terça-feira, 13 de março de 2018

A Infância de Aleister Crowley


Em Clarendom Square, número 36, na cidade de Leamington, condado de Warwickshire, na Inglaterra, às 22h 50m do décimo segundo dia de outubro do ano de mil oitocentos e setenta e cinco da era vulgar, nasceu a pessoa cuja história vai ser contada.

Seu pai chamava-se Edward Crowley; sua mãe, Emily Bertha, nascida Bishop. Edward Crowley era um Irmão Exclusivo da Irmandade Plymouth 1) o mais respeitado chefe daquela seita. Este ramo da família de Crowley se estabelecera na Inglaterra desde a época de Tudors, mas a sua origem é celta, pois Crowley é um clã de Kerry e de outros condados do sudoeste da Irlanda, do mesmo sangue que os “de Queroauille” ou “de Kerval” bretões, que deram uma Duquesa de Portsmouth à Inglaterra. Supõe-se que o ramo inglês – os ancestrais diretos de Edward Alexander Crowley – veio para a Inglaterra com o Duque de Richmond, e se estabeleceu em Bosworth.

Em 1882 Edward Crowley foi viver em “The Grange”, na cidade de Redhill, condado de Surrey. Em 1884, o menino, que até então fora educado por governantas e tutores, foi mandado para uma escola em St. Leonard, mantida por certos evangelistas 2) extremistas chamados Hebershon. Um ano mais tarde foi transferido para outra escola, esta em Cambridge e sob a responsabilidade de um Irmão de Plymouth chamado Champney 3).

Em 5 de Março de 1887 e.v., Edward Crowley morreu. Dois anos mais tarde o menino foi retirado da escola. Esses dois anos foram de incrível tortura, cujos detalhes foram mencionados no prefácio ao seu poema “A Tragédia do Mundo”. Esta tortura minou-lhe seriamente a saúde. Durante dois anos ele viajou com seus tutores, na maior parte por Gales e pela Escócia. Em 1890, tendo sua mãe se mudado para Streatham, a fim de estar mais próxima do irmão, Tom Bond Bishop, um evangelista de mente extremamente estreita, foi o menino mandado, por pouco tempo, para uma escola situada neste lugar, mantida por um homem chamado Yarrow. Isto preparou o adolescente para Malvern, onde ingressou no verão de 1891. Ali permaneceu durante um termo apenas, pois sua saúde ainda era delicada. No outono foi matriculado no Colégio de Tonbridge, mas adoeceu seriamente, e teve que ser removido. O ano de 1893 ele passou com seus tutores, principalmente em Gales, no norte da Escócia, e em Eastbourne. Em 1895 completou seus estudos de química em King’s College, London, e em outubro daquele ano entrou para Trinity College, Cambridge.

Com isto finda o primeiro período de sua vida. É apenas necessário declararmos que seu cérebro se desenvolveu cedo. Aos quatro anos de idade era capaz de ler a Bíblia em voz alta, demonstrando uma grande predileção pelas listas de longos nomes, a única parte da Bíblia não deturpada por teólogos 4). Também era ele um enxadrista suficientemente forte para derrotar o amador médio, e, se bem que jogasse continuamente, nunca perdeu um jogo até 1895 e.v. 5) O xadrez foi-lhe ensinado por um alfaiate que havia sido chamado a sua casa a fim de medir roupas para seu pai, e que foi tratado como um hóspede porque era também um “irmão Plymouth”. Derrotou seu professor invariavelmente após o primeiro jogo: deveria ter uns seis ou sete anos de idade na época.

Começou a escrever poesia em 1886, se não mais cedo. Veja “Oráculos”.

Após a morte de seu pai, que era um homem de grande bom-senso, e nunca permitiu que sua religião interferisse com sua afeição natural, o menino caiu nas mãos de gente de uma disposição totalmente diversa. Sua atitude mental logo se concentrou em ódio à religião que ensinavam, e sua vontade, em revolta contra as opressões dessa religião. Seu principal alívio era o alpinismo, que o deixava a sós com a natureza, longe dos tiranos.

Os anos compreendidos entre março de 1887, até sua entrada no Trinity College, Cambridge, em outubro de 1895, representaram uma luta contínua pela liberdade. Em Cambridge ele se sentiu seu próprio mestre, recusou-se a ir à Capela, aulas ou conferências, e seu tutor, o falecido Dr. A. W. Verrall, foi sábio o bastante para deixar que seu tutelado trabalhasse à sua maneira.

Devemos mencionar que possuía a habilidade intelectual em grau extraordinário. Sua faculdade de memória, principalmente de memória verbal, tinha uma espantosa perfeição.

Quando menino podia encontrar quase qualquer versículo da Bíblia em poucos minutos de busca. Em 1900 foi testado em seus conhecimentos das obras de Shakespeare, Shelly, Swinburne (1a Série de Poemas e Baladas), Browning, e da A Pedra da Lua, de Willcie Collins. Foi capaz de identificar a posição exata de qualquer frase em qualquer desses livros, e de recitar quase sempre o resto da passagem da qual a frase fazia parte.

Demonstrou notável habilidade para absorver os elementos do latim, grego antigo, francês, matemática e ciência. Aprendeu “little Roscoe” 6), quase que de cor, por iniciativa própria. Quando em Malvern, tirou o sexto lugar da escola no exame anual sobre Shakespeare, se bem que houvesse levado apenas dois dias a se preparar para a prova 7). Em certa ocasião, quando o professor de matemática quis dedicar uma aula a uma sabatina dos alunos mais avançados, e deu à classe uma série de equações do segundo grau para resolver, o rapaz se levantou ao fim de quarenta minutos para perguntar o que deveria fazer a seguir, entregando a série de 63 equações, todas com as soluções corretas.

Ele passou com honras em todos os exames, tanto nas escolas quanto na universidade, e bem que consistentemente se recusasse a se preparar para esses exames 8).

Por outro lado, não era possível persuadi-lo ou constrangê-lo a se aplicar a qualquer assunto que não lhe agradasse. Demonstrava intensa repugnância pela história, pela geografia e pela botânica, entre outras matérias, e nunca pode aprender a escrever latinos ou gregos, possivelmente porque as regras de metrificação nesses idiomas lhe pareciam arbitrárias e formais.

Também era-lhe impossível interessar-se por qualquer coisa desde o momento em que já tivesse absorvido os princípios de “como a coisa era ou podia ser feita”. Este traço o impedia de pôr retoques finais em tudo que encetava.

Por exemplo, ele se recusou a se apresentar para a segunda parte do exame final do diploma de Bacharel em Artes, simplesmente porque sabia que tinha o domínio absoluto da matéria 9)!

Esta característica se estendia aos seus prazeres físicos. Ele era de uma abjeta incompetência na prática fácil de escalar rochedos, porque sabia que podia fazê-lo. Parecia incrível aos alpinistas que excursionavam com ele que tal completo preguiçoso pudesse ser o mais ousado e o mais destro montanhista da sua geração, como demonstrava ser quando quer que o precipício fosse um que ninguém tivesse conseguido escalar antes 10). Da mesma forma, uma vez que tivesse elaborado teoricamente um método de escalar uma montanha, estava perfeitamente disposto a confiar a outros o segredo, e a deixar que eles se apropriassem da glória da descoberta para si mesmos. (A primeira ascensão do Dent de Géant, partindo de Montanvers, é um exemplo.) Pouco lhe importava que fosse ele a pessoa a fazer alguma coisa; o que lhe importava é que a coisa fosse feita.

Este altruísmo quase inumano não era incompatível com uma ambição pessoal consumidora e insaciável. A chave do enigma provavelmente era esta: ele queria ser alguma coisa que ninguém jamais tivesse ou pudesse ter sido antes dele. Perdeu interesse pelo xadrez tão logo que se provou, para sua própria satisfação (aos 22 anos de idade), mestre do jogo, tendo vencido os mais fortes amadores da Inglaterra e mesmo um ou dois “mestres” profissionais 11). Trocou a poesia pela pintura, quase por completo, tão logo tornou evidente ser o maior poeta de seu tempo. Mesmo em Magia, tendo se tornado a Palavra do Æon, e assim assumido seu lugar com os outros Sete Magi conhecidos pela história, inteiramente além da possibilidade de qualquer competição 12), começou a negligenciar o assunto. Só é capaz de se devotar à Magia como faz por haver eliminado toda ideia pessoal de sua Obra; ela se tornou tão automática quanto à respiração.

Devemos também registrar aqui seus extraordinários poderes em certas esferas pouco usuais. Ele pode rememorar o mínimo detalhe de uma escalada, após anos de ausência. Pode retraçar seu percurso em qualquer caminho que tenha algum dia atravessado, por pior que seja o tempo ou por mais escura que seja a noite. Pode adivinhar a única passagem possível através da geleira mais complexa e perigosa 13).

Possui um senso de direção independente de qualquer método físico para identificarmos nossa posição em algum lugar; e este senso funciona tanto em cidades que lhe são estranhas quanto em montanhas ou desertos. Ele pode farejar a presença de água, de neve, e de outras substâncias supostamente inodoras. Sua resistência física é excepcional. Já escreveu durante 67 horas consecutivas: seu Tannhäuser foi redigido desta forma em 1900 e.v. Já percorreu mais de 160 quilômetros em dois dias e meio, no deserto, como ocorreu no inverno de 1910 e.v. Já fez estágios frequentes de mais de 36 horas em montanhas, sob as condições mais adversas. Retém o recorde mundial do maior número de dias passados sobre uma geleira – 65 dias no Baltoro em 1902 e.v.; também, o recorde para a mais rápida subida íngreme acima de 5000 metros de altitude: 1300 metros em 1h 23m, no Iztaccihuati em 1900 e.v.; o recorde do mais alto pico (primeira ascensão por um só alpinista) – o Nevado de Toluca em 1901 e.v.; e numerosos outros 14).

No entanto, sente-se completamente exausto à mera ideia de uma caminhada de algumas centenas de metros, se não lhe interessa, ou se não lhe excita a imaginação; e é só com o máximo esforço que ele pode escrever algumas linhas se, em vez de desejar escrevê-las, ele apenas sabe que elas devem ser escritas!

Este relato foi considerado necessário para explicar como é que um homem cujas excepcionais qualidades chegaram a torná-lo mundialmente famoso em tantas e tão diversas esferas de ação pode ser tão grotescamente incapaz de utilizar suas faculdades, ou mesmo suas consecuções, em qualquer dos campos usuais da atividade humana; incapaz de consolidar sua proeminência pessoal, ou mesmo de assegurar a sua posição do ponto de vista social e econômico.

Notas
1) N.T.: A Irmandade de Plymouth foi uma das mais puritanas seitas protestantes inglesas.
2) N.T.: Outra das mais fanáticas seitas protestantes inglesas.
3) As datas neste parágrafo possivelmente não são exatas. Não temos evidência documentária a nosso dispor no momento presente. – Ed.
4) Este traço curioso pode ser interpretador como evidência do senso poético dele, da sua paixão pelo bizarro e pelo misterioso, ou mesmo de sua aptidão para a Cabala Hebraica. Também pode ser interpretado como uma indicação da sua ancestralidade mágica.
5) O primeiro homem a derrotá-lo foi H.E. Atkins, campeão amador de xadrez da Inglaterra durante muitos anos.
6) N.T.: um compêndio popular nos colégios ingleses da época.
7) N.T.: Ele não menciona que esperava tirar primeiro lugar; se soubesse que tiraria sexto, teria se preparado durante uma semana…
8) N.T.: O aluno que tem que “se preparar” para um exame final não estudou durante o ano.
9) Similarmente, Swinburne recusou ser examinado nos clássicos em Oxford, declarando que sabia mais que os examinadores.
10) Também em xadrez tem derrotado muitos mestres internacionais, e no Continente é considerado um Mestre Menor. Mas não se pode ter certeza de que vencerá um jogador de segunda classe num torneio interno de clube.
11) N.T.: Seu último contato sério com o jogo foi quando se apresentou para competir num campeonato. A atmosfera de ânsia de resultado era tão patética entre os jogadores que ele se retirou e nunca mais se candidatou em tais competições.
12) N.T.: É impossível “destronar” um Mago. O máximo que se pode fazer é sucedê-lo – quando é tempo!
13) Exemplos, o Vulbez séraes em 1897 e.v.; o Mer de Glace, centro-direita, em 1899 e.v.
14) Isto foi escrito em 1920 e.v.; estes recordes podem não mais ser válidos.

Jacques Bergier - Melquisedeque

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