Na 5ª parte desta série de artigos, vimos como o Esoterismo Moderno tomou forma a partir do século 19, e se consolidou como uma tendência espiritual independente, delimitando um corpo teórico a partir de autores considerados “mestres espirituais” na modernidade (Eliphas Levi, Papus, Helena Blavatsky e Crowley).
A partir de agora, encerraremos esta série de artigos sobre a Tradição Espiritual Ocidental analisando como o Esoterismo Moderno ratificou de maneira definitiva seus “pressupostos filosóficos” a partir do século 20, e como ele tem sido vítima dos próprios valores iluministas que abraçou, sofrendo de um relativismo conceitual que o impede de chegar a qualquer conclusão sobre a Verdade (e o afastando da essência da espiritualidade do Ocidente).
O Esoterismo Moderno e suas infinitas correntes espirituais: para onde caminha a espiritualidade do homem contemporâneo?
O Esoterismo Moderno estimula a mistura, o sincretismo, a absorção desenfreada (e sem critérios) de conhecimentos muitas vezes incompatíveis, através da lógica moderna de que “de tudo se deve extrair um pouco”. Só que essa lógica cria estudantes incompletos e medíocres, que dominam superficialmente aspectos de muitas correntes e doutrinas diferentes, mas que não conseguem desempenhar um papel satisfatório em nenhuma delas.
Curiosamente, o Esoterismo Moderno parece ser vítima dos próprios ideais iluministas que abraçou (e dos quais construiu sua identidade). Assim, ao mesmo tempo em que prega uma “releitura da Tradição”, a espiritualidade moderna vê-se perdida em meio a uma diversidade quase infinita de tendências espirituais,Filosofias e correntes religiosas, sem que nenhuma delas possa ser classificada como “autêntica” ou “verdadeira”. Como o Esoterismo Moderno abraça “várias verdades”, a autenticidade de cada corrente filosófica que compõe a espiritualidade contemporânea vai depender sempre da interpretação pessoal de cada buscador (Subjetivismo). E é justamente aí que os estudantes de esoterismo da modernidade caem num verdadeiro “labirinto”.
Diferente da Tradição Espiritual Ocidental, que é respaldada em critérios definidos e possui uma base epistemológica sólida e comum em todas as culturas ocidentais nas quais se manifesta, o Esoterismo Moderno tem uma dificuldade enorme em estabelecer critérios práticos de análise da espiritualidade. Isso ocorre porque a modernidade parece caminhar sob um ideal fantasioso de “democracia” (outro fruto da influência iluminista), que quer dar a todos “vez e voz” na construção de identidade de qualquer coisa (incluindo a espiritualidade). Assim, o Esoterismo Moderno, amarrado aos ideais iluministas do Relativismo e do Subjetivismo, deixa à cargo de cada buscador interpretar como quiser os resultados que obtém de suas práticas espirituais, gerando uma verdadeiro festival de achismos e análises distorcidas de coisas que poderiam ser classificadas de maneira objetiva e concreta.
Ao leitor, deixo um pequeno “desafio”: pergunte a algum estudante de esoterismo da atualidade (ou algum conhecido seu, membro de alguma Ordem Iniciática moderna), quais resultados ele obteve de suas práticas espirituais (sejam elas quais forem). É bem provável que você receba respostas do tipo “tive resultados extraordinários”; “senti energias positivas a meu redor, durante minhas práticas”, ou mesmo respostas relativistas do tipo “o que são resultados pra você? Tudo pode ser considerado resultado”. Os estudantes de Esoterismo Moderno tem enorme dificuldade para sistematizar os resultados que obtém de suas práticas, justamente porque o próprio Esoterismo Moderno (através de grande parte de suas correntes filosóficas e espirituais) não estabelece critérios claros de análise de resultados, ou de interpretação de práticas espirituais.
É importante ressaltar que nesse “samba do crioulo doido”, alguns valores da Tradição Espiritual do Ocidente foram mantidos (e até fortalecidos!) no Esoterismo Moderno. Não porque esses valores são importantes para a modernidade, mas porque seu uso é estratégico aos objetivos da espiritualidade moderna (e ao marketing promovido pela modernidade em torno de si mesma). Estamos falando dos conceitos de “segredo” e da separação dos indivíduos entre “iniciados” e “não-iniciados”.
A importância do segredo e da separação da sociedade entre “iniciados” e “não-iniciados” (chamados na modernidade de “profanos”) está intimamente ligada ao nascimento e expansão das Ordens Iniciáticas modernas no século 19. Muitas dessas instituições espiritualistas se apresentaram como detentoras de algum tipo de “sucessão espiritual” (obviamente remontando aos primórdios da Tradição Ocidental). Assim, no Esoterismo Moderno nascido no século 19, apenas as Ordens Iniciáticas eram capazes de manter segredo sobre os “conhecimentos milenares” que possuíam: seus membros (iniciados) eram constantemente aconselhados a não se misturar com os “profanos” (não-iniciados). Isso criava uma sensação (presunçosa) de “superioridade espiritual” dos membros dessas Ordens, que se achavam “mais gabaritados” que os indivíduos que não fossem “iniciados” (o que obviamente, forçava os não-iniciados a procurarem a iniciação dentro das Ordens!). É justo ressaltarmos, no entanto, que esse tipo de raciocínio tem sido duramente combatido no seio da própria modernidade através do discurso conciliatório do movimento “New Age” (Nova Era) e da suposta “Era de Aquário” (que traria a verdade de qualquer assunto à tona).
Seja como for, é por essa razão que as Ordens Iniciáticas modernas fizeram uso desses aspectos (segredo e valorização da iniciação) tão caros à Tradição Espiritual Ocidental (e não por simplesmente considera-los “importantes” ou “autênticos”).
É necessário destacar também, que a interpretação dada pela espiritualidade moderna ao termo “iniciação” difere e muito da interpretação dada pela espiritualidade tradicional a esse termo. De uma forma geral, o Esoterismo Moderno parte da ideia de que seres humanos (iniciados) podem iniciar outros seres humanos em alguma vertente espiritual, e as Ordens Iniciáticas do século 19 se valeram desse raciocínio para divulgar fortemente o raciocínio de que a “Iniciação” só poderia ser obtida dentro de suas estruturas, por membros devidamente iniciados. Porém, essa interpretação dada pelas Ordens Iniciáticas modernas, considerava a iniciação como sinônimo de cerimônias que deviam ser realizadas na estrutura das Ordens, exclusivamente por seus membros ou aspirantes a membros (GUÉNON, 2017).
O pensamento da Tradição Ocidental a respeito do conceito de “Iniciação” é diferente: na verdade, a “Iniciação” (sob um ponto de vista tradicional) é um processo espiritual acarretado por meio da experiência direta (prática) do buscador, através do trabalho com o Trivium Hermético. Assim, a Iniciação não depende de outro ser humano (mesmo que ele seja “iniciado” em Ordens Iniciáticas modernas), mas sim do trabalho espiritual feito pelo buscador. De forma simplificada, dum ponto de vista tradicional, apenas Deus pode conceder uma “iniciação espiritual a alguém”, seja por meio de sua graça direta, seja através das hierarquias da Criação e dos seres que a compõem (anjos, arcanjos, demônios, elementais, espíritos desencarnados, etc.). Logo, o conceito tradicional de “Iniciação” não gira necessariamente em torno de um “iniciador humano” (o que impede que seres humanos tornem-se “reféns” de outros seres humanos em busca de uma”iniciação”, como ocorre frequentemente no Esoterismo Moderno).
Considerações Finais
A Tradição Espiritual Ocidental é um corpo de conhecimentos transmitido de geração à geração através dos séculos, pautado nas manifestações culturais de quatro grandes matrizes culturais ocidentais: a matriz pagã (representada especialmente pelo xamanismo celta e pelas religiões de matriz Africana), a matriz egípcia, a matriz greco-romana e a matriz judaico-cristã. É dessas quatro culturas (e das culturas diretamente influenciadas por elas) que se sustenta toda a base sócio-histórica da Tradição Espiritual do Ocidente.
A Tradição manifesta-se de formas diferentes em cada uma dessas culturas, mantendo uma essência comum em cada um delas (e usando roupagens diferentes de acordo com a carga histórica e cultural de cada um dos povos nos quais essas matrizes se manifestam). Ainda assim, não podemos afirmar que os elementos comuns dessas matrizes são necessariamente “pontos convergentes”: trata-se na verdade de elementos similares que encontram uma congruência ao se manifestarem. Assim, não existem “várias tradições” no Ocidente: existe somente uma Tradição, que é perene (não dependente do tempo) e que se manifesta de formas aparentemente diferentes, mas similares em certos aspectos (através dos valores chamados “tradicionais”).
Quanto à sua forma de manifestação, a espiritualidade tradicional Ocidental manifestou-se nas quatro culturas (pagã, egípcia, greco-romana e judaico-cristã) através do chamado “Trivium Hermético”: a Astrologia Tradicional, a Alquimia Laboratorial e a Teurgia. Foi através dessas três artes herméticas (sempre presentes em maior ou menor grau), que a Tradição Espiritual do Ocidente manifestou sua base prática ao longo dos séculos.
Por outro lado, o Iluminismo (a partir do século 17) veio à tona na cultura ocidental como um rival da Tradição, e procurou (ainda procura!) enfraquecer a essência da Tradição através das correntes de pensamento que formam o pensamento iluminista (Relativismo, Liberalismo, Humanismo, Empirismo, Subjetivismo, Ceticismo, Materialismo, Progressismo, Pragmatismo, etc.). O Iluminismo atingiu diretamente a espiritualidade Ocidental a partir do século 18, gerando o que conhecemos atualmente como o “Esoterismo Moderno”: uma vertente espiritual autônoma, gerada a partir do corpo da Tradição Espiritual do Ocidente, mas manifestando valores e ideias completamente alheios à sua origem.
O pensamento iluminista está “entranhado” no Esoterismo Moderno “até os dentes”, e nada que seja considerado tradicional ou pertencente à Tradição Espiritual Ocidental escapa incólume à abordagem da espiritualidade contemporânea: “adaptar” é sua palavra de ordem, e “deturpar” é seu sobrenome (RIFFARD, 1990).
Com isso, não queremos dizer que o Esoterismo Moderno não tem um valor; ele certamente pode ter algum valor a seus adeptos, e não é nossa intenção “varrê-lo da existência” (como o Iluminismo procurou fazer com a essência da Tradição, no século 18). O problema aqui não é simplesmente o fato de o Esoterismo Moderno defender valores não-tradicionais: é comprovarmos o que ele tem feito em relação à Tradição ao longo de sua existência. E o que ele tem feito não é algo que possamos considerar “benéfico” ou “positivo” ao pensamento da espiritualidade ocidental: o Esoterismo Moderno simplesmente tem seguido à risca a cartilha iluminista de combate aos valores tradicionais e à essência da Tradição Espiritual do Ocidente (sua própria fonte de origem), porque sua própria essência é procurar modificar tudo que toca.
O fato de que o Esoterismo Moderno trabalha através de adaptações de conceitos considerados tradicionais, é comumente justificado pela modernidade com o argumento de que “o homem moderno não pode usar os mesmos métodos espirituais que os homens de outras eras usaram”.
Outro argumento comumente usado pelos sistemas esotéricos modernos para justificar a utilização (e mudança) de conceitos tradicionais, seria o de que “a modernidade é a evolução da Tradição”, e, portanto, “o Esoterismo Moderno corrige os erros cometidos pelo esoterismo Tradicional”. Esses argumentos são absolutamente incoerentes e não explicam ou justificam o empobrecimento que a espiritualidade moderna ocasiona nos conceitos tradicionais de que se apropria. O problema aqui não são as adaptações feitas pela modernidade sobre os conceitos da Tradição Espiritual Ocidental: é a falta de coerência dessas adaptações, que terminam por gerar aberrações filosóficas e espirituais sem nenhuma consistência, no seio da espiritualidade moderna.
Da mesma forma, fica-nos claro que a modernidade nunca “corrigiu” nenhum dos “erros” que alega haverem existido na manifestação da Tradição ao longo dos séculos…. pois se o tivesse feito, ela mesma não teria gerado falhas na espiritualidade do homem contemporâneo. Não estamos dizendo que a Tradição Espiritual Ocidental não tenha tido falhas ao longo da história humana; certamente ela o teve (visto que o conceito pleno de “perfeição” jamais pode ser manifestado neste mundo, e pertence apenas a Deus, que é Todo-Poderoso); porém, não foi o Esoterismo Moderno quem “corrigiu” essas “falhas”. Assim, a modernidade não consertou nada do que classifica como “errado” na Tradição; ao contrário: acrescentou novas falhas à espiritualidade ocidental, ao mesmo tempo em que alega estar tentando “corrigir” os erros do passado, para desviar a atenção de suas próprias imperfeições (COOMARASWAMY, 2017).
Esperamos que tenha ficado claro ao leitor o que significa a Tradição Espiritual do Ocidente, qual o conceito de “Tradição”, e quais as diferenças (abissais) entre a espiritualidade tradicional do Ocidente e o Esoterismo Moderno.
Aos caros leitores, fica a dica: nem tudo que se diz ser “tradicional”, bebe realmente dos valores da Tradição Ocidental. Não se deve comprar “gato por lebre”, nem “bananas por maçãs”: são duas frutas diferentes, com sabores diferentes (embora gostosas), mas que nem sempre devem (ou podem) ser consumidas juntas.
Cada ser humano tem liberdade para escolher o que quer seguir, e com qual vertente filosófica ou espiritual quer se alinhar. Todavia, é preciso se ter consciência do que se está seguindo, para se evitar decepções futuras. Não se pode usar o discurso de eterno buscador (“estou experimentando para saber o que escolho”), pois esse é um dos mantras modernos que tentam justificar a incapacidade dos buscadores espirituais da atualidade em fazer escolhas (mesmo as mais simples).
Escolher o Esoterismo Moderno como caminho espiritual é um direito que cabe a qualquer ser humano, e é algo comum na atualidade (muitos estudantes que optam por trilhar a espiritualidade tradicional Ocidental e seus valores, inclusive iniciam suas jornadas espirituais no Esoterismo Moderno). Todavia, não se pode escolher a espiritualidade moderna, achando que se está escolhendo algo “tradicional”…
A vida é feita de escolhas, e cada escolha deve ser feita com carinho, cuidado e atenção. Não se pode ter tudo na vida, ao mesmo tempo em que se deve ter noção mínima do que se quer obter numa senda espiritual. Como diriam certos “ditados populares”: “quem tudo quer, termina sem nada”; ou mesmo: “quem não sabe o que quer, não reconhece o que encontra”.
REFERÊNCIAS
COOMARASWAMY, Rama. Ensaios sobre a destruição da tradição cristã. Instituto René Guénon de estudos Tradicionais – IRGET. São Paulo: 2017.
GUÉNON, René. A crise do mundo moderno. Instituto René Guénon de estudos Tradicionais – IRGET. São Paulo: 2017.
RIFFARD, Pierre. O Esoterismo: antologia do esoterismo ocidental. Ed. Mandarim. São Paulo: 1996.
NOTAS
A Modernidade alega ter “corrigido” as falhas da Tradição, se dizendo uma “evolução do pensamento tradicional”. Porém, na prática, a Modernidade não conseguiu corrigir o que alegava estar “errado” no pensamento tradicional; ao contrário: criou novos erros, enquanto apontava para as falhas do pensamento tradicional como forma de desviar o foco de seu próprio fracasso.
A filosofia “New Age” (Nova Era) é uma forma de espiritualidade muito ativa no Esoterismo Moderno, pautada numa visão espiritual eclética, descentralizada, focada no bem-estar (Holismo) e no “progresso espiritual” do homem contemporâneo. Para os adeptos do pensamento “Nova Era”, nada pode permanecer oculto ou inacessível ao ser humano, pois a humanidade está vivendo um período de “renascimento espiritual” (a chamada “Era de Aquário”) onde todos os “segredos” serão “abolidos”.
O Esoterismo Moderno abraçou os ideais iluministas (especialmente o Relativismo) a tal ponto, que encontra-se praticamente num “beco sem saída”: há caminhos espirituais demais, e verdades de menos. Assim, o homem contemporâneo se vê numa verdadeira “selva de conceitos”, sem que nenhum lhe pareça confiável ou definitivo.