O estudo do Hermetismo se tornou algo comum na sociedade contemporânea, seja entre os estudantes curiosos e descompromissados, seja entre aqueles que preferem se arriscar na prática esotérica moderna. No cenário brasileiro, não é raro encontrarmos estudantes que se dizem “ocultistas” e que não tem nenhuma prática magística, mas leram obras como “O Caibalion” ou o “Corpus Hermeticum” e repetem seus trechos como verdadeiros “papagaios”. Porém, o que os “ocultistas” brasileiros estão esquecendo é de interpretar devidamente as obras herméticas que estão lendo, e situá-las em acordo com a Magia, enquanto ciência prática. Isso está fazendo com que a interpretação das leis herméticas fique estereotipada e rasteira, especialmente a interpretação que está sendo dada à 1ª e à 2ª lei hermética, as chamadas “lei do mentalismo” e “lei da correspondência”, respectivamente.
O Hermetismo é um corpo filosófico e doutrinário que ganhou espaço a partir da figura de Hermes Trismegistus, lendário sacerdote egípcio que popularizou ciências como a Alquimia, a Magia e a Astrologia.
Entre os ensinamentos herméticos, merecem destaque aqueles ligados às chamadas “leis herméticas”, que narram de que forma o mundo “funciona”, como seus fenômenos físicos podem ser justificados e como devemos nos portar espiritualmente diante deles.
A 1ª lei hermética é a chamada “lei do mentalismo”, e seu texto, descrito no Caibalion, nos diz o seguinte: “o Todo é Mente; o Universo é mental”.
Se analisarmos rapidamente este texto, veremos que ele é curto e que aparentemente seu significado é claro. Porém, analisando o conteúdo do texto em si, percebemos que sua interpretação não é tão simples como se imagina (ou como muitos “ocultistas” brasileiros imaginam), e abre margens para variações interpretativas que muitas vezes podem até distorcer o sentido original do texto. Talvez seja isso que esteja ocorrendo com o significado das leis herméticas e com a interpretação que está sendo feita sobre elas, no que diz respeito à magia.
Atualmente, vejo estudantes de esoterismo falarem abertamente verdadeiras “pérolas” a respeito da prática de magia, como por exemplo:
“Toda magia é mental”
“Todo efeito mágico é apenas uma ilusão, criada pela mente do mago”
Ou mesmo que
“O objetivo da magia é exteriorizar o que há no subconsciente do mago”.
Apesar de sabermos que a maioria dos estudantes que nos brindam com essas pérolas não tem prática mágica nenhuma, chegamos à conclusão de que essa interpretação deturpada da magia e seus efeitos não provém somente da falta de prática, mas do estudo incorreto que estão fazendo do Hermetismo. Geralmente, os estudantes que defendem esse ponto de vista psicológico da magia, usam o texto da lei do mentalismo como tentativa de sustentar seus argumentos. No raciocínio desses estudantes, se a lei do mentalismo diz que “o universo é mental”, então tudo mais que estiver contido no universo também será, e isso inclui a magia. Esse não é um raciocínio totalmente incorreto; porém…pra infelicidade dos “ocultistas” que defendem esse ponto de vista, nem todas as formas de magia são mentais, e em algumas delas a mente não desempenha sequer função primordial para a execução do ato mágico em si.
De uma forma simples, a interpretação moderna que está sendo dada à lei do mentalismo está se guiando pela ideia de que o homem é o centro do universo, e que o sucesso ou fracasso de suas ações depende apenas de seu querer e da força de sua Vontade. Assim, se o texto da lei do mentalismo nos diz que “o Todo é mente”, os ocultistas modernos interpretam esse “Todo” como “Tudo” e o relacionam ao homem; dessa forma, os estudantes modernos concluem que “Tudo é mente” (tudo é “mental”), e sendo assim o homem não precisa recorrer a nada fora de si, já que tem em si tudo de que precisa pra operar magia (sua mente). Só que o erro começa justamente nesse ponto: o “Todo” citado na lei do mentalismo, não significa o “Tudo” que os estudantes modernos interpretam incorretamente. Quando se diz que “o Universo é mental”, e que “o Todo é mente”, na verdade o Hermetismo está deixando claro que a criação do Universo foi um ato mental, pois foi um ato gerado da mente criadora universal (Deus). Porém, isso não quer dizer que o ser humano, mesmo sendo parte direta da criação, pode “criar” apenas a partir de sua mente. Por mais “poderosa” que seja a mente humana, ela não tem capacidade autônoma de criar algo no físico, estando fora da influência do Altíssimo se não fizer uso da Fé, da Técnica e de sua Vontade. Por isso, o fato do “universo ser mental” não faz da magia praticada pelo ser humano, algo meramente psicológico.
O motivo dessa interpretação distorcida da lei do mentalismo é muito claro: há uma diferença nítida entre a lei hermética do mentalismo e a interpretação psiquista que se tem feito dessa lei (o chamado “mentalismo moderno”). E essa interpretação equivocada não ocorre apenas com a 1ª lei hermética; a 2ª lei hermética (lei da correspondência) também sofre com essa mesma distorção na interpretação de seu texto. No Caibalion, o texto da lei da correspondência é claro: “O que está em cima é como o que está embaixo. E o que está embaixo é como o que está em cima”.
A 2ª lei hermética nos diz que, devido os limites do ser humano, ele não consegue enxergar a magnitude do cosmos infinito, e não consegue enxergar nem a si mesmo como representante do Macrocosmo. A lei da correspondência nos diz que as verdades do Macrocosmo também encontram eco no microcosmo, já que “o menor” (o microcosmo) é uma equivalência do maior (Macrocosmo).
Porém, o que o pensamento moderno prega (e os “ocultistas” brasileiros seguem…) é que o homem é “seu próprio deus”, e se ele tem em si tudo que precisa (sua mente, de acordo com a interpretação errada da lei do mentalismo), então ele tem totais capacidades de controlar seu universo do modo como quiser, sendo a única divindade de seu mundo.
Essa interpretação da lei hermética da correspondência não poderia estar mais equivocada. O ser humano é uma correspondência, e não algo igual a Deus. A similitude do homem em relação à divindade vai até o ponto da potência: o homem é um deus em potencial, mas não uma divindade realizada. Todavia, muitos estudantes de esoterismo preferem acreditar que a magia é fruto da “divindade do Homem”, e do fato dele já ter tudo de que precisa pra operar magicamente (sua mente). Talvez por conta disso, muitos estudantes “ocultistas” no Brasil tem sempre o texto da 2ª lei hermética “na ponta da língua”, e repetem exaustivamente a frase “como o é encima, o é embaixo”, como se fossem verdadeiros papagaios…na tentativa de justificar sua própria soberba através de um mentalismo apegado a uma suposta “independência espiritual”.
Vimos nesta 1ª parte do artigo, que a interpretação que está sendo dada às leis herméticas está sendo deturpada e baseada em um raciocínio mentalista rasteiro. Porém, essa distorção interpretativa não está sendo causada apenas por falta de estudo ou de prática mágica dos “ocultistas” brasileiros. Na 2ª parte do artigo, faremos uma revisão histórica para descobrir qual a origem desse pensamento psiquista que tem invadido a magia moderna nas últimas décadas.
Na 1ª parte deste artigo, vimos que o Hermetismo tem sido interpretado de maneira deturpada por parte de muitos estudantes de esoterismo da atualidade, e que as leis herméticas têm sido analisadas sob um viés extremamente psicologizado. A partir de agora, tentaremos entender quando e onde surgiu esse ponto de vista “mental” sobre o Hermetismo e a magia, e como essa visão mentalista influenciou e vem influenciando negativamente a prática mágica na atualidade.
A popularização da Psicologia no século 19 fez com que as abordagens psicológicas ficassem cada vez mais comuns nas Ordens Iniciáticas da Europa. Na foto acima, o famoso psicólogo Carl Jung, usado atualmente como “base científica” em muitas instituições esotéricas.
A origem da interpretação distorcida das leis herméticas tem início no século 18 com o advento do iluminismo (que pregou uma reorientação da visão de mundo dos séculos anteriores, dando mais foco ao homem na terra que a Deus no céu). Porém, essa visão moderna do mentalismo ganhou realmente corpo com a popularização da Psicologia no século 19. A Psicologia rapidamente se popularizou na Europa na metade do século 19, defendendo a ideia de que o homem tem dentro de si estruturas mentais que ele mesmo desconhece, e que influenciam seu comportamento e sua postura diante da vida e de seus problemas. Esse raciocínio psicológico rapidamente ganhou popularidade no meio esotérico e ocultista europeu, que estava ansioso por validar as práticas mágicas e os estudos metafísicos com alguma forma de raciocínio científico que pudesse comprovar a magia como “ciência hermética”. Assim, o raciocínio psicológico de que o homem não conhece sua estrutura mental, abriu margens para que várias Ordens Esotéricas europeias adotassem a Psicologia como “suporte científico” de seus sistemas iniciáticos. Psicólogos como Carl Gustav Jung passaram a ser figuras comuns nos ensinamentos de diversas Ordens, se tornando “base científica” de justificativa para a magia (mesmo que em seus estudos psicológicos, esses psicólogos nunca tivessem citado magia de forma direta). A astrologia tradicional também sofreu com esse sincretismo forçado com a Psicologia, especialmente o movimento de “reorientação astrológica” iniciado na Sociedade Teosófica por Alan Leo, considerado atualmente “o pai da astrologia moderna”.
O sincretismo iniciado no século 19 entre magia e Psicologia aprofundou-se de forma trágica no século 20, gerando a aberração que temos atualmente: a chamada “magia psicológica” (ou “psicologia mágica”), tão defendida entre os estudantes de esoterismo da atualidade, e entre os chamados “ocultistas de balcão” brasileiros. Todavia, será que podemos simplesmente culpar a Psicologia por esse sincretismo forçado? De forma alguma. Se há culpados nesse sincretismo, esses culpados são as Instituições Iniciáticas europeias do século 19, que procuraram misturar e encaixar erroneamente conceitos e filosofias que nem sempre são passíveis de serem encaixados. A Psicologia por si só pode ser útil (e até necessária) no estudo de magia; porém, daí a considerar que a magia e seus efeitos são “frutos psicológicos”, há uma grande diferença. Achar que qualquer efeito mágico é fruto somente do “subconsciente” do mago é desmerecer a magia enquanto Arte sagrada. Todo aquele que pensa dessa forma, esquece-se que um dos pilares do mago é justamente sua Fé naquilo que faz e na divindade. Se o mago não tem Fé naquilo que faz, não há sentido em continuar fazendo aquilo, já que em magia, a racionalidade nem sempre pode justificar todos os efeitos mágicos possíveis. A tentativa de se tentar analisar e justificar a magia sob o viés da razão e da mente, é apenas um reflexo tardio do iluminismo e de seus efeitos sobre a prática mágica ocidental, que tentou transformar a magia em uma ciência puramente verificável através de fatos e dados quantitativos.
Essa visão mágica psicologizada piorou quando famosas personalidades do meio mágico mundial, como Helena Blavatsky, Aleister Crowley, Franz Bardon e mais recentemente Lon Millo Duqette (dentre outros) procuraram respaldar seus sistemas e práticas nesse raciocínio tipicamente “mentalista moderno”, buscando técnicas orientais (yoga) como forma de trabalho mental “propício” a possibilitar o desenvolvimento mágico de alguém. Essa “magia psicológica”, pautada na interpretação errada da lei do mentalismo, mais parece alguma forma de “exibicionismo psíquico” que magia propriamente dita. Quase sempre, esse tipo de “magia” procura enaltecer as “capacidades latentes” do ser humano e seus “potenciais mentais”, se aproximando mais do chamado “Psiquismo”, responsável por popularizar fenômenos como “clarividência”, “premonição” e “telepatia”. Curiosamente, boa parte dos estudantes de esoterismo que defendem essa visão psicológica da magia, também se interessam por esses poderes psíquicos. Para essas pessoas, “tudo se conquista com a mente”, e o querer é a chave de todo sucesso mágico… afinal de contas, como diz o ditado popular, “querer é poder”. Porém, o que esses estudantes esquecem, é que nem sempre esse “querer” gera efetivamente “poder”, pois a mente por si só não é capaz de executar todos os efeitos mágicos que o operador almeja.
Segundo Hyatt (2008), fazer magia é estar disposto a extrair resultados claros e visíveis no plano físico, já que “Magic is the manipulation of hidden forces or intelligences to produce a desired result” (HYATT, 2008, p. 20). Não existem apenas magias cujos objetivos sejam conquistados através da mente; da mesma forma nem toda magia é apenas “astral”. Algumas modalidades de magia são materiais, e seus efeitos são visíveis no plano físico (e não apenas “projeções psicológicas”), mesmo que essas modalidades também façam uso da estrutura mental do operador em certo nível.
Não basta “querer”; é preciso “saber fazer”. A Tradição Espiritual Ocidental é pautada em 4 grandes princípios: Fé, Vontade; Técnica; e Paciência. Eliphas Levi, célebre teólogo do século 19, já expressava esses princípios em suas obras, através do famoso “saber-querer-ousar-calar”. Não basta ao mago ter vontade de fazer uma ação mágica, se não sabe efetivamente fazê-la; não adianta apenas crer que “tudo dará certo”. É o mago que tem de fazer as coisas “darem certo”, através dos quatro princípios mágicos.
Algumas especialidades mágicas não admitem o uso da mente como “centro operativo” do mago: é o caso, por exemplo, da magia cerimonial ou da Teurgia. Nessas modalidades mágicas, não adianta simplesmente “querer” ou “ter Fé”. Acima de tudo, é preciso saber seguir as exigências de cada operação, cada ritual, sendo fiel ao máximo às recomendações de cada sistema ou grimório trabalhado. E é aqui que o uso do mentalismo moderno se torna perigoso. Muitos são os casos de adolescentes ou praticantes desavisados que buscam experimentar operações de magia cerimonial usando o raciocínio tipicamente “mentalista” em ações mágicas tradicionais, como a evocação de espíritos e entidades astrológicas. Esse é um ato extremamente estúpido (além de imaturo), já que a magia cerimonial não segue esse raciocínio moderno e estereotipado de que “a mente contém tudo de que o mago precisa”. Entidades e espíritos evocados, ao contrário do que muitos “ocultistas” brasileiros pensam, não são arquétipos mentais do mago, e suas manifestações físicas não são apenas “efeitos do subconsciente do operador”. Tratam-se na verdade de entidades poderosas e autônomas, com uma existência além da compreensão humana, e com manifestação independente em relação ao mago. É por conta disso que aumentam os relatos de que muitos “mentalistas modernos” sofrem com a obsessão de entidades e a falta de controle emocional, após executarem rituais cerimoniais mal-sucedidos… fruto de suas visões deturpadas da magia e de seus efeitos.
A você leitor, que ainda não tem experiência prática em magia, mas está estudando a teoria e futuramente pretende realizar alguma operação específica, fica a dica: magia não é apenas algo mental; é algo mental também. A estrutura psicológica do mago é importante em certos aspectos, e sua capacidade de visualizar certas imagens astrais pode ajudá-lo m operações mágicas. Porém, nem toda forma de magia é apenas mental. Não caia no “conto popular” dos “ocultistas” brasileiros de que “basta acreditar para acontecer” e que “é preciso confiar na mente”; para que algo mágico aconteça, você mesmo tem de fazer esse algo se manifestar, através de sua Fé no Altíssimo (saber), sua Vontade em querer que aquilo aconteça (querer), sua Ação para que aquilo aconteça (ousar), e sua paciência para que aquilo se manifeste (calar).
Lembre-se: magia não é Psicologia, e da mesma forma, o estudo de Psicologia não é algo mágico. Nenhum efeito mágico justifica-se apenas através dos poderes da mente. A Psicologia ajuda o mago e pode tornar-se inclusive útil para a prevenção de problemas emocionais futuros, decorrentes da prática mágica (a famosa Psicoterapia). Mas isso não significa dizer que o mago pode fazer “o que lhe convir”, que as entidades evocadas num ritual “são aspectos profundos do subconsciente”, ou que “o mago é seu próprio deus”. Essas são lorotas divulgadas no meio esotérico brasileiro, que só levam à ruína do praticante de magia. Seguir ou não esse raciocínio mentalista moderno e deturpado, é um direito de cada um; porém, parafraseando Paulo (Cor, 6) em sua carta aos Coríntios: “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (1 Cor, 6).
REFERÊNCIAS:
HYATT, Christopher in LISIEWSKI, Joseph. Cerimonial magic and the power of evocation. New Falcon publications. Arizona: 2008.
NOTAS
Apesar de ser uma “analogia de Deus”, o homem não é igual a Deus, e portanto não é uma divindade autônoma como o pensamento moderno sugere.
“O Universo é mental”. Mas será que a magia também é apenas uma ilusão de nossa mente?
Nem todas as operações de Magia Cerimonial fazem uso de recursos necessariamente psicologizados. Na foto acima, exemplo de círculo mágico amplamente usado em operações de Magia Cerimonial Tradicional. Na prática de Teurgia, nem todos os efeitos mágicos são necessariamente oriundos da psique do operador.
Helena Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica. A Teosofia de Blavatsky foi a principal responsável por popularizar conceitos orientalistas na Europa no final do século 19, como a yoga. Ela também foi uma das responsáveis pela “psicologização” da magia e da astrologia ocidentais.
A popularização da Psicologia no século 19 fez com que as abordagens psicológicas ficassem cada vez mais comuns nas Ordens Iniciáticas da Europa. Na foto acima, o famoso psicólogo Carl Jung, usado atualmente como “base científica” em muitas instituições esotéricas.