O “Azoetia, A Grimoire of the Sabbatic Craft”, de Andrew Chumbley, será provavelmente o livro que ficará na historia da Magia do século XX, ao lado de alguns e raros outros livros como o "Magick" e o "Al Vel Legis" de Aleister Crowley. Para quem nunca teve este livro na mão é necessário esclarecer que defini-lo apenas como um livro, pura e simplesmente, é corrermos o risco de enganar-nos e atraiçoar o seu autor e confundir o interlocutor que nos lê e escuta. Dessa forma menor não se compreenderá nem alcançará o que ele significa no contexto esotérico e estético-literário se continuarmos a afirmar que estamos diante de um mero livro, por muito audacioso e genial que ele seja. Nós estamos diante do que se chamam os "livres-objects" e que foi uma das grandes paixões dos esoteristas ingleses, sobretudo depois de Willian Morris. Porém, eu chamaria antes a estes livros: “livres-talismans”. Em primeiro lugar é necessário saber que A. Chumbley se encontra numa corrente de esoteristas-artistas que vem de Willian Blake e passa, mais tarde, por Willian Morris e A. Osman Spare. Mas, a sua origem é mais remota: nos papiros mágicos egípcios e caldaicos que ele havia estudado e examinado, e que tanto gostava de meditar e tantas vezes o inspirou. Antes de falecer ele tinha uma palestra marcada, se bem me lembro, no Museu de Bruxaria de Boscatle, na Cornualha, Inglaterra, precisamente sobre as raízes caldaicas da bruxaria. Todas essas influências têm uma característica comum: a importância que a imagem tem, sobrepondo-se por vezes sobre o texto, e criando uma dupla leitura e uma ambiguidade estética que Empson nos seus “Seven Types of Ambiguity” considerava ser a raiz da Poesia. Pois é preciso dizer ao leitor que ainda não teve a sorte do Numen o conduzir a um destes talismãs-livros e de ler-ver-amar este texto, que Chumbley raramente escreve em prosa a não ser para comentários. Ele escreve sempre em poesia, seja verso livre ou verso rimado, com um estilo que nos lembra por vezes Ezra Pound. Todos esses elementos estético-esotéricos, pois desde a pré-história o fator estético esteve sempre aliado à magia e aos mistérios-religiosos, deixaram um lastro profundo na sua obra e na sua maneira de pensar. Ela está bem clara no carácter densamente intelectual e poético do seu trabalho. Assim, o Azoetia não é um livro. Pelo menos não é um livro comum, não só no conteúdo como na forma! Nem o seu autor queria que assim fosse. Tanto não é um livro comum que ele nunca quis nem permitiu que fosse traduzido, pois a língua inglesa era a chave da sua obra, de um inglês tão erudito e rico de arcaísmos que é por vezes intraduzível noutra língua. Nesse aspecto não há dúvida que Chumbley bebeu no espírito estético de Crowley, no seu hermetismo literário e na sua preocupação dandy com a forma do livro como uma sepultura de tesouros mágicos ao bom estilo do mito da sepultura de Christian Rosenkreutz. Todos os livros de Crowley são cuidadosamente impressos como fossem um talismã e nascidos como uma criatura. Dizem os textos rituais por ele usados: «Criatura dos Talismãs, tu que há longo tempo habitaste nas trevas, deixa as trevas e vem para a Luz». Nascer um livro é nascer uma criatura, trazê-la para a Luz. Por isso se compreende a importância que têm os sigilos, signos, sinais mágicos, sobretudo da segunda edição do Azoetia, que é a mais elaborada sob o ponto de vista estético. Chumbley não só escreveu este livro como também o desenhou. Mas também organizou e alterou muitas vezes as suas provas tipográficas, num estilo de escritor-artista que vem já de Thomas Mann. Lembre-se para compreender o elevado gênio deste homem de coração tão nobre como de sabedoria tão pungente, que ele o escreveu-desenhou num período muito recente da sua juventude. Ela é uma obra de juventude, no mesmo sentido que usamos hoje esta expressão entre diletantes e “connaisseurs de arte” para as obras de Giotto ou Francis Bacon.
O ato da escrita não tem nele o sentido prático-gramatical em que ele é usado na escrita de hoje. É uma escrita propositadamente hermética, fechada e auto-suficiente, ao estilo dos textos funerários egípcios, do “Variations” de Mallarmé. Ele foi muito escrupuloso como Cunning Crafter em matéria de arte hermética. Não se trata de uma arte qualquer mas de um objeto-criatura nascida da Arte, trazida da essência primordial do Azoth, no sentido de Craft e Cunning, que os feiticeiros do Essex bem conhecem, isto é, no sentido que Loki tem nos mitos nórdicos ao arrancar e premiar com os seus talismãs de poder. Ler as suas obras é, por isso, necessário desaprender a ler, a narrar, é preciso matar cainisticamente as suas referências. Ler as suas obras é Ver.
Nada é deixado ao acaso neste livro desde o número das suas páginas, o número de edições, o número e natureza das imagens. Tudo faz parte do Todo. Tudo faz parte de uma Cifra. Por isso, a raiz deste livro-arte é o alfabeto, os Aats que soletram o verbo primal ao longo do percurso desta serpente alfabética que se desenrola pelo feitiço da leitura, do canto, do hino e do êxtase, como uma espiral de ADN, o ADN dos nascidos do sangue-bruxo e revelado a partir da essência imortal do Azoth.
Lembremos que Chumbley pensava em termos de produção literária como um artista, um pouco ao estilo de Lawrence Durrell, o autor do Quarteto de Alexandria, com múltiplos planos interceptados na mesma narrativa mas com a imponência textual encantatória de um Kavafis e de Marguerite Yourcenar. Não estranha que as imagens que o acompanham sejam tão ou mais importantes que a letra do livro, numa tradição, de que ele era muito consciente, que vem de Austin Osman Spare e da corrente tardo-simbolista inglesa como a de Aubrey Beardsley. Crowley também já havia seguido esse primado do livro como objeto-talismã, pelo esmero que colocou na composição visual do livro como “The Book of the Path of the Camaleon” usando cores flamejantes para atrair as forças etéricas ao livro e torná-lo um portador de Força Numinosa, pela inquietação da riqueza sigilar dos seus The Equinox. Por outro lado, a tendência para obras de pequena produção e ricamente ornadas que a Xoanon persegue, a editora dos livros do Cultus, já está na filosofia da Dove Press, que em 1970, contra a politica comercial de alienação do livro de consumo, tipografa os “Hymn to Lucifer” de Crowley, apenas com 22 exemplares, cheio de desenhos sigilares, selos, e oito simbólicas ilustrações do desenhista russo Nicolas Kalmakoff. Mas, claro que a origem está em Blake e no esforço de produção de obras de arte do Movimento Craft and Arts de Willian Morris, que muito influenciou a sensibilidade esotérica da Craft.
O título deste livro não é contudo Azoetia, mas Azoetia: A Grimoire of the Sabbatic Craft. Isso é importante! Um grimório é uma gramática, uma “grammar” como diziam os antigos medievalistas, que Sir Walter Scott chamava "gramarye". Esta expressão tem a ver com a grama, a erva, a jardinagem. Tem a ver com Qayin o primeiro agricultor, aquele que assassina com a letra-grama que segundo os mitos nasceram das árvores, ou a letra-sangue (Blood-Letter), e desencadeia um processo errático na língua (a língua bifurcada de serpente que ele tanto celebra no seu Draconian Grimoire) e que tem a natureza duma busca infinda do Ser. Embora o livro possa ser lido por qualquer pessoa corre-se o risco de estar a olhar sem ver e a ler sem compreender, por muito boas que sejam as intenções do discurso popular de catequese e doutrinação paroquial dizendo que ele é mesmo assim compreensível. Decididamente ele não é. Isso não significa que possa ser lido, percebido, embora não entendido. Que possa ser macaqueado mas não imitado, no sentido da “imitatio” dos pitagóricos; ou da Die Imitatio Christi de Nietzsche; ou com Albertano de Brescia que canta: «imitatio reddit Artifices aptos». Não é, por isso, a compreensão-percepção da Gnose, que faz saltar a cabeça dos ombros ao bom estilo do assassínio bíblico de Abel que os mitos, sem ser por acaso, dizem ter sido executado fraturando-lhe a cabeça. Além disso, no livro não são mencionados muitos contextos que fazem parte do Adepto do Cultus e tornariam não só inteligível como operativas as chaves do seu sistema.
O Conhecimento que não nos faça saltar esta cabeça dos ombros não vale a pena ser buscado. Embora as palavras deste Talismã feito de Letras e Imagens possam ser macaqueadas, imitadas, soletradas, não significa que estejam a ser usadas com Arte e Engenho. No fundo só estará a ser usado como passatempo lúdico, como verborreia, como ruído. Porque o Livro está cheio de interstícios e limbos literários, esotéricos, gramaticais, imaginais, ao bom estilo dos textos gnósticos. Ele é uma Cifra.
Ele é inacessível a quem não tenha bons conhecimentos de arte, geometria, matemática, literatura, religião, etc. Mas, mesmo assim, esse acesso é apenas de fora, como quem vê uma catedral gótica e a lê pelo cannon da sua cultura artística. Neste sentido ele pode ser lido mas não significa que possa ser compreendido. Mas que possa ser integrado e apreendido, de forma que quem lê e aquilo que é lido se tornem um só: o Fogo, o momento de incandescência da Sabedoria.