre os mesmos deve-se buscar explicação em uma prática comum entre os humanistas, lúdica, de somente os indivíduos pertencentes a determinado círculo literário conhecer a verdadeira identidade da pessoa escondida atrás do pseudônimo. (LOPES ANDRADE, 2006).
A Itália constituiu-se como um dos mais importantes centros dos refugiados de origem mosaica, vindos da Península Ibérica no século XVI, fugindo das perseguições e servindo muitas das vezes de passagem para outras localidades. Segundo Guinsburg (1996), nessa atmosfera os sefarditas conversos encontraram espaço para respirar com certa liberdade e florescer nos estudos religiosos, nas ciências profanas, na poesia e na arte.
Ferrara, Veneza e Ancona foram os três destinos preferidos pelos judeus sefarditas, vindos de Antuérpia e Portugal, atraídos pelos privilégios, por uma legislação mais flexível e a aparente aceitabilidade para com eles. Sendo que, durante o século XVI a Itália era um dos poucos lugares na Europa Ocidental onde foi permitida a prática aberta da religião judaica. (BONFIL, 1996) Durante o Renascimento Ferrara foi governada pelos duques de Este, família que desenvolveu a cidade e fomentou as artes, especialmente a música e a pintura. Em 1492, o duque Hércules I, percebendo as vantagens econômico-culturais que poderiam advir da presença judaica em seu território, convidou vinte e uma famílias de judeus que haviam desembarcado em Gênova para se instalarem em seus domínios. (COMPAGNANO, 2007, p. 39) No período entre 1534 e 1559, Hércules II d’Este (Ercole II) foi o duque de Ferrara. Esse duque, que recebera uma educação humanista, tratou com relativa tolerância os sefarditas, a ponto da comunidade judaica de Ferrara abrigar cerca de duas mil pessoas, o que gerou condições para Abraão Usque instalar sua tipografia na cidade. No seu reinado, não poupou esforços no sentido de apoiar a emigração dos membros mais importantes da comunidade judaico -portuguesa o que gerou condições para o florescimento econômico e cultural de Ferrara.
A tolerância dos governantes de Ferrara, obviamente, não se fundamentava apenas em interesses humanitários, mas, os sefarditas foram acolhidos na cidade também em função de suas atividades mercantis e do papel que desempenhavam no comércio da região do Levante. António Manuel Lopes Andrade, que estudou sobre a prensa judaica de Ferrara, explicitou em detalhes a obra de governo do duque de Ferrara e o papel reservado aos sefarditas:
Na verdade, Hercoles II idealizou um plano estratégico de desenvolvimento econômico para a cidade de Ferrara, desejando fazer dela uma praça comercial de primeira grandeza. Tinha, porém, a perfeita noção de que esse plano só podia ser levado à prática com a ajuda dos capitais, da iniciativa, das relações privilegiadas e da comprovada experiência no comércio internacional dos mercadores cristãos-novos estabelecidos nas praças do Norte da Europa, sobretudo em Antuérpia (ANDRADE, 2011, p. 06).
Em 1550 Hércules II anunciou um salvo-conduto para todos os judeus que residiam em Ferrara concedendo amplas garantias e privilégios. De acordo com esse salvo-conduto ducal, as mulheres e as suas famílias tinham autorização para praticar livremente o judaísmo e para manter escravos. No caso de os privilégios serem retirados, teriam dezoito meses para partir e levar os seus bens, com a isençãode direitos. (BIRNBAUM, 2005, p. 79). Desse modo, a comunidade judaica sob a proteção dos duques floresceu. Os planos do duque de Ferrara correspondiam à realidade, pois quando os sefarditas começaram a chegar trouxeram consigo a sua experiência com a atividade mercantil, comercial e bancária. Como declara Campagnano (2010), “a origem dos estabelecimentos judaicos nos Estados Estenses26 está estreitamente ligada aos bancos de empréstimos sob penhor com juros baixos, ou, como se dizia naquele tempo, com ‘módica usura’”. Influenciado por essa liberdade é que em meados do século XVI vai ser formado o círculo literário de Ferrara, com atividade editorial própria e com uma intensa produção. Portanto, em meio à diáspora vai florescer uma riquíssima cultura de origem sefardita. Sendo assim, Apesar da profissão dos chefes da nação portuguesa ser declaradamente mercantil, muitos dos mercadores eram eruditos. Tratava-se de intelectuais, médicos, juízes e escritores que, além das relações de negócios e dos capitais de suas empresas, levaram consigo a Ferrara um vasto e diferenciado patrimônio de conhecimentos. (CAMPAGNANO, 2007).
Como foi dito por Campagnano (2010) os judeus não limitavam sua atuação só ao meio financeiro. Eles destacavam-se nas múltiplas áreas do saber, sendo que a diáspora sefardita vai criar as condições favoráveis para o florescimento, de caráter nacional e internacional, nos séculos XVI e XVII de uma intelectualidade de origem judaica.
Buscaram refúgio em Ferrara alguns entre os “senhores do desterro” mais conhecidos da diáspora judaica sefardita. Entre eles podemos citar Dona Gracia Nasi, Don Isaac Abrabanel, o filósofo Leão
Hebreu, o cronista Samuel Usque, o estudioso e editor Abraham Usque, os poetas Jacob Fano e Abraham Dei Galicchi Jagel, os médicos Amatus Lusitanos, Moses e Azriel Alatino. Assim, ao analisarmos o legado intelectual dos descendentes da tradição hispano-lusitana da diáspora sefardita do século XVI, podemos identificar alguns elementos essenciais que vão caracterizar a sua cosmovisão nesse período.
Além disso, esse estado de coisas que se manifestou em meio ao desterro demonstra a importância das obras produzidas nesse período, podendo revelar as estruturas de pensamento que forjaram durante os tempos modernos a cosmovisão dos sefarditas.
O esforço de preservação dessa cosmovisão peculiar, engendrado pelos sefarditas em Ferrara, Itália, demonstra que o círculo literário que aí se formou em meados do século XVI foi um bastião da resistência cultural desse povo contra a guerra de extermínio, verdadeiro esforço consciente de perpetrar um etnocídio, que o Tribunal do Santo Ofício moveu contra essa identidade cultural.

Capítulo 3
Pioneiros da Resistência cultural

No período compreendido entre  1553 e 1557 Abraão Usque exerceu uma atividade editorial intensa em Ferrara. Em apenas quatro anos produziu e editou 30 (trinta) publicações: 23 (vinte e três) hebraicas, 5 (cinco) espanholas e 2 (duas) portuguesas. As duas portuguesas foram: Consolação às Tribulações de Israel, de Samuel Usque (1553), e o volume que inclui a novela inicialmente chamada de História de Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro (1554). O contexto amplo, no século XVI, à luz do qual a história da escola literária de Ferrara deve ser construída é o da Reforma Protestante e Contrarreforma católica, do humanismo e renascimento, da descoberta do novo mundo e, sobretudo, dos efeitos da revolução da prensa gráfica sobre o cotidiano das pessoas na Europa. Na metade do século XV, a invenção dos caracteres móveis por Gutemberg desempenhou um importante papel na difusão do humanismo, como também na disseminação do movimento da Reforma. Fernand Braudel estimou o número de livros que foram produzidos na Europa no período anterior a 1500. O quantitativo atingiu uma tiragem global de 20 milhões de exemplares. “E, para o século XVI, numa Europa cuja estimativa populacional ao final do século é de no máximo 100 milhões de habitantes, Braudel calcula uma tiragem de 140 a 200 milhões de livros”. (BRAUDEL, 1995, pp. 363-366). Assim, os dois volumes publicados em português nas oficinas de Abraão Usque serão analisados a fim de se levantar os elementos essenciais da cosmovisão sefardita na primeira metade do século XVI.
Em pleno quinhetismo renascentista uma cultura oprimida lutou para sobreviver recorrendo ao meio de comunicação mais avançado da época: o livro impresso. Mas, para além da influência renascentista, Yosef Hayim Yerushalmi notou, no período após o exílio da Península Ibérica, um ressurgimento da historiografia judaica através da identificação de pelo menos 10 (dez) trabalhos de natureza histórica produzidos por judeus, dentre eles Salomão Ibn Verga, Abraão Zacuto, Elijah Capsali, dentre outros. O estímulo desse florescimento historiográfico foi a catástrofe do final do século XV que acometeu os sefarditas. A consciência que ficou nas gerações seguintes foi a de que algo sem precedentes havia acontecido e por isso eles iniciaram um esforço por entender o significado desse evento. A obra Consolação às Tribulações de Israel de Samuel Usque segue essa linha. Destacando a sua capacidade de resistência em detrimento às perseguições sofridas, desenvolvendo assim, características específicas e um retrato da sua época.
Por conta da falta de dados biográficos quase nada se sabe da história de Samuel Usque. O investigador se depara com inúmeras interrogações sobre essa figura emblemática da literatura portuguesa. O que se pode deduzir com certa segurança é que viveu na primeira metade do século XVI, devido às perseguições dos judeus portugueses no período renascentista foi para a Itália, onde publicou, em 1553, a obra Consolação às Tribulações de Israel (Ferrara).
A obra relata a história dos sofrimentos do povo judaico, tendente a exaltar as crenças de origem mosaica. O livro é baseado na Bíblia e na literatura sagrada, além de ser diretamente influenciado pelos tormentos e perseguições que passou o autor. Soares e Campos dizem o seguinte sobre os motivos que levaram Samuel Usque a escrever Consolação às Tribulações de Israel: “Abalou-se descrever a tragédia viva dos seus, da sua ‘trabalhada e corrida nação’[...] por se mostrarem vacilantes na fé de seus antepassados. E assim se ‘propôs relatar as fadigas e tribulações que a seu povo sucederam [sic], com as causas por que cada mal se moveu’”. (SOARES; CAMPOS, 1950, pp. 35-36). Um fato que chama atenção logo na abertura da obra é a dedicatória feita “A ilustríssima Senhora Dona Gracia Nasi (1510-1569)”, grande protetora dos judeus desterrados e a pessoa que financiou a publicação. Gracia, também conhecida como Beatrix (Beatriz) de Luna Miques (nome cristão), nasceu em Lisboa, Portugal, em 1510. Fazia parte de uma das mais prósperas e importantes famílias de sefarditas portugueses.

Preservação dos laços familiares como estratégia de resistência

No contexto das comunidades judaicas da época a família ocupava um papel central. Essa compreensão originava-se da própria descrição bíblica. De tal forma que, para eles, ser judeu implicava estar no seio dessa unidade básica da sociedade. Ela era vista como garantidora da continuidade histórica do povo e um símbolo de relações espirituais. Dentro da tradição judaica a família é definida por um corpo muitíssimo pormenorizado de regras e de leis, uma parte das quais está desde logo contida no Pentateuco, isto é, os cinco livros de Moisés. Durante a longa história de Israel, ocorrida em locais diversos, as comunidades judaicas estiveram sujeitas a assimilações e influências provindas do mundo exterior. Assim, gerou-se uma relativa diversidade sociológica de práticas familiares. Porém, para além dessa relativa diversidade de práticas, os fundamentos ideológicos e jurídicos da sociedade asseguraram que o modelo hebraico de família tenha conseguido perdurar quarenta séculos. Ao longo desse tempo, ela constituiu o próprio cerne da sociedade judaica, uma das condições essenciais da sua perenidade. Uma prova dessa importância são as listas genealógicas, tão comuns entre os judeus ao longo dos séculos, reafirmando os vínculos entre netos e avós, filhos e pais, embasando o direito quanto a casamentos, divórcios, filiação, herança e perpetuando as memórias do grupo. Além disso, entre os sefarditas, a fim de reforçar os laços parentais, havia o costume de atribuir o nome das crianças igual ao dos avós vivos. O objetivo último das práticas adotadas era a continuidade do povo. (HISTÓRIA DA FAMÍLIA, 1999).
Ora, um grupo que almeja diferenciar-se étnico-culturalmente necessita de uma estratégia de casamentos específica. Assim, naquelas famílias decididamente criptojudaicas a endogamia foi uma prática revestida com um amplo significado cultural, religioso e até financeiro posto que garantiria a preservação das heranças dentro do grupo. Além disso, as questões de preservação da cultura sefardita exigiam a endogamia, sobretudo, pelas implicações sobre a vida cotidiana dos criptojudeus. Não se poderia admitir um estranho no convívio doméstico uma vez que um simples gesto diário poderia ser motivo para denunciar os membros às autoridades inquisitoriais. Em função disso, no mundo Atlântico, durante a época moderna, face ao perigo representado pelo Tribunal do Santo Ofício, os sefarditas na diáspora, com a intenção de protegerem-se, desenvolveram um modus vivendi peculiar caracterizado sobretudo pelo matrimônio exclusivamente dentro do grupo, a centralidade da atuação religiosa das mulheres, a formação de redes familiares de natureza cultural e comercial e a prática de determinados costumes em segredo. Com isso, a ênfase dos sefarditas conversos judaizantes na família foi outra estratégia consciente de preservação de sua etnia e cultura. Fora essas características intrínsecas dos sefarditas, nessa época, o fortalecimento das associações para as pessoas se entreajudarem, se apoiarem e trabalharem em conjunto, num verdadeiro “movimento de comunidades familiares” gerou um modelo principal de organização dos grupos domésticos disseminado na Europa e que também atingiu os sefarditas da diáspora, o modelo da casa. Eram associações sem escritura legal, tácitas, que agrupavam parentes e que predominou, sobretudo entre os grupos da elite dos sefarditas, como pode ser exemplificado pela “casa Mendes”, chefiada por Gracia Mendes, após a morte de seu esposo. (SEGALEN, 1999, p. 49). Assim, dona Gracia Nasi possuía e administrava um vasto império comercial e financeiro na Europa. Segundo uma biógrafa, ela:
assumiu um dos lugares mais poderosos do comércio europeu do século XVI, não obstante os violentos sentimentos antissemitas que haviam ajudado a ativar a Inquisição espanhola e que acabaram por obrigá-la a deslocar-se com grande parte da família de Portugal para a Turquia. (BIRNBAUM, 2005, p. 8). 
Com ajuda deste patrimônio não poupou esforços em socorrer os de origem mosaica na morte, nas perseguições e contra o antissemitismo. Além disso, não deixava de promover a cultura judaica e ajudar vários sefarditas conversos no processo de retorno ao judaísmo. Foi em Ferrara onde Gracia começou a usar seu nome judaico abertamente, Gracia Mendes Nasi, e a frequentar os círculos judaicos, recebendo em sua residência, estudiosos e talmudistas judeus. Nota-se que as interferências da perseguição inquisitorial sobre a vida dos sefarditas conversos começavam com o próprio nome das pessoas, forçando-os a adotarem dois nomes: um nome hebraico, para uso interno na comunidade sefardita diaspórica, e um nome para se relacionarem na sociedade mais ampla, na língua vernácula, português ou espanhol. Na realidade, a necessidade do uso de nomes cristãos indiciava a violência simbólica a que estavam submetidos os que viviam na diáspora Atlântica. Significava a imposição da ideologia cristã. Eles passavam por esse processo de forma muito consciente uma vez que no judaísmo os convertidos também precisam mudar de nome posto que um nome representa uma visão de mundo. Apesar das implicações religiosas da mudança de nome os sefarditas evitavam usar na sociedade portuguesa apelidos ou alcunhas que os distinguissem dos cristãos velhos. Uma de suas estratégias de sobrevivência foi exatamente a mudança de nome quando chegavam às terras do exílio. Literatura engajada na causa sefardita O livro Consolação às Tribulações de Israel, bastante difundido entre os exilados, logo foi condenado pela Igreja Católica dificultando a sua circulação em Portugal e Espanha. Porém, a obra se constituiu numa das principais fontes da história da época. O prólogo é constituído por três diálogos, entre três pastores; Ycabo (Jacob), Numeo (Nahum) e Zicareo (Zacarias), anagramas de nomes judaicos. Esses nomes dos pastores não foram escolhidos de maneira aleatória. Cada nome possuía uma representação simbólica. Ycabo representava o antigo patriarca e foi grafado na forma de um anagrama, Yahacob (hebraico Iacob) que na língua original quer dizer “passou-se a glória de Israel”. Já Numeo é derivado de Nahum, consolador; e Zicareo no hebraico Zechariahu (Zacharias), que lembra os bens que recebeu Israel em desconto de seus males, e as vinganças que por amor dele foram feitas. O próprio Samuel Usque, no prólogo, expressa a seguinte explicação:
A ordem que no mais desta composição tive, foi, que fingindo o grande patriarca Yahacob com o nome de Ycabo e em hábito de pastor como ele foi, chora o mal de seus filhos, filhos por sangue, filhos por lei, filhos em espírito e muitas vezes todo o corpo de Israel representa ele com muita razão pois ambos somos um só sujeito, ao qual consola Nahum e Zahariahu com nomes um pouco mudados a maneira que os dos antigos escritores fazem. (USQUE, 1553, p. III).
O primeiro diálogo intitula-se como “Diálogo Pastoril sobre Coisas da Sagrada Escritura” e trata sobre as origens de Israel até a destruição do primeiro templo, por Nabucodonosor; o segundo versa sobre a reestruturação do segundo templo até a sua destruição e o terceiro diálogo em especial trata sobre a presença judaica em Portugal, desde o edito de expulsão dos judeus da Espanha, em 1492, até o estabelecimento da inquisição em Portugal (1536). O autor se utiliza de paráfrases de textos bíblicos e históricos, além de memórias sobre as perseguições impostas aos hebreus, intertextualmente apoiadas nos profetas de Israel. A obra é caracterizada por uma ação pedagógica de teor memorialística, retratando a intolerância religiosa. Um relato sobre as perseguições que sofreram o povo de origem mosaica. Essa obra é um testemunho textual de uma época, um poema em prosa escrito em português e classificada como “prosa doutrinal religiosa”. Um verdadeiro manual apologético do judaísmo para os que haviam rompido com a sua fé ancestral e que viviam divididos entre uma fé interior e outra exterior, podados pelo medo. O esforço de Samuel Usque foi o de apresentar o significado transcendente do exílio, explicando o seu lugar no plano divino para o povo judeu. Isso demonstra a função central que a providência de Deus ocupava na cosmovisão sefardita. Na sua visão, diante do fato de que o curso da História estava demonstrando o cumprimento dos castigos previstos nas profecias bíblicas, da mesma forma podia-se ter convicção de que a redenção futura, também prevista profeticamente, estava assegurada por meio da chegada do Messias. Do ponto de vista político, o livro de Samuel Usque, fundamentado numa interpretação da História, representa um verdadeiro consolo para os sefarditas, na medida em que ressalta a esperança messiânica de restauração de Israel. Assim, a análise dos antecedentes históricos, especialmente culturais, da diáspora sefardita do século XVI e a evidenciação dos principais aspectos da literatura produzida por esse povo nos ajudam a identificar alguns elementos essenciais que caracterizarão a sua cosmovisão e identidade nesse período. Partindo da preocupação com o propósito e significado do exílio, ocorreu o florescimento de uma historiografia que reafirmou a crença na providência divina aliada à esperança messiânica. Houve também aqueles que buscaram uma explicação racionalista. Outros elementos constituintes desta cosmovisão foram o pensamento de vanguarda, a atitude de resistência cultural e uma estética aprimorada. Além disso, a identidade desse povo passou a ser significativamente determinada pela Cabala que se irradiava de Safed, na Palestina, e inspirava sua resistência cultural através da incorporação de símbolos, práticas e ideias somente conhecidas pelo grupo de iniciados. Alguns desses que buscaram saída numa perspectiva mística serão o foco de análise desse livro nas páginas e capítulos seguintes. A proliferação da Cabala entre as comunidades do exílio foi constatada por importantes historiadores, tais como Gershom Scholem e Rachel Elior, conforme acima referido. O caso mais conhecido de alegada prática da Cabala na diáspora sefardita foi o de Bento Teixeira. Nascido em Portugal em 1561, veio para o Brasil com sua família de classe média e linhagem sefardita. Terras distantes onde, por esse tempo, os perseguidos pela Inquisição gozavam de tranquilidade em relação aos sensores da Igreja. Bento Teixeira se tornou mestre de ensinar aos moços latim, aritmética, ler e escrever e, sobretudo a pensar, atividade bastante arriscada em terras onde os olhos dos visitadores da Santa Inquisição estavam atentos aos mínimos vestígios de heresia. Para os inquisidores, Bento Teixeira se encontrava na classe dos subversivos judaizantes.  Dentre as práticas consideradas heréticas desse personagem menciona-se a guarda do sábado e a negação de dogmas católicos. Consta ainda o ato de traduzir livros inteiros da Bíblia para o português, o que tanto poderia assemelhá-lo aos reformadores, quanto a ser encarado como um facilitador da leitura de porções semanais da Torah, prática comum e clandestina entre os criptojudeus. Mas, o cultivo da mística judaica por parte de Bento Teixeira foi demonstrado em sua obra, A Prosopopéia, publicada após sua morte, em 1601. A começar pelo título, nota-se que o poema épico é uma máscara para mensagens criptografadas. Estas tinham por objetivos exortar os seus pares a perseverarem na fé e ainda ensinar meios pelos quais escapariam dissimuladamente aos sensores da Inquisição sem que isso os fizesse abandonar por completo suas tradições. Epstein (1978, p. 20) ressalta que “os diagramas e textos místicos que passam hoje como Cabala eram, com muita frequência, deliberadamente distorcidos para confundir o olho dos não iniciados”. Dentre os elementos judaicos diásporicos encontrados na Prosopopéia, podemos citar princípios que remetem à resistência judaica ante as perseguições da Igreja Católica, assim como a identificação solidária com os compatriotas dispersos e ainda algumas referências que aludem ao messianismo, esperança do estabelecimento de um tempo de paz e descanso para a nação judia. Um aprofundamento nos leva a encontrar uma mescla de símbolos da mitologia greco-romana, amplamente utilizados pelo autor. Exemplo de tais simbologias na Prosopopéia é, sem dúvida, a oposição do Aristeu da mitologia, geralmente representado por um bom pastor, figura incorporada pelo cristianismo (segundo o evangelho de João, Jesus é o bom pastor) e o Proteu, senhor dos inúmeros disfarces. Sendo assim, Aristeu representa metaforicamente o clero católico romano em oposição ao Proteu, o deus das dissimulações, cujas confissões e vaticínios só se obtinha dele após ser fortemente amarrado. São dignos de nota os inúmeros artifícios utilizados pelos criptojudeus na tentativa de camuflar as suas origens, destacando-se sobremaneira as mudanças de nome ou sobrenomes, conforme já foi mencionado. Um exemplo disso é claramente encontrado no texto da Prosopopéia, quando o autor faz menção ao Grão Duarte, “cognominado Coelho”. A mudança de nome servia tanto para livrar os criptojudeus do preconceito por parte dos cristãos velhos, bem como para despistar os olhares dos inquisidores. Havia, sem dúvida, no poeta Bento Teixeira uma esperança muito grande em ver estabelecida na colônia uma pátria judaica onde enfim lançariam fora os trajes falsos de cristão e poderiam viver abertamente as suas tradições.

Vejo (diz o bom velho) que, na mente,
O tempo de Saturno renovado,
E a opulenta Olinda florescente
Chegar ao cume do supremo estado.
Será de fera e belicosa gente
O seu largo distrito povoado;
Por nome terá Nova Lusitânia,
Das Leis isenta da fatal insânia. (XXVI).

Ter em mente o tempo de Saturno renovado seria uma evidente alusão à livre guarda do Shabat, elemento basilar da vivência de qualquer judeu genuinamente judeu. Levando-se em consideração a ligação pagã dessa divindade ao dia sétimo da semana, colocado no texto de forma proposital para designar um retorno à observância segura deste e de outros dias santificados no judaísmo. Nota-se ainda no corpo do texto a solidariedade do autor para com os seus compatriotas na diáspora, reconhecendo neles um exemplo de resistência e exortando-os a perseverarem e terem esperança, ainda que a sorte tenha até então se mostrado tão contrária e mutável. Os elementos messiânicos aparecem de forma bem mais velada nas passagens em que o autor cita o sebastianismo, crença adotada por muitos portugueses acerca do retorno glorioso do rei D. Sebastião, morto na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. Atitude que se deriva da expectativa messiânica presente no imaginário de Bento Teixeira, a abordagem sobre a dramática batalha em que o jovem D. Sebastião desapareceu, fazendo a sociedade portuguesa mergulhar na crença do seu retorno. Falar de sebastianismo seria o mesmo que falar de messianismo, importante aspecto da mística judaica. Além do fenômeno do messianismo, outro elemento da mentalidade judaica é a esperança de retorno à Pátria, derivada do mito de exílio e redenção presente nos escritos cabalísticos e que o autor utiliza, embora sobre a capa da narrativa do naufrágio da armada dos Albuquerques.

[...] E assim todos concordes, e num ânimo,
Vencerão o furor do Mar bravíssimo,
Até que já a Fortuna, d’enfadada,
Chegar os deixe à Pátria desejada. (LXVII).

Tal esperança por uma pátria permanente, que por fim tirará
o povo judeu da condição de peregrinos no “mar bravíssimo”, traz
à memória o anseio judaico pelo mundo vindouro anunciado pelos
profetas. Nesse, a paz, justiça e prosperidade viriam em um reinado
messiânico sobre o povo israelita.

A literatura era uma forma segura de se transmitir uma mensagem de preservação e resistência entre os criptojudeus, em uma linguagem compreensível a eles e somente entre eles, já que, em se tratando dos simbolismos da Cabala, nenhum outro grupo era mais versado. Fica claro que a Prosopopéia possui uma mensagem oculta direcionada à consciência histórica judaica, escrita por um criptojudeu e compreendida em sua profundidade apenas por aqueles que teriam sensibilidade o suficiente para captar a alma judaica (nefesh yehud) do texto. O exemplo de Bento Teixeira é um forte argumento contra a teoria do historiador português Antônio José Saraiva (1917-1993) segundo o qual o judaísmo dos sefarditas conversos, designados por ele de ‘cristãos-novos’, foi um mito inventado pela Inquisição para, em aliança com a classe dominante senhorial, enfraquecer a burguesia mercantil em ascenção. Segundo ele, apesar de muitos membros dessa minoria perseguida haverem emigrado para a América portuguesa, onde viviam muito mais à solta e com menos cautela que em Portugal, depois de um século de quase completa liberdade, por ocasião da primeira “visitação” inquisitorial de 1591, as denúncias conhecidas quase não se referem a práticas do criptojudaísmo. Para ele, os defensores do mito do “cristão-novo judaizante”, interpretando esses dados com parcialidade, explicam que essa pouca incidência de casos de mosaísmo se justificam pela extrema cautela dos mesmos em suas observâncias religiosoas. E, contrariando essa possibilidade, arremata: “É mais simples e mais lógico supor que não havia tais ‘observantes’”. (SARAIVA, 1969, pp. 222, 223).
A chave para entender a negação de Antônio José Saraiva da existência do criptojudaísmo no seio da sociedade portuguesa, nos dois lados do Atlântico, parece se encontrar na mesma dificuldade que acometeu os próprios inquisidores para identificar traços de judaísmo nas práticas de alguns acusados, a exemplo de Bento Teixeira:
os inquisidores não conheciam alguns princípios fundamentais da religião judaica, sobretudo os simbolismos cabalísticos. Enfim, a religiosidade dos que efetivamente vivenciavam a cosmovisão dos sefarditas conversos judaizantes era criptografada seguindo um código conhecido apenas pelos iniciados; a Cabala de inspiração luriânica. 

Capítulo 4
Um Exemplo de Prosa Críptica Judaica

Vimos anteriormente a importância do círculo literário de Ferrara e como as publicações da prensa instalada nessa cidade tinham o objetivo de apoiar espiritualmente as comunidades no exílio. Dentre as obras aí publicadas destacamos as duas que foram escritas em português. Já analisamos rapidamente “Consolação às Tribulações de Israel”, de Samuel Usque, procurando evidenciar sua função de resistência cultural. A outra publicação em português da prensa de Ferrara foi a famosa obra de Bernardim Ribeiro, Menina e Moça. Além do curioso fato de haver sido publicada em uma prensa à serviço da militância cultural dos sefarditas na diáspora, que outros pontos de contato podem ser identificados entre esses dois autores e suas obras aqui referidas? Uma relação fundamental entre os dois escritores é admitida por Yosef Hayim Yerushalmi, qual seja, provavelmente Bernardim Ribeiro também era “cristão-novo judaizante”, expressão mais comumente usada para designar os sefarditas conversos. Outro aspecto de congruência entre os dois é a feição sentimental, pastoril e bucólica que caracteriza as duas obras e o distintivo de haverem entrado para o Index, o catálogo dos livros cuja leitura era proibida pela Igreja Católica Romana. Provavelmente uma das razões para a proibição da leitura das obras seja os criptônimos que as duas utilizaram. Isso não é surpresa, pois, de modo geral, o gênero pastoral predominou entre os escritores de origem sefardita do período. Essas fantasias bucólicas representavam uma forma de escape e sublimação da situação de exílio e perseguição em que viviam. Mais do que todos esses pontos em comum, as duas obras teriam propósitos semelhantes: “despertar os conversos portugueses para as consequências metafísicas de terem abjurado a sua fé e indicar-lhes o caminho da salvação espiritual...” (MACEDO, 1977, p. 88). Bernardim Ribeiro é uma das figuras mais enigmáticas da literatura portuguesa do século XVI e a sua biografia é um mistério à parte. Ao longo dos séculos surgiram variadas conjecturas biográficas referentes à sua vida e obra. Para Macedo (1977) estudar Bernadim Ribeiro é mergulhar num mundo de incertezas, em um verdadeiro enigma biográfico-cultural. Pouco se sabe sobre a sua vida, no entanto, podemos deduzir com certa precisão que ele nasceu em Alentejo (Vila do Torrão) no século XV, frequentou a corte portuguesa, publicando alguns poemas seus no Cancioneiro Geral de Garcia Resende (1516) e que foi um judeu forçado a converter-se ao cristianismo, o que influenciou de maneira significativa as suas obras, em especial Menina e Moça. Evidência disso é que um dos temas mais recorrentes na obra de Bernardim Ribeiro foi a “mudança de uma situação existencial, retrospectivamente considerada como falsa, para outra que, embora implicitamente mais verdadeira é, no entanto, geradora de uma nova, e porventura mais intensa, ansiedade.” (MACEDO, 1977, p. 18). Além disso, seus assuntos favoritos foram temas como exílio, misticismo e pessimismo, temáticas essas tão comuns ao contexto sefardita da época. (FRANCO, 2007). Assim, reconhecemos como válida a hipótese defendida por Helder Macedo de que a novela Menina e Moça é uma alegoria de cunho cabalista. O questionamento recorrente é o seguinte: “por que motivo um impressor sefardita no exílio, com os prelos a serviço do proselitismo judaico, se interessou pela publicação das obras de Bernardim?” Sem dúvida o tema do exílio, o misticismo, o pessimismo e a expressão esotérica refletem-se na novela de Bernardim Ribeiro. (FRANCO, 2007, p. 28).
O livro é uma novela sentimental que se fundamenta inicialmente no monólogo de uma Menina e Moça, para em seguida se desenvolver por meio do diálogo dessa com uma outra mulher, representante de um outro tempo. Enquanto isso são narrados alguns romances e aventuras de cavalaria. São vozes femininas que foram identificadas por Helder Macedo como demonstrando a “característica fundamental e específica do cabalismo hispânico, que o distingue dos demais ramos do judaísmo: precisamente seu ‘feminismo’”. (MACEDO, 1977, p. 60).
O autor escreve para um público dotado de uma informação ideológica específica. Garantindo, desse modo, que seu significado permanecesse oculto para uma parcela da sociedade, que com um olhar destreinado não notaria a sua mensagem de resistência oculta nas entrelinhas: Bernardim Ribeiro estava descrevendo nessa aparentemente ingênua novela sentimental “o arquétipo místico da Comunidade de Israel, também chamado Shekhinah”, em situação de exílio. (MACEDO, 1977, p. 66).
É possível localizar na obra de Bernardim Ribeiro, como explicado por Helder Macedo, três níveis complementares de interpretação: o romanesco (caracterizando-a como uma novela sentimental), o místico (influenciada pelo cabalismo hispânico) e o político (uma obra de resistência), sendo que o mais revelador da cosmovisão dos sefarditas exilados é a análise do místico. A mística cabalista seria um elemento importante da cultura sefardita. Mais do que isso, a Cabala passa a assumir o exílio como o perfeito cumprimento da identidade judaica que se prepara para a redenção. (BAPTISTA, 2011, p. 1) 
Os sefarditas recorriam aos saberes cabalísticos para entender as causas dos sofrimentos do seu povo (desterrado e errante) e estimulados por uma explicação divina das misérias e injustiças às quais os de origem mosaica eram submetidos. A forte influência da tradição cabalista sobre a cosmovisão sefardita na Diáspora Atlântica nos tempos modernos vai moldar a religião dos criptojodeus. Segundo Scholem (2002), a Cabala exerceu durante séculos uma grande autoridade sobre a comunidade judaica. E não é improvável que a obra Menina e Moça tenha sido influenciada por elementos cabalísticos, já que Bernardim Ribeiro viveu numa época em que este movimento esotérico do judaísmo atingiu seu apogeu na cultura hispânica. Assim, os exilados encontraram uma forma de manter viva a sua identidade ancestral, usando para isso signos e mecanismos de dissimulação do seu verdadeiro sentido para a preservação identitária. O que importa notar é que mesmo em meio às tribulações, os agora exilados, mantinham preservados os aspectos essenciais da sua religião.

Os Problemas de Significado de Menina e Moça

Comunicando eu isto com um Grego velho e doutor, me disse, que sempre fora costume dos seus antigos sábios, e filósofos encobrirem grandes segredos debaixo de fingimentos. (AVEIRO, 1593, p. 23).Em seu livro “Bernardim Ribeiro (O poeta Crisfal)” Theophilo Braga cita um documento encontrado por António Maria de Freitas, em 1893, no museu de antiguidades da baronesa de Erick, no qual, faz alusão à vida de Bernardim. Nesta peça jurídica datada de 06 de maio de 1642, assinada pelo desembargador Rodrigo de Lemos, o seu requerente alega um suposto parentesco com o escritor português para reivindicar a posse dos bens doados por Bernardim. O qual, reproduzimos logo abaixo, na íntegra, um trecho do pedido: Senhor. Em obediência ao despacho lançado por Vossa Majestade no requerimento do tenente de infantaria Francisco Ribeiro e remetido a esta Junta, cumpre informar que, das diligências a que procedi e a que mandei proceder para verificar a verdade das alegações n’elle [sic] apresentadas sobre ser bisneto do doutor Bernardim Ribeiro e da justiça que lhe assiste de ser empossado nos bens que deste foram e passaram a esta Sereníssima Casa de Vizeu (...) (GUIMARÃES, 1908, p. 28).
No mesmo documento é possível extrair algumas informações importantes sobre a vida de Bernardim. Segundo esta peça jurídica, Bernardim Ribeiro teria nascido em 1482, e era filho de Damiam Ribeiro, criado dos Duques de Vizeu, sendo que, por conta das desavenças do duque com D. João II, o pai de Bernardim teve que se refugiar em Castela deixando a mulher e o filho sob a proteção de seu parente o desembargador da casa da suplicação António Zagalo e de sua irmã D. Inês. (GUIMARÃES, 1908). Com relação ao suposto parentesco entre o suplicante e o autor português, este documento afirma que Bernardim “nunca foi casado nem consta de boas memórias haver tido descendência bastarda de huma [sic] sua prima, como alega o requerente.” (GUIMARÃES, 1908, p. 29). Theophilo Braga (1897) comenta também a existência de uma vasta documentação na qual se faz referencia ao autor de Menina e Moça. Compõem esse corpus documental: um termo de matrícula na Universidade de Lisboa nos anos de 1506 a 1511 (comunicado por Gabriel Pereira e Dr. Simões de Castro); uma carta régia datada de 23 de setembro de 1524, em que D. João III o nomeia escrivão de câmara (D. José Pessanha teria feito a descoberta deste documento na Torre do Tombo); um documento judicial de 1552, no qual, João Ribeiro alega ser primo-irmão do poeta (Documento frequentemente citado nos manuscritos genealógicos publicados por Camillo nas Noites de Insomnia); uma Carta régia datada de 9 de outubro de 1549 concedendo uma Tença no valor de 12$000 rs. com um moio de trigo por D. João III (Documento descoberto pelo Snr. Visconde Sanches de Baena); a Obra do Snr. Visconde de Sanches de Baena em que contêm abjuradas e comprovadas as genealogias dos Ribeiros e dos Zagalos, comprovando o parentesco das duas famílias. Outro aspecto que salta à vista é a quantidade de homônimos do poeta Bernardim Ribeiro que o mesmo Braga (1897), a partir de documentos do século XVI, ressalta no seu célebre livro “História da Literatura Portuguesa:
Bernardim e o Bucolismo”. Seriam esses: Bernardim Ribeiro Pacheco: comendador da Villa Cova, da ordem de Cristo e Capitão Mor das náos da Índia; Bernardim Ribeiro: governador da fortaleza de S. Jorge da Mina; Bernardim Ribeiro: filho de Luiz Esteves Pacheco; Bernardim Ribeiro: ouvidor na segunda metade do séc. XVI nas Caldas, contador do Hospital de Nossa Senhora do Populo (Caldas da Rainha); Bernardim Ribeiro: tabelião em Barcelos; Bernardim Ribeiro: mestre da capela da catedral de Toledo. Muita coisa já foi dita e escrita sobre Bernardim, mas, pouco sabemos concretamente sobre a sua vida intelectual e privada. Nos deparamos com inúmeras interrogações sobre esta figura emblemática da literatura portuguesa. Por conta da documentação pouco confiável as respostas a essas interrogações são geralmente dúbias e pouco reveladoras. Porém, em que pese esses impasses biográficos, suas obras foram produzidas em um período decisivo para a história dos sefarditas conversos judaizantes e utilizaram uma linguagem cifrada para não levantar suspeitas. As divergências que surgem em torno do texto original da obra Menina e Moça estão longe de serem totalmente esgotadas e resolvidas, existindo assim, várias conjecturas sobre qual seria o corpus textual escrito por Bernardim Ribeiro.  A editio princips da obra foi publicada no ano de 1554, na cidade italiana de Ferrara, por iniciativa do judeu português Abraão Usque. Nesta prensa foram publicados de autoria de Bernardim cinco éclogas, a novela sentimental Menina e Moça e alguns poemas. A sua segunda edição foi lançada na cidade portuguesa de Évora, em 1557, no prelo do impressor oficial do Inquisidor-geral do reino, André Burgos. Este segundo exemplar, diferente do de Ferrara, possui algumas disparidades textuais. Segundo Franco (2007) as divergências entre estas duas edições estão presentes nas variantes de pontuação, de léxico, de ortografia, de sintaxe e destaque para a extensão do texto.
Já a terceira edição desta obra foi publicada na cidade alemã de Colónia, no ano de 1559 por Arnold Birckman. Esta impressão é inspirada no texto publicado em Ferrara, possuindo algumas pequenas modificações que não alteram a estrutura e o seu significado. Segundo Vasconcelos (1924), as divergências são realmente muito numerosas, mas, superficiais. Fruto de arbitrariedades editoriais, meramente gráficas ou linguísticas de responsabilidade dos livreiros-tipógrafos que na época tinham liberdade de fazer correções na ortografia, na pontuação e até mesmo na escrita da obra.
Além destas três edições impressas da obra Menina e Moça, existem dois manuscritos conhecidos: O manuscrito da BNL (Biblioteca Nacional de Lisboa) e o manuscrito da Real academia de la História de Madrid.
Mesmo com a descoberta destes dois manuscritos António Cândido Franco (2007) acrescenta que as duas cópias não podem substituir a edição de Ferrara, pois a de Madrid é muito tardia e a da BNL é incompleta e possui uma datação ambígua. Desde o século XVII até meados do século XX a obra impressa em Ferrara ficou no esquecimento e a edição de Évora foi a fonte de todas as reedições. Na explicação de Franco isso se deu porque, “toda a tradição crítica portuguesa anterior a Inocência, com destaque para Diogo Barbosa Machado, desconhecia em absoluto a edição de Ferrara.” (FRANCO, 2007, p. 13).
Inclusive, as edições posteriores publicadas por Manoel da Silva (1645, Lisboa), Domingos Gonsalves (1785, Lisboa), pelo Escritório da Biblioteca Portuguesa (1852, Lisboa), pela Imprensa Comercial (1860, Lisboa), por D. José Pessanha (1891, Porto) e Teófilo Braga (Porto) tem como texto base o corpus textual de Évora.  Uma das explicações para a rejeição do exemplar saído do prelo de Abraão Usque está no controle Inquisitorial e na proibição da entrada de livros no país. O texto abaixo, extraído do livro “História do Descobrimento” e Conquista da Índia vai corroborar e justificar esta hipótese. Privilegio que o muito alto, e muito poderoso Rey Dom João o terceiro deste nome deu a Fernão Lopez de Castanheda para os livros da historia do descobrimento e conquista da Índia pelos Portugueses.
Eu El Rey faço saber a quantos este meu Aluará virem que Fernão Lopez de Castanheda, Bedel da faculdade das artes da universidade de Coimbra me enviou dizer que ele tinha feitos dez livros da historia da Índia, que começavão [sic] do descobrimento dela:
dos quais tinha impressos á sua custa o primeiro livro e queria imprimir os outros. E porque havia mais de vinte anos que andava ocupado no fazer da dita história: e tinha levado nisso muito trabalho, e feito muito gasto de sua fazenda: me pedia que houvesse por bem que pessoa alguma não pudesse imprimir os ditos livros senão ele Fernão Lopez, nem os vender, nem trazer de fora do reino pelo tempo, e sob as penas que me bem parecesse. (CASTANHEDA; MARROCOS, 1797, p. VII, grifo nosso). 
Ainda sobre essa questão Helder Macedo (1977) menciona que Menina e Moça teve uma breve inclusão no Index Expurgatório de 158135, além de alguns cortes nas edições subsequentes. Além disso, consultando o Catálogo dos livros que se proíbem nestes Reinos & Senhorios de Portugal, por mandado do Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor Dom Jorge de Almeida Metropolitano Arcebispo de Lisboa, Inquisidor Geral (1581) encontramos citado a obra Menina e Moça nos “Livros Proibidos em Linguagem” classificado como “Livro de Fortes.” A primeira diferença textual entre as duas edições manifesta-se logo no primeiro parágrafo do texto. Transcrevemos então, os dois trechos da primeira página do exemplar de 1554 e o de 1557, atualizando a ortografia:
Menina e Moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. [...] (RIBEIRO, 1557, p. III, grifo nosso). Menina e moça me levaram de casa de meu pai para longe terras. Qual fosse então a causa daquela minha levada, era pequena, não soube. [...] (RIBEIRO, 1557, p. III, grifo nosso).
Na Edição Eborense, no trecho citado acima, é trocada a palavra mãe por pai, além disso, existem contradições evidentes entre as extensões dos textos das duas versões. Na publicação de Évora os acréscimos da segunda parte são considerados apócrifos com base nas divergências no estilo de escrita e da forte carga ideológica percebida nesta parte, o que muda relativamente o sentido da obra. Esta divergência entre os dois textos é pontuada pela hipótese de Menina e Moça ser uma obra inacabada. Aliás, a edição de Évora é caracterizada por ser uma versão mais longa, possuindo duas partes e o seu texto é separado em capítulos com pequenas epígrafes, no qual, a primeira parte vai até o capítulo XXI e a segunda até o capítulo LVII. Já o exemplar publicado em Ferrara possui um texto corrido sem divisões em capítulos. Sendo assim, influenciado pela ortodoxia católica, o suposto encarregado de dar um desfecho para a versão de Évora, tentou ao máximo camuflar os aspectos criptojudaicos presentes na edição de Ferrara. Fato que tende a fazer da Menina e Moça uma narrativa marcada por alguns ‘pontos cegos’, que o continuador e não poucos leitores se esforçaram por ativar. (MENESES, 1998). Conforme Macedo (1977), a edição eborense seria uma tentativa de normatizar a literatura bernardiniana, limpando-a de suspeitas e anulando pelos seus acréscimos a estranheza de certos sentidos potencialmente heréticos, tornando assim a obra mais aceitável do ponto de vista do cânone cristão. Frisando a questão das influências da censura eclesiástica, podemos destacar a troca da expressão “Valhe-me Deus” citada na edição de Ferrara para “Santa Maria, Vale-me!” na publicação eborense. Com os remos trazia, não se percatou senão quando uma alta onda, que a ele, ao barco todo descumas encheu e deu com ele através de uns penedos que em diversas partes que espedaçaram valha-me Deus dizia ele. (BERNARDIM, 1557, pp. LXXI-LXXII, grifo nosso).
Com os remos trazia, não se percatou se não quando uma alta onda que a eles ao barco todo descumas encheu e deu com ele através de uns penedos que em diversas partes que espedaçaram Sancta Maria salve dizia ele. (BERNARDIM, 1557, p. CXVLI, grifo nosso).
Sem uma base manuscrita de apoio a edição de Évora é questionada sobre a autenticidade dos seus acréscimos. Concordam os estudiosos do tema que o exemplar de Ferrara contém o texto que mais se aproxima do original. Na qual, “ (...) a crítica bernardiniana tem procurado provocar ou refutar a autenticidade do texto exclusivo à edição de Évora aceitando como seguramente autêntico tudo o que o precede.” (MACEDO, 1977, p. 13). O aviso do próprio Bernardim contido nas páginas iniciais de que “o livro a de ser o que vai escrito nele (...)” irá dar bases para entender melhor as questões da extensão das duas edições. (RIBEIRO, 1554, p. IIII).
Sendo assim, logo no início da obra o autor já declara que o livro terá um final aberto. À luz desta advertência é significativo perceber que diferente do texto eborense a edição de Ferrara e os dois manuscritos possuem um final abrupto, distinto da publicação de Évora que possui uma falsa continuação, para se adequar a um padrão aceitável do ponto de vista dos cânones da época, fazendo assim, algumas alterações no seu enredo e significado.
O enredo é típico da tradição cavalheiresca em prosa, uma narrativa centrada na primeira pessoa com características confessionais. Um solilóquio36 estruturado por vozes femininas. Trata-se, então, de uma novela de psicologia do amor - exprime o sentimento trágico de uma vida apenas orientada pelo amor: uma novela de psicologia amorosa em prosa que se pode considerar poética. (SARAIVA; LOPES, 1982, p. 239). Várias leituras e interpretações foram feitas dessa obra, mas, nenhuma delas conseguiu dissolver em um único trabalho todos os mistérios que rodeiam Menina e Moça e nem apontar todos os elementos presentes nessa novela sentimental. Não chegando a um consenso os estudiosos dividem-se entre os que defendem a origem sefardita conversa de Bernardim Ribeiro e os que a negam. O professor universitário, escritor e filósofo, Teixeira Rego (1881-1934), foi o primeiro a levantar a hipótese da ascendência judaica de Bernardim e do seu teor criptojudaico. Enquanto isso, o professor de Literatura Portuguesa do King’s College de Londres, Helder Macedo, em sua obra “Do significado oculto da Menina e Moça”, lançada pela Editora Moraes em Lisboa no ano de 1977, defende a hipótese de que esta novela em prosa é uma alegoria de cunho cabalista e que Bernardim Ribeiro foi um sefardita converso judaizante, perseguido, como tantos outros, pelos tentáculos da Inquisição.
 Seguindo essa linha de raciocínio António Cândido em “O essencial sobre Bernardim Ribeiro” afirma que o texto Bernardiniano não escapa à problemática do criptojudaísmo ou do judaísmo de resistência. Em contrapartida, um dos maiores investigadores e conhecedores de origem portuguesa do Humanismo Renascentista, José Vitorino Pina Martins, que publicou uma reprodução fac-similada da edição de Ferrara (1554) impressa pela Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa, 2002), argumentou no extenso prólogo feito para a obra que Menina e Moça se apresenta somente como uma novela de amor e morte e não como um escrito de teor criptojudaico. Já o Professor Herman Prins Salomon no seu artigo “O que tem de judaico a Menina e Moça?” vai rebater os principais argumentos utilizados por Martins para negar a presença de qualquer elemento
judaico nesta obra. Eugenio Asensio, conhecido por ter descoberto o mais antigo manuscrito de Menina e Moça, no seu texto “Bernardim Ribeiro y los problemas de Menina e Moça” também rejeita a influência do cabalismo na obra de Bernardim. Porém, um leitor mais atento não pode deixar de se intrigar com alguns aspectos criptojudaicos presentes no citado texto. Aspectos esses que remontam à Cabala peninsular, deixados sutilmente nas suas entrelinhas a partir de um sofisticado jogo de dissimulação literária. No entanto, apenas aqueles que estavam a par do seu referencial doutrinário poderiam realmente entender o seu real significado.
Conforme Macedo (1977), as ambiguidades detectadas na obra de Bernardim só podem ser explicadas no contexto da tradição cabalística Ibérica. Ressalta ainda que na escrita bernardiniana existe uma ênfase nas personagens femininas como veículos da divindade e representação da comunidade no exílio. O autor constrói a narrativa em torno da história de três personagens femininas: Belisa, Aónia e Arima, onde, as três seriam a representação da Shekhinah38, Shekiná ou Schehiná (divina presença ou presença de Deus). Shechiná é o único aspecto feminino da divindade (Deus dos judeus), utilizado no judaísmo rabínico para relacionar a proximidade de Deus com o homem, representando uma ideia mística de Israel e a sua ligação com Deus nas perseguições e no exílio (Diáspora). Segundo Scholem (2002), duas concepções indissociáveis da Shechiná são a sua ambivalência e o seu exílio. Nas suas palavras: O exílio da Schehiná remonta ao Talmud. ‘ Em cada exílio a que os filhos de Israel foram, a Schehiná estava junto com eles’. No Talmud isso significa unicamente que a presença de Deus sempre acompanhou Israel nos seus exílios. Na Cabala, porém, isto é tomado no sentido que uma parcela de Deus mesmo é exilada de Deus. (SCHOLEM, 2002, pp. 129-130). Bernardim Ribeiro segue a linha do criptojudaísmo da Península Ibérica, no qual a figura feminina possuía uma posição de destaque, sendo que, um dos ícones de resistência criptojudaica está na figura da Rainha Ester. Assim, a Oração de Ester foi considerada a prece dos judaizantes por excelência. Dessa forma, o Purim estava entre os ritos mais praticados pelos neoconversos.
Sendo tradicionalmente um ritual de celebração e alegria, a comemoração de Purim dos criptojudeus sofreu a influêcia da experiência do exílio. De tal forma que na explicação de Natahm Wachtel o jejum foi...
O rito, sem dúvida, mais praticado nos meios marranos. Os judaizantes impunham-se a si próprios, não só por ocasião das grandes obrigações anuais, como as do Grande Dia (Kippur) ou da comemoração da Rainha Ester, mas também muito frequentemente durante as semanas ordinárias, e até duas ou três vezes na mesma semana, de preferência à segunda e à quinta (era o jejum completo de vinte e quatro horas, segundo o ‘costume judaico’, entre o cair da noite de um dia e o cair da noite do dia seguinte). (WACHTEL, 2002, p. 144, grifo nosso).
A proibição da prática do judaísmo no mundo português e a perseguição dos judeus e sefarditas conversos na Espanha, Portugal e nas suas respectivas colônias levou as mulheres a assumirem papel decisivo na resistência e na propagação de um criptojudaísmo doméstico (entre quatro paredes). Diferente do judaísmo rabínico, no qual as mulheres ocupavam posições inferiores aos homens, com a perseguição da fé hebraica na península Ibérica essa situação se inverteu, “o núcleo familiar tornou-se lócus privilegiado para a irradiação da lei mosaica, içando as mulheres ao status de grandes responsáveis por sua reprodução.” (ASSIS, 2002, p. 56). Nesse sentido, a representatividade da figura feminina na obra Menina e Moça é mais um indício do seu caráter criptojudaico.
Outro indicativo que corrobora para a tese da ascendência sefardita do autor de Menina e Moça é que as edições de Ferrara e Évora foram impressas por sefarditas conversos judaizantes. Na prensa gráfica ferrarense nós temos a presença de Abraão Usque, um típico sefardita de origem portuguesa, perseguido e exilado na cidade italiana de Ferrara, onde editou cerca de 30 (trinta) publicações, obras essas voltadas para um público judaico. Já André Burgos, impressor oficial do Inquisidor-geral Cardeal Infante D. Henrique e cavaleiro da sua casa, também possuía ascendência sefardita conversa. No dizer de Theophilo Braga, O livreiro André de Burgos era suspeito de cristão novo, e esta circunstância actuaria na revisão da censura eclesiástica dos livros que publicava. No depoimento de Damião de Carvalho, prior de Villa Nova d’Anços, em 1624, com setenta e seis anos de idade, disse: ‘que conheceu em Évora a André de Burgos, avô d’este André de Burgos, de que se trata, advogado n’esta cidade, e irmão que foi d’esta Santa Casa, e agora deitado da irmandade, o qual André de Burgos, seu avô, era castelhano de nação, e sempre na dita cidade fora tido e havido por cristão novo, e que ele testemunha o teve sempre por cristão novo, e assim foi sempre publica voz e fama; e declarou que assim era tido e havido na cidade de Évora. E ai não disse.’ (Doc. ap. Conimbricense, n.º 5103, de 1896.) Não admiraque a animadversão fanática contra o livreiro se estendesse contra a sua edição. (BRAGA,1897, pp. 299-300).
Consta também que o citado impressor foi preso em 1559 pelo regimento inquisitorial sob a acusação de Ensinar a Fazer Cartas de Jogar sendo condenado a um ano de degredo para fora de Évora e em dez cruzados para a câmara real, sentença essa que, depois de cumprir dois meses de degredo, solicitou a El-Rei perdão para o restante da pena. El-Rei houve por bem perdoar, pagando o suplicante mil réis para as despesas da Relação, e dois mil réis para a piedade, isto é, para o cofre da remissão dos cativos. A carta de perdão, em nome de D. Sebastião [...] foi dada a 18 de outubro, e feita a 23 do mesmo mês de 1559. (VITERBO, 1924, p. 20).
A partir da produção literária assinada por este autor português, em especial a obra Menina e Moça, apresentam-se dados suficientes para defender com relativa segurança a origem mosaica de Bernardim. Sendo assim, as suas obras não fogem da problemática do criptojudaísmo. Apoiado em elementos da Cabala peninsular o autor escreve para um público iniciado nos arcanos profundos do criptojudaísmo. Garantindo, desse modo, que seu livro pudesse circular livremente sem ser censurado pela Inquisição e seu significado permanecesse oculto para uma parcela da sociedade, que com um olhar destreinado não notaria a sua mensagem de resistência oculta nas entrelinhas. A relevância, densidade e carga ideológica que a palavra saudade tem no texto bernardiniano traz à tona a questão do exílio na sociedade portuguesa. Sendo que, o incipit do primeiro capítulo de Menina e Moça inicia a obra fazendo uma alusão à problemática do desterro. Esta novela de caráter sentimental surge no contexto cultural marcada por um período de incertezas, no qual, as opções dadas aos judeus eram a conversão ao cristianismo ou o exílio. Influenciado por um contexto cultural Ibérico de censura, intolerância e perseguições aos de origem mosaica, o aparecimento de obras que retratem a dor do exílio e a saudade vão ser comuns entre as produções sefarditas da época. Com relação à Menina e Moça esse tema vai ser amplamente trabalhado nos personagens femininos. No entendimento de Macedo (1977) a questão do exílio na obra de Bernardim Ribeiro pode ser entendida em 3 (três) níveis de significação:
representando o exílio metafísico de Deus, o exílio da Comunidade de Israel ou o exílio subjetivo das personagens. Além de Menina e Moça outras obras de Bernardim irão retratar a questão do desterro. Desse modo, reproduziremos alguns trechos das Éclogas (II, IV e V) “Jano e Franco”, “Écloga Chamada Jano” e “Ribeiro & Agreste” que irão tratar justamente deste assunto:

- Vejo-te (me disse) Jano,
Dos bens do mundo abastado,
Mas contando ano e ano
Fico de toso cortado:
Vejo-te lá pela idade
De nuvem negra cercado,
vejo-te sem liberdade,
de tua terra desterrado
e mais de tua vontade. (RIBEIRO, 1939, p. 64, grifo nosso).
Mudei terra, mudei vida,
mudei paixão em paixão,
vi a alma de mim partida,
nunca de meu coração
vi minha dor despedida:
antre [sic] tamanhas mudança, (RIBEIRO, 1939, p. 103, grifo nosso).
Ribeiro, triste mais cança [sic]:
Dizem que se desterrou,
bem contra sua vontade,
e que seu descanso mudou,
porém não a soidade [sic] (RIBEIRO, 1939, p. 114, grifo nosso).

Com ênfase no Quinhentismo português, floresceu uma literatura pastoril que recebeu influência dos problemas de exílio político enfrentados pelos sefarditas. (NEPOMUCENO, 2000).
Assim, o tema da desilusão amorosa pastoril vai mascarar os problemas de exílio vivenciados pelo povo de origem israelita na Península Ibérica nos sécs. XVI e XVII. Um tema de aparente simplicidade que disfarça na literatura pastoril amorosa uma forte carga ideológica e política. Desse modo, os sefarditas conversos judaizantes encontraram uma forma de manter viva a sua identidade ancestral, usando para isso signos e mecanismos de dissimulação do seu verdadeiro sentido para a preservação identitária. O que importa notar é que mesmo em meio às tribulações, os agora conversos mantiveram preservados aspectos essenciais de sua cosmovisão.