segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Biografia Johannes Von Heidelberg


Johannes Von Heidelberg (Jean Trittheme) nasceu em 02 de Fevereiro de 1462, na aldeia de Tritthenheim, faleceu em 27 de Dezembro de 1516, em Wurzburg, Alemanha.
Embora órfão de pai e bastante pobre, estudou e, com 12 anos, teve uma visão durante a qual lhe foi revelado que os seus desejos mais secretos seriam realizados.
Estudou em Trèves e depois em Heidelberg, fundando entre os 18 e 19 anos, uma associação denominada Sociedade Literária Renana, de caráter humanista. A base deste grupo era formada por três amigos: Jean de Dalberg, pessoa considerada no mundo universitário e político da época, que passou a usar o nome de Jean Camerarius, Rodophe Huesmann, conhecido por Agrícola e Jean de Heidelberg, que a partir dessa época passou a intitular-se Trittheme, a mais simples explicação da derivação deste nome seria o nome da sua aldeia natal, Tritthenheim.
A Sociedade Literária Renana se preocupava muito com a filosofia pitagórica e a mística dos números, talvez se possam atribuir a Trittheme um sentido mais cabalístico ligado ao número três: três amigos, dos quais ele era o terceiro, que procuravam fazer a síntese das três culturas: cristã, grega e hebraica.
Posteriormente, a Sociedade Renana passou a designar-se por: Confraria Céltica, e que parece reforçar o seu aspecto esotérico. Nessa altura contava entre seus membros, grandes professores, como: Jacques Wimpfeling, um dos grandes eruditos da Renascença, tendo dedicado praticamente toda a sua vida ao estudo dos textos gregos, tinha como pseudônimo o nome "Olearius", outro foi Conrad Meissel, um hermetista de grande valor, tinha o pseudônimo de "Celtes Protucius (o primeiro dos Celtas) e sobretudo, Paul Ricci, um judeu convertido que difundiu entre seus amigos os ensinamentos da Cabala.
Porém, no início de 1482, Trittheme opta, graças ao "acaso", por outra via que o levará ao segundo período de sua existência e o transformará no célebre padre do mosteiro de Spanheim. O jovem sente um desejo repentino de visitar a mãe e o irmão em Trittenheim, Jean de Dalberg encoraja-o a empreender a viagem, mas predis-lhe que ele encontrará durante ela a chave de uma nova vida.
Em 25 de Janeiro de 1482, Trittheme interrompe sua viagem para descansar no caminho, no mosteiro beneditino de Saint Martin, em Spanheim, recupera as forças e parte de novo, mas o inverno, e a neve caindo abundantemente, obrigaram-no a voltar ao mosteiro; não imaginava que ficaria lá durante 23 anos. 
No dia 2 de Fevereiro de 1482, ao completar 20 anos, inspirado pela graça divina, Trittheme conhece a iluminação, a sua fé imensa consegue convencer os que o rodeavam.
A 21 de Março era noviço, a 21 de Novembro, profeta, no ano seguinte, a 21 de Julho de 1483, o monge Trittheme é eleito abade do mosteiro, sendo confirmado pelo bispo; supõe-se que seu êxito e também a aprovação do bispo não são devidos somente às qualidades do jovem profeta, mas também pelo possível apoio de Jean de Dalberg, assim aos 21 anos encontra-se à frente de uma casa de Deus, tendo então descoberto o seu caminho.
No mosteiro, Trittheme não só revelou-se como um grande crente, mas também como um condutor de homens, logo que assume o posto de chefia, empreende uma limpeza da qual a casa necessitava, mandou consertar os prédios avariados, reconstrói, traça planos; o mosteiro recebe um sopro de vida, graças a ele.
Realiza também uma obra no campo espiritual, luta contra a inércia, contra a atonia mental provocada pela ausência de diretivas. A ordem dos Beneditinos fora reformada em 1425 por Jean de Minden, abade de Burafele, mas em Spanheim continuava à moda antiga. Daí em diante, pela direção enérgica e esforçada, Trittheme é reconhecido e encorajado pelos seus superiores, obtém doações que lhe permitem novos empreendimentos, que ajudam a resolver problemas pendentes, pagou dívidas, recuperou bens que estavam perdidos ou empenhados; enfim pôs os assuntos temporais em ordem.
Ao mesmo tempo, com o objetivo de conseguir fontes de receita e mais ainda, para tirar os monges da ociosidade e orientar seus pensamentos para a pesquisa e reflexão, decidiu aumentar a biblioteca do mosteiro que era bastante pobre: 48 manuscritos e alguns livros impressos, estes últimos não tinham interesse.
Por julgar que as produções em papel simples não poderiam durar "mais de duzentos anos", ele obrigou os monges a recopiarem admiráveis manuscritos para pergaminho, utilizando tintas polícromas, foram feitas obras-primas; a biblioteca passa a conter 2000 manuscritos, desloca-se pessoas de todos os países germânicos para as consultar, Spanheim torna-se numa cidade do livro.
O próprio Trittheme se dedica à escrita: Dois Livros de Sermões e Exortações em 1486, um Elogio dos Irmãos da Ordem dos Carmos em 1492, uma obra sobre os Escritores Eclesiásticos em 1494, outras ainda sobre teologia, sobre Santa Ana, sobre os milagres da Virgem e outras que serão citadas.
Trittheme investigou manuscritos herméticos, adquiriu experiência em magia, cabala, alquimia, estudou o significado oculto das palavras; muitos dos seus trabalhos são em linguagem simbólica, entendida unicamente pelos iniciados, foi o primeiro autor importante sobre criptografia.
Spanheim ficou famosa, o abade tinha contato direto ou por escrito com numerosos sábios ou teólogos da época; foi mestre de Agrippa, amigo de Paracelso, posteriormente outros inspiraram-se em suas obras.
Em 1498, Arnould Bostius, frade da Ordem dos Carmos, queria saber dos seus projetos, e em que estudos se ocupava e curiosamente Trittheme resolveu responder por escrito, em carta extremamente pormenorizada, em 1499, e que por acidente iria tornar-se pública, quando chegou ao seu superior, o prior do mosteiro de Grand, que não acreditou no que lia.
Esta carta, Trittheme a transcreveu na sua Poligrafia, ele mesmo conta o que se passa em seguida: outros monges leram a carta, alguns recopiaram-na, ao fim de pouco tempo ela era tornada pública não só na Alemanha como na França e Itália. Algumas pessoas pensaram tratar-se de mentiras, outros de fantasia destinada a obter um êxito fácil, alguns consideraram a carta, obra do diabo.
Trittheme sentiu-se profundamente atingido, o caso assumia proporções inquietantes que colocavam em risco a sua carreira. Até os monges de Spanheim começavam a murmurar contra ele, apesar de tudo a eleição de Trittheme para abade aos 21 anos não devia ter agradado a toda gente, haveria quem se sentisse frustrado nas suas ambições e agora havia oportunidade para vingança.
A carta de Trittheme explicava em que consistia a obra em que trabalhava, cujo título era: "Esteganografia" e tratava de uma invenção importante. Dizia ela: "Tenho em mãos e possuo uma grande obra, admirável, a qual, uma vez terminada, conhecida e publicada (o que espero venha a suceder), será considerada por todos, mais do que admirável e uma autêntica maravilha. Intitulei-a: Esteganografia... e dividi-a em 4 livros, o mais pequeno deles terá mais de 100 capítulos.
Posso garantir-vos que esta obra, onde falo de grande número de segredos e mistérios pouco conhecidos, a todos parecerá, mesmo aos ignorantes, conter coisas sobre-humanas, espantosas e incríveis, uma vez que ninguém escreveu ou falou sobre elas antes de mim.
O primeiro livro mostra mais de 100 maneiras de escrever secretamente e sem provocar qualquer suspeita aquilo que se desejar, em qualquer língua, sem que se consiga adivinhar o conteúdo, e isto sem o recurso a metástases ou a transposições de letras e também sem qualquer receio ou dúvida de que o segredo possa ser conhecido por alguém estranho àquele a quem cabalisticamente eu tenha ensinado esta ciência ou a alguém a quem o meu binário o tenha, também cabalisticamente, transmitido; uma vez que todas as palavras e termos empregados são simples e familiares, mesmo assim, ninguém, por mais experimentado que seja, poderá descobrir por si só o sagrado, o que a todos parecerá uma coisa admirável e que os ignorantes considerarão uma impossibilidade.
No segundo livro tratarei de coisas ainda mais maravilhosas relacionadas com certos meios, graças aos quais consigo, de uma forma segura, impor a minha vontade a quem captar o sentido da minha ciência, e isto sem que me possam acusar de ter usado quaisquer sinais, figuras ou caracteres, e se me servir de um mensageiro escolhido ao acaso, não há súplica ou ameaça, promessa ou violência, que possa obriga-lo a revelar o meu segredo, pois ele o desconhecê-lo-á, eis porque ninguém por mais hábil que seja, conseguirá descobrir esse segredo. E realizo facilmente todas essas coisas, quando me aprouver, sem a ajuda de ninguém, nem de mensageiros, mesmo com um prisioneiro encarcerado num lugar remoto, vigiado por guardas atentos. Sou capaz de provar o que afirmo, não me sirvo de espíritos nem de magia, apenas de um processo simples e natural.
O terceiro livro permite a todos os homens ignorantes que apenas conhecem a sua língua materna, entender em duas horas a língua latina e escrever de forma elegante, de tal maneira que os que o lerem compreenderão o seu discurso e só poderão dirigir-lhe louvores.
No quarto livro posso provar que a minha ciência é compreensível a todos os que eu ensinar e servir-me dela em qualquer momento do dia, por muito longe de mim que esteja o meu cabalístico (aquele que no seu segredo, recebe a mensagem).
Falo ainda de um grande número de segredos que não posso revelar agora. Ora eu não duvido que muitas pessoas que leram mas não compreenderam o que escrevi, consideram estas coisas admiráveis mas impossíveis, tal como sucedeu com certos sábios diante dos quais fiz algumas experiências fáceis e que não se deixaram convencer por elas.
Para resumir, afirmo em consciência e perante Deus, que tudo sabe e vê, que as coisas admiráveis que menciono e descrevo são incomparavelmente mais importantes e profundas do que posso dizer e do que vós sois capazes de compreender.
Todas estas coisas são naturais, isentas de artimanhas, de idéias supersticiosas, de artes mágicas, isto é, de invocação de espíritos, afirmo-o nesta carta a fim de que se a mostrares ou a deres a ler aos vossos amigos, nenhum deles pense que eu sou mago, como sucedeu com Alberto o Grande, que, apesar de grande filósofo e profundo investigador dos segredos da Natureza, foi no entanto considerado mago porque os seus conhecimentos, adquiridos graças a um trabalho assíduo, a grandes estudos e aplicação, ultrapassavam a inteligência dos seus contemporâneos.
Trittheme, em sua carta, tem consciência de que as suas descobertas serão atribuídas à magia.
Outra infelicidade espreitava Trittheme, ao que parece, ele nunca renunciou de provar a sua boa-fé, nessa época, em 1504, um visitante francês: Charles de Bouelles, um viajante erudito, como havia muitos no século XVI, parou no mosteiro para ver Trittheme, com quem a muito se correspondia.
Trittheme escreve "Charles de Bouelles veio pedir-me o favor de o receber como hóspede antes do seu regresso à França, na ocasião, mostrei-lhe minha obra sobre a Esteganografia, que ainda não estava terminada, e ele admirou-a, louvou-a até, embora não tivesse compreendido o seu significado, pois não possuía nem a inteligência nem a chave e não era merecedor de ouvir nem de receber o nosso ensinamento" l: Poligrafia: Epístola a Maximiliano.
Trittheme não se enganara no juízo que fizera, tinha talvez um pressentimento que infelizmente concretizou-se, Charles de Bouelles não compreendeu sua obra, pouco depois escreveu a Germain de Ganay, bispo de Cahors e depois de Orléans, nos seguintes termos: "Folheei a obra de Trittheme, considero-o não só um mágico como também um ignorante completo em matéria de filosofia. Li bastante por alto a sua Estenografia, limitando-me ao começo de alguns capítulos, mas só a custo consegui estar duas horas com o livro entre as mãos, pondo-o de lado por causa das inúmeras conjurações bárbaras que contém e dos nomes desusados que ele chama aos espíritos, não sei se deva dizer diabos, e que começaram a fazer-me medo".
Na seqüência da sua carta, ele afirma claramente que Trittheme tinha um acordo feito e contraído com os maus espíritos.
Depois do prior de And, esta segunda peritagem, baseada em apenas fragmentos, de Charles de Bouelles, que classificava a obra de estranha e inexplicável, com misturas de diabolismo, desta vez, Trittheme estava perdido, a partir daí, até o fim de sua vida protesta e jura inocência sem que obtenha crédito, a Esteganografia nunca será publicada na íntegra. Escrevia Trittheme: "Afirmo peremptoriamente, que digo a verdade e que nunca tive comércio com os demônios e outras entidades malfazejas, uma vez que nunca pratiquei as artes mágicas, nem a dos necromantes, antes pelo contrário, aquilo que escrevi ou que me propus escrever era puro, são, natural e sem contradição com a fé do cristo, que a Esteganografia espere a sua hora mergulhada nas trevas, embora nada tenha a ver com as alegações mentirosas de De Bouelles, que costuma fazer juízos acerca de coisas que não conhece e sujar o nome de Homens justos e bons.
Além de tudo, a revolta dos monges no mosteiro assumira aspectos dramáticos, e em 1505 Trittheme demitiu-se de suas funções, mas graças às altas proteções de que gozava, foi eleito no ano seguinte, a 3 de Outubro de 1506, prior do mosteiro de Saint-Jacques de Wurzburg. O lugar era invejável, mas Trittheme perdera sua bela biblioteca e a casa onde trabalhava durante tantos anos com amor e dedicação. Isso causou-lhe um profundo desgosto em seus últimos anos, podemos dizer que esse terceiro período da sua vida foi quase que inteiramente dedicado a apagar o efeito produzido pela sua famosa carta à Bostius.
Nos seus inúmeros protestos há um tom de sinceridade que impressiona, nem em intenções esse homem seria capaz de trair a sua fé pelo prazer de escrever um livro, que ele fosse adversário das ciências secretas, como afirmava, é menos certo; datam da época em que Trittheme sentiu necessidade de proclamar a sua perfeita ortodoxia. Ele levou as suas pesquisas para além da simples e clássica teologia.
Em uma carta de 15 de Maio de 1503, escreveu "Nada fiz de muito extraordinário e, no entanto, espalhou-se o boato de que eu sou mágico. Li a maior parte dos livros dos mágicos, não para os imitar, mas com o objetivo de, um dia, refutar as suas superstições maldosas".
Ele era contra os astrólogos e alquimistas da época, porque ele acreditava numa astrologia cabalística a qual considerava legítima, tanto que escreveu o tratado das "Sete Causas Segundas", que era a construção de um sistema da história do mundo por ciclos.
Este tratado foi traduzido ao francês, 1897 com o nome: "Traité das causas secondes". Também chegou a profetizar, anunciando acontecimentos que ocorreriam na época que ele designa por "décimo nono período", pouco depois de sua morte, originando o estabelecimento de uma nova religião (o protestantismo de Lutero).
Ele pretendia substituir a magia negra, a goécia, por uma magia natural, com base na verdadeira Cabala, numa alquimia espiritual, numa ciência simultaneamente secreta e cristã, tudo orientado para o conhecimento absoluto. Ele deixou um texto alquímico intitulado: "A Pedra Filosofal", em uma carta de 25 de Novembro de 1506, faz um elogio à alta magia, a magia divina. Conhecia vários aspectos da Cabala, não daquela que foi posteriormente adulterada e desviada do seu objetivo, mas da ciência autêntica dos rabinos empenhados em descobrir os segredos de Deus e da Criação.
Algumas de suas obras: Antipalus Maleficorum, 1508, obra contra a magia negra, publicada como: "O Adversário dos Malefícios", publicada em Ingoltadt, em 1555.
Tratados Históricos e Teológicos - Poligrafia, entre 1505 a 1508 e publicada dois anos após sua morte, em 1518.
Liber olto Questionum-1508
Steganografia nen con Claviculae Salomonis, publicado em Lyon, em 1551 e Frankfurt em 1606.
Curiosidades Reais, em 1511, eram respostas às perguntas do Imperador sobre assuntos religiosos.
Com anos depois de sua morte surge uma obra intitulada Esteganografia, Frankfurt, 1608, que provavelmente não é original.
O manuscrito original, diz-se que foi queimado pelo conde Frederico II, filho de Mestre Eleitor Philippe, que o encontrou na biblioteca do pai e julgou prudente destruí-lo, receando pela salvação da sua alma...
Inúmeras cópias da "Esteganografia" circularam após a morte de Trittheme, todas diferentes entre si, a maldição continuava a persegui-la, a versão impressa em três livros, em 1606, e que nada contém de diabólico, foi posta no Index pela Congregação do Santo Ofício, essa condenação absolutamente incompreensível manteve-se até à edição de 1930.
Nunca saberemos em que consistia esse meio de enviar uma mensagem "a mais de cem léguas de distância" e "para o lugar mais profundo que se possa imaginar", Trittheme não nos deixou indicações suficientes para a interpretação de sua obra, ele utilizou, como em outros textos, um pouco de astrologia, um pouco de alquimia, um pouco de Cabala, enfim, ciências orientadas para o Bem e que ele considerava incluírem-se perfeitamente na doutrina cristã. Também não há dúvidas de que Trittheme estudou a criptografia para servir-se dela, para enviar ele próprio uma mensagem.
Seus Trabalhos mágicos tratavam de ocultar os mistérios, a sua obra: "Verterum sophorum sigiela et imagines magiose", é uma história de magia toda em pantáculos; quanto a sua doutrina, ele a exprimiu por um pantáculo, segundo o uso dos verdadeiros Adeptos, este pantáculo, raro acha-se apenas em alguns exemplares manuscritos do tratado das Causas Segundas.
Segundo Eliphas Levi, Trittheme foi o maior mago dogmático, da Idade Média, na sua "Esteganografia" e em sua "Poligrafia", ele dá a chave de todas as escrituras ocultas e explica em termos velados, a ciência real dos encantamentos e das evocações; em magia foi o mestre dos mestres e também o mais sábio dos Adeptos.
Trittheme passou os últimos dez anos de sua vida em Wurzburg, até a sua pedra tumular, cuja inscrição se deve ao vigário-geral George Flachius, foi realizada cinqüenta anos após sua morte, ela diz o seguinte: "O abade Trittheme, glória da terra germânica, que aqui jaz, mereceu este monumento. Os admiráveis escritos saídos da sua pena mostram como foi admirado pelas suas obras e pela sua virtude, como também o prova a consideração que sempre lhe testemunhou o imperador Maximiliano. Em vez de mágico, é autor de uma obra contra a magia (uma obra pouco conhecida:" O adversário dos Malefícios ", publicada em 1555, muito tempo depois de sua morte). A sua fama não morre e ele vive na bem-aventurança espiritual do reino dos Céus".

Obs.: Trittheme foi mestre de Agrippa e Paracelso.

Mitologia Egípcia Isis


Nenhuma personalidade do panteão egípcio pode rivalizar com a deusa Ísis, sublime essência da alma de uma das mais excelsas e proeminentes civilizações da antiguidade e maga detentora do esplendor ofuscante que a conduziu até ao auge da popularidade. Surgindo na teologia heliopolitana como fruto dos amores entre o céu (Nut) e a terra (Geb), Ísis reinara com uma sabedoria incontestável nas Duas Terras, o Alto e o baixo Egipto, muito antes do nascimento das dinastias. O amor que unia Ísis a Osíris em ternos esponsais vestia a sua alma com uma felicidade que abraçava o Infinito. Todavia, em breve a doce melodia que tão mítica perfeição dedilhava na harpa da sua vida seria, pelas trevas, resumida a um rol de acordes dissonantes, orquestrados numa sinfonia de silêncio e dor. 

Tão vil prelúdio de uma noite sem fim surgiu sob a forma de um convite de Seth, que solicitava afavelmente a presença de seu irmão Osíris num banquete. Sem jamais cogitar que se tratava de uma ímpia conjuração, Osíris não declinou a oferta, colocando-se então à mercê de um execrável assassino. Algures no decorrer do banquete, Seth apresentou um caixão de proporções verdadeiramente excepcionais, assegurando que recompensaria generosamente aquele que nele coubesse. Imprudente, Osíris aceitou prontamente o desafio, permitindo que Seth e os seus acólitos pregassem a tampa e consequentemente o tornassem escravo da morte. Cometido o hediondo crime, o assassino Seth, que cobiçava ocupar o trono de seu irmão, lança a urna ao Nilo, para que o rio a conduzisse até ao mar, onde veio a perder-se. Este trágico incidente deu-se no décimo sétimo dia do mês Athyr, quando o Sol se encontra sob o signo de Escorpião. Quando Ísis tomou conhecimento do ocorrido, baniu de sua alma todo o desespero que a assombrava e abraçou a resolução de procurar o seu marido, a fim de lhe restituir o sopro da vida. Assim, cortou uma madeixa do seu cabelo, estigma da sua desolação, colocou o seu vestuário matutino e errou por todo o Egipto, na ânsia de ver a sua diligência coroada de êxito.

Por seu turno, e após haver dançado nas ondas do mar, a urna atingiu finalmente uma praia, perto da Babilónia, na costa do Líbano, enlaçando-se nas raízes de um jovem tamarindo, cujo prolixo crescimento a prendeu no interior do seu tronco. Ao alcançar o clímax da sua beleza, a imponente árvore atraiu a atenção do rei desse país, persuadindo-o a ordenar ao seu séquito que o tamarindo fosse derrubado, com o fito de ser utilizado como pilar na sua casa. Em simultâneo com o crescimento da referida árvore, Ísis prosseguia tão exaustivas busca pelo cadáver de seu marido, pelo que, ao escutar as histórias tecidas em torno da surpreendente árvore, tomou de imediato a resolução de ir à Babilónia, na esperança de ultimar enfim e com sucesso a sua odisseia. Ao chegar ao seu destino, Ísis sentou-se perto de um poço, ostentando um disfarce humilde e brindou os transeuntes que por ela passavam com um rosto lavado em lágrimas. Os relatos da sua inusitada condição rapidamente chegaram aos reis da Babilónia, que, intrigados, propuseram-se a conhecer o motivo de tanto desespero. Quando Ísis os viu estancar defronte de si, presenteou-os com saudações cordiais, reverentes e, solicitou-lhes que permitissem que os seus cabelos ela entrançasse. Uma vez que os regentes, embora servos da perplexidade, não impuseram qualquer veto ao seu convite, Ísis uniu o gesto à palavra, incensado as tranças que talhava pouco a pouco com o divino perfume exalado por seu ástreo corpo. Ultimado tão peculiar ritual, a rainha da Babilónia apressou-se a contemplar o resultado final, sendo enfeitiçada pelo irresistível aroma que seus cabelos emanavam. Literalmente inebriada por tão doce perfume dos céus, a rainha ordenou então a Ísis que a acompanhasse até ao palácio.

Assim, a deusa franqueou a entrada do palácio do rei da Babilónia, junto do qual conquistou o privilégio de tornar-se na ama do filho recém-nascido do casal régio, a quem amamentava com o seu dedo. Devido aos laços que a vinculavam à criança, Ísis desejou conceder-lhe a imortalidade, pelo que, todas as noites, a queimou, num fogo divino e, como tal, indolor, para que as suas partes mortais ardessem no esquecimento. Certa noite, durante este processo, ela tomou a forma de uma andorinha, a fim de cantar as suas lamentações. Maravilhada, a rainha seguiu a melopeia que escutava, entrando no quarto do filho, onde se deparou com um ritual aparentemente hediondo. De forma a tranquilizá-la, Ísis revelou-lhe a sua verdadeira identidade, e ultimou precocemente o ritual, mesmo sabendo que dessa forma estaria a privar o pequeno príncipe da imortalidade que tanto desejava oferecer-lhe. Observando que a rainha a contemplava, siderada, Ísis aventurou-se a confidenciar-lhe o lancinante incidente que a coagira a visitar a Babilónia, conquistando assim a confiança e benevolência da rainha, que prontamente aquiesceu em ceder-lhe a urna que continha os restos mortais de seu marido. Dominada por uma intensa felicidade, Ísis apressou-se a retirá-la do interior do pilar. Porém, fê-lo com tão negligente brusquidão, que os seus escombros de pedra espalharam-se por toda a divisão, atingindo, mortalmente, o pequeno príncipe. Na realidade, existem inúmeras versões deste fragmento da lenda, uma das quais afirma que a rainha expulsou Ísis, ao vislumbrar o aterrador ritual, pelo que esta retirou a urna, sem o consentimento dos seus donos. Porém, a veracidade desta versão semelha-se deveras suspicaz...

Com a urna em seu poder, Ísis regressou ao Egipto, onde a abriu, ocultando-a, seguidamente, nas margens do Delta. Numa noite, quando Ísis a deixou sem vigilância, Seth descobriu-a e apoderou-se, uma vez mais dela, com o intento de retirar do seu interior o corpo do irmão e cortá-lo em 14 pedaços, que foram, em seguida, arremessados ao Nilo. Ao tomar conhecimento do ocorrido, Ísis reuniu-se com a sua irmã Néftis, que não também tolerava a conduta de Seth, embora este fosse seu marido, e, juntas, recuperaram todos os fragmentos do cadáver de Osíris, à excepção, segundo refere Plutarco, escritor grego, do seu sexo, que fora comido por um peixe. Novamente deparamo-nos com alguma controvérsia, uma vez que outras fontes egípcias afirmam que todo o corpo foi recuperado. Acto contínuo, Ísis organizou uma vigília fúnebre, na qual suspirou ao cadáver reconstituído do marido: “Eu sou a tua irmã bem amada. Não te afastes de mim, clamo por ti! Não ouves a minha voz? Venho ao teu encontro e, de ti, nada me separará!” Durante horas, Ísis e Néftis, de corpo purificado, inteiramente depiladas, com perucas perfumadas e boca purificada por natrão (carbonato de soda), pronunciaram encantamentos numa câmara funerária ignota, que o incenso queimado impregnava de espiritualidade. A deusa invocou então todos os templos e todas as cidades do país, para que estes se juntassem à sua dor e fizessem a alma de Osíris retornar do Além. 

Uma vez que todos os seus esforços revelavam-se vãos, Ísis assumiu então a forma de um falcão, cujo esvoaçar restituiu o sopro de vida ao defunto, oferecendo-lhe o apanágio da ressurreição. Seguidamente, Ísis poisou no sítio do desaparecido sexo de Osíris, fazendo-o reaparecer por magia, e manteve-o vivo o tempo suficiente para que este a engravidasse. Em contraste, outras fontes garantem que Osíris e a sua esposa conceberam o seu filho, antes do deus ser assassinado pelo seu irmão, embora a versão mais comum seja a relatada, primeiramente. Assim, ao retornar à terra, Ísis encontrava-se agora grávida do filho, a quem protegeria até que este achasse-se capaz de enfrentar o seu tio, apoderando-se (como legítimo herdeiro) do trono que Seth havia usurpado. Alguns declaram que Ísis, algum tempo antes do parto, fora aprisionada por Seth, mas que Toth, vízir de Osíris, a auxiliara a libertar-se. Porém, muitos concordam que ela ocultou-se, secretamente, entre os papiros do Delta, onde se preparou para o nascimento do filho, o deus- falcão Hórus. Quando este nasceu, Ísis tomou a decisão de dedicar-se inteiramente à árdua incumbência de velar por ele. Todavia, a necessidade de ir procurar alimentos, coagiam-na pontualmente a ausentar-se, deixando assim o pequeno deus sem qualquer protecção. Numa dessas ocasiões, Seth transformou-se numa serpente, visando espalhar o seu veneno pelo corpo de Hórus, pelo que quando Ísis regressou da sua diligência, encontrou o seu filho já próximo das morte.

Todavia, a sua vida não foi ceifada, devido a um poderoso feitiço executado pelo deus- sol, Ra. 
Dada a sua devotada protecção, Ísis era constantemente representada na arte egípcia a amamentar tanto o seu filho, como os faraós. Sendo um dos mais populares vultos da mitologia egípcia, cujo nome é representado por um trono (e crê-se que terá mesmo esse significado), Ísis assume o lugar de deusa da família e do casamento, a quem foram concedidos extraordinários poderes curativos, empregues, essencialmente, para salvar crianças de mordeduras de cobras. Devido às suas qualidades maternais, surge, por vezes, com a forma de uma porca ou de uma vaca, o que leva a que seja confundida com Háthor (deusa do amor), com quem, na realidade, se fundiu, na Época Baixa (664-332 a.C./ XXVI- XXX Dinastias), período de tempo em que o seu culto atingiu o auge. Deste modo, o seu culto proliferou-se por toda a bacia mediterrânea, na qualidade de Ísis- Afrodite, o que demonstra bem a forma como os romanos lhe prestavam culto, esculpindo imagens em sua homenagem, nas quais ela surgia, muitas vezes, com uma túnica que flutua ao vento e com um toucado composto por espigas, chifres de vaca, um disco solar e penas de avestruz. 

Em torno do seu temperamento bravio (tão díspar da sua maternidade e benevolência!), teceu-se igualmente outra lenta, que narra a forma como Ísis, intrigada com o segredo que sustinha os poderes de Ra, conjura para obter o nome secreto do Senhor Universal, matriz das suas forças e esplendor. Assim, recolhe um pouco da sua saliva, amassa-a com terra e, com essa argila, molda uma serpente em forma de flecha, que coloca na encruzilhada dos caminhos desbravados pelo cortejo solar. Escrava da magia de Ísis, a serpente não hesita em morder Ra à sua passagem, que, com um silvo de dor, desfalece. Quando recupera a consciência, o deus- sol evoca, desesperado, todos os deuses, relatando-lhes o seu infortúnio: “ O meu pai e a minha mãe ensinaram-me o meu nome e eu dissimulei-o no meu corpo, para que mago algum o possa pronunciar como malefício para mim. Tinha eu saído para contemplar a minha criação, quando algo que desconheço me mordeu. Não foi nem fogo, nem água; mas o meu coração está em chamas, o meu corpo treme e os meus membros estão frios. Tragam-me os meus filhos, os que conhecem as fórmulas mágicas e cuja ciência chega aos céus!”. Ísis debruça-se sobre Rá e, simulando uma estupefacção imensurável, questiona: “ Que se passa? Ter-se-ia um dos teus filhos erguido contra ti? Então, destruí-lo-ei graças ao meu poder mágico e farei com que seja expulso da tua vista!” Quando o deus- sol lhe confidenciou a matriz do seu padecimento, Ísis assegurou-lhe que somente lhe entregaria o vital antídoto, caso este lhe revelasse a origem das suas imensuráveis forças. 

Exasperada por Rá se negar a atender á sua reivindicação, Ísis solicitou, novamente: “Diz-me o teu nome, meu divino Pai! Porque o homem só revive quando é chamado pelo seu nome!”
Escravizado pelo desespero, a personificação da luz oferece a Ísis um rol interminável de nomes falsos, na ânsia de que a deusa não alcançasse a percepção de que ele procurava ludibriá-la. Todavia, Ísis replicou: “ O teu nome não está entre aqueles que citaste! Diz-mo e o veneno abandonará o teu corpo, porque o homem revive quando o seu nome é pronunciado.”
Subjugado pela dor, Rá aceita o ultimato, mesmo sabendo que tal concederia a Ísis autoridade sobre a sua pessoa. Num suspiro, declara então: “Olha, minha filha Ísis, de modo que o meu nome passe do meu corpo para o teu... Mal ele saia do meu coração, repete-o ao teu filho Hórus, submetendo-o a um juramento divino!” 


Na realidade, todas as deusas egípcias possuíam esta dualidade, que as colocava entre a crueldade extrema e a indulgência infinita, num jogo de luzes e sombras que não as impediram de ser adoradas através dos tempos. A sua imagem é omnipresente e tanto cobre os sumptuosos santuários do Vale do Nilo, como os mais íntimos testemunhos de devoção pessoal. Porém, ao percorrermos o Egipto, deparamo-nos com três locais particularmente abençoados com a magia de Ísis:


Behbeit el- Hagar, no Delta, onde um sumptuoso templo foi erigido em honra de Ísis. Malogradamente, o halo de magia e espiritualidade que nimba esta excelsa deidade revelou-se impotente para deter aqueles que, não votando qualquer respeito pela sua índole sagrada, cometeram a ignomínia de destruir tão colossal santuário, onde os céus se reflectiam e renovavam num jogo divino, a fim de o transformar numa pedreira. Consequentemente, Behbeit el- Hagar é na actualidade um local quase literalmente desconhecido dos turistas e que semeia uma franca desilusão nos corações dos intrépidos que ainda o ousam visitar, pois a grandeza daquele que fora outrora um templo dedicado a uma divindade verdadeiramente excepcional resume-se agora a um monte de escombros e blocos de calcário ornados de cenas rituais.

Dendera, no alto Egipto, eterno berço de feitiços onde Ísis desabrochou para a vida, onde nos deparamos com um santuário de Háthor parcialmente conservado, com um templo coberto e com o mammisi, ou seja, “templo do nascimento de Hórus), assim como com um exíguo santuário, onde a etérea Ísis nasceu, deslumbrando o mundo com sua pele rosada e revolta cabeleira negra.

Filae, ilha- templo de Ísis, que serviu de refúgio à derradeira comunidade iniciática egípcia, mais tarde (séc. VI d. C., mais precisamente) exterminada por cristãos escravos do fanatismo. 

Mitologia Egípcia Osiris


Osíris é, indubitavelmente a mais célebre deidade do panteão egípcio e igualmente uma das mais complexas, pelo que não é, pois, de estranhar que os teólogos tenham procurado sintetizar os díspares aspectos desta personagem, através da criação de uma lenda. Para infortúnio de todos os amantes da mitologia egípcia a denominada “Lenda de Osíris” não é relatada integralmente por nenhum documento egípcio, fragmentando-se assim em trechos esparsos que relatam uma ou outra circunstância. Na realidade, a descrição completa das suas aventuras é nos oferecida por Plutarco, filósofo e escritor grego, através da sua obra “Ísis e Osíris”, na qual podemos verificar que a lenda se encontra dividida em três momentos fundamentais: o ímpio assassinato de Osíris; o nascimento e a infância de Hórus, seu filho; e o recontro entre este e Seth, aquele que lançara Osíris nos braços da morte.

Mas quem é afinal este deus, venerado por reis e plebeus, cujo coração encarnava a felicidade eterna, oferecida por seu pulsar a todos aqueles que o escutassem? Osíris despontou do seio da famigerada éneade de Heliópolis, denominação concedida à família divina criada por Átum-Rá, e na qual se reuniam nove poderosas deidades, cujas origens são narrados num mito arcaico da criação: Do caos inerte, que envolvia o universo, sob a forma do primitivo oceano Nun, emergiu uma colina de lodo, na qual poisou, latente no corpo de um escaravelho ou serpente, o deus- criador Átum, "Senhor Uno de nome misterioso", que através do seu sémen, gerou o primeiro casal divino, constituído por Shu, a atmosfera, e Tefnut, a humidade, os quais, por ser turno, procriaram Geb, a Terra, e Nut, o céu, cujos corpos achavam-se fundidos em eternas núpcias de luz. Devido à intervenção de Ra, a quem desagradava a visão de tal amor, Shu foi coagido a separar o céu e a terra. Porém, ao apartar tão sublimes amantes, o deus estava igualmente a sonhar uma imagem poética, incessantemente, representada pela arte egípcia, na qual, acima de Geb, surge um homem nu, alongado e enfeitado com plumas, erguendo nos braços Nut, de corpo semeado de estrelas. 

O nascimento de Osíris, fruto dos amores entre o céu e a terra é nos relatado por um mito que não carece de originalidade: Quando o deus- sol Ra abraçou a percepção de que no jardim da alma de Nut, desabrochava a rosa do desejo, cujo perfume incensava os seus encontros clandestinos com Geb, ele tomou a resolução de confiná-lo ao álgido Inferno de uma maldição: a deusa é proibida de dar à luz no período de tempo compreendido pelo calendário oficial. Desesperada, Nut, que se encontrava grávida de quíntuplos, resolve então pedir ajuda a Thot, senhor do tempo, que segundo alguns referem, lhe dedica uma paixão secreta. Após haver meditado sobre todas as soluções plausíveis, Thot enlaça então a resolução de jogar aos dados com a Lua. Abençoado pela Fortuna, o deus ganha a partida e obtém cinco dias suplementares no calendário. Nestes cinco dias, considerados como distintos do ano de doze meses, a maldição perdia o seu efeito, pelo que Osíris pôde enfim sublimar o mundo com seu nascimento, ocorrido no primeiro destes dias. Segundo a lenda, no instante em que Osíris floresceu para a vida, uma voz incendiou os céus com o fogo da seguinte anunciação: “O Senhor de tudo veio ao mundo!”. Algumas fontes referem também que um certo Pamyles escutou uma voz provinda de um templo tebano, que, num grito tonitruante lhe anunciou que o magnânimo Osíris, rei dos céus e da terra, havia nascido. No segundo dos dias suplementares, Nut deu à luz Hórus, o Antigo; no terceiro, o deus Seth; no quarto, Ísis; e, por fim, no quinto, Néftis, desposada por Seth.

THOTÉ na qualidade de primogénito, que Osíris herda a soberania terrestre, pelo que, após unir-se a Ísis em esponsais divinos, ascendeu ao trono do Egipto, iluminando este país com o Sol de magnanimidade e indulgência que dourava a sua alma. Reinando como soberano da terra, Osíris arrebatou os egípcios às garras da selvajaria que os escravizara até então, concedeu-lhes leis e fê-los descobrir a arte de prestar culto aos deuses. Por seu turno, Ísis, a quem a corrente prática de canibalismo horrorizava, ofereceu aos Homens o trigo e a cevada, que Osíris os ensinou a cultivar, levando-os a abdicar dos seus costumes antropófagos, em prole de uma dieta de cereais. Para além disso, Osíris é conhecido por haver sido o primeiro a colher frutos das árvores, a assentar a vinha em estacas e a pisar as uvas, visando a confecção de vinho. Na ânsia de enriquecer o tesouro da humanidade com a jóia rara do conhecimento, Osíris delegou a Ísis todas as responsabilidades subjacentes ao governo do Egipto e percorreu o mundo, saciando a sua sede com o cálice da civilização e a sua fome com o desvendar dos segredos da agricultura. O seu reinado foi assim uma sonata de harmonia perfeita, tocada no piano de luz da felicidade suprema. Todavia, em breve um artífice das trevas consagrado mestre da sua eterna confraria de sombras e medos, iria esculpir o mais nefasto silêncio, pois apesar dos poderes inerentes à sua divindade, Osíris viria a aproximar-se da humanidade, ao partilhar com ela a vereda da morte. Seu irmão Seth, esposo de Néftis, cuja alma era escrava da inveja, cobiça e ódio, ofereceu um fausto banquete, no qual exibiu uma extraordinária urna, prometendo oferecê-la, a quem nela coubesse. 

Quando Osíris aceitou o desafio, Seth selou a urna e arremessou-a ao Nilo. Ao aperceber-se de que, após uma apaixonada busca, Ísis a havia encontrado, Seth tornou a apoderar-se dela, retalhando o corpo do irmão, para lançá-lo, novamente, ao rio. Desesperada, Ísis tomou então a resolução de recuperar os catorze fragmentos do cadáver de Osíris, percorrendo, para tal efeito, todo o país. Após conquistado o sucesso, Anúbis, deus do embalsamamento, possuidor de uma cabeça de chacal, e que muitos proclamam como filho de Osíris e de Néftis, reuniu os catorze fragmentos do cadáver do poderoso deus, enrolando-os em ligaduras, com o fito de criar a primeira múmia. Ísis tomou então a forma de um falcão fêmea, de cujas asas o seu esposo recebeu, uma vez mais, a vida que havia perdido, podendo então gerar o deus- falcão, Hórus, herdeiro do trono que o seu tio Seth havia usurpado. Ultimado este acto, Osíris necessitou de regressar ao submundo, tornando-se no "Senhor da Eternidade", soberano dos mortos, que preside aos julgamentos do além. É representado na arte egípcia como um homem de rosto esverdeado, qual lodo que concebe a vida do Egipto, ostentando as insígnias do poder: coroa, ceptro em gancho e chicote. Contudo, o seu corpo assemelha-se rígido, dado surgir como uma múmia enfaixada. Este mito reflecte flagrantemente uma paixão, representando Osíris como um ser que, na terra, foi vítima de uma traição que o teria confinado à extinção eterna, caso um amor isento de limites não se houvesse oposto a tão lúgubre fortuna, reinventando em seu corpo a arte perdida da vida, através de uma esplendorosa ressurreição. Compreende-se assim que todos procurem a benção deste deus, uma vez que somente ele coroa o firmamento da vida com o arco-íris da eternidade. Assim, não constitui qualquer surpresa verificar que no Antigo Império, o faraó defunto, na ânsia de com o deus se identificar, recebia o epíteto de Osíris, enquanto que o regente abraçava a denominação de Hórus. Todavia, vicissitudes político- sociais ocorridas no final do mesmo, permitiram que a benção de Osíris deixasse de ser prerrogativa exclusiva dos soberanos, estendendo-se assim a todos funcionários. No entanto, nem sempre Osíris usufruiu desta fama, sendo pois fruto de uma prolixa evolução.

Na realidade, Osíris foi venerado desde uma época muito antiga, principiando por encarnar um deus da fertilidade, relacionado com o milho, com o ciclo do seu enterramento como semente, o seu tempo de repouso debaixo da terra, a sua germinação e, finalmente, o seu retorno à vida. Era sua, portanto, a incumbência de propiciar aos egípcios uma boa colheita, sendo também responsável pela inundação do Nilo. À medida que a sua importância aumentava, Osíris assimilou características de outros deuses, os quais substituiu gradualmente. Em Mênfis, por exemplo, adoptou as características funerárias de Sokaris e, em Abidos, usurpou a identidade e o culto de Khentiamentiu, deus dos mortos e soberano das necrópoles. Posteriormente, integrou a cosmogonia de Heliópolis, transformando-se no legítimo herdeiro de Geb e Nut. Como símbolo da ressurreição, Osíris supervisionava as entradas no seu mundo, surgindo como um Sol, durante o poente. O culto de Osíris e Isís proliferou-se, com surpreendente popularidade, na bacia mediterrânea, durante a Época Baixa (664-332 a.C./ XXVI- XXX Dinastias), influenciando, segundo muitos historiadores também o cristianismo, com os seus ensinamentos sobre morte e ressurreição. Osíris, Ísis e Hórus formaram a Tríade (família constituída por três divindades) de Abidos, cidade onde se centralizou o seu culto, celebrado num dos maiores santuários egípcios, em cujo interior jazia a cabeça do deus da morte. Era de facto naquela que viria a tornar-se na capital da oitava província do Alto Egipto, que decorria o festival anual de Osíris, ao longo do qual a barca do deus era levada em procissão e a vitória de Osíris sobre os seus inimigos celebrada.

Todavia, também outras cidades foram iluminadas pela benção de Osíris, ao receberem partes do corpo retalhado do deus, salientando-se Busíris (“Domínio de Osíris” ou “Lugar de Osíris”, no Delta Central, como uma das mais famosas, dada a sua relação com a espinha dorsal de Osíris. Por seu turno, Per- Medjed, capital da 19ª capital do Alto Egípcio, estava ligada ao mito de Osíris, através do seu falo, que, segundo a tradição, jamais foi descoberto por Ísis. 


Detalhes e Vocabulário Egípcio:

Eneada de Heliópolis: família divina constituída por Átum, deus criador, Tefnu, humidade, Shu, atmosfera, Geb, terra, Nut, céu, Osíris, Ísis, Néftis e Seth.

Ousir- Osíris

Neb djed- O Senhor da Eternidade.

Douat- submundo

Sah- múmia 

Mitologia Egípcia Horus


Hórus, mítico soberano do Egipto, desdobra as suas divinas asas de falcão sob a cabeça dos faraós, não somente meros protegidos, mas, na realidade, a própria incarnação do deus do céu. Pois não era ele o deus protector da monarquia faraónica, do Egipto unido sob um só faraó, regente do Alto e do Baixo Egipto? Com efeito, desde o florescer da época história, que o faraó proclamava que neste deus refulgia o seu ka (poder vital), na ânsia de legitimar a sua soberania, não sendo pois inusitado que, a cerca de 3000 a. C., o primeiro dos cinco nomes da titularia real fosse exactamente “o nome de Hórus”. No panteão egípcio, diversas são as deidades que se manifestam sob a forma de um falcão. Hórus, detentor de uma personalidade complexa e intrincada, surge como a mais célebre de todas elas. Mas quem era este deus, em cujas asas se reinventava o poder criador dos faraós? Antes de mais, Hórus representa um deus celeste, regente dos céus e dos astros neles semeados, cuja identidade é produto de uma longa evolução, no decorrer da qual Hórus assimila as personalidades de múltiplas divindades. 

Originalmente, Hórus era um deus local de Sam- Behet (Tell el- Balahun) no Delta, Baixo Egipto. O seu nome, Hor, pode traduzir-se como “O Elevado”, “O Afastado”, ou “O Longínquo”. Todavia, o decorrer dos anos facultou a extensão do seu culto, pelo que num ápice o deus tornou-se patrono de diversas províncias do Alto e do Baixo Egipto, acabando mesmo por usurpar a identidade e o poder das deidades locais, como, por exemplo, Sopedu (em zonas orientais do Delta) e Khentekthai (no Delta Central). Finalmente, integra a cosmogonia de Heliópolis enquanto filho de Ísis e Osíris, englobando díspares divindades cuja ligação remonta a este parentesco. O Hórus do mito osírico surge como um homem com cabeça de falcão que, à semelhança de seu pai, ostenta a coroa do Alto e do Baixo Egipto. É igualmente como membro desta tríade que Hórus saboreia o expoente máximo da sua popularidade, sendo venerado em todos os locais onde se prestava culto aos seus pais. A Lenda de Osíris revela-nos que, após a celestial concepção de Hórus, benção da magia que facultou a Ísis o apanágio de fundir-se a seu marido defunto em núpcias divinas, a deusa, receando represálias por parte de Seth, evoca a protecção de Ré- Atum, na esperança de salvaguardar a vida que florescia dentro de si. 

Receptivo às preces de Ísis, o deus solar velou por ela até ao tão esperado nascimento. Quando este sucedeu, a voz de Hórus inebriou então os céus: “ Eu sou Hórus, o grande falcão. O meu lugar está longe do de Seth, inimigo de meu pai Osíris. Atingi os caminhos da eternidade e da luz. Levanto voo graças ao meu impulso. Nenhum deus pode realizar aquilo que eu realizei. Em breve partirei em guerra contra o inimigo de meu pai Osíris, calcá-lo-ei sob as minhas sandálias com o nome de Furioso... Porque eu sou Hórus, cujo lugar está longe dos deuses e dos homens. Sou Hórus, o filho de Ísis.” Temendo que Seth abraçasse a resolução de atentar contra a vida de seu filho recém- nascido, Ísis refugiou-se então na ilha flutuante de Khemis, nos pântanos perto de Buto, circunstância que concedeu a Hórus o epíteto de Hor- heri- uadj, ou seja, “Hórus que está sobre a sua planta de papiro”. Embora a natureza inóspita desta região lhe oferecesse a tão desejada segurança, visto que Seth jamais se aventuraria por uma região tão desértica, a mesma comprometia, concomitantemente, a sua subsistência, dada a flagrante escassez de alimentos característica daquele local. Para assegurar a sua sobrevivência e a de seu filho, Ísis vê-se obrigada a mendigar, pelo que, todas as madrugadas, oculta Hórus entre os papiros e erra pelos campos, disfarçada de mendiga, na ânsia de obter o tão necessário alimento. Uma noite, ao regressar para junto de Hórus, depara-se com um quadro verdadeiramente aterrador: o seu filho jazia, inanimado, no local onde ela o abandonara. Desesperada, Ísis procura restituir-lhe o sopro da vida, porém a criança encontrava-se demasiadamente débil para alimentar-se com o leite materno. Sem hesitar, a deusa suplica o auxílio dos aldeões, que todavia se relevam impotentes para a socorrer.

OLHO DE HÓRUS

Quando o sofrimento já quase a fazia transpor o limiar da loucura, Ísis vislumbrou diante de si uma mulher popular pelos seus dons de magia, que prontamente examinou o seu filho, proclamando Seth alheio ao mal que o atormentava. Na realidade, Hórus ( ou Harpócrates, Horpakhered- “Hórus menino/ criança”) havia sido simplesmente vítima da picada de um escorpião ou de uma serpente. Angustiada, Ísis verificou então a veracidade das suas palavras, decidindo-se, de imediato, e evocar as deusas Néftis e Selkis (a deusa- escorpião), que prontamente ocorreram ao local da tragédia, aconselhando-a a rogar a Ré que suspendesse o seu percurso usual até que Hórus convalescesse integralmente. Compadecido com as suplicas de uma mãe, o deus solar ordenou assim a Toth que salvasse a criança. Quando finalmente se viu diante de Hórus e Ísis, Toth declarou então: “ Nada temas, Ísis! Venho até ti, armado do sopro vital que curará a criança. Coragem, Hórus! Aquele que habita o disco solar protege-te e a protecção de que gozas é eterna. Veneno, ordeno-te que saias! Ré, o deus supremo, far-te-á desaparecer. A sua barca deteve-se e só prosseguirá o seu curso quando o doente estiver curado. Os poços secarão, as colheitas morrerão, os homens ficarão privados de pão enquanto Hórus não tiver recuperado as suas forças para ventura da sua mãe Ísis. Coragem, Hórus. O veneno está morto, ei- lo vencido.”

Após haver banido, com a sua magia divina, o letal veneno que estava prestes a oferecer Hórus à morte, o excelso feiticeiro solicitou então aos habitantes de Khemis que velassem pela criança, sempre que a sua mãe tivesse necessidade de se ausentar. Muitos outros sortilégios se abateram sobre Hórus no decorrer da sua infância (males intestinais, febres inexplicáveis, mutilações), apenas para serem vencidos logo de seguida pelo poder da magia detida pelas HÓRUS sublimes deidades do panteão egípcio. No limiar da maturidade, Hórus, protegido até então por sua mãe, Ísis, tomou a resolução de vingar o assassinato de seu pai, reivindicando o seu legítimo direito ao trono do Egipto, usurpado por Seth. Ao convocar o tribunal dos deuses, presidido por Rá, Hórus afirmou o seu desejo de que seu tio deixasse, definitivamente, a regência do país, encontrando, ao ultimar os seus argumentos, o apoio de Toth, deus da sabedoria, e de Shu, deus do ar. Todavia, Ra contestou-os, veementemente, alegando que a força devastadora de Seth, talvez lhe concedesse melhores aptidões para reinar, uma vez que somente ele fora capaz de dominar o caos, sob a forma da serpente Apópis, que invadia, durante a noite, a barca do deus- sol, com o fito de extinguir, para toda a eternidade, a luz do dia. Ultimada uma querela verbal, que cada vez mais os apartava de um consenso, iniciou-se então uma prolixa e feroz disputa pelo poder, que opôs em confrontos selváticos, Hórus a seu tio. Após um infrutífero rol de encontros quase soçobrados na barbárie, Seth sugeriu que ele próprio e o seu adversário tomassem a forma de hipopótamos, com o fito de verificar qual dos dois resistiria mais tempo, mantendo-se submergidos dentro de água. 

Escoado algum tempo, Ísis foi incapaz de refrear a sua apreensão e criou um arpão, que lançou no local, onde ambos haviam desaparecido. Porém, ao golpear Seth, este apelou aos laços de fraternidade que os uniam, coagindo Ísis a sará-lo, logo em seguida. A sua intervenção enfureceu Hórus, que emergiu das águas, a fim de decapitar a sua mãe e, acto contíguo, levá-la consigo para as montanhas do deserto. Ao tomar conhecimento de tão hediondo acto, Rá, irado, vociferou que Hórus deveria ser encontrado e punido severamente. Prontamente, Seth voluntariou-se para capturá-lo. As suas buscas foram rapidamente coroadas de êxito, uma vez que este nem ápice se deparou com Hórus, que jazia, adormecido, junto a um oásis. Dominado pelo seu temperamento cruel, Seth arrancou ambos os olhos de Hórus, para enterrá-los algures, desconhecendo que estes floresceriam em botões de lótus. Após tão ignóbil crime, Seth reuniu-se a Rá, declarando não ter sido bem sucedido na sua procura, pelo que Hórus foi então considerado morto. Porém, a deusa Hátor encontrou o jovem deus, sarando-lhe, miraculosamente, os olhos, ao friccioná-los com o leite de uma gazela. Outra versão, pinta-nos um novo quatro, em que Seth furta apenas o olho esquerdo de Hórus, representante da lua. Contudo, nessa narrativa o deus-falcão, possuidor, em seus olhos, do Sol e da lua, é igualmente curado.

Em ambas as histórias, o Olho de Hórus, sempre representado no singular, torna-se mais poderoso, no limiar da perfeição, devido ao processo curativo, ao qual foi sujeito. Por esta razão, o Olho de Hórus ou Olho de Wadjet surge na mitologia egípcia como um símbolo da vitória do bem contra o mal, que tomou a forma de um amuleto protector. A crença egípcia refere igualmente que, em memória desta disputa feroz, a lua surge, constantemente, fragmentada, tal como se encontrava, antes que Hórus fosse sarado. Determinadas versões desta lenda debruçam-se sobre outro episódio de tão desnorteante conflito, em que Seth conjura novamente contra a integridade física de Hórus, através de um aparentemente inocente convite para o visitar em sua morada. A narrativa revela que, culminado o jantar, Seth procura desonrar Hórus, que, embora precavido, é incapaz de impedir que um gota de esperma do seu rival tombe em suas mãos. Desesperado, o deus vai então ao encontro de sua mãe, a fim de suplicar-lhe que o socorra. Partilhando do horror que inundava Hórus, Ísis decepou as mãos do filho, para arremessá-las de seguida à água, onde graças à magia suprema da deus, elas desaparecem no lodo. Todavia, esta situação torna-se insustentável para Hórus, que toma então a resolução de recorrer ao auxílio do Senhor Universal, cuja extrema bonomia o leva a compreender o sofrimento do deus- falcão e, por conseguinte, a ordenar ao deus- crocodilo Sobek, que resgatasse as mãos perdidas. Embora tal diligência haja sido coroada de êxito, Hórus depara-se com mais um imprevisto: as suas mãos tinham sido abençoadas por uma curiosa autonomia, incarnando dois dos filhos do deus- falcão. 

Novamente evocado, Sobek é incumbido da taregfa de capturar as mãos que teimavam em desaparecer e levá-las até junto do Senhor Universal, que, para evitar o caos de mais uma querela, toma a resolução de duplicá-las. O primeiro par é oferecido à cidade de Nekhen, sob a forma de uma relíquia, enquanto que o segundo é restituído a Hórus. Este prolixo e verdadeiramente selvático conflito foi enfim solucionado quando Toth persuadiu Rá a dirigir uma encomiástica missiva a Osíris, entregando-lhe um incontestável e completo título de realeza, que o obrigou a deixar o seu reino e confrontar o seu assassino. Assim, os dois deuses soberanos evocaram os seus poderes rivais e lançaram-se numa disputa ardente pelo trono do Egipto. Após um recontro infrutífero, Ra propôs então que ambos revelassem aquilo que tinham para oferecer à terra, de forma a que os deuses pudessem avaliar as suas aptidões para governar. Sem hesitar, Osíris alimentou os deuses com trigo e cevada, enquanto que Seth limitou-se a executar uma demonstração de força. Quando conquistou o apoio de Ra, Osíris persuadiu então os restantes deuses dos poderes inerentes à sua posição, ao recordar que todos percorriam o horizonte ocidental, alcançando o seu reino, no culminar dos seus caminhos. Deste modo, os deuses admitiram que, com efeito, deveria ser Hórus a ocupar o trono do Egipto, como herdeiro do seu pai. Por conseguinte, e volvidos cerca de oito anos de altercações e recontros ferozes, foi concedida finalmente ao deus- falcão a tão cobiçada herança, o que lhe valeu o título de Hor-paneb-taui ou Horsamtaui/Horsomtus, ou seja, “Hórus, senhor das Duas Terras”.Como compensação, Rá concedeu a Seth um lugar no céu, onde este poderia desfrutar da sua posição de deus das tempestades e trovões, que o permitia atormentar os demais. Este mito parece sintetizar e representar os antagonismos políticos vividos na era pré- dinástica, surgindo Hórus como deidade tutelar do Baixo Egipto e Seth, seu oponente, como protector do Alto Egipto, numa clara disputa pela supremacia política no território egípcio. Este recontro possui igualmente uma cerca analogia com o paradoxo suscitado pelo combate das trevas com a luz, do dia com a noite, em suma, de todas as entidades antagónicas que encarnam a típica luta do bem contra o mal. A mitologia referente a este deus difere consoante as regiões e períodos de tempo. Porém, regra geral, Hórus surge como esposo de Háthor, deusa do amor, que lhe ofereceu dois filhos: Ihi, deus da música e Horsamtui, “Unificador das Duas Terras”. Todavia, e tal como referido anteriormente, Hórus foi imortalizado através de díspares representações, surgindo por vezes sob uma forma solar, enquanto filho de Atum- Ré ou Geb e Nut ou apresentado pela lenda osírica, como fruto dos amores entre Osíris e Ísis, abraçando assim diversas correntes mitológicas, que se fundem, renovam e completam em sua identidade. É dos muitos vectores em que o culto solar e o culto osírico, os mais relevantes do Antigo Egipto, se complementam num oásis de Sol, pátria de lendas de luz, em cujas águas d’ ouro voga toda a magia de uma das mais enigmáticas civilizações da Antiguidade. 

Detalhes e vocabulário egípcio:

culto de Hórus centralizava-se na cidade de Edfu, onde particularmente no período ptolomaico saboreou uma estrondosa popularidade;culto do deus falcão dispersou-se em inúmeros sub- cultos, o que criou lendas controversas e inúmeras versões do popular deus, como a denominada Rá- Harakhty;as estelas (pedras com imagens) de Hórus consideravam-se curativas de mordeduras de serpentes e picadas de escorpião, comuns nestas regiões, dado representarem o deus na sua infância vencendo os crocodilos e os escorpiões e estrangulando as serpentes. Sorver a água que qualquer devotado lhe houvesse deixado sobre a cabeça, significava a obtenção da protecção que Ísis proporcionava ao filho. Nestas estelas surgia, frequentemente, o deus Bes, que deita a língua de fora aos maus espíritos. 

Os feitiços cobrem os lados externos das estelas. Encontramos nelas uma poderosa protecção, como salienta a famigerada Estela de Mettenich: “Sobe veneno, vem e cai por terra. Hórus fala-te, aniquila-te, esmaga-te; tu não te levantas, tu cais, tu és fraco, tu não és forte; tu és cego, tu não vês; a tua cabeça cai para baixo e não se levanta mais, pois eu sou Hórus, o grande Mágico.”. 

out- embalsamadores

vabet- lugar de purificação 

Mitologia egípcia Hathor


Amor... Rutilante véu de estrelas que veste de luz o corpo de pérolas negras da noite da humanidade... Rosa de fogo, orvalhada por uma poesia em chamas, despontando nos jardins do horizonte, para almas vagantes inebriar com o perfume de um imortal Sol de felicidade... Cálice de sonhos e feitiços derramado sobre os corações dos Antigos Egípcios pela sensual Háthor, soberana de um éden de felicidade perene, em cujo esplendor brotava o cobiçado fruto do amor, nascia a maviosa nascente da música, em cujas águas vogava a sensualidade das danças, desabrochavam as orquídeas selvagens do erotismo e brincava a doce brisa da alegria. Sua alma, cosmos de amores constelados, renovava-se nos semblantes de todas as apaixonadas que devotadamente a inundavam de preces ardentes, na esperança de escravizarem o coração dos seus amados e, por conseguinte, alcançarem “a felicidade e um bom marido”.

Venerada em Dendera por nas suas mãos divinas florescer o amor, a bela deusa, filha de Rá, inúmeras vezes representada sob a forma de uma vaca, desempenhava, tal como sucedia a um rol imensurável de outros deuses, díspares papéis, em diferentes zonas do Egipto. Podemos afirmar que as suas origens remontam a uma época longínqua da história, já que a deusa consta do documento egípcio mais antigo conhecido até ao momento: a “Paleta de Narmer”, cuja leitura nos permite conhecer a unificação do Egipto por Narmer, primeiro faraó da I Dinastia, acontecimento que constitui a inauguração da instituição faraónica. Ambas as faces deste documentos estão ornadas com cabeças de vaca que, tal como referido anteriormente, simbolizam a deusa Háthor. No Delta, é associada ao céu, sustendo o disco- solar no seu toucado, enquanto, em Tebas, surgia como uma deusa da morte. Enquanto protectora da necrópole tebana, Háthor é representada como uma vaca emergindo de uma montanha escarpada que simboliza a falésia onde estão escavados os túmulos. Aqueles que se aproximavam da morte, suplicavam, assim, pela sua protecção, ao longo das suas viagens até ao além

Com efeito, tal como a maioria das divindades egípcias, Hátor sabia mostrar-se cruel e devastadora. Tomemos como exemplo uma das lendas, que procura explicar as mudanças de estação, na qual, após uma feroz discussão com o seu pai, Hátor refugia-se no desero, permitindo que as trevas invadissem a terra, uma vez que o Sol somente ocuparia o seu legítimo lugar, quando a deusa retornasse. A euforia rasga tão profundo pesar, quando, persuadida por seu pai, Hátor regressa, enfim, banindo a noite. Em torno desta personagem, tece-se ainda outra narrativa, notavelmente, violenta. Indignado por a humanidade lhe haver desobedecido, Rá toma a decisão de massacrá-la, enviando, para este fim, a sua filha, tornada num olho solar fulminante. Porém, ao contemplar a devastação que a sua filha causava, Rá compadece-se daqueles que lhe haviam desobedecido e toma a resolução de por fim a tão hediondo crime. Deste modo, convida a sua filha a sorver uma cerveja cor de sangue, que, além de a embriagar, lança-a num sono profundo. Ao despertar, a sua cólera insaciável havia-se desvanecido, pelo que os derradeiros sobreviventes da sua chacina permaneceram incólumes. 

Em Dendera, ergueu-se, no templo ptolomaico, um imponente templo em sua honra, que a deusa deixava, anualmente, para, após uma prolixa viagem através do Nilo (em que o seu temperamento bravio era suavizado por músicas e bebidas) consumar o seu divino casamento com o deus- falcão Hórus, que a aguardava em Edfu (cidade situada a cerca de cento e sessenta quilómetros a montante do Nilo). Esta diligência mítica, que mantinha Háthor afastada da sua morada durante cerca de três semanas, era celebrada pelos egípcios com um festival alegre e faustoso. Procurando reproduzir o trajecto executado pela deusa, a solene procissão seguia então pelo rio, rasgando com uma barca (“A Bela de Amor) onde, detentora de uma fastígio inigualável, uma estátua de Háthor se elevava. Concomitantemente, os sacerdotes de Edfu preparam o encontro dos esposos, que ocorrerá no exterior do santuário, mais exactamente numa exígua capela localizada a norte da cidade. Este encontro deveria suceder num momento preciso, ou seja, à oitava hora do dia da lua nova do décimo primeiro mês do ano. Quando por fim Háthor abençoa Edfu com a sua magnífica presença e perfuma aos lábios de seu esposo com o incenso de um beijo, iniciam-se então as festividades, no decorrer das quais a deusa é aclamada, saudada e inebriada com a música docemente tocada em sua honra. Não era pois Háthor a “Dourada”, a “Dama das Deusas”, “A Senhora” e “A Senhora da embriagues, da música e das danças”?

Seguidamente, os esposos separam-se e ocupam as suas barcas, para que o cortejo possa dirigir-se para o santuário principal, onde os sacerdotes puxam as embarcações para fora de água e instalam-nas no recinto. Uma vez mais acompanhada por seu marido, Háthor saúda então seu pai, o Sol, que ao lado de Hórus velava por Edfu, como referem os inúmeros textos encontrados: “ela vai ao encontro de seu pai Ré, que exulta ao vê-la, pois é o seu olho que está de volta”. Terminado este encontro, tão lendários esponsais são enfim celebrados, prometendo, entre sumptuosos festejos, os dois deuses a divinas núpcias de luz. No dia seguinte, dá-se início a uma faustosa festa, que se demora pelos catorze dias do quarto crescente, num período de tempo marcado por um rol quase inefável de ritos, sacrifícios, visitas a santuários, celebrações, solenidades, entre outros eventos. Um grande banquete, no fim do qual dá-se a separação de Háthor e Hórus consagra o fim das festividades.
Tal como salienta Plutarco, o escritor grego, na escrita hieroglífica o nome de Háthor lê-se Hut- Hor, isto é, “a morada de Hórus” ou “a habitação cósmica de Hórus”, sendo portanto flagrante que a deusa representa o espaço celeste no qual o Hórus solar se desloca. 

Denominada “Senhora do Sicômoro”, deusa das árvores, Hátor surge inúmeras vezes a amamentar os defuntos, especialmente, os faraós, mediante os longos ramos de um sicômoro. Háthor, como deusa benevolente, possuía a intensa devoção, não somente de nobres, mas também dos mais humildes, erigindo-se, deste modo, em seu redor um culto que se proliferou no Império Romano. Todavia, a crescente popularidade do culto, tecido em torno de Osíris e Ísis, levou a que este deidade passasse a deter algumas das funções de Háthor, acabando estas por fundir-se numa única divindade. 
Em matéria de iconografia, a sua representação mais interessante é aquela que lhe permite surgir como soberana dos quatro cantos do céu e senhora dos pontos cardeais. Os quatro semblantes que a representam simbolizam cada um deles um determinado aspecto da sua personalidade, ou seja, Háthor- leoa, sublime olho dos astro solar, que os inimigos de seu pai, Ré, aniquila sem hesitar; Háthor- vaca, poderosa soberana do amor e do renascimento; Háthor- cobra, incarnação da beleza e juventude; e, por fim, Háthor- gata, eterna protectora dos lares e, claro, ama real. 

Não lhes sendo possível distinguirem-se noutros planos profissionais, muitas mulheres tornavam-se sacerdotisas de Hátor (mais tarde designadas por “cantoras de Ámon”,) uma vez que as actividades musicais que desempenhavam permitiram-lhes investir-se de funções honrosas. Por seu turno, fora dos cortejos religiosos, as bailarinas de Háthor, ostentando somente uma tanga curta, arredondada na frente, entretinham os convidados de um banquete. 


Detalhes e vocabulário egípcio:

O nome Háthor significa “ a casa de Hórus”.

Nebet- per- dona de casa.

Neferet- a bela;

Merout- amor;

Hensi irem- viver juntos

Sen- beijar / “respirar um odor” 

No Antigo Egipto, os apaixonados seduziam as mulheres amadas com epítetos plenos de doçura, alguns deles ainda empregues na sociedade contemporânea, como é o caso de “gazela”, gatinho”, “andorinha”, “pomba”, enquanto outros facilmente podem ser qualificados de impopulares e até perigosos para a integridade física do amante, como “meu hipopótamo”, “minha hiena” ou “minha rã”. 

Na realidade, o amor era representado discretamente pelos artesãos encarregados de enaltecer os túmulos egípcios com a sua arte, surgindo este sentimento sob a forma de um tímido gesto, em que a mulher rodeia os ombros do seu marido com o braço ou se apoia nas suas costas (o oposto jamais sucede). De facto, o perfume era um dos mais conhecidos símbolos do amor, o que sustenta a filosofia de que os egípcios abdicavam da vulgaridade de uma manifestação directa, em prole de uma doce e subtil sugestão, com frequência plena de sensualidade. 

O tecto da sala hipostila do templo de Háthor em Dendera enleva os seus visitantes com a visão de sublimes decorações contendo cenas de natureza astronómica, considerados por muitos como as mais originais jamais encontradas. Nele, o nosso olhar extasiado possui o privilégio de conhecer as horas do dia, da noite, os decanos, as regiões celestes, as décadas, os deuses dos pontos cardeais, as constelações, entre outros.

Ao observarmos o vão sul, somos maravilhados com uma cena, reproduzida não raras vezes em díspares pontos do santuário, que nos o corpo de Nut, a abóbada celeste, cujo corpo, banhado pelas ondas do oceano inferior, prolonga-se de uma extremidade à outra da sala. Os seus pés acariciam o este, enquanto que a sua cabeça repousa a oeste. Ao executar o seu trajecto cíclico, o deus solar incarna alternadamente os corpos diurnos e nocturnos de Nut, alumiando a terra de dia, enquanto, por oposição, de noite a lança nas trevas, desaparecendo, tragado pela deusa, para ir iluminar as regiões subterrâneas. Outra imagem oferece-nos, assim, a ressurreição do Sol , que os seus mil raios derrama sobre o templo de Dendera, personificado pela cabeça de vaca de Háthor, colocada sobre um edifício. 

Mitologia Egípcia Anúbis


Qual estrela reinventado a imanência da sua luz no cosmos da imortalidade, onde a mítica constelação da vida se traduzia e renovava num fulgor eterno, Anúbis (Anupu em egípcio) iluminava a noite do panteão egípcio enquanto pilar que sustinha o templo de um mito intemporal que prometia às almas a eternidade.

Escravizados pelo alento de vogarem no regaço da imortalidade, superando os próprios limites da existência, os Egípcios conceberam a arte do embalsamamento, que, ao conservar os seus corpos, os arrebatava ao abominável espectro da deterioração, tal como sugere uma das muitas inscrições talhadas sobre os caixões: “Eu não deteriorarei. O meu corpo não será presa dos vermes, pois ele é durável e não será aniquilado no país da eternidade”. Esta arte divina, apta a enfeitiçar o tempo, tornando-o escravo daqueles que a ela recorriam, era ditada, reinventada e abençoada por Anúbis, guardião das sublimes moradas da eternidade, Soberano das mumificações e embalsamamentos, intermediário entre o defunto e o tribunal que o aguardava no Além e deidade cuja aparência é estigmatizada pelas incumbências de que é investido. Por conseguinte, e numa flagrante evocação dos cães e chacais que velavam pelas inóspitas e desérticas necrópoles, esta divindade surge como um animal da família dos Canídeos ou, então, como um homem detentor de uma cabeça de chacal. A mitologia egípcia revela-nos que Anúbis era fruto de uma ilegítima noite de amor vivida por Osíris nos braços de Néftis. 

A lenda revela-nos que tão inusitada união dera-se aquando do retorno do então Soberano do Egipto ao seu magnífico país. Extenuando de uma viagem que o mantivera longe da sua pátria por uma eternidade, Osíris ardia em desejo de sentir o Sol que raiava no olhar de Ísis despir a mortalha de nuvens, tecida pela saudade, que vestia e sufocava os céus de sua alma. Ao vislumbrar Néftis, o deus enlaça-a então em seus braços, tomando-a pela sua esposa. E os seus sentidos, cegos pela paixão, revelam-se impotentes para lhe desvendar a traição que ele cometia, antes desta encontrar-se consumada. Graças a uma coroa de meliloto abandonada por Osíris no leito de Néftis, Ísis abraça a percepção de que o seu amado esposo havia-lhe sido infiel e, desesperada, confronta a sua irmã, que lhe revela que de tão ilídimas núpcias nascera um filho, Anúbis, o qual, temendo a cólera do seu esposo legítimo, Seth, ela havia ocultado algures nos pântanos. Ísis, a quem não fora concedido o apanágio de conceber um filho de Osíris, enleia então a resolução de resgatá-lo ao seu esconderijo, percorrendo assim todo o país até encontrar a criança. Acto contínuo, e numa notória demonstração da benevolência que lhe era característica, a deusa amamenta Anúbis, criando-o para tornar-se o seu protector e mais fiel companheiro.

A lenda de Osíris comprova que Ísis foi coroada de sucesso, uma vez que, após o desmembramento do corpo de seu esposo, Anúbis voluntariou-se prontamente para auxiliar a deusa a reunir os inúmeros fragmentos do defunto. Posteriormente, Anúbis participa com igual dedicação nos rituais executados com o fim de restituir a Osíris o sopro de vida e que lhe facultaram a concepção da primeira múmia, facto que legitimou a sua conversão no venerado deus do embalsamamento, eterno guia do defunto no Além. A sua crescente influência garantiu-lhe um posto relevante no tribunal composto por quarenta e dois juizes que julgava os recém- inumados. De facto, é ele quem conduz o morto até Osíris, apresentando-o ao tribunal por ele presidido, para de seguida proceder à pesagem do coração. Se porventura o morto desejar mais tarde regressar à terra, é Anúbis quem ele tem a obrigação de notificar previamente, dado que esta surtida só será exequível com o seu consentimento expresso, formalmente consignado sob a forma de um decreto.

As suas múltiplas funções permitem a este deus deter diversas denominações, embora todas elas se encontrem intrincadamente relacionadas com o seu papel na vida póstuma dos egípcios. Assim, Anúbis é reconhecido como “o das ligaduras”, como patrono dos embalsamadores, “presidente do pavilhão divino”, enquanto soberano do edifício onde a poesia da mumificação era declamada por peritos, “senhor da necrópole” ou então “aquele que está em cima da montanha”, designações que exaltavam a sua posição enquanto guardião dos túmulos e condutor dos defuntos nos traiçoeiros labirintos do mundo inferior. Como tal, não é de todo inusitado o rol interminável de hinos e preces a ele destinados, que encontramos não raras vezes nas paredes das mastabas mais antigas e igualmente no famigerado “Texto das Pirâmides”.

Anúbis constitui igualmente a deidade tutelar da décima sétima província do Alto Egipto, cuja capital, Cinopólis (“A Cidade dos Cães”), era o âmago do seu culto, não obstante a sua imagem ser também uma constante em relevos e textos figurativos existentes nas sepulturas reais ou plebeias do vale do Nilo. Com efeito, ao longo de toda a época faraónica, Anúbis usufruiu de uma inefável popularidade que se reflectiu na sólida implantação do seu culto nos díspares centros religiosos do país, particularmente em Tebas ou Mênfis. Em Charuna, localidade próxima do seu principal santuário, deparamo-nos com uma necrópole de cães mumificados, os quais eram venerados enquanto animais sagrados do deus.



Mas afinal que arte era esta que Anúbis protegia e representava? Originalmente, antes de haverem alcançado o seu meticuloso método de mumificação, os Egípcios envolviam os seus defuntos numa esteira ou pele de animal, visando que o calor e o vento dissecassem os cadáveres. Após um moroso processo evolutivo, os embalsamadores conseguiram enfim obter de forma artificial tal conservação natural, mediante um prolixo tratamento, que se prolongava por setenta dias. Uma vez ser necessário quantidades abundantes de água para lavrar os corpos, este ritual era realizado na margem Ocidental do rio Nilo (a considerável distância das habitações), onde os embalsamadores trabalhavam numa tenda arejada. Ultimado o referido período de tempo, os defuntos seguiam para as designadas “Casas de Purificação”, meras salas reservadas para as práticas de mumificação, onde cada gesto dos embalsamadores era talhado no olhar vigilante dos sacerdotes. Segundo inúmeros baixos-relevos e pinturas, estes primeiros ostentavam máscaras com a efígie do deus- chacal Anúbis, a deidade protectora dos mortos, talvez num desejo de atrair a sua benevolência. 

O único exemplar que se conserva de semelhante máscara leva a crêr que esta servisse igualmente de protecção contra os diversos cheiros que fustigavam os embalsamadores. Alguns momentâneos descuidos destes levaram-nos a esquecerem-se, por vezes, de determinados instrumentos no interior das múmias, o que nos permite conhecer, aprofundadamente, os seus diversos utensílios de trabalho: ganchos de cobre, pinças, espátulas, colheres, agulhas, vasos munidos de bicos para deitar a goma escaldante sobre o cadáver e furadores com cabeça de forcado, para abrir, esvaziar e tornar a fechar o corpo. Dada a ausência de qualquer informação legada pelos Egípcios sobre as suas técnicas de embalsamamento, é necessário recorrer aos relatos de historiadores gregos, como Heródoto, para que a nossa curiosidade seja saciada. As suas descrições permitem-nos vislumbrar cada movimento dos embalsamadores. Em primeiro lugar, estes extraíam o cérebro do defunto pelas narinas, com o auxílio de um gancho de ferro. Seguidamente, “com uma faca de pedra da Etiópia” (segundo refere Hérodoto) efectuavam uma incisão no flanco do defunto, pelo qual retiravam os intestinos do morto. 

Após terem limpo diligentemente a cavidade abdominal, lavavam-na com vinho de palma e preenchiam o ventre com uma fusão de mirra pura, canela e outras matérias odoríferas. Deixavam então o corpo repousar numa solução alcalina, baseada em cristais de natrão seco, onde permanecia durante setenta dias, ao fim dos quais a múmia era envolvida com mais de vinte camadas de ligaduras e coberta por um óleo de embalsamamento (uma mistura de óleos vegetais e de resinas aromáticas- coníferas do Líbano, incenso e mirra), que endurecia, rapidamente. Todavia, as suas propriedades anti-micósicas e anti-bacterianas não protegiam a estrutura do corpo esvaziado, dessecado e leve, facto comprovado pelo incidente ocorrido com a múmia do jovem faraó Tutankhámon, que se fragmentou, quando a tentaram remover do seu caixão. As faixas que envolviam o defunto eram, preferencialmente, de cores vermelho e rosa, jamais sendo utilizado para a sua concepção linho novo, mas sim, aquele que era obtido a partir das vestes que o morto envergava em vida. À medida que as ligaduras eram colocadas em torno dos defuntos, os sacerdotes presentes pronunciavam fórmulas sagradas. Simultaneamente, depositavam-se nos leitos de linho inúmeros amuletos profilácticos, tendo mesmo sido encontrada uma múmia com cerca de oitenta e sete destes objectos de culto. Entre estes encontrava-se ankh (vida), uma das mais preciosas dádivas oferecidas aos homens pelos deuses; o olho de oudjat, ou olho de Hórus, símbolo de integridade, que selava a incisão feita pelos embalsamadores, para retirar as entranhas do morto; um amuleto em forma de coração, concebido para assegurar que os defuntos seriam bem sucedidos nos seus julgamentos; e o escaravelho, esculpido em pedra, barro ou vidro. Este insecto enrola bolas de esterco, onde depõe os ovos. Os Egípcios creiam que um escaravelho gigante gerara o Sol de forma similar, rolando-o em direcção do horizonte, até ao firmamento. Uma vez que todas as manhãs este astro soberano desprende-se de um abraço de trevas, o escaravelho tornou-se num símbolo da ressurreição dos mortos. 

No exórdio da civilização egípcia, ultimados os seus processos de mumificação, as pessoas notáveis eram inumadas num caixão de forma rectangular, depositado num sarcófago de pedra, considerado como depositário das vida. Porém, ao longo da história, os caixões sofrem diversas metamorfoses, que alteraram, radicalmente, os seus simulacros. No Médio Império, os caixões tornaram-se antropomórficos, aumentando a sua produção. A própria múmia principiou a ter uma máscara de linho estucado, isenta de qualquer semelhança com o defunto. Na realidade, inúmeras múmias eram sepultadas em diversas urnas, sendo colocada uma dentro da outra, à semelhança das bonecas russas. Deste modo, a urna interna, mais ajustada, deveria encontrar-se apertada atrás. Durante muito tempo, os sarcófagos eram construídos em madeira. Não obstante, num período mais tardio, as urnas interiores eram efectuadas com camadas de papiro ou linho, o que se tornava mais economicamente acessível. Junto aos túmulos, repousavam cofres de madeira, que guardavam quatro recipientes, desde o mais humilde pote de barro ao mais faustoso vaso de alabastro. Estes canopes, cujo nome advém de Kanops, cidade situada a leste de Alexandria, continham as vísceras do defunto, uma vez que sem estas, o corpo não se encontraria completo. Inicialmente, esta pratica consistia em mais uma prerrogativa reservada aos soberanos do Egipto, mas com alguma rapidez estendeu-se igualmente aos sacerdotes e altos funcionários e, por fim, no Novo Império, a todos os egípcios abastados. 

O fígado, o estômago, os pulmões e os intestinos eram envolvidos separadamente em tecidos de linho, formando embrulhos que eram, em seguida, depositados no interior dos díspares canopes, após terem sido impregnados com resina de embalsamamento. Em contrapartida, o coração, símbolo da razão, cerne do encontro do espírito e simulacro da alma, após ser submetido a um rigoroso tratamento que visava a sua conservação, era sempre recolocado no corpo do defunto, que iria necessitar dele, ao longo do seu julgamento no Além. Por seu turno, as intrínsecas vísceras eram entregues a quatro deidades protectoras, filhos de Hórus, cujas cabeças ornamentavam frequentemente as tampas dos canopes: Amset, com cabeça de homem, (cujo nome resulta de aneth, uma planta conhecida pelas suas propriedades de conservação), tornado protector do estômago; Hápi, possuidor de uma cabeça de babuíno, que vela pelos intestinos; Duamoutef, que ostenta uma cabeça de cão e cuja missão é proteger os pulmões; e Quebekhsenouf, detentor de uma cabeça de falcão, que preserva o fígado. A partir do Novo Império, eram representadas nas arestas dos canopes deusas protectoras, que, com as asas abertas, resguardavam os seus conteúdos. As mesmas deusas surgiam ajoelhadas nos cantos dos sarcófagos. Nut, a deusa da abóbada celeste, adorna a face interior do tampo do caixão.

Paradoxalmente, os mais humildes eram privados de qualquer prerrogativa, sendo sepultados no deserto, envoltos numa pele de vaca, uma vez que não possuíam meios para pagar o avultado preço da imortalidade.


Detalhes e vocabulário egípcio:

Djed- eternidade;

Keres- caixão;

Na Época Greco-Romana, Anúbis foi investido de novas incumbências, incarnando numa deidade cósmica, regente dos céus e da terra.

Etimologicamente, o epíteto “Anupus” pode possuir a sua origem na palavra inep, empregue com o significado de “putrificar”.

A imagem de Anúbis, nas suas díspares representações, é uma constante não apenas nas múmias e sarcófagos, mas também nas vinhetas dos papiros funerários. A estatueta de Anúbis com cabeça de cão selvagem constituía igualmente um amuleto, que colocava os defuntos sobre a protecção do deus. Evoca-se como exemplo o túmulo do jovem Tutankhámon, entre muitos outros.

A famigerada múmia do faraó Ramsés III sobreviveu indemne durante quase 3000 anos, graças à arte egípcia do embalsamamento e à preservação do deserto. Porém, alguns meses de permanência num museu teriam causado a sua total destruição, caso inúmeros egiptólogos não houvessem agido, prontamente. 

out- embalsamadores

vabet- lugar de purificação, 'Casa da Purificação' 

Mitologia Egípcia Maet


Verdade... Etérea harpista de Sol que ritualiza em seu mavioso tocar o florir do dia numa Primavera de Luz, mera melodia de manhãs intemporais, cuja harmonia divina recria a ordem universal, inebria a humanidade com a sabedoria ancestral, semeia no jardim do mundo a rosa da justiça e coroa a árvore da vida com as excelsas flores do equilíbrio cósmico...

No Antigo Egipto, longe de constituir um conceito trivial isento de sentido ou alma, quiçá uma utopia impressiva banalizada pelo tempo, a "Verdade" surgia como o mais sublime caminho para a fruição espiritual. Encarnada pela deusa Maet, a verdade é assim sinónimo de rectidão, lealdade, justiça, em suma, de todos os princípios básicos que asseguram não apenas o equilíbrio cósmico, mas igualmente o aperfeiçoamento intelectual e espiritual do indivíduo. É, por conseguinte, graças ao equilíbrio oferecido por Maet que o mundo organizado mantém a sua integridade e o Universo conserva a harmonia que lhe fora concedida no acto da Criação. Maet parece suspirar-nos que a verdade, a vida e o conhecimento deveriam constituir a nossa religião primordial, que a Justiça deveria por nós ser eleita dogma universal e o que bem e a liberdade deveriam ser abraçados como a base das nossas preces. A deusa Maet, simultaneamente filha e mãe de Rá, num eterno reinventar de um cosmos renascido, era representada como uma jovem elegante, portadora de uma cabeleira que acariciava graciosamente os seus ombros. Na sua cabeça, a deusa ostentava uma pena de avestruz, empregue igualmente pelos egípcios de forma isolada, como símbolo da deusa Maet (nome próprio ) ou do conceito de verdade em si (nome comum). Em suas mãos, a deusa acolhe alguns dos mais eficazes símbolos profilácticos, como é o caso do uase ou uadj, ceptros também empunhados por diversas outras deidades do panteão egípcio.

Principio sagrado entre os egípcios, Maet consistia num rito incontornável não apenas para os simples mortais, mas também para os faraós e até mesmo para os deuses. Com efeito, a maviosa melopeia entoada por esta deusa era brisa sagrada que alimentava, inebriava e renovava os sentidos das restantes deidades, permitindo-lhes assim preservar a harmonia universal que ela encarna. O culto diário prestado aos deuses conhecia o seu apogeu com a oferta de Maet. Relevos de determinados templos tardios permitem-nos conquistar o tempo e, na mais sagrada lacuna da Imaginação, reviver as intrínsecas cerimónias do ofertório, legadas à eternidade nas paredes do mais íntimo dos santuários. Extasiados, quase abraçamos a prerrogativa de encarnar o sacerdote oficiante, eterno representante do faraó, que num rito pleno de magia oferece Maet, sob a forma de uma figurinha transportada num pequeno cesto, à deidade local, saciando assim a sua sede no cálice da ordem Universal, que o entoar de um hino derrama docemente: "(...) Salve a ti, que estás provido de maet, autor do que existe, criador do que és. (...) Tu surges com Maet, tu unes os teus membros em Maet (...)". É de facto graças a este ritual de uma beleza inefável que Maet, não residindo em nenhum templo específico, se encontra presente em todos os santuários do Vale do Nilo.

MAET E HATHOR Com efeito, nem mesmo o poderoso Rá, mítico regente dos deuses, subsiste quando privado do melífluo fruto da Verdade, pois somente o néctar que dele resvala sacia a sua sede de harmonia, alimenta o seu esplendor e renova a luz que o nimba num halo de espiritualidade ("Tu existes porque Maat existe", como refere um hino). De resto, era igualmente Maet quem se propunha a confrontar todos os inimigos de Ámon, fulminando-os com a sua cólera, a fim de jamais permitir que o fastígio do deus- solar fosse obnubilado. Não constitui assim qualquer surpresa constatar a presença de Maet na viagem amoniana. Embora somente ao deus- sol fosse concedido o apanágio de desfrutar intimamente da companhia de Maet, muitos outros deuses deixavam-se inebriar pela rima perfeita que a deusa concedia ao sublime verso do cosmos, como é o caso de Toth, que era com alguma frequência contemplado como esposo (ou por vezes irmão) de Maet, dada a sua invejável posição enquanto epítome celestial da precisão, justeza e rectidão. Enquanto Maet zelava pela harmonia celeste, na terra era o regente quem se encontrava incumbido do dever divino de conservar a ordem social e perpetrar as leis "maéticas", dispondo para tal de um completo corpo de funcionários, de entre os quais se destacava o vízir. Na função de garante da ordem moral, da justiça e da verdade, o vízir, chefe do poder executivo e de toda a área administrativa, abraça o epíteto de "Sacerdote de Maet", ostentando como insígnia uma pequena figurinha da deusa, geralmente esculpida em lápis- lazuli.

Como aqueles que coroavam o céu da humanidade com o arco-íris da liberdade, da verdade, da justiça e da equidade dos sentidos, os faraós não só não dispensavam maet no seu quotidiano, como também nos seus nomes reais, incluindo assim a deusa ou o próprio conceito que ela encarnava nas suas denominações, na ânsia de que assim lhes fosse concedida a eficácia necessária para uma regência próspera. Podemos evocar o exemplo de Hatchepsut, rainha do Império Novo, cujo pronome não era senão "Maatkaré", ou seja, "Maet é o alimento de Rá" ou "Maet é o ka (poder criador) de Rá. A sublime praia de Maet, graciosamente formada pelos mais rutilantes cristais de Sol, oferecia-se a todas as almas náufragas que se propusessem a brincar nas ondas de sabedoria ancestral do imponente mar do conhecimento. Para que a espírito algum o acesso a estas águas ornadas de magia fosse negado, os sábios egípcios (como os faraós Amenemhat I e Hor- djedef, filho do famigerado Quéops, entre muitos outros) elaboraram os “Ensinamentos”, fulgurantes estrelas de sabedoria destinadas a guiar a humanidade através da enigmática noite da vida. A leitura destes textos de valor incontestável permite-nos abraçar os fundamentos da solidariedade, da equidade, da justiça e da espiritualidade, indispensáveis para a criação de uma sociedade recta, harmoniosa e subversivamente oposta a isefet, ou seja, ao caos, à desordem, enfim, à pravidade em todos os seus subterfúgios e formas. Logo, todos devem respeitar aquilo que Maet representa, para possibilitar o retorno dos fenómenos naturais que garantem a vida e a vitória sobre as forças do caos que pairam ainda sobre a humanidade.

A presença de Maet, embaixatriz da Verdade e da Justiça, revelava-se vital para o bom funcionamento do tribunal osírico, uma vez que, caso privados da sua benção, os defuntos seriam alvo de um julgamento iníquo e imparcial. Conduzidos por Anúbis, o deus da cabeça de chacal, os defuntos compareciam diante do tribunal de Osíris, onde as suas almas seriam julgadas, revelando o seu destino. O tribunal divino erigia-se na "Sala das duas Justiças", intermediária entre o além e o submundo, rodeada por 42 demónios (este valor estava relacionado com o número de distritos- 42- que dividiam o Egipto Antigo). Perante cada uma destas temíveis entidades, o morto deveria declarar-se inocente de um pecado, resumindo-se estas 42 faltas em algumas categorias distintas: blasfémia, perjúrio, assassínio, luxúria, roubo, mentira, calúnia e falso testemunho. Para alcançar a absolvição, os réus deveriam não somente afirmar que haviam alimentado os esfomeados, saciado a sede dos sequiosos, entregue roupas àqueles que não as possuíam e concedido auxílio na travessia de um rio a quem não detinha qualquer embarcação, mas igualmente permitir que o seu coração fosse pesado, uma vez que este representava, para os egípcios, o cerne real da personalidade, a base da razão, da vontade e da consciência moral. Desta forma, sobre a vigilância de Anúbis, o coração do defunto (ib) é depositado num dos pratos de uma balança, confrontando o seu peso com o de uma pena de avestruz, símbolo de Maet. Esta prova, a que ninguém se pode eximir para aceder ao reino de Osíris, permite determinar se a alma do defunto se encontra em conformidade com Maet, isto é, se de facto, nela impera a harmonia oferecida pelo cumprimento das normas morais e espirituais que regem a sociedade.

Enfim, os resultados seriam registados por Toth, deus da escrita, para, em seguida, serem comunicados por Hórus a seu pai Osíris, que absolveria o morto, caso os dois pratos se equilibrassem ou se o seu coração se revelasse mais leve do que a pena. Neste caso, seria oferecido ao falecido um sublime paraíso, localizado a ocidente, onde as espigas de trigo elevavam-se a muitos metros do chão e a vida irradiava uma felicidade ímpar e desmedida. Todavia, a "Grande Devoradora", um misto aterrador de crocodilo, pantera e hipopótamo acha-se, igualmente, presente em todos os julgamentos esperando, impacientemente, pelo deleite de tragar todos aqueles, cujo coração detivesse um peso excessivo. Atormentados com a perspectiva das suas quimeras de ressurreição serem, abruptamente, devastadas pelo aniquilamento das suas existências, os Egípcios entregavam-se, ao longo das suas vidas, a um imensurável rol de precauções. Deste modo, com o fito de auxiliarem os mortos na sua derradeira diligência ao Império dos Mortos, surgiram inúmeras fórmulas mágicas, que, gradualmente, se reuniram no famigerado "Livro dos Mortos", cujo conteúdo era inculcado num rolo de papiro (embora anteriormente fosse apenas gravado nos caixões ou nas paredes)colocado nos túmulos, junto dos cadáveres. Na realidade, inicialmente apenas os faraós poderiam usufruir das referidas fórmulas de encantamento, mas, mais tarde, estas proliferaram-se, igualmente, pelos funcionários e sacerdotes mais bem sucedidos, que, assim, poderiam, enfrentar os inúmeros demónios, emergidos das trevas sob a forma de serpentes, crocodilos gigantes ou dragões, ao longo de toda a viagem. Porém, devido aos seus elevados custos, o "Livro dos Mortos" manteve-se inacessível para as classes mais pobres.

Aqueles que o procuravam, poderiam adquirir o "Livro dos Mortos", totalmente pronto, restando-lhes apenas acrescentar o nome do proprietário. A crença popular referia que este documento havia sido concebido pelo próprio Toth, que oferecia aos viajantes o meio de afastarem-se de um passo em falso. Por exemplo, ao serem abordados por um crocodilo, os defuntos deveriam pronunciar as seguintes palavras: "Passa de largo! Vai-te, crocodilo maldito! Tu não te aproximarás de mim, pois eu vivo de palavras mágicas, nascidas da força que está em mim!". Porém, fundidos com estas fórmulas, também foram registados no "Livro dos Mortos" pensamentos dogmáticos, como o apresentado, seguidamente "O homem deverá ser julgado pela forma como se conduziu na Terra", que representa uma clara divergência para com os restantes textos, divergência esta que pode ser explicada pelo facto desta obra não merecer, de todo, o epíteto de homogénea, uma vez que os seus capítulos acompanharam os díspares estados de evolução das ideologias egípcias. Com efeito, as partes mais antigas desta obra surgem nas paredes da pirâmide do faraó Unas, derradeiro soberano da Quinta Dinastia, enquanto que as mais recentes datam do século VII a.C. Embora não correspondessem já às concepções religiosas dos Egípcios, os textos mais arcaicos do "Livro dos Mortos" nunca foram retirados do mesmo, graças ao respeito que esta civilização dedicava a tudo o que pertencia ao passado. Como consequência, esta obra tornou-se, progressivamente, num espelho reflector da evolução da religião egípcia.


Detalhes e vocabulário egípcio:

Ao longo de aproximadamente cinco séculos (de 1550 a 1070 a. C.), subsistiu no Antigo Egipto uma confraria, constituída por homens e mulheres extraordinários, simultaneamente artesãos e sacerdotes, da qual brotaram muitas das obras- primas da arte egípcia. Esta confraria, expoente máximo da espiritualidade aliada à criatividade, viveu numa aldeia do Alto Egipto, interdita a profanos, cujo epíteto verdadeiramente excepcional é merecedor da nossa atenção: “Lugar da Verdade”, ou seja, “Set Maet”. O eterno cosmos onde a constelação de Maet reinventava a harmonia da sua luz, de forma a alumiar o universo com uma ordem espiritual inabalável, ainda se oferece ao nosso olhar, caso visitemos a localidade de Deir el- Medina, a oeste de Tebas. Lá, somos tentados a sonhar com todas as obras- primas que a mão humana, orientada pelo ritmo divino, forjou e imortalizou. 

Com frequência, deparamo-nos com as palavras Maet e maet escritas de forma verdadeiramente díspar. Consoante o autor, Maet é apelidada de Maat, Ma-a-at, Majet, Mayet, Maät, etc. Segundo a fracção mais numerosa de egiptólogos envolvidos nesta altercação, Maet, ou seja, a grafia empregue neste artigo, é a mais correcta. Porém, iníquo seria não salientar que egiptólogos tão prestigiados quanto William Hayes e Cyril Aldred optam pelo uso de Maat, grafia apresentada no início do séc. XX. 

Na escrita hieroglífica, a deusa Maet surge como uma figura ajoelhada, ostentando a sua característica pena de avestruz na cabeça e o signo ankh (símbolo da vida) sobre os joelhos.