quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Maçonaria - História da Lenda de Hiram

 

Templum é com certeza a delimitação “espacial simbólica” que move a humanidade desde os primórdios do seu pensar sagrado e esta delimitação possui a sua significação dentro de uma constelação própria de mitos que a alimenta e que define a sua estrutura. Aqui aterer-nos-emos ao mito de Hiram Abiff, que na Torá escreve-se com um heith (n) e não com um hê (n), de modo que a transliteração correcta é Chiram, que se pronuncia Riram.

Neste trabalho tentaremos perceber a senda simbólica do personagem acima citado, propondo-se a uma análise do seu mito e da influência que terá no rito de iniciação ao terceiro grau da “Maçonaria Simbólica”, para o qual é indispensável conhecer a narrativa da construção do primeiro Templo de Jerusalém (975 a.C.), sob o governo do rei Salomão.

Utilizando-se de uma hermenêutica simbólica, colocaremos em evidência as diversas matizes que tornam o mito o ponto culminante da maçonaria simbólica, bem como tentaremos perceber como se processa a ressignificação do personagem, uma vez que nos textos Hiram tem a função de fundidor, metalúrgico, mas nos ritos maçónicos ele é identificado com o tipo ideal do construtor, passando por uma nova significação que toma “cores” ilustrativas de elevados padrões morais.

Para esta hermenêutica alicerçar-nos-emos em três princípios: rito, mistério e iniciação.

Na construção destes três conceitos traçaremos a constelação em torno deste Imaginário, dando voz ao mito e também ao grupo social onde Hiram é o protótipo do “maçon” ideal.

Sobre rito, Barzán, dir-nos-á:

A palavra deriva do latim ritus, cujo equivalente em grego é thesmós (em dórico tehmós) e cujo significado no plural é: “tradições ancestrais, regras, ritos”… o rito carrega de sacralidade, ou seja, de vitalidade renovada e de energia, o tempo, o espaço e a casualidade empírica. Estas três condições da existência sensível possuem uma disposição que lhe é inerente para a mudança, a dispersão e a dissolução. (BARZAN, 2002, p. 50)

O rito como um ritmo básico permite que o tempo saia da sua linearidade e assuma uma forma espiralada de manifestação, onde cada volta encontra-se num patamar superior de significados, o tempo torna-se cíclico e a mudança, a dispersão e dissolução, numa certa medida, perdem as suas forças.

Os mistérios realizam a mesma finalidade em toda a sua extensão: “Imitam a natureza do divino, que rejeita a percepção directa”. Na realidade, permitem ao iniciado experimentar o segredo que se oculta nas formas e mudanças do cosmo. Sob os véus das celebrações mistéricas (acções, utensílios, mitos e discursos sagrados [hierós logos], a primeira coisa que salta à vista é a vida inesgotável da natureza e a sua circulação universal. (BARZÁN, 2002, p. 118)

A iniciação ao terceiro grau da maçonaria simbólica está fundada no mito de Hiram e o seu rito visa principalmente confrontar o iniciando com a angústia que o tolhe, quando colocado diante da finitude da vida. É uma morte simbólica, para um renascimento moral e social.

No mito, Hiram é morto por três companheiros que desejosos de adquirir a palavra de passe (senha) do grau de mestre – chave do conhecimento e do trabalho desta categoria, note-se que querem o “título” sem esforço, interpelaram-no violentamente, que não lha revelou. Frustrados no seu intento, eles o mataram e ocultaram o cadáver, que depois foi descoberto e colocado em sepultura adequada. Observemos que nesta narrativa há um elemento muito interessante: Hiram leva para o túmulo a palavra de passe; há uma descida do conhecimento ao mundo inferior. Outro ponto é que Hiram morre como “construtor”, mas o seu renascimento é como “arquétipo” moral.

Há diferentes nomes para os três maus companheiros, dentre os quais Boucher (2012) destaca:

Jubelas, Jubelos, Jubelum;
Giblon, Giblas, Giblos;
Habbhen, Schterke, Austersfurth; e
Abiram, Romvel, Gravelot,
Os criminosos fugiram, mas foram presos e condenados à morte.

É sobre a origem desta lenda, como toda a sua gama de imbricações que nos dedicaremos nas páginas a seguir.

Percepção imagética de Hiram e a Maçonaria Simbólica
Remontando a sua actual estrutura a 1717 – data da criação da Grande Loja de Londres – a maçonaria alega ser uma instituição essencialmente filosófica, filantrópica, educativa e progressista, que tem os seguintes princípios: a liberdade dos indivíduos e dos grupos humanos; a igualdade de direitos e obrigações dos seres e grupos sem distinção de raça, credo ou nacionalidade; a fraternidade universal, pois somos todos filhos do mesmo Criador (GOB, 2013).

A maçonaria moderna fixa o seu lema como “Ciência – Justiça – Trabalho”: ciência, para esclarecer e elevar os espíritos; justiça, para equilibrar as relações humanas; trabalho, por meio do qual os homens e mulheres se dignificam e alcançam a sua independência financeira.

São seus objectivos a investigação da verdade, o exame da moral e a prática das virtudes e embora não seja uma religião, é religiosa, vez que reconhece a existência de um único princípio criador, supremo e infinito, que denomina Grande Arquitecto do Universo, denominação que remonta a 1572, quando foi empregada por Philibert Delorme no seu tratado de arquitectura (REBISSE, 1998).

Dentre os postulados universais da maçonaria, interessante a este trabalho destacar (GOB, 2013):

a existência de um princípio criador, o Grande Arquitecto do Universo;
a divisão da maçonaria simbólica em três graus (aprendiz, companheiro e mestre);
a lenda do terceiro grau (lenda de Hiram) e a sua incorporação aos rituais;
a exclusiva iniciação de homens; e
a proibição de discussão ou controvérsia sobre matéria político-partidária, religiosa e racial, dentro dos templos ou fora deles, em seu nome.
Seus membros são denominados maçons e os candidatos devem submeter-se a um ritual de iniciação, pautada por mistérios que junto com os postulados morais lançam os alicerces dos pilares que sustentam a abordada da própria instituição.

Comumente a maçonaria é referida como uma sociedade secreta mas OLIVEIRA (2012, p. 1) afirma que: “[…] a Maçonaria não é uma entidade secreta. Os seus membros guardam sob sigilo apenas os sinais, toques e palavras utilizados para se reconheceram. A história e a finalidade da Ordem devem ser exaustivamente divulgadas.”

Nesta linha, não serão revelados detalhes dos rituais, de maneira que as informações aqui divulgadas não são do tipo que ferem os compromissos assumidos por maçons.

É esta discrição que faz a maçonaria permear o imaginário tanto dos seus membros como dos “profanos”, termo utilizado para definir os não iniciados nos seus mistérios. Nesta pertença, ser maçon implica numa série de discursos que possuem as suas origens em mitos que se perderam nas brumas do tempo.

Qual a relevância de um manipulador dos minerais, deste “alquimista”? Eliade traz-nos alguns pontos que achamos importantes.

Las sustancias minerales participaban del carácter sagrado de La Madre Tierra. No tardamos en encontrarnos con la idea de que los minerales «crecen» en el vientre de la Tierra, ni más ni menos que si fueran embriones. La metalurgia adquiere de este modo un carácter obstétrico. El minero y el metalúrgico intervienen en el proceso de la embriología subterránea, precipitan el ritmo de crecimiento de lós minerales, colaboran en la obra de la Naturaleza, la ayudan a «parir más pronto». En resumen: el hombre, mediante sus técnicas, va sustituyendo al Tiempo, su trabajo va reemplazando la obra del Tiempo. (ELIADE, 1974. p. 4)

Hiram a priori caracteriza-se como este interventor na embriologia subterrânea, a qual se opera entrando no subsolo.

Do ponto de vista iniciático, esta descida ao interior é tradicionalmente representada pelo acróstico VITRIOL, assim decomposto por Chevalier: “Visita interiorem terrae rectificando invenies operae lapidem, ou seja, segundo Jean Sevier, Desce às entranhas da terra, destilando, encontrarás a pedra da obra.” (CHEVALIER/GHEERBRANT, 2009. p. 982).

Hiram, pela sua pertença profissional e também pelas circunstancias da sua morte, num primeiro momento pode ser identificado com uma estrutura catamórfica [1] da imagem, por evocar a descida ao subterrâneo para a manipulação dos minerais e também pela morte, que é uma queda.

O profundo simbolismo de Hiram e os antigos mistérios
Hiram é o mestre artífice, ícone do terceiro grau e possui uma tamanha importância que está presente em todos os ritos, intocável na sua essência, a despeito das alterações que o sistema em geral possa ter sofrido ao longo dos tempos.

Qual a importância e o significado dessa lenda e por que ela se tornou indissociável da maçonaria?

Para responder a estas perguntas satisfatoriamente, retornemos aos mitos e às consequentes práticas iniciáticas de povos antigos, que os “maçonólogos” (nome pelo qual os maçons identificam os estudiosos da ordem) apontam como influências para o surgir da lenda de Hiram.

Sobre o significado da iniciação, Eliade fornece-nos o mais plural e ainda assim, completo possível, a saber:

Compreende-se geralmente por iniciação um conjunto de ritos e de ensinamentos orais que persegue a modificação radical do estatuto religioso e social do sujeito a iniciar. Filosoficamente falando, a iniciação equivale a uma mutação ontológica do regime existencial. No final das suas provas, o neófito goza de outra existência que a anterior à iniciação: torna-se um outro. (apud SAMY, 2008, p. 17)

E afirma ainda que a iniciação:

[…] introduz o neófito na comunidade humana e no mundo dos valores espirituais. Aprende comportamentos, técnicas e instituições dos adultos, como também mitos e tradições sagradas da tribo, nomes dos deuses e a história das suas obras; aprende, sobretudo, as relações místicas entre a tribo e os Seres sobrenaturais assim como foram estabelecidas na origem dos tempos. (apud SAMY, 2008, p. 17)

Definido o ponto de vista sobre o qual analisaremos o termo iniciação, devemos ter em mente que nos tempos antigos elas eram realizadas nas “escolas de mistérios”, nas quais o estudo das “forças superiores” era dividido entre mistérios menores e mistérios maiores.

Nos mistérios menores, o candidato, após prestar juramento administrado pelo mistagogo, recebia uma instrução preparatória, sendo alçado à condição de miste, iniciado.

E nos grandes mistérios, o conhecimento completo das verdades tratadas na iniciação era finalmente comunicado e dentre as várias cerimónias existentes, pode-se elencar como práticas semelhantes às da maçonaria especulativa: o afanismo (do grego; “destruição”, “morte”), desaparecimento ou morte (simbólica) do iniciado; o pasto, cama, caixão ou túmulo; a eurese (“descoberta,”, “invenção”), encontro do cadáver; e a autopsia, comunicação de todos os segredos e conhecimento integral, que tornavam o outrora profano num epopta, “testemunha ocular”, pois agora nada mais lhe era desconhecido (MACKEY, 2008, vol. I).

Este processo de autodescoberta recorre a arquétipos profundos, a um imaginário que unirá pessoa de diferentes credos, culturas e classes sociais, que se reconhecerão através de toques, palavras de passe e sinais.

Debrucemo-nos então sobre alguns mitos antigos que possuem relação com o de Hiram.

Comecemos então pelo mais elaborado e influente mito egípcio, o de Osíris, cujos mistérios eram representados no Lago de Sais e a origem remonta ao século XV a.C. ou alhures.

O deus Osíris, esposo de Ísis, foi morto e esquartejado por Seth, o seu irmão, e os restos do cadáver, lançados no Nilo, espalhando-se pela terra. Todavia, Ísis diligentemente procurou e recolheu as partes do corpo, com excepção do falo, segundo algumas versões.

Postumamente, Ísis concebeu Horus, que enfrentou e venceu Seth e completou o processo de ressurreição do pai. Tal mito ergue-se como parte essencial do imaginário egípcio sobre realeza e sucessão dinástica, sobre o conflito entre a ordem e o caos, e sobre a morte e a vitória sobre a morte pela imortalidade da alma.

Nas iniciações aos mistérios de Osíris, o candidato era submetido à repetição figurativa do conflito e morte de Osíris e da sua ressurreição, tornando-se apto a compreender a doutrina secreta daquele povo.

Ao longo dos séculos, em lugares e culturas diferentes foram encontrados mitos e iniciações semelhantes. Apuleio descreve minuciosamente a sua iniciação aos mistérios de Ísis: “Eu aproximei-me dos confins da morte, e ao pisar na soleira de Proserpina, eu voltei de lá, renascido por todos os elementos. À meia-noite eu vi o sol a brilhar com a sua luz radiante; senti a presença dos deuses abaixo e dos deuses do céu, aproximei-me deles e os adorei.” (MACKEY, 2008, vol. II, p. 62).

Na Fenícia, cultuava-se Adónis, filho de Cíniras, rei de Ciro, amante favorito de Vénus. Segundo o mito, ele foi morto por um porco do mato e ressuscitado por Prosérpina. Segundo Mackey (2008, vol. I), enquanto os filósofos o erigiram à condição de alegoria do sol, que se alterna entre presente e ausente sobre a terra, os iniciados aos mistérios entendiam a sua descida ao Hades e posterior retorno como tipo de imortalidade da alma.

De nosso interesse, destacou-se na Grécia, Roma, Síria e Ásia Menor os mistérios dionisíacos, que nas regiões ocidentais envolviam agentes tóxicos, geralmente vinho, para induzir transes. O Culto de Dioniso assentava em rituais que recontavam o seu assassinato pelos titãs, tendo por tema a morte e o renascimento.

Em todo este mito temos os mesmos Mitemas recorrentes, a morte por forças tenebrosas, a ressurreição como forma de vencer morte.

Sobre a iniciação aos mistérios dionisíacos diz-nos Mackey (2008, vol. I, p. 36):

Depois de várias cerimónias preparatórias, com o intuito de evocar toda a sua coragem e força, o afanismo ou morte mística de Dionísio também era exibido no cerimonial, onde os gritos e lamentações dos iniciados, com o confinamento ou enterro do candidato no pasto, cama ou caixão, constituem a primeira parte do ritual de iniciação. Daí começava a busca de Reia pelos restos mortais de Dionísio, que continuava entre cenas da maior confusão e tumulto, até, por fim, com o sucesso da busca, ver o lamento transformar-se em alegria, a luz suceder à escuridão, e o candidato tomar posse do conhecimento da doutrina secreta dos Mistérios – a crença na existência de um deus e um estado futuro de recompensa e punições.

Por oportuno, devemos lembrar que além de Hiram de Tiro e Hiram, o fundidor, a Bíblia cita dois outros personagens com este nome: Hiram, chefe de tribo (Gn 26, 40-43 e I Cr 1, 52-54); e Adoniram, filho de Abda, chefe de corveias (I Rs 15, ).

Sobre a arte da fundição no mundo antigo, Eliade (apud SAMY, 2000) cita a projecção sexual que o homem primitivo constituiu em torno das mais diversas ocupações, a exemplo do enxerto na agricultura, ou da fusão dos metais (como a liga de bronze), ou da associação das minas e cavernas ao útero da mãe terra. De acordo com ele, o vocábulo egípcio bi significa útero e galeria de mina, de maneira que tudo o que está no útero da terra se encontra em estado de gestação e demanda técnica iniciática própria para ser de lá retirado.

Eliade também mostrará a íntima associação entre guerreiros, ferreiros e mestres iniciadores, lembrando ainda que na Grécia arcaica, “certos grupos de personagens míticas constituem confrarias secretas, relacionadas aos mistérios, e guildas de trabalhadores de metais.” (apud SAMY, 2000, p. 83).

Por oportuno, recorde-se então que a palavra usada para designar os mestres maçons (operativos, pedreiros) do primeiro templo é menatzchim, do verbo natzach, que significa também “estar completo” e “ser aperfeiçoado”. Neste sentido, de acordo com

Christie (apud Mackey, vol. I, p. 71), os mistérios “eram denominados τελεται, perfeições, porque se supunha que induziam à perfeição da vida. Aqueles que eram purificados por eles eram intitulados τελονμενοι e τετελεσμενοι, ou seja, “trazidos à perfeição”.

O surgir da lenda de Hiram na maçonaria: O terceiro grau
A lenda de Hiram é posterior ao surgir da moderna maçonaria [2].

Na Inglaterra, a primeira menção ao terceiro grau dá-se em 12 de Abril de 1725, nas actas da Philo-Musicae et Architetura Societas, uma sociedade de músicos londrinos, enquanto na maçonaria regular seria mencionado em 1727, nas actas da Loja Swan and Rummer (GUILHERME, 2012).

Na narrativa da história da maçonaria contida na primeira edição das “Constituições dos Franco-Maçons”, de 1723, James Anderson não faz qualquer menção à lenda de Hiram Abiff, o que ocorrerá na segunda edição, datada de 1738, a saber:

Isto [o templo] foi finalizado no curto espaço de tempo de sete anos e seis meses, para o assombro de todos; quando a cumeeira foi celebrada pela fraternidade com grande alegria. Mas a alegria foi logo interrompida pela morte repentina do seu grande querido mestre, Hiram Abiff, o qual foi dignamente enterrado na Loja próxima ao templo, de acordo com o costume antigo. (apud MACKEY, vol. II, p. 60)

Para Anderson, Hiram era o maçon (operativo, construtor) “mais completo sobre a terra” e acreditava ainda:

[…] que a maçonaria esteve sob os imediatos cuidados e direcção do Céu, quando os nobres e os Sábios consideravam uma honra auxiliar a Mestres hábeis e a Artesãos e quando o Templo do Verdadeiro Deus tornou-se, para os Viandantes, a Maravilha por meio da qual, como o Modelo mais perfeito, rectificaram, no seu retorno, a arquitectura dos seus próprios países (apud SAMY, 2000, p. 79).

Todavia, o surgir da lenda de Hiram causou reacções as mais diversas. Vejamos as especulações de Cooper (2011, p. 142) a respeito da inicial rejeição dela pelas lojas escocesas, muito embora o terceiro grau viesse a ser adoptado pela Grande Loja da Escócia em 1800:

Antes da existência do 3° Grau ou Grau de Mestre Maçon, o Grau “mais alto” era o de Companheiro – e essa era uma cerimónia de pedreiros. Essa era uma cerimónia que numerosos não pedreiros tinham experimentado ao se tornarem membros das Lojas [os chamados maçons aceitos]. É possível imaginar os pensamentos e as reacções desses homens ao saberem do novo Grau de Mestre Maçon pelo qual eles, Companheiros, estavam sendo designados como vilões. Para piorar a situação os Companheiros de Ofício (pedreiros0 não eram vilões comuns, mas sim assassinos que cometiam os crimes maçónicos mais hediondos – o cruel assassinato do primeiro Grão-Mestre. Portanto, não é surpresa o facto de que poucas Lojas de pedreiros escoceses quisessem fazer parte do novo “sistema” maçónico ou da Grande Loja que os retractava como assassinos!

E o mesmo autor informa que lojas escocesas de maçons especulativos adoptaram prontamente o grau de mestre, enquanto muitas “lojas de pedreiros” (maçons operativos) não o fizeram porque: “[…] o terceiro grau somente veio a existir a partir dos anos 1720. Tratava-se de um produto da Maçonaria estabelecida em Londres, em 1717. As Lojas da Escócia que existiam antes desta data não tinham experiência na nova cerimónia.” (COOPER, 2011, p. 132) Na verdade, o lapso temporal entre a criação do novo grau e o seu surgir na Escócia permitiu “que até mesmo as Lojas que faziam parte da Grande Loja não conheciam o 3° Grau ou, pelo menos, não sabiam como conferi-lo.” (COOPER, 2011, p. 133).

Todavia, há quem afirme que na Irlanda o sistema de três graus já existia antes da sua adopção oficial em Londres, a exemplo de Robert Bashford, que informa que a sua adopção pelos irlandeses remonta a 1711 (GUILHERME, 2012).

Para David Murray Lyon, o terceiro grau na maçonaria inglesa deve-se a John Theophilus Desaguliers, responsável pela contratação de Anderson para a produção do texto das Constituições.

Para Richard Sandbach, em “Talks for Lodge and Chapter”, a elaboração do terceiro grau serviu para descristianizar e distanciar a maçonaria especulativa do seu vínculo originário com a destronada dinastia Stuart e aproximá-la dos Hannover, detentores da coroa inglesa até hoje (GUILHERME, 2012).

Viu-se anteriormente que Hiram iniciaria artesãos ao ofício dentro de padrões rígidos, desde que comprovada a capacidade para o exercício do mister, lembrando que à época a entrada no mercado de trabalho exigia além de habilidade, o ingresso em alguma guilda (corporação), requisitos olvidados na lenda da maçonaria especulativa.

É óbvio que não se alcançaria a ascensão profissional naquela distante época simplesmente tomando-se uma senha (palavra de passe, palavra de mestre) e os operários de então sabiam que a transposição para um grau mais elevado exigia uma ritualística própria. E ainda que o acesso a tal senha antes do tempo dotasse alguém de regalias indevidas, bastava Hiram Abiff ter-lhes dado uma palavra falsa; se existisse uma verdadeira, certamente os mestres construtores deveriam contar com treino adequado contra usurpadores de cargos, ficando claro que o relato sobre transmissão de senha naquele contexto histórico não possui qualquer fundamentação, nem mesmo lógica.

A inserção da lenda de Hiram nos rituais maçónicos em desacordo com os padrões iniciáticos dos trabalhadores daquele período é prova inequívoca da sua elaboração em data recente, a saber, no século XVIII, para enfatizar a importância do grau de mestre maçon, recentemente adoptado pela Grande Loja de Londres e para resgatar tradições iniciáticas dos povos antigos.

O mito de Hiram insere-se numa postura simbólica idêntica ao protótipo do “Cristo”, que assume o discurso fundante deste rito e também de outros ritos.

Nos rituais em geral, os três assassinos de Hiram Abiff representam a ignorância, o fanatismo e a ambição, o que, para Boucher (2012), transforma a lenda de Hiram numa alegoria moral, quando, para ele, os maus companheiros libertam o iniciado dos três planos do mundo profano (material, psíquico e mental) e permitem-lhe ressuscitar no plano divino, como um verdadeiro mestre.

Conclusão
Hiram assim como outros “mitos fundadores e civilizadores” permanecem num imaginário profundamente arraigado no pensamento do esoterismo ocidental, onde alquimia, mistérios iniciáticos antigos, guildas de construtores caminham lado a lado, produzindo uma troca simbólica, onde o fundidor que se tornar o arquiteto-mór do templo de Salomão, carrega em si significados que se misturam com mitos como o de Osíris e Adónis.

O mito de Hiram numa leitura pautada por Durand (2002), encaixa-se a princípio com o regime diurno, mas quando considerada toda a trajectória antropológica, descobrimos que os símbolos conduzem a nossa análise para uma aproximação com o regime nocturno, onde predominam atitudes cíclicas de intimidade e de inversão da imagem.

A descida ao interior da terra assemelha-se a uma decida ao interior da psique humana; o trabalho para com a pedra bruta é uma alegoria para a busca pela pedra da obra, na qual o artífice é também ao mesmo tempo, a própria pedra.

No regime nocturno, caracterizado pelo aspecto uterino da imagem, há um acolhimento, uma protecção, um “acto” de intimidade. É na morte que Hiram trava contacto com os minerais que ele ajudava a transmutar; é também neste momento que o seu mito se firma, não como o herói guerreiro de gládio em punho, mas como o herói que se doa em sacrifício.

Pelo mito de Hiram entenda-se então que o iniciando deve descer aos “mundos inferiores”, num acto de morte simbólica, de onde renascerá como um novo homem.

Ele também pode ser caracterizado como um símbolo de inversão, pois as imagens que a priori podem parecer diarécticas e antitéticas, trazem na sua profundidade elementos de uma resignificação cíclica.

O mito no seu caminho próprio utiliza-se do rito para refundar o mistério, e isto torna-se evidente a cada iniciação realizada.

Hiram com toda a sua ritualística e simbolismo é um personagem que se situa num tempo além do tempo, num tempo mítico/sagrado.

João Florindo Batista Segundo – Discente do Curso de Licenciatura em Filosofia pela FESC-FAFIC

José Carlos de Abreu Amorim – Discente do Curso de Graduação em Ciências das Religiões pela UFPB, membro dos Grupos de Pesquisa Videlicet/UFPB e Imaginarium Rosae Crucis – filosofia, história e Ciências das Religiões/URCI.

Notas
[1] ! Catamórfica, na Teoria Geral do Imaginário, proposta por Gilbert Durand, são as imagens referentes à queda, à descida e à introdução aos subterrâneos.!
[2] Por maçonaria moderna entendemos a maçonaria estruturada a partir da fundação da Grande Loja de Londres e a publicação das Constituições de Anderson de 1723.

Referências
BARZAN, Francisco García. Aspectos Incomuns do Sagrado. São Paulo: Paulus, 2002.

BERMANN, Roland. O Grau de Mestre Escocês de Santo André no Rito Escocês Rectificado. São Paulo: Madras, 2011.

BOUCHER, Jules. A simbólica maçónica. 15. ed. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix, 2012.

COOPER, Robert L. D.. A vingança dos operativos? In A historia da Maçonaria da Marca. São Paulo: Madras, 2011.

CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 24a Ed. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2009.

DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. 3a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GRANDE ORIENTE DO BRASIL. O que é Maçonaria? Disponível em <http://www.gob.org.br/maconaria/o-que-e-maconaria.html> Acesso em 20 Jul. 2013.

GUILHERME, João. O nosso lado da escada: história, prática e faqs sobre os graus capitulares do Rito de York. Rio de Janeiro: edição própria, 2012.

MACKEY, Albert G. O simbolismo da maçonaria. vol. I. São Paulo: Universo dos Livros, 2008.

MACKEY, Albert G. O simbolismo da maçonaria. vol. II. São Paulo: Universo dos Livros, 2008.

OLIVEIRA, Almir de Araújo. Mídias sociais e a maçonaria. In Revérbero Maçónico. ano IV, n. 33, mar/Abr. 2012, p. 1 (GOB, 2013)

REBISSE, Christian. Ieschouah, Grand Architecte de l’Univers. In Pantacle, n. 6, Le Tremblay: Ordre Martiniste Traditionnel, Jan. 1998.

Maçonaria - Hiram e seus irmãos

 

A primeira lenda de facto, no sentido cronológico do termo, mas, sem dúvida também uma lenda fundadora. Antes e depois, a Maçonaria especulativa não é bem a mesma coisa. A própria expressão maçonaria especulativa, onde a ambiguidade nunca será suficientemente salientada, lembra-nos exactamente dos um dos muitos problemas, ainda por resolver totalmente, pelo menos para esclarecer algumas coisas, relacionam-se até mesmo com a antiguidade desta lenda, e relatos de que ela poderia ter um fundo lendário tradicional, é o que chamamos desde o final século XIX um folclore específico das comunidades de construtores desde a Idade Média.


No quadro desta exposição, não se trata obviamente de esgotar um assunto tão vasto e cujos contornos são, afinal, difíceis de definir. Eu permitir-me-ia recordar que, por quase dez anos, me dediquei na revista Renaissance Traditionnelle a uma longa pesquisa, sem dúvida para retomar constantemente, e que para alguns pontos essenciais deste debate, referir-me-ei a ela ainda hoje.


Eu gostaria de abordar a questão das possíveis fontes desta lenda e propor algumas hipóteses plausíveis sobre as circunstâncias da sua formação. Eu gostaria também numa segunda etapa de examinar como a introdução desta lenda nos primeiros anos do século XVIII, em certo sentido modificou, e esta é certamente a tese que tentarei esboçar diante de vocês, profundamente a própria natureza da jovem instituição maçónica pré-especulativa ou melhor dizendo proto especulativa.


Os antecedentes do nome do Arquitecto nos Antigos Deveres

O primeiro problema é o do próprio nome de Hiram como designação do arquitecto no drama cuja tragédia é revelada na famosa divulgação de Samuel Prichard, Maçonaria Dissecada, publicada em Londres em 1730. A importância da divulgação de Prichard não é apenas de revelar pela primeira vez um sistema em três graus, culminando com o grau de Mestre – The Master’s Part. A sua profunda originalidade é propor a primeira versão conhecida e coerente da lenda, que deveria a partir dai constituir o cerne deste grau.


A primeira fonte de onde convém extraí-la são os Antigos Deveres. Na primeira geração destes textos, aquela que contém o Regius (por volta de 1370) e o Cooke (por volta de 1420), existe uma história tradicional do Ofício que, especialmente no segundo desses manuscritos contém muitos dados bíblicos ou patrísticos (filosofia cristã formulada pelos padres da Igreja nos primeiros cinco séculos de nossa era, buscando combater a descrença e o paganismo por meio de uma apologética da nova religião, calcando-se freq. em argumentos e conceitos procedentes da filosofia grega). Em nenhum outro lugar, no entanto, se menciona um arquitecto do Templo de Salomão, muito menos o nome dele. O Manuscrito Cooke contém apenas esta indicação:


“E durante a construção do templo na época de Salomão, diz-se na Bíblia, no terceiro livro dos Reis, capítulo cinco, que Salomão tinha oitenta mil maçons trabalhando. E o filho do rei de Tiro era o Mestre de Obras”.


Menção específica do nome deste artista aparece apenas na segunda geração dos Antigos Deveres, aquela que se abre com o Manuscrito Grand Lodge no 1 datado de 1583. Na narrativa histórica que o contém, encontramos, com efeito, a seguinte passagem:


“E depois da morte do Rei Davi, Salomão que era filho do rei Davi, completou o Templo que seu pai tinha começado.


E ele mandou procurar pedreiros em várias regiões, e os reuniu, de modo que tinha 80 mil trabalhadores, que trabalhavam a pedra e eram chamados Pedreiros, e ele escolheu três mil entre eles que foram designados para serem os Mestres e comandantes das suas obras. Além disso, havia um rei de outro reino que se chamava Iram e que amava muito o rei Salomão e que lhe enviou madeira de construção para as suas obras. E ele tinha um filho chamado Anyone (qualquer um) que era mestre em Geometria, chefe de todos os pedreiros, e mestre de gravuras e esculturas e de todos os outros processos de construção utilizados para o Templo”.


E isso está registrado na Bíblia, no terceiro capítulo do quarto livro de Reis. 2


De seguida, a aparição daquele que é chamado de “chefe dos pedreiros” – “Mestre em Geometria” – do Templo coloca uma questão quanto à sua identidade. A palavra Anyone, que significa simplesmente qualquer um, não nos informa coisa alguma. Devemos naturalmente nos perguntar sobre este nome pelo menos enigmático. Sabendo que o Manuscrito Grand Lodge nº 1 é provavelmente uma cópia de um texto mais antigo, pode ser simplesmente que o termo Anyone seja devido ao facto de que o escritor não conseguiu ler correctamente o nome que aparecia no manuscrito original.


Encontra-se, efectivamente, a partir desta época o nome do arquitecto em várias versões dos Antigos Deveres. As variações observadas são muito numerosas:


Em três textos, de 1600, 1670, 1700, encontramos o termo Amon;

numa série de seis textos, de 1670, 1680, 1693, 1700, 1702 e 1750, este personagem é chamado Aynon;

três versões, de 1670, 1680, 1690, dão Aymon;

podemos ainda trazer o texto de 1600 que mostra A Man;

também se devem salientar casos extremamente divergentes, tais como o texto de 1677 com Apleo de 1701 com Ajuon, ou mesmo aquele de 1714 com Benaim.

Para explicar a origem e o significado provável desses termos, duas hipóteses principais foram levantadas.


A primeira, a mais natural, propõe ver nestes diferentes termos uma série de sucessivas corrupções do nome de Hiram. Pode-se assim sugerir a seguinte sequência: Hiram – Iram – Yram – Yrane – Ynane- Ynone – Aynone – Anyone. Segundo essa tese, o Mestre dos Pedreiros dos Antigos Deveres teria sido sempre chamado Hiram, conforme indicado na Bíblia às quais esses textos se referem explicitamente, mas seu nome não teria sido em nenhum momento escrito correctamente mais ou menos de 1583 até1675…


Na verdade, é a partir dessa última data que certos manuscritos dão à personagem o nome que lhe é atribuído na Bíblia. Esta menção só está presente em dezoito versões posteriores a 1675, das quais muitas são até posteriores a 1723, data em que veremos posteriormente, aparece o nome Hiram Abif. A hipótese de um Hiram primitivo – e, naturalmente, esperada – depois corrompida e somente recuperada ao fim do século XVII é filologicamente engenhosa, mas dificilmente convincente, deve-se admitir. Não podemos, no entanto, excluí-la totalmente.


A segunda hipótese é que estes diferentes nomes nada mais são que corrupções de um nome que não é Hiram, mas que, no entanto, faz referência a uma figura importante no Ofício. Por outras palavras, deve-se reconhecer que o nome do homem enviado por Hiram de Tiro esteja efectivamente na Bíblia, Hiram, os Antigos Deveres teriam desde o final do século XVI dado outra, ligada, no entanto também à tradição do Ofício.


Reteve-se como forma inicial possível, o nome Amon, considerando que as formas Aynon, Aymon, seriam assim facilmente explicáveis por um pequeno erro na grafia da letra M. Mas, por que este nome?


Amon realmente aparece na Bíblia (Provérbios, 8, 30). E em hebraico amon (aleph, mem, vav, noun) significa trabalhador, artesão ou artista, mas também arquitecto, ou ainda tutor, mestre de obra. No texto bíblico, a Sabedoria se apresenta assim:


“[…] quando Ele [o Senhor] traçou os fundamentos da terra, eu fui mestre de obra ao seu lado” (versão TOB)


O sentido de artesão, colaborando com a obra, parece ser o mais classicamente aceito, especialmente na Vulgata, reflectindo as concepções mais antigas nessa área, e a partir da qual vêm todas as citações bíblicas medievais, onde São Jerónimo diz: “Quando appendabat fundamenta terrae, Cum eo eram, cuncta componens”. que se pode traduzir por: Enquanto ele estabelecia os fundamentos da terra, eu estava com ele, reunindo todas as coisas”.


Se esta hipótese relativa a Amon é sedutora, ela enfrenta, entretanto, algumas objecções: ela é principalmente a forma menos frequentemente atestada nas muitas versões das Antigas Obrigações e, sobretudo ela nunca foi conhecida como tal nas Bíblias ocidentais, pois amon é um nome comum, e portanto, sempre traduzido como artesão, arquitecto, etc.). Assim, emerge dessa análise que a hipótese Amon é antes de tudo um exercício de erudição hebraica que não tem em conta as condições nas quais os textos dos Antigos Deveres foram redigidos e transmitidos.


Aymon foneticamente idêntico em Inglês a Amon, pode ser proposto como forma inicial do nome do arquitecto. Aymon pode, por sua vez, por uma falha semelhante à que acabamos de mencionar, explicar a forma Aynon, e também muito facilmente as formas Amon, ou Anon. Não podemos, portanto, sugerir, numa primeira abordagem, que os Antigos Deveres dão testemunho de que existia uma tradição no Ofício que atribuía ao mestre de obra do Templo um nome que podia ser Aymon.


As Constituições de 1723 e os textos posteriores (Família Spencer, 1725-1739)

Apenas na História do Ofício contida no Livro das Constituições de 1723 que aparece, pela primeira vez num documento maçónico, note bem, o nome de Hiram Abiv, dado ao construtor do Templo de Salomão, também chamado de “Príncipe dos Arquitectos“. Foi assim somente depois do texto de 1723 que o nome de Hiram Abif – e não apenas Hiram –, que substitui o de Amon, ou Anon ou Aymon na maioria das versões dos Antigos Deveres posteriores: particularmente nos textos da Família Spencer. Seis textos são conhecidos, um dos quais foi até mesmo gravado, publicados entre 1725 e 1726 para quatro deles, 1729 e 1739 para os dois mais tardios.


Estas datas não são, obviamente, indiferentes, e pode-se notar aqui que este período de 1725-1730 é igualmente aquele em que parece se afirmar um terceiro grau agora baseado na personagem de Hiram, recém-promovida a um papel que parecia nunca ter desempenhado antes, pelo menos em relação aos textos. É bastante claro que a substituição do nome de Aymon pelo de Hiram Abiff – ou o de Hiram (simplesmente) presente em alguns textos depois de 1675 – está relacionada com o aparecimento do terceiro grau “hirâmico” que Prichard nos dá conhecimento da primeira versão conhecida.


Sobre a forma “Hiram Abif“

Devemos notar imediatamente que a escolha do termo Hiram Abif (adoptaremos esta grafia mais convencional) para designar nos textos maçónicos, o arquitecto do Templo de Salomão, por sua vez apresenta um problema.


A expressão Hiram Abif encontra-se em apenas dois lugares da Bíblia:


II Crónicas, 2 13, onde podemos ler: Huram Abi(aleph, beth, iod)

e II Crónicas 4, 16, onde temos: Huram Abiv (aleph, beth, yod, vav) A partir destes dados simples, três problemas se colocam:

1) Qual é o significado exacto desses termos?


A raiz ab significa pai, e abi tem um determinante que significa meu pai; quanto a abiv isso significa seu pai.


Portanto, de um ponto de vista puramente filológico, esses termos significam:


Huram abi = Huram meu pai,

Huram abiv = Huram seu pai,

duas expressões, devemos salientar, bastante enigmáticas. No entanto, é preciso lembrar que um significado mais amplo de pai, em hebraico, pode indicar a noção de mestre, instrutor ou conselheiro.


Vamos voltaremos mais tarde a tratar das consequências da natureza bastante obscura dessas duas expressões que nos limitamos apenas a registrar aqui.


2) Em / Reis 5, que é o terceiro local bíblico onde se fala do nosso Hiram – o artesão, não o Rei – deve-se notar que:


É Hiram e não Huram,

que não é absolutamente Hiram-Abi ou Hiram Abif, mas simplesmente Hiram, que vem de Tiro, o texto afirmando que ele é filho de um Tiriano, e de uma viúva da tribo de Naftali; ele é, pelo menos neste livro, exclusivamente um artesão do bronze, que fundia colunas, o mar de “airain” (liga de cobre, de onde vem a palavra inglesa ‘iron’), mas de forma alguma um arquitecto, nem um pedreiro.

As duas observações anteriores nos sugerem que se descrevem dois personagens notadamente diferentes, especialmente que as habilidades de Huram, em / / Crónicas, são muito mais amplas. Lemos, de facto, que este era um homem dotado para todos os tipos de trabalho, sabendo de facto trabalhar “o ouro, a prata, o bronze, o ferro, a pedra, a madeira, o escarlate, a púrpura, gravar de tudo e inventar tudo)). Este Huran é, por outro lado, filho de um Tiriano, e uma filha da tribo de Dan.


Se Hiram nos Livros dos Reis era apenas escultor de bronze, Huram Abi do Livro das Crónicas é muito mais ecléctico e, possivelmente, conhece o trabalho da pedra. No entanto, continua a ser artesão, e não, conforme indicam – e somente eles – os Antigos Deveres, o Mestre Pedreiro do Templo…


Pode-se assim concluir que o Hiram Abif da tradição maçónica, que só aparece em textos em 1723, é um personagem composto, emprestado de dois retratos muito diferentes, e que não é encontrado, como tal, em qualquer texto bíblico.


3) Um terceiro problema, que se junta em parte ao primeiro, deve ainda ser mencionado. Trata-se da escolha, precisamente, da expressão Hiram Abif para designar esse novo e singular herói. De facto, vimos o significado pouco claro da expressão.


Já na Vulgata, São Jerónimo traduz: Hiram patrem meum et Hyram pater ejus.


Pai de quem, exactamente? Poderíamos perguntar…


Na primeira Bíblia inglesa de Wyclif em 1380, lemos o mesmo: Hyram my fader e Hyram the fader of Salomon.


A Bíblia chamada Grande Bíblia de 1539, propõe: meu pai Hyram e Hiram seu pai, a tradução mais tarde assumida pela célebre Versão Autorizada do Rei James, em 16???


A Bíblia de Bishop de 1572, e a Bíblia de Barker em 1580, retomam também essas fórmulas. Esta última, notável por suas glosas marginais, indica em parte que “seu pai” pode significar que Hyram é o pai do trabalho que está sendo feito no Templo…


A partir dessa data até hoje, todas as Bíblias em inglês trazem: Hiram meu pai e Hiram seu pai e sempre sem dar uma explicação.


É provavelmente essa falta de qualquer sentido aparente que levou alguns tradutores a pensar que Hiram Abi talvez fosse um nome próprio, que não exigia tradução. Foi Lutero quem primeiro pensou nisso. Nos anos 1520, publicando a sua tradução alemã, ele traduziu simplesmente o primeiro: Hiram Abi e Hiram Abif.


Mas, em 1528, Coverdale, um dos líderes da Reforma na Inglaterra, foi a Hamburgo e lá se juntou a William Tyndale, e realizou com ele a sua tradução do Pentateuco. É assim que em 1535, Coverdale terminou sozinho uma tradução baseada essencialmente sobre o trabalho de Lutero. A Bíblia de Coverdale, em Inglês, foi publicada três vezes em 1535, 1536, 1537, e reeditada em 1551, e foi ela quem, pela primeira vez na Inglaterra, indica: Hiram Abi e Hiram Abif.


A Bíblia de Matthews, em 1537, retoma esta tradução, mas, a partir de 1539, com a Grande Bíblia já citada, encontramos as traduções clássicas, e novamente a tradução Hiram Abi ou Hiram Abif (excepto na única reedição em 1551).


Devemos, portanto, lembrar-nos de que as expressões Hiram Abi e Hiram Abif aparecem apenas em duas Bíblias publicados entre 1535 e 1537 e que caíram bastante rapidamente em desuso.


Daí surge uma questão: se a escolha do termo Hiram Abif foi feita, e claramente sob a influência da Bíblia de Coverdale, mas porque, em 1723, teria surgido a necessidade de manter esta tradução incomum, tirada de uma Bíblia em desuso por cerca de dois séculos? Anderson explica, em parte, mas de uma forma muito pouco clara, numa nota de pé de página da sua História do Ofício (Craft).


Não se poderia também sugerir que a expressão em questão já existia na tradição maçónica desde a segunda metade do século XVI? Enfatizamos, ocasionalmente, a probabilidade de uma mutação pré especulativa na Inglaterra neste momento. No entanto, é preciso reconhecer que esta hipótese é bastante frágil. A ideia de um Hiram Abif criado bastante recentemente a partir de todas as peças e dotado de um novo nome parecia ao final desta análise, muito mais plausível.


Uma reacção hostil? O Documento Briscoe (1724)

Se o nome de Hiram Abif, para designar o “arquitecto” do Templo, atestado desde 1723, talvez tivesse sido introduzido muito mais cedo na tradição do Ofício, resta, entretanto certo de que a lenda de que ele é desde o início o herói trágico lhe confere um novo status. Se o nome de Hiram tem talvez certa antiguidade no Ofício, a personagem da lenda aparece bem nestes anos 1720, como um recém-chegado.


Convém aqui citar um texto que poderia ser um testemunho indirecto. Ele apareceu em Londres em 1724 sob a forma de um livreto de 64 páginas, e teve duas outras edições no ano seguinte.


Ele reproduz-se numa primeira versão as Antigas Obrigações pertencentes à segunda geração, e que se pode ligar à Família Sloane. Este texto dá especialmente Aynon como o nome do Mestre Maçon do Templo de Salomão. Ele é seguido por copiosos comentários intitulados “Observações e Notas Críticas”, num tom muito crítico, na verdade, visando corrigir os erros que, segundo o autor, o Pastor Anderson tinha cometido em grande número no seu History of the Craft.


Tratava-se da passagem que se refere ao Templo de Salomão, o autor orienta a controvérsia em torno da personagem de – Hiram Abif. Ele se surpreende, de facto, que sejam concedidos a ele talentos tão diversos e que


“O nosso sábio Doutor em Leis [ou seja, Anderson] para valorizar as suas extraordinárias conferências, [emprega] tanto esforço para provar que este Hiram, o Fundidor de Bronze, um Tiriano, não era Hiram Rei de Tiro […] ”


Mais ainda, ele se apega ao “mui engenhoso Doutor Désaguliers“, que, para justificar a variedade dos dons reconhecidos em Hiram refere-se a uma “Carta de Recomendação que o rei Hiram mandou a Salomão […]”. O autor destacou que nada disso aparece no Livro dos Reis, e finge ignorar que esses detalhes se originam nas Crónicas.


Qualquer que seja a fraqueza do argumento, a importância do documento reside simplesmente na denúncia feita aqui da artificialidade da personagem Hiram Abif. Podemos, naturalmente, perguntar-nos sobre a personalidade exacta de Samuel Briscoe, de quem nada sabemos. No entanto, ele parece ter sido claramente consciente dos usos e das práticas maçónicas de seu tempo.


Mas, a sua hostilidade em relação à introdução da personagem de Hiram Abif não pode não ser relevada. Nenhuma alusão é feita, de resto, em qualquer grau, de que esta personagem seria o herói, mas é claro, no entanto que algumas pessoas que conheciam bem a Maçonaria e os seus textos fundamentais consideravam, início da década de 1720, que a personagem de Hiram Abif era um intruso, e que o papel que parecia dever desempenhar era sem dúvida usurpado, pelo menos até então desconhecido. Não se poderia ver ai, mas esta não é evidentemente uma mera hipótese, o traço das primeiras agitações causadas pela introdução de um novo grau de Mestre centrado em torno de uma lenda colocando em cena um Hiram que vimos, como o próprio Briscoe, representa, em relação ao personagem bíblico, uma figura composta que pode muito bem ser devida, de facto, à imaginação dos “sábios Doutores” estigmatizados por Briscoe…


As fontes da lenda

Tentar traçar as origens da lenda de Hiram, é um exercício mais difícil do que parece, se queremos permanecer rigorosos.


Pode-se, naturalmente, atribuir a esta lenda diferentes fontes mitológicas e encontrar, procurando um pouco na história de antigas tribos e religiões egípcias, greco-romanas ou celtas, muitas das narrativas sagradas e mitos que podem constituir modelos. E autores que se debruçaram sobre esta questão, de resto, não faltam. Não vamos, por nossa parte, retornar a estes antecedentes distantes, que pode, no máximo, ser evocados no máximo como arquétipos, figuras universais, heróis ou o “deus que morre” (Frazer). Estas referências podem, com efeito, parecer atraentes, no entanto eles certamente não são relevantes.


O erro que cometem geralmente, por diferentes razões, aqueles que apresentam essas fontes alegadas, é acreditar, ou fingir acreditar, que essa lenda vem das profundezas dos tempos, como herança natural dos mitos mais remotos, dos quais ela seria uma das últimas crias. Nós vimos, e ainda teremos a oportunidade de mostrar a seguir, que ela não é. A artificialidade da lenda de Hiram, a sua criação moderna, provavelmente nos primeiros anos do século XVIII não pode mais deixar qualquer dúvida. O problema da sua origem é, portanto, colocado de maneira muito diferente.


Para resolver isso, é importante não ignorar o clima intelectual e espiritual em que evoluíram as fontes históricas e tradicionais, de que dispunham aqueles que, naquela época, eram capazes de forjar essa lenda. Mas, esses ambientes, se não são explicitamente conhecidos, são, entretanto bastante claramente identificáveis. Em torno de Desaguliers e Anderson está um mundo – novo no Ofício – de estudiosos e “sábios Doutores” mergulhados em estudos bíblicos e clássicos, mas também ansioso por se vincular às tradições antigas do Ofício. Não nos esqueçamos de que Anderson fez um considerável esforço para mostrar contra todas as evidências, que a Grande Loja de 1717, criação profundamente original, inédita naquele país, não era a ressurreição “revival” de uma Grande Loja mítica e ancestral na qual todos queriam acreditar.


Os antecedentes imediatos da lenda: o Manuscrito Graham (1726)

As diferentes hipóteses propostas, como vemos, para tentar encontrar as origens da lenda de Hiram, na maioria das vezes enfrentam consideráveis dificuldades. Além delas, pedir empréstimos a temas míticos ou lendários geralmente sem relação real e clara com o Ofício, eles costumam conter apenas elementos daquela lenda, em essência, o assassinato do construtor. Poder-se-ia, de resto, examinado a história geral da Inglaterra desde o século XVII, encontrar outros assassinatos injustos, e vários autores não deixaram de construir teorias, as mais diversas, e muitas vezes as mais fantasiosas.


Um documento contrasta, no entanto, com todas estas fontes alegadas e aproximadas. Trata-se de um manuscrito datado de 24 de Outubro de 1726, o Manuscrito Graham, desconhecido por muito tempo, e que foi apresentado e estudado pela primeira vez pelo famoso pesquisador britânico H. Poole, em 1937. A contribuição deste texto para a busca de fontes da lenda de Hiram parecia fundamental.


O documento se apresenta primeiro, como um catecismo, em muitos aspectos comparável àqueles conhecidos para os anos 1724-1725. Algumas perguntas e respostas nele contidas são encontradas, com efeito, quase literalmente em alguns daqueles textos, especialmente num manuscrito de 1724, The Whole Institution of Masonry, e num documento impresso de 1725, The Whole Institutions of Free-Masons Opened. Estas semelhanças são importantes de serem ressaltadas, porque elas estabelecem que o Manuscrito Graham não seja apenas um texto isolado e atípico, mas que ele se insere incontestavelmente numa corrente de instruções maçónicas reconhecidas e divulgadas na Inglaterra, nesta época. Deve-se finalmente, notar particularmente o tom cristão fortemente afirmado das explicações simbólicas que são ali propostas.


Ao final do catecismo propriamente dito, aprendemos que “pela tradição e também por referência às Escrituras“, Sem, Cam e Jafé foram visitar o túmulo de seu pai Noé para tentar descobrir ali algo sobre ele os guiasse até o poderoso segredo detido por este famoso pregador”.


Seguem agora, três narrativas distintas, três lendas que devem ser examinadas em detalhe.


Primeira Lenda:


“Estes três homens já tinham concordado que, se eles não descobrissem o verdadeiro segredo em si, a primeira coisa que ele descobrisse assumiria para eles o lugar do segredo. Eles não duvidavam, mas acreditavam muito firmemente que Deus poderia e iria revelar a sua vontade, pela graça da sua fé, da sua oração e da sua submissão, de modo que aquilo que eles iriam descobrir se revelaria também útil para eles como se eles tivessem recebido o segredo desde o início, de Deus em pessoa, directo da própria fonte.


Eles chegaram ao túmulo e nada encontraram, excepto o cadáver quase totalmente decomposto. Eles seguraram um dedo que se soltou, e assim de junta em juntar, até o pulso e o cotovelo. Então, eles levantaram o cadáver e o apoiaram contra si, pé contra pé, joelho contra joelho, peito contra peito, rosto contra rosto e mão nas costas, e exclamaram: ” Ajuda-nos, oh Pai“. Como se tivessem dito, “Oh Pai no céu nos ajude agora, porque o nosso pai terreno não o pode fazer”.


Eles descansaram, a seguir, o cadáver, não sabendo o que fazer”. Um deles disse, “Existe a medula nesses ossos” [Marrow in this bone]; o segundo disse:” Mas é um osso seco “, e o terceiro disse: ” Ele fede“.


Eles concordaram então em dar a isso um nome que ainda é conhecido da Maçonaria dos nossos dias”.


Segunda Lenda: (Ela é exposta sem conexão aparente com a anterior.)


“Durante o reinado do Rei Alboin nasceu Bezalel, que foi chamado assim por Deus antes mesmo de ser concebido. E este santo sabia por inspiração que os títulos secretos e os atributos essenciais de Deus eram protectores, e ele construiu com base neles, para que nenhum espírito mau e destrutivo se atrevesse a derrubar a obra das suas mãos.


Também as suas obras se tornaram tão famosas, que os dois irmãos mais novos do rei Alboin, já nomeado, quiseram ser instruídos por ele sobre a sua nobre maneira de construir. Ele aceitou com a condição de que eles não revelassem, sem que qualquer que estivesse com eles pudesse compor uma tripla voz. Então eles juraram e ele lhes ensinou as partes teóricas e práticas da construção, e eles trabalharam. […]


Assim, Bezalel, sentindo se aproximar a morte, desejou ser enterrado no Vale de Josafá, e um epitáfio foi gravado segundo seus méritos. Isto foi realizado por estes dois príncipes, e foi registrado da seguinte forma: “Aqui reside a flor da arte construtiva, superior a muitos outros, companheiro de um rei, e irmão de dois príncipes. Aqui jaz o coração que soube guardar todos os segredos, a língua que nunca os revelou”.


Terceira lenda: (Sem qualquer transição, novamente, uma última narrativa é proposta ao leitor).


“Aqui está tudo que se relaciona com o reinado do rei Salomão, [filho de Davi], que começou a construir a Casa do Senhor: […] lemos no Primeiro Livro dos Reis, capítulo VII, versículo 13, que Salomão mandou buscar Hiram em Tiro. Este era o filho de uma viúva da tribo de Naftali, e seu pai era um Tiriano que trabalhava em bronze. Hiram era cheio de sabedoria e habilidade para executar todos os tipos de obras em bronze. Ele foi até o Rei Salomão e dedicou a ele toda a sua obra. […] Assim, segundo esta passagem da Escritura, devemos reconhecer que esse filho de uma viúva, chamado Hiram, tinha recebido uma inspiração divina, assim como e sábio Rei Salomão ou ainda o santo Bezalel. No entanto, a Tradição relata que, durante esta construção, teria havido disputas entre trabalhadores e os pedreiros sobre salários. E para apaziguar todo mundo e chegar a um acordo, o rei sábio teria dito” que cada um de vocês seja satisfeito, porque todos vocês vão ser pagos da mesma forma”. Mas ele deu os pedreiros um sinal de que os trabalhadores não tinham conhecimento. E aquele que podia fazer esse sinal onde os salários eram pagos, recebia como pedreiro; e os trabalhadores que não o conheciam, eram pagos como anteriormente. […] Assim, o trabalho evoluiu e progrediu e ele não poderia dar errado, já que eles trabalhavam para um mestre tão bom, e tinha o homem mais sábio como supervisor. […] para ter a prova disso, leia o 6 º e 7 º [capítulos] do primeiro Livro dos Reis; você encontrará ali o maravilhoso trabalho de Hiram durante a construção da Casa do Senhor.


Quando tudo acabou, os segredos da construção foram colocados em boa ordem, como eles são agora e serão até o fim do mundo […]”


Medimos facilmente a importância e o interesse maior das três narrativas principais. Sublinhemos apenas os pontos essenciais.


A primeira narrativa do Manuscrito Graham também é o primeiro texto da história maçónica que descreve um rito de erguimento de um cadáver associado aos Cinco Pontos do Companheirismo, atestados por sua vez, desde 1696 nos textos escoceses. O objectivo é tentar encontrar um segredo – não sabemos a que de resto se refere – que se perdeu com a morte de seu detentor. Associa-se a ele um trocadilho provável com “Marrow in the Bone” evocando bastante claramente uma expressão em M. B. É evidente que isso está relacionado “ao nome que ainda é conhecido pela Maçonaria de hoje”, que aparece como uma alternativa secreta. A característica mais notável é que não se vê aqui qualquer ligação com a arte da Maçonaria, especialmente que a personagem central não é Hiram, mas Noé…


A segunda narrativa descreve a personalidade de Bezalel possuidor de segredos maravilhosos relacionado com o Ofício, que serão comunicados apenas a dois príncipes. O ponto importante parece-nos aqui ser o epitáfio, evocando “o coração que soube guardar todos os segredos, a língua que nunca os revelou”. Este tema devemos observar, está ausente da primeira lenda.


Enfim, a terceira narrativa coloca em cena Hiram, “supervisor mais sábio da terra“, e que controlava provavelmente a transmissão aos bons trabalhadores do “sinal “, que dava direito ao pagamento de “pedreiros“. Notem-se especialmente aqui os segredos estão e permanecem bem guardados, que Hiram conclui o Templo, e que ele não morre de morte violenta…


A simples leitura destas três narrativas impõe uma constatação imediata: a sua superposição nos dá quase inteiramente em substância a lenda de Hiram conforme relatada pela primeira vez em 1730 por Prichard. A grande inovação é que Hiram-, cujo papel, respeitável, mas modesto, no Manuscrito Graham, é consistente um pouco com o que se costuma dizer sobre ele nas Antigas Obrigações-, e agora substitui Noé no rito de recuperação. É a Hiram, aliás, e não a Bezabel que agora pertencem “o coração que soube guardar todos os segredos, a língua que nunca os revelou”. Mas a terceira lenda do Manuscrito Graham não indica que Hiram teria recebido uma inspiração divina como “o santo Bezalel“?


Lembremos para o momento em que a natureza compósita da personagem de Hiram Abif da lenda do terceiro grau de Prichard, já evocada por várias razões, nós vimos, aparece aqui inequívoca. A lenda de Hiram, que se pode ou se deseja vincular a alguma fonte inspiração mais ou menos antiga é, sem dúvida, uma síntese tardia de várias lendas cuja antiguidade continua a nos ser desconhecida. A lenda dos três filhos de Noé, dado o papel que desempenha este personagem na história tradicional do Ofício dos Antigos Deveres, bem como a versão da vida de Hiram, relatada no Manuscrito Graham, são tão consistentes com os mais antigos textos da tradição maçónica Inglesa, que podemos sugerir fortemente, é claro, sem poder afirmar, que eles provavelmente eram parte de uma lenda bastante antiga, própria do Ofício.


De qualquer forma, foi estabelecido que em 1726 – ano em que, pela primeira vez nos anais da Maçonaria, temos provas documentais de iniciações em um terceiro grau em Londres – um texto maçónico nos mostra, portanto, que essa síntese, se já tivesse sido feita, nem sequer nos era ainda conhecida. Isso deve ser enfatizado, é uma conquista importante da pesquisa.


Interrompo aqui a análise das fontes desta lenda, sabendo que muitos outros pontos, poderiam ser levantados, e que várias questões correlatas permanecem sem resposta. Eu simplesmente quis pegar o exemplo desta lenda importante da tradição maçónica para sugerir como a maçonaria foi capaz de desenvolver e demonstrar como, sobretudo a complexidade que se encontra escondida debaixo da aparente simplicidade da maçonaria transmitida desde cerca de 270 anos.


Uma transição importante?

Eu gostaria, para encerrar, de propor algumas observações mais gerais.


Quando em 1691, um clérigo escocês, Robert Kirk definiu a maçonaria, ele simplesmente escreveu:


“É uma espécie de tradição rabínica em forma de comentário sobre Jackin e Boaz, os nomes das colunas do Templo de Salomão”.


Maçonaria é assim simples – o que não significa que ela não seja rica – e parece estruturada pelas duas colunas do Templo de Salomão. Esta é uma maçonaria sem lenda operativa se me permitem esta expressão. Neste sentido, o grau de Mestre hirâmico introduziu uma inovação pelo menos tão considerável quanto à formação de uma Grande Loja desde 1717, mas especialmente entre 1719 e 1723. Poderíamos, de resto, levar as duas iniciativas ao crédito dos mesmos personagens, ouvir os mesmo “sábios Doutores” tão violentamente denunciado por Briscoe em 1724.


Quando alguém se lança, como tentei fazer aqui numa espécie de arqueologia da lenda de Hiram, pode-se ver sem dificuldade que ela foi habilmente concebida para adornar uma maçonaria de um novo tipo, mais subtil, mais sofisticada, como se quisesse, talvez também mais aristocrática e mais selectiva, mais substancial para os espíritos elevados. Trazendo nos rituais o mesmo refinamento literário, bíblico e lendário numa palavra, que Anderson tinha agregado, ele mesmo, na reescrita completa da História do Craft à qual ele se entregou, em nome da Primeira Grande Loja, poucos anos antes – ou talvez precisamente na mesma época e num mesmo movimento.


Quero sugerir aqui que, se a história da lenda de Hiram não é exactamente sobreponível à história do grau de Mestre, que a inclui sem se inscrever inteiramente, essa lenda constitui certamente uma importante transição na história da primeira Maçonaria especulativa. Ao contrário das lendas do Ofício, mais ou menos modificadas, de tempos em tempos, de acordo com as transmissões, memória mais ou menos fiel e do imaginário colectivo, sem perspectiva ou plano concertado, todas as coisas que ela pode inspirar como vimos, a lenda de Hiram traduz, por outro lado, uma vontade, e é um facto radicalmente novo. Ela é o resultado de uma acção consciente e calculada visando à elaboração de conteúdos renovados, a serviço de uma visão diferente da instituição maçónica. A intenção era, através da estruturação de outro grau, criar menos uma aristocracia maçónica que favorecer uma maçonaria aristocrática. Esta lenda, que revela irresistivelmente um trabalho de estudioso, foi muito provável, no seu próprio princípio, um instrumento político na jovem Grande Loja de Londres.


De toda forma a história, como acontece tantas vezes, veio a transcender seus actores mais do que acreditam demasiado facilmente os autores. A lenda de Hiram, a sua missão cumprida, o novo grau de Mestre implementado e imposto gradualmente começou a viver a sua própria vida, incontrolável e imprevisível. Ela criou um novo conceito, prometeu um destino fabuloso, e que devia se declinar até o infinito nos altos graus de que ela foi o modelo fundador. Não é claro que o mais velho desses destes altos graus repouse sobre glosas, às vezes laboriosas e dolorosas, nos bastidores, os antecedentes ou as consequências da morte de Hiram?


Fomos, de resto, questionados sobre o que teria acontecido de a lenda não tivesse sido concluída, assim como Prichard a relatou, por uma palavra perdida, uma palavra substituída e um arquitecto tragicamente desaparecido. Vemos, com efeito, sem dificuldade a falha deste esquema: seria necessário reencontrar a palavra perdida e substituir o arquitecto, aqui está algo para escrever cinco ou seis outras lendas e um número igual de graus. Se a maçonaria se lançasse imediatamente, e por várias décadas, numa maravilhosa e às vezes louca empresa criadora de graus em busca da Palavra perdida, não é simplesmente porque os autores da lenda fundadora a construíram como uma narrativa aberta e inacabada? Imperícia ou génio? Ninguém pode responder.

Cabala e a lenda de Hiram Abiff

 

Entre as seitas que mais influenciaram nas tradições maçónicas encontramos os judeus denominados cainitas, tidos por muitos autores maçons como os verdadeiros criadores da Lenda de Hiram. Os cainitas constituíram diversas seitas místicas, preenchidas principalmente por judeus cabalistas, que procuravam compatibilizar antigas tradições judaicas com ensinamentos cristãos, especialmente aqueles veiculados pelos chamados cristãos gnósticos. A denominação “cainita” vem do facto de eles se considerarem descendentes directos de Adão, através de Caim, de cuja geração saiu Tubalcain, mestre artesão, hábil trabalhador de martelo e fundidor de obras de bronze, segundo a Bíblia [1].


Os cainitas desenvolveram uma tradição, segundo a qual Caim era filho adulterino de Eva com um anjo rebelde de nome Samael. Esta tradição, que faz parte do Sepher-ha-Zhoar, o livro (Publicado em freemason.pt) base da Cabala judaica, atribui à estirpe de Caim uma família de demónios, entre os quais figuram as irmãs de Tubalcain, Noema e Lilith, famosas demónios fêmeas da tradição cabalística.


O personagem que os maçons conhecem por Hiram é de difícil caracterização. Nas crónicas bíblicas ele é citado duas vezes: em Reis 13, ele é referido como sendo um israelita da tribo de Naftali, perito fundidor de obras de bronze; mas já nas Crónicas (Paralipómenos), ele é referido como sendo filho de uma mulher da tribo de Dan, perito, não só em fundição de metais, como também na confecção de obras de madeira, tecelagem , escultura etc.


Desta forma, Hiram aparece na Bíblia como profissional ligado à tradição dos fundidores, dos metalúrgicos, dos “sopradores”, (como eram conhecidos, na Idade Média, os trabalhadores de forja), informação essa que o remete a Tubalcain, e por via directa a Caiu, o filho amaldiçoado de Adão.


Robert Ambelain refere-se ainda à tradição que faz de Séfora, a esposa de Moisés, uma cainita, pois que ela era filha de Jetro de Madian, líder de um importante centro de fundição de metais, localizado no oásis que leva aquele nome. Desta fonte cainita Moisés teria recebido os ensinamentos secretos (iniciáticos) que não se encontram expostos na Torá, mas que foram repassados por tradição oral aos sacerdotes levitas e conservados pelos essénios, que por sua vez os legaram aos cainitas cristãos. E estes, em consequência, os desenvolveram no corpo doutrinário que se convencionou chamar de Cabala, cujo conteúdo está exposto no Zlioar.


A este respeito, diz o texto de Ambelain:


Hiram, pelo seu pai Ur, descende de Tubalcain, e por ele, em linha directa, de Caim e Samael. Este, na tradição Judaica, é o Anjo Rebelde, o Tentador, o Anjo da Morte e por morte ritual a Maçonaria sacraliza o profano (…). Desta estranha tradição nasceu um costume, o de denominar “vale” o lugar onde se reunissem certos altos graus da Maçonaria (…). No século XVIII um grupo (de maçons) tomou o nome de “ Filhos do Vale”. Num dos altos graus maçónicos, onde os membros se reúnem num “vale”, o presidente da Loja leva o nome de “ sapientíssimo Athersatha” (…). Este nome, traduzido do hebraico, significa “Prodigioso fundidor do deus forte” [2].


Portanto, a lenda de Hiram, que teria, segundo Ambelain, sido introduzida na Maçonaria através dos “maçons aceitos”, entre os quais havia inúmeros judeus, é de clara inspiração gnóstica-cabalística. Da mesma forma que ela é uma adaptação do drama osírico, as analogias que mais tarde se fizeram entre ela e a Paixão de Cristo são frutos da licenciosidade interpretativa que as alegorias desse tipo permitem aos espíritos de imaginação fértil. E etse talvez tenha sido o objectivo dos seus formuladores, já que, no fundo dessa lenda, o que remanesce mesmo é o culto ao sol, conexo ao mito do sacrificado [3].


É importante, entretanto, ter em mente que tais concepções só são aceitáveis do ponto de vista filosófico, do praticante do livre-pensamento, que se acredita ser o Maçom. Na verdade, o misticismo é uma forma alternativa de se explicar o mundo. Se as suas concepções são avessas às doutrinas oficiais, não há que se ver aí qualquer motivo de escândalo. As concepções extraídas pelos cainitas sobre os textos bíblicos são apenas o ponto de vista que um grupo de pensadores heterodoxos desenvolveu sobre alguns temas polémicos que aparecem nos textos sagrados, e que, até hoje, não encontraram consenso entre os estudiosos. Do ponto de vista meramente académico merecem ser analisadas com o mesmo respeito, e cuidado, que aquelas veiculadas pelos doutrinadores ortodoxos [4].


No nosso livro “Conhecendo a Arte Real” discorreremos com mais profundidade sobre o conteúdo da Lenda de Hiram e a sua influência gnóstica, bem como a sua origem cabalística [5]. Por ora é suficiente lembrar que a maioria das tradições dos antigos povos associa o despertar da consciência humana, a aquisição do conhecimento e os primeiros rudimentos de ciência a uma “rebelião” que afastou o homem dos deuses. Na Bíblia esta “rebelião” está, de certa forma, conectada com a (Publicado em freemason.pt) família de Caiu. Dela, por descendência directa, sairiam os personagens Jubal, Jabel e Tubalcain, que na tradição maçónica estão conectados com o Drama de Hiram. As associações que se podem fazer entre esses personagens e o simbolismo da Loja de Companheiros correm por conta do conhecimento e da intuição dos irmãos, mas a partir dessas informações já é possível pressentir uma explicação para a estranha trama que envolve o arquitecto do Templo do Rei Salomão. No momento oportuno voltaremos a este assunto.


A lenda cainita que liga a família de Hiram, fundidor, a Tubalcain, nome bastante conhecido dos maçons nas Lojas Simbólicas, em síntese, diz o seguinte:


Salomão, ao receber de Deus a incumbência para construir o Templo, entrou em acordo com o rei de Tiro, que se comprometeu a enviar-lhe todo o material necessário, bem como os técnicos requeridos para a construção, pois em Israel não havia profissionais capazes de realizar tal trabalho. Entre os profissionais enviados por Hiram, rei de Tiro, estava Hiram, o construtor, também perito em fundição. Na ocasião em que fundia as colunas do Templo, três israelitas invejosos, descontentes pelo facto do Templo do Senhor estar sendo construído por um estrangeiro, embora Hiram fosse de origem israelita, sabotaram o molde que iria servir para a fundição. Hiram, descobrindo a sabotagem, denunciou-a ao rei Salomão, que, no entanto, não tomou nenhuma providência. No dia da fundição, o mar de bronze escorreu pela multidão que a assistia, matando uma grande parte dela. Hiram foi acusado de negligência e abandonou o canteiro de obras. Refugiando-se no deserto, foi tomado por uma visão. Um gigantesco homem barbado surgiu à sua frente: disse ser o espírito de todos os que trabalham e sofrem nas mãos dos poderosos. Convidou-o a segui-lo. Hiram acompanhou o misterioso personagem, que o conduziu às entranhas da terra, até o lugar onde habitava Enoque, pai de todos os homens de ciência, que no Egipto se chamava Hermes.

Foi então que Hiram descobriu os segredos com os quais foi construída a cultura da humanidade. Enoque, ou Hermes, ensinou-lhe todos os segredos da arte de construir; apresentou-lhe também Maviel, o carpinteiro, que ensinou a humanidade a trabalhar a madeira, Matusael que criou a arte da escrita, Jabel que criou a arte da tecelagem, Jubal que inventou a música e os instrumentos musicais e Tubalcain, aquele que ensinou aos homens a arte de curtir peles, a tecer a lã, a arte de fundir e transformar os metais, e foi pai daqueles que trabalham a forja e controlam o fogo. E depois Enoque, ou Hermes, disse a Hiram como o mundo foi feito:

“Dois deuses criaram o universo”, disse Enoque: “Adonai, senhor da matéria e Iblís, senhor do espírito”. Adonai criou o homem a partir do barro da terra e Iblís insuflou-lhe no peito o espírito. O homem, que era belo e inteligente como um deus, despertou em Lilith, deusa irmã de Iblís, uma intensa paixão. Esta, em consequência, tornou-se amante do homem Adão. Os deuses tinham feito uma companheira para Adão, tirada da sua costela, chamada Eva. Por vingança, pelo facto de Adão se ter amasiado com a sua irmã Lilith, Ibles seduziu Eva e gerou-lhe um filho, que foi Caim [6]. Ao saber que Caim era filho ilegítimo de Eva com Iblís, Adão o expulsou. Caim separou-se da sua família celeste e deu início à família terrestre. Abel, o outro filho de Adão com Eva manteve-se fiel às origens, razão pela qual o conflito se instalou na terra.

Foi assim que ocorreu a separação entre as estruturas do céu e da terra, evocadas pela tradição egípcia, e a expulsão do homem do paraíso terrestre, referida na Bíblia. Hiram foi então apresentado a Caim, que fez amargas queixas contra os deuses, especialmente Adonai. Reivindicou para si a origem da ciência e do conhecimento e disse ser essa a razão pela qual Adonai recusou os seus sacrifícios, aceitando, no entanto, os de Abel. “Adonai”, diz Caim, “detesta a ciência e o conhecimento, porque eles tornam o homem insubmisso ao seu poder”. Como os homens cresceram e se multiplicaram sobre a terra, Adonai, ciumento e temeroso que os homens escapassem do seu controle, resolveu destruí-los mandando que as águas cobrissem a terra e afogasse todos os seus habitantes. Mas Noé, instruído por Maviel, o carpinteiro, frustrou os planos de Adonai construindo uma arca na qual ele se salvou a si e à sua família, dando continuidade à família terrestre [7].


Por conta desta origem luciferina da arte metalúrgica, a Bíblia diz que Deus “proibira a utilização de ferramentas de ferro no interior do canteiro de obras do templo”. 0 “tabu do ferro” sempre acompanhou a cultura hebraica na forma de uma grande aversão pela metalurgia. Uma explicação histórica para essa aversão talvez esteja no facto de que, durante os anos de ocupação da Palestina pelos filisteus, os israelitas foram proibidos de praticar qualquer oficio ligado à fundição de metais. Era uma proibição que objectivava impedir que os filhos de Israel se armassem e promovessem uma revolução. Só no tempo de David esta proibição foi levantada e os israelitas puderam fundir e fabricar espadas.


A tradição cabalista vai mais longe nesta lenda. De acordo com algumas interpretações rabínicas, constantes do Zoliar, a arte da metalurgia está conectada com o lado mau e rebelde da família humana, ligada ao nome de Tubalcain. É, portanto, uma arte luciferina, de inspiração malévola. Um povo consagrado ao Senhor não poderia praticá-la [8].


Só assim é possível entender o temor das técnicas de metalurgia que acompanha a antiga cultura hebraica. Veja-se, inclusive, que todas as experiências daquele povo com essa arte estão conectadas com alguma tragédia: Aarão com o seu bezerro de ouro, Moisés com a serpente de bronze, Hiram com o mar de bronze etc. Desta forma também é possível explicar a utilização do nome de Tubalcain como senha na transposição do companheiro para o mestre [9].


Índice

O Mestre Hiram nas “Velhas Regras”

O mito do herói sacrificado

O sacrifício da completação

O Mestre Hiram nas “Velhas Regras”


A Lenda de Hiram acabou sendo um denominador comum entre todas as práticas maçónicas. Hiram arquitecto é o detentor dos grandes segredos iniciáticos. Ele é o construtor do Templo de Salomão, cuja estrutura reflecte o próprio universo. A sua morte representa a transição do profano para o sagrado, do técnico para o científico, do reino grosseiro da matéria para o reino subtil do espírito. Pelo fenómeno da simbiose, o companheiro rebelde, que vivia no domínio inferior da consciência, reconcilia-se com o substrato superior do espírito, e adquire, agora da forma correcta (e não pela violência), a sua passagem de grau.


Este foi o conteúdo da lenda desenvolvida para o catecismo maçónico das “Velhas Regras” (Old Charges). Nas Old Charges o nome de Hiram é citado como sendo filho do rei de Tiro, cujo nome também é Hiram. Tanto no Manuscrito Cooke quanto no Downland, esta informação é referida. Horne acredita que isto é resultado de uma interpretação equivocada da palavra Hiram Abiff, que significa “Hiram, meu pai”. As referências a Hiram, entretanto, aparecem em várias outras Old Charges, e em algumas delas, ele é citado como sendo “príncipe Maçom” [10].


As referências a Hiram nas “Velhas Regras”, entretanto, são muito contraditórias. Em alguns destes antigos manuscritos, o mestre arquitecto do templo de Salomão chega a ser confundido com o rei Nenrode, construtor da Torre de Babel. Por isso é que as informações mais confiáveis sobre a identidade do Mestre Hiram ainda são aquelas veiculadas pela Bíblia e por historiadores como Flávio Josefo, por exemplo.


Com excepção do facto de que nos textos sagrados ele não aparece como arquitecto, mas como fundidor de bronze, todo o conteúdo da lenda pode ser encontrado nas crónicas bíblicas: em Reis 13:7 lemos que Salomão “Escolheu obreiros em todo Israel, e ordenou que fossem trinta mil homens. E ele os mandava ao Líbano, dez mil a cada mês, de sorte que ficavam dois meses nas suas casas e Adonhiram era o encarregado do cumprimento desta ordem. E teve Salomão setenta mil que acarretavam as cargas, e oitenta mil cabouqueiros nos montes; fora os aparelhadores de cada obra, em número de três mil e trezentos, que davam as ordens aos que trabalhavam. E o rei mandou que tirassem pedras grandes, pedras de preço para os alicerces do Templo, e que as facejassem. E lavraram-nas os canteiros de Salomão e os canteiros de Hirão; e os de Gíblios, porém, aparelhavam as madeiras e as pedras para edificar a casa” [11].


Os giblitas, no entanto, eram considerados estrangeiros. Como estrangeiros não poderiam compartilhar dos segredos dos mestres até que recebessem a devida elevação. Era uma elevação que não se alcançava meramente cumprindo um interstício de tempo como companheiro, ou simplesmente aprendendo o segredo dos planos de construção, que eram arte especulativa. Nisto estava envolvida principalmente uma questão (Publicado em freemason.pt) religiosa, e essa questão era a proibição de que um segredo de natureza sagrada fosse revelado a pessoas que ainda não tinham obtido o devido merecimento. Era preciso encontrar uma fórmula que superasse esse impasse, permitindo que o companheiro pedreiro, estrangeiro para as tradições hebraicas, pudesse romper esta barreira para ser admitido no selecto circulo dos mestres.


Não sendo assim a chamada Escola de Arquitectura de Salomão, que a imaginação de Anderson colocou nos canteiros de obras do Templo do Rei Salomão acabar-se-ia transformando numa alegoria sem sentido. A solução foi o sacrifício ritualístico do Mestre Hiram, que como já dissemos, é a porta de entrada nos Mistérios Maçónicos. Com esta alegoria Anderson introduziu na tradição maçónica dois arquétipos de grande significado histórico, psicológico e religioso, que são o mito solar, que está na origem do mito do herói sacrificado e o sacrifício da completação. A finalidade deste sacrifício é francamente escatológica, como veremos.


O mito do herói sacrificado

Todo o Maçom que tenha sido elevado ao mestrado na Arte Real já fez a sua marcha ritual em volta do esquife do Mestre Hiram Abiff, o arquitecto do Templo do Rei Salomão, assassinado pelos três companheiros ambiciosos que queriam abreviar o prazo da sua aprendizagem e obter os graus mais elevados sem o devido mérito. A alegoria da morte de Hiram é uma clara alusão ao mito do sacrificado. Ele está conectado, de um lado ao simbolismo da ressurreição e de outro lado ao mito solar. Pois nas antigas religiões solares, como vimos, o sol, princípio da vida, morria todos os dias para ressuscitar no dia seguinte, após passar uma noite no meio das trevas.


Assim como toda a teatralização dos Antigos Mistérios, fosse na Grécia ou no Egipto, ou em qualquer outra civilização que praticasse estes festivais, mais do que uma simples homenagem aos deuses protectores da natureza, estes rituais simbolizavam a jornada do espírito humano em busca da Luz que lhe daria a ressurreição. É neste sentido que a marcha dos Irmãos em volta do esquife de Hiram, sempre no sentido do Ocidente para o Oriente, nada mais é que uma imitação desse antigo ritual, que espelha a ansiedade do nosso inconsciente em encontrar o seu “herói” sacrificado (ou seja, o sol), para nele realizar a sua ressurreição. Pois o sol, em todas essas religiões, era o doador da vida. Ele fertilizava a terra e fazia renascer a semente morta. Desta forma, toda a mística destes antigos rituais tinha essa finalidade: o encontro com a luz que lhe proporcionaria a capacidade de ressurreição.


O sacrifício da completação

Conectado com este simbolismo, os antigos povos, nas suas tradições iniciáticas relacionadas com grandes obras arquitectónicas, desenvolveram o chamado “sacrifício da completação”. Este sacrifício consistia em oferecer ao deus a quem era dedicado o edifício um sacrifício de sangue, que podia ser o holocausto dos inimigos aprisionados em guerra ou pessoas escolhidas entre próprio povo. Muitas vezes esta escolha recaia sobre mulheres virgens (as vestais) ou jovens guerreiros, realizadores de grandes feitos na guerra. Acreditava-se que assim os deuses patronos dos poderes da terra agradar-se-iam daquele povo, prodigalizando-lhes fartura de colheitas e protecção contra os inimigos [12].


Este tema remonta a antigas lendas, cultivadas pelos povos do Levante, segundo o qual nenhuma grande empreitada poderia obter bom resultado se não fosse abençoada pelos deuses. E essa bênção era sempre obtida através de um sacrifício de sangue. Este costume era praticado até pelos israelitas, como prova o texto bíblico ao informar que Salomão, ao terminar a construção do Templo “sacrificou rebanho e gado, que de tão numeroso, nem se podia contar nem numerar” [13].


Desta fornia, na Maçonaria, o Drama de Hiram tem uma dupla finalidade iniciática: de uma lado presta a sua referência ao culto solar, sendo Hiram, nessa mística, o próprio sol que é homenageado; de outro lado, cultua o herói sacrificado, pois é nele que se consuma a obra maçónica.


E desta forma, a principal alegoria do ensinamento maçónico assume o seu verdadeiro e real significado.


João Anatalino Rodrigues


Notas

[1] Génesis, 4:22.


[2] Robert Ambelain. Op. cit., p. 84-85.


[3] O mito do sacrificado é uma tradição cultivada por todos os povos antigos que desenvolveram religiões solares. O “sacrificado”, no caso, é o próprio sol, que “morre” todos os dias e renasce no dia seguinte. E graças ao seu calor e à sua luz, a vida na terra também têm os seus ciclos regenerativos. Em função desta crença, acreditava-se que todo período (Publicado em freemason.pt) de tempo deveria ser agradecido aos deuses através de um sacrifício de sangue, para que a terra prodigalizasse ao povo o benefício de grandes colheitas. Esta era a crença que estava na raiz dos chamados Mistérios Antigos. De outra forma, todos os grandes empreendimentos também tinham que ter um “sacrificado” para que esta obra fosse levada a bom termo.


[4] É também originária dos cabalistas cainitas a exclamação Huzz, Huzz, Huzz, que no Rito Escocês costuma ser utilizada na abertura e no encerramento dos trabalhos em Loja. Esta exclamação (aportuguesada para Huzzá, Huzzá, Huzaá) também era utilizada pelos Cavaleiros Templários, na recepção dos seus grão-mestres. A palavra é derivada do hebraico hoschea, que significa libertador.


[5] Publicado pela Editora Madras, 2006. Actualmente está esgotado. Estamos preparando uma segunda edição para 2017.


[6] A Bíblia também se refere a esta tradição quando fala nas belas filhas dos homens, por quem os deuses se apaixonaram e geraram filhos, os audazes “nefilins”.


[7] A Franco-Maçonaria. Op. cit., p. 81-86.


[8] Veja-se que na mitologia grega, o deus que cumpre este papel, é Vulcano, tido pelos gregos como o deus da forja, controlador do fogo. O arquétipo do deus Vulcano, que habita o interior da terra, está conectado com tradições luciferinas.


[9] Pois o companheiro, na tradição da Maçonaria, é aquele que assassina o Mestre Hiram para obter o segredo do grau de mestre.


[10] No Manuscrito Melrose n° 2 de 1674 e no Manuscrito Harris de 1789.


[11] Reis 13-17. Os giblios, ou giblitas, eram os trabalhadores das pedreiras de Biblos, cidade fenícia que ficava cerca de 120 quilómetros ao norte de Tiro. Esta cidade é conhecida hoje como Gebal. Nos Primeiros Catecismos Maçónicos, os giblitas eram considerados como sendo os verdadeiros pedreiros, razão pela qual o Manuscrito Wilkinson, uma Old Charge utilizada por algumas Lojas inglesas do inicio do século XVIII, continha o seguinte trolhamento para o iniciando: “P. Qual é o nome do pedreiro?”. “R. Giblita”. Segundo Horne, esta palavra ainda hoje é utilizada em cerimónias de iniciação em Lojas inglesas e americanas.


[12] Veja-se o relato bíblico em Juízes 11:30-31, na qual o juiz Jefté sacrifica a própria filha em razão de um voto feito a Jeová.


[13] Reis I 8:5.

Jacques Bergier - Melquisedeque

  Melquisedeque aparece pela primeira vez no livro Gênese, na Bíblia. Lá está escrito: “E Melquisedeque, rei de Salem, trouxe pão e vinho. E...