Lilith aparece no Tanak, quando Isaías, ao descrever a vingança de Deus durante a qual a terra de Édom seria transformada num deserto, proclamou isso como um sinal de desolação: “Lilith repousará lá e encontrará seu local de descanso” (Isaías 34:14) A Bíblia de Jerusalém apresenta Isaías 34, 14-17 da seguinte forma:
14 Os gatos selvagens conviverão aí com as hienas,
os sátiros chamarão os seus companheiros.
Ali descansará Lilith,
e achará um pouso para si.
15 Ali a serpente fará o seu ninho, porá os seus ovos,
chocá-los-á e recolherá à sua sombra a sua ninhada.
Também ali se encontrarão as aves de rapina (corujas),
cada uma com a sua companheira.
16 Buscai no livro de Iahweh e lede:
nenhum deles faltará,
nenhum deles ficará sem o seu companheiro,
porque assim ordenou a sua boca;
o seu espírito os ajuntou.
17 Ele mesmo lançou a sorte para eles,
a sua mão distribuiu-lhes, com o cordel, a porção de cada um.
Eles a possuirão para sempre,
de geração em geração a habitarão.
Esta passagem refere-se a futura desolação de Édom, por causa da forma como trataram Israel, quando Deus jogar seu poder sobre este povo. O contexto na profecia é a predicação que a terra dos Moabitas se tornará um deserto desolado.
A palavra no texto em Hebraico aqui é “Lilith” mas infelizmente ela é um hapax legomenon (uma palavra que ocorre apenas uma vez no Antigo Testamento). Por isso não podemos determinar seu significado por comparação com outros usos na Bíblia. – Então somos forçados a recorrer à linguagens cognatas (Akkadian, Aramaico, Ugaritic, etc.), versões (traduções mais antigas) ou à tradição judaica para determinar seu significado.
Consultando-se outras fontes de tradição hebraica, pode-se chegar à conclusão de que quando é dito “os sátiros chamarão os seus companheiros” (a palavra hebraica aqui traduzida como “Sátiros” é “se’ir”) está-se falando de Samael e outros demônios. Depois aparece a companheira dele: “Ali descansará Lilith”. Em seguida fica o veredicto de que a terra de Édon – a que se referia todo o texto – seria a futura morada dos demônios e daqueles animais considerados impuros “eles a possuirão para sempre”.
A tradução ‘criaturas da noite’, que aparece em algumas versões para outras línguas, representa uma especulação, uma tentativa de ler ‘lilith’ baseado em sua similaridade com a palavra hebraica “laylah” (noite). As tradições de Lilith também, as vezes, fazem esta conecção etimológica – particularmente desde que uma de seus papéis é o de succubus, e ela foi muitas vezes associada com corujas, como nesta passagem.
[Se formos comparar as diversas versões e traduções da Bíblia atual, descobrimos que em muitas delas “Lilith” não aparece em Isaías 34: 14-15. A diferença entre esta tradução e outras refere-se a uma diferença fundamental na tradução filosófica da Bíblica. – Algumas versões tem uma abordagem de tradução, especialmente no Tanak (a parte Hebraica, Antigo Testamento) que pretende naturalizar algumas referências de criaturas mitológicas ou sobrenaturais, exceto anjos, substituindo-as por animais conhecidos. Por exemplo, pode-se encontrar Bíblias que traduzem ‘leviathan’ como ‘crocodilo’, ‘behemoth’ como ‘peixe-boi’, etc. Mas o problema de Lilith é ainda mais complexo daquele de behemoth ou leviathan, pois estes são pelo menos bem descritos nos capítulos 40 e 41 de Jó. Leviathan é mencionado algumas vezes (Jó 3:8 Jó 41:1 Salmos 74:14 Salmos 104:26 e Isaías 27:1) e também behemoth é um hapax legomenon mas nós temos uma descrição completa deles, o que não é o caso com Lilith.
Note que as traduções também diferem na tradução de ‘se’ir’ – isto é um bode ou um bode/demônio/sátiro? Suponho que o significado de ‘se’ir’ tem sido determinado pelo significado de ‘lilith’. Se ‘lilith’ é uma demônia, então ‘se’ir’ deve ser alguma espécie de demônio. Por outro lado, se ‘lilith’ é algum tipo de animal indeterminado, então se’ir é um bode].
A tradição judaica, claro, aponta-nos na direção da criatura mitológica.
Um fragmento da antiga comunidade de Qumran contendo menção de Lilith (4QCânticos do Instrutor/ 4QShir – 4Q510 frag. 11.4-6a // frag. 10.1f), foi encontrado nos Manuscritos do Mar Morto. Esta passagem é claramente baseada em Isaías 34:14 e pode ajudar a compreender o real significado do texto:
E Eu, o Instrutor,
proclamo a majestade de seu esplendor
a fim de assustar e ater[rorizar]
todos os espíritos dos anjos da destruição
e os espíritos bastardos,
demônios, Liliths, corujas e [chacais…]
e aqueles que atacam inesperadamente
para desviar, desencaminhar o espírito de conhecimento…
11QPsAp
Aqui há dois pontos de interesse para nós. O primeiro é que o contexto deixa claro que a comunidade que produziu isto vê a passagem de Isaías como referindo-se ao demoníaco mais do que animais do deserto. Segundo, aqui, nós temos ‘liliths’ no plural, ao contrário de Isaias, no singular. Provavelmente isto não é apenas uma licença poética, pois a tradição diz – e o próprio texto de Isaías da a entender claramente – que Lilith teria filhos, cujas fêmeas são tradicionalmente chamadas de Liliths e os machos de Lillim, sendo que este termo aparece no Targum Jerushalami [1], a bênção sacerdotal dos Números, VI, 26 que contém esta versão:
“O Senhor te abençoe em todo ato teu e te proteja dos Lillim!”
Segundo Alan Unterman (Dictionary of Jewish Lore & Legend) há um costume, ainda praticado em Jerusalém, de espantar esses filhos do corpo morto de seu pai, andando em círculo com o cadáver antes do sepultamento e atirando moedas em diferentes direções para distrair os filhos demônios.
Entretanto, para sabermos mais a respeito dos filhos de Lilith, teremos de recorrer ao Talmude [2] (coleção de tradições rabínicas que interpretam a lei de Moisés), que – em duas ocasiões – fala sobre estes seres. A primeira referência fala de sua origem:
“Rabbi Jeremia ben Eleazar falou, “Durante aqueles anos (depois de sua expulsão do jardim), nos quais Adão, o primeiro homem, esteve separado de Eva, ele tornou-se o pai de ghouls e demônios e lilin.” Rabbi Meir falou, “Adão, o primeiro homem, tornou-se muito devoto e descobriu que ele havia causado morte, que viria ao mundo, fez abstinência por 130 anos, e ele próprio afastou-se de sua esposa por 130 anos, e cultivou figueiras de vinho por 130 anos. Sua paternidade dos espíritos malignos, referidos aqui, tornou-se um resultado de sonhos molhados.” (b. Erubin 18b)
A segunda referência faz apenas menção da morte de um filho específico, Hormin, mas não se estende sobre o assunto:
“Rabba bar bar Hana falou, “Eu uma vez vi Hormin, um filho de Lilith, correndo nas muralhas de Mahoza…. Quando o demoníaco governante soube disso, eles mataram-no [para exibir-se].”” (b. Baba Bathra 73a-b)
O Talmud também da breves descrições de Lilith: “Lilith é uma demônia com aparência humana exceto que ela possui asas.” (b. Nidda 24b); “Lilith desenvolveu longos cabelos.” (b. Erubin 100b) E aconselha:
“Rabbi Hanina falou, “Nenhum homem pode dormir só em uma casa; quem quer que durma só em uma casa, será pego por Lilith”” (b. Shab. 151b)
Este trecho aconselha os homens a casarem-se, para poderem dormir com suas esposas e não sofrerem com o desejo. Do contrário, Lilith viria copular com eles durante o sono para gerar filhos Lillim. Apesar disso, não faltaram homens para “dormirem sós”. A obra Jewish Folktales retomou um antigo conto judaico “Lilith e a Folha de Capin”, que fala sobre um judeu que não seguiu este conselho do Talmud:
Certa vez um judeu foi seduzido por Lilith e ficou enfeitiçado por seus encantos. Mas ele estava muito perturbado com isso, e então foi ao Rabino Mordecai de Neschiz para pedir ajuda.
Mas o rabino sabia por clarividência que o homem estava vindo, e avisou a todos os judeus da cidade para não deixa-lo entrar em suas casas ou dar-lhe lugar para dormir. Assim, quando o homem chegou não encontrou nenhum lugar para passar a noite e deitou-se num monte de feno num quintal. À meia-noite, Lilith apareceu e sussurrou-lhe:
– Meu amor, saia desse feno e venha até aqui.
– Por que eu deveria ir até você? – perguntou o homem – Você sempre vem a mim.
– Meu amor, nesse monte de feno há uma folha de capim que me causa alergia.
– Então – disse o homem – por que você não me mostra? Eu a jogo fora e você pode vir.
Assim que Lilith a mostrou, ele pegou a folha de capim e enrolou-a em volta do pescoço, livrando-se para sempre do domínio dela.
Por vezes, Lilith atacava mesmo os homens casados e, para combatê-la, os judeus desenvolveram rituais elaborados para bani-la de suas casas. Tenho aqui três exemplos, o primeiro trata-se de um amuleto persa com Lilith no centro, circundada por um texto profilático em Aramaico. (The Semetic Museum, Harvard University):
“Vocês estão atados e selados, todos vocês demônios, diabos e liliths, forte e poderosamente presos, assim como estão presos Sison e Sisin… A maligna Lilith, que faz os corações dos homens perderem-se e aparece nos sonhos noturnos e nas visões do dia, que queima e derruba com pesadelo, ataca e mata crianças, meninos e meninas. Ela está dominada e selada fora da casa e moradia de Bahram-Gushnasp filho de Ishtar-Nahid pelo talismã de Metatron, o grande príncipe, que é chamado O Grande Curandeiro da Misericórdia… que vence demônios e diabos, artes negras e poderes da bruxaria. Afasta-os da casa e moradia de Bahram-Gushnasp, filho de Ishtar-Nahid. Amém, Amém, Selah.
Vencidas estão as artes negras e os poderes da bruxaria. Vencida a mulher feiticeira, ela, suas bruxarias e seus ataques, suas maldições e suas invocações, e afastadas das quatro paredes da casa de Bahram-Gushnasp, o filho de Ishtar-Nahid. Vencida e jogada abaixo está a mulher feiticeira – vencida na Terra e vencida no céu. Vencidas estão suas constelações e estrelas. Atados estão os trabalhos de suas mãos. Amém, Amém, Selah.”
Aqui vemos a associação de Lilith com outros seres demoníacos, menção contra a pratica da astrologia “Vencidas estão suas constelações e estrelas”, bruxaria e encantamentos – o que envolvia não só bruxedos em geral mas também a pratica da sedução, fascinação e até mesmo a prostituição.
O “exorcismo” de Lilith e de quaisquer espíritos que a acompanhavam muitas vezes tomava a forma de um mandado de divórcio, expulsando-os nus noite adentro. É disto que trata os outros 2 exemplos seguintes (Lilith recebe Divórcio):
Este é o guet para demônios e espíritos e Satã
… e Lilith em ordem de bani-los de … toda a casa.
Yah …interrompa o Rei dos demônios
… a grande governante das liliths.
Eu adjuro você … seja você macho ou fêmea,
Eu adjuro você….
Assim como os demônios escrevem cartas de divórcio
E dão-nas para suas esposas e não retornam para elas,
Então pegue sua carta de divórcio,
Aceite sua quantia de sustento [ketubá],
E vá e deixe e parta da casa….
Amém, Amém, Amém, Selah.
O hebraísmo, em certos casos, admite o divórcio (em hebraico “guerushin”) [3]. A iniciativa é tomada pelo marido, que da a sua mulher um documento de divórcio chamado guet. Esse documento pode ser dado mesmo se a mulher discordar. Após o divórcio, a quantia de sustento estipulada no contrato de casamento (ketubá) é paga pelo marido. Vejamos agora um outro guet em forma de amuleto contra Lilith (University Museum, University of Pennsylvania):
“Este amuleto está designado em nome do Senhor das salvações, pelo selamento da casa deste Geyonai bar Mamai, que aqui escapa da maligna Lilith. Em nome de “YHWH-El foi dispersado”; a Lilith, o macho lilin, as fêmeas liliths, a Bruxa, e o Ladrão; os três de vocês, os quatro de vocês e os cinco de vocês.
Despidos estão vocês, enviados para longe. Nem você está vestida, com seus cabelos desalinhados que deixa voar atrás de suas costas.
Isto é feito conhecido para você, cujo pai é chamado Palhas e cuja mãe é Pelahdad:
Escuta, obedece e saia da casa e moradia deste Geyonai bar Mamai e de Rashnoi sua esposa, filha de Marath…. Estejam informados com isto que Rabbi Joshua bar Perahia enviou o banimento conta vocês…. Uma carta de divórcio [guet] desceu para nós do paraíso, e nesta é encontrado escrito seu aviso e sua intimação, em nome do Palsa-Pelisa [“Divorciador-Divorciado”], que rende a vós teus divórcios e tuas separações. Então, Lilith, macho lili e fêmea lilith, Bruxa e Ladrão, estejam incluídos no banimento… de Joshua bar Perahia, que tem assim falado: Uma carta de divórcio que cruzou o mar veio para vocês… Saibam disto e deixem a casa e moradia deste Geyonai bar Mamai, e de Rashnoi sua esposa, a filha de Marath.
Vocês não podem aparecer para eles novamente, tanto nos sonhos à noite quanto no repouso de dia, porque vocês estão selados com o signo de El-Shaddai, e com o signo da casa de Joshua bar Perahia e pelos Sete que estão depois dele.
Então, Lilith, macho lili e fêmea lilith, Bruxa e Ladrão, Eu adjuro vocês pelo forte [Deus] de Abbraham, pela rocha de Isaac, pelo Shaddai de Jacob, Por Yah [que é] seu nome…, Por Yah sua memória… Eu adjuro vocês à despedirem-se deste Geyonai bar Mamai, e de Rashnoi sua esposa, a filha de Marath. O divórcio, escrita e carta de separação de vocês (foi)… Enviado através de santos anjos… Os Exércitos de fogo nos astros, a Carruagem de El-Panim depois de sua duração, as bestas adorando no fogo de seu trono e na água… Amém, Amém, Selah, Aleluia!”
Os dois amuletos apresentados anteriormente contém um desenho tosco no centro, representando Lilith. Em ambos ela apresenta, longos cabelos, cintura fina, ancas largas e está com os braços cruzados sobre o corpo. No primeiro ela está de saia xadrez, com o busto exposto. O rosto de ambas dão a vaga impressão de faces de corujas. A segunda figura usa um incrementado vestido e ornamentos. No geral apresenta um óbvio propósito de sedução (apesar das figuras serem excessivamente mal feitas, aparentando-se aos rabiscos de uma criança no papel).
Lilith no Alfabeto de Bem Sira (sua origem e amuletos de proteção):
Uma outra fonte importante da tradição judaica sobre Lilith e os Lillim é o Alfabeto de Ben Sira, onde encontramos a mais conhecida história da origem de Lilith – como “a primeira esposa de Adão”. [É interessante notar que no Alfabeto de Ben Sira Lilith reivindica igualdade alegando que, assim como Adão, ela foi feita da terra; ou seja, não saiu da costela de Adão como Eva, portanto não era uma parte dele. Talvez a mulher por cima revelasse uma superioridade hierárquica ou ainda, Lilith por cima de Adão sugerisse o sexo por prazer, sem procriação (pois na antigüidade acreditava-se que era mais difícil para a mulher engravidar se copulasse por cima). O que Adão exigia era sexo apenas com a finalidade de procriação]. Estudiosos tendem a datar o Alfabeto entre os séculos 8 e 10, CE [4].. Entretanto, alguns pesquisadores sustentam que a história em si possa ser mais antiga:
Logo após o jovem filho do rei ficar doente, falou Nabucodonozor, “Cure meu filho. Se você não fizer, eu o matarei.” Ben Sira imediatamente sentou-se escreveu um amuleto com o Nome Sagrado, e nele inscreveu os anjos encarregados da medicina por seus nomes, formas e imagens, e por seus flancos, mãos, e pés. Nabucodonozor olhou para o amuleto (e perguntou) “O que é isto?”
(Ben Sira respondeu:) “Os anjos que são encarregados da medicina: Snvi, Snsvi, e Smnglof [Pronuncia-se Sanvi, Sansavi e Semengalef ]. Depois que Deus criou Adão, que estava só, Ele disse, ‘não é bom para o homem estar só’ (Gen. 2:18). Então Ele criou a mulher para Adão, da terra, assim como Ele havia criado o próprio Adão, e chamou-a Lilith. Adão e Lilith começaram a brigar. Ela disse, ‘Eu não vou deitar por baixo,’ e ele disse, ‘Eu não vou deitar por baixo de você, mas apenas acima. Para você é adequado apenas estar na posição inferior, portanto apenas eu estarei na superior.’ Lilith respondeu, ‘Nós somos reciprocamente iguais tanto que ambos fomos criados da terra.’ Mas eles não ouviam um ao outro. Quando Lilith disse isso, pronunciou o Nome Inefável e voou para longe no ar. Adão ficou em prantos depois (falou a) seu Criador: ‘Soberano do universo!’ disse ele, ‘a mulher que você deu-me foi embora.’ De uma vez, o Santo Senhor, bendito seja Ele, enviou estes três anjos para traze-la de volta.
“Disse o Santo Senhor para Adão, ‘Se ela concordar voltar, (está tudo) bem. Se não ela deve permitir que uma centena de suas crianças morram todos os dias.’ Os anjos deixam Deus e seguiram Lilith, a quem eles pegaram no meio do mar, nas poderosas águas nas quais os Egípcios estavam destinados a afogarem-se. Eles falaram-na as palavras de Deus, mas ela não queria retornar. Os anjos disseram, ‘Nós iremos afogar você no mar.’
“Deixem-me!!’ ela disse. ‘Eu fui criada apenas para causar doenças às crianças. Se a criança é macho, eu tenho domínio sobre ele por oito dias depois de seu nascimento, e se fêmea, por vinte dias.’
“Quando os anjos ouviram as palavras de Lilith eles insistiram que ela voltasse. Mas ela jurou à eles pelo nome do Deus vivo e eterno:
‘Sempre que eu ver vocês ou seus nomes ou suas formas em um amuleto, eu não terei poder sobre esta criança.’ Ela também concordou ter uma centena de suas crianças mortas todo dia. De acordo (com isto), todo dia uma centena de demônios pereciam, e pela mesma razão, nós escrevemos os nomes dos anjos nos amuletos de jovens crianças. Quando Lilith vê seus nomes, ela lembra-se de seu juramento, e a criança restabelece-se.” [Alfabeto de Ben Sira Questão #5 (23a-b)]
Esta versão da origem de Lilith ficou amplamente conhecida de forma que até hoje existe o costume, entre algumas pessoas, de utilizar um amuleto [5] com o nome dos três anjos para proteger crianças.
Alan Unterman diz em seu “Dicionário Judaico de Lendas e Tradições” que “Lilith é uma figura sedutora com longos cabelos, que voa como uma coruja noturna para atacar aqueles que dormem sozinhos, para ter filhos demônios dos homens por meio de suas poluções noturnas, para roubar crianças e para fazer mal a bebês recém-nascidos. Se não consegue consumir crianças humanas ela come até mesmo sua própria prole demoníaca. Como proteção contra ela costumava-se pendurar amuletos e talismãs na parede e sobre a cama para mantê-la afastada ou pregar amuletos com as palavras “Adão e Eva excluindo Lilith” nas paredes da casa em que uma mulher se preparava para o nascimento do filho. A porta do quarto das crianças tinha os nomes dos três anjos escritos sobre ela, e, às vezes, cercava-se o quarto com um círculo de carvões ardentes. Nas vésperas de Shabat e da lua nova, quando uma criança sorri é porque Lilith está brincando com ela. Para livrá-la de qualquer mal, deve-se bater de leve três vezes em seu nariz pronunciando-se uma fórmula de proteção contra Lilith. Na Idade Média era considerado perigoso beber água nos solstícios e equinócios, porque nessa época o sangue menstrual de Lilith pingava, poluindo líquidos expostos.”
Como foi visto, segundo a tradição, Lilith ataca as mulheres no parto e causa a morte dos infantes, pois tem inveja da alegria da maternidade. Ela constitui assim uma ameaça ao embrião. Por isso, no passado, o processo de nascimento era cercado de práticas mágicas com a intenção de proteger a mãe e o filho das forças demoníacas. (Também se sussurravam sortilégios no ouvido das mulheres para facilitar o trabalho de parto).
Amuletos contra Lilith costumam trazer nomes de anjos encarregados da medicina, como Sanvi, Sansavi e Samangelaf, Gabriel ou mais raramente Metraton mas também outros tipos podem aparecer:
“Os judeus baniram essa primeira esposa de Adão, escrevendo nas paredes ‘Adam chava chuz Lilith’ [‘Afaste-se daqui, Lilith!] (John Praetorius. Anthropodemus Plutonicus. 1666).
Um talismã típico é um círculo mágico no qual as palavra “Eva e Adão” barram a entrada de Lilith, habitualmente escritas com carvão na parede do aposento onde a criança está e em cuja porta estão escritos os nomes dos três anjos. A alternativa: “Não deixem Lilith entrar aqui” costuma ser escrita na cabeceira da cama da mulher que espera um filho, usando-se tinta vermelha. Em muitas partes do mundo atual há pessoas que ainda usam amuletos como estes.
Teria Lilith uma origem não Judaica?
Alguns estudiosos sustentam que Lilith já existia na forma de um demônio (Lilil ou Lilitu) na mitologia suméria e mesopotâmica, o que tem causado muita polêmica.
As duas representações mais importantes, que estão no centro da discussão, são um trecho do “Prologo de Gilgamesh” (que faz parte do épico babilônico “Gilgamesh” – aproximadamente 2000 A.C.) e um baixo relevo representando uma mulher com asas e patas de coruja, etc. Para melhor compreensão do tema exposto, apresento a seguir as duas fontes acrescidas de comentários.
A seguinte passagem do Prólogo de Gilgamesh foi entendia e traduzida por Samuel Kramer, que – segundo ele – inclui a mais antiga referência conhecida de Lilith na escrita. (A tradução para português foi feita a partir da em língua inglesa de Kramer38:1f)
Depois do céu e da terra terem sido separados
e feitos terem sido criados,
depois de Anûum, Enlil e Ereskigal terem tomado posse
do céu, terra e do submundo;
depois que Enki havia deslizado para o submundo
e o mar baixar e afluir em honra de seu senhor;
neste dia, uma árvore huluppu
que havia sido plantada sobre as margens do Eufrates
e nutrida por suas águas
foi arrancada pelo vento do sul
e levada para longe do Eufrates.
Uma deusa que estava andando entre às margens
siezed a árvore oscilada
E – sob o comando de Anu e Enlil –
Levou-a para o jardim de Inanna em Uruk.
Inanna cuidou da árvore atentamente e amavelmente
ela esperava Ter um trono e uma cama
feito para ela de sua madeira.
Depois de dez anos, a árvore havia crescido.
Mas neste meio tempo, ela descobriu para seu desânimo/assombro
que suas esperanças não poderiam ser realizadas.
Porque durante aquele tempo
um dragão havia construído seu abrigo nos pés da árvore
o pássaro Zu havia posto sua cria no cume,
e uma demônia Lilith havia construído sua casa no centro .
Mas Gilgamesh, que havia ouvido a dificuldade de Inanna,
veio em seu socorro.
Ele pegou seu pesado escudo
matou o dragão com seu machado de bronze maciço,
que mede sete talentos e sete minas.
Então o pássaro Zu voou para as montanhas
Com seus filhotes,
enquanto Lilith, petrificada de medo,
fugiu de sua cada e voou para o deserto
Este texto foi a base para a identificação de um baixo relevo (ver foto), as vezes especulada como sendo Lilith. Entretanto, a conecção entre Lilith e este relevo é correntemente considerada por alguns scholars como duvidosa e tem sido seriamente questionada por alguns eruditos. O seguinte trecho vem do verbete Lilith no Anchor Bible Dictionary (Lowell K. Handy):
Duas fontes de informações previamente usada para definir Lilith são ambas suspeitos. Kramer traduziu ki-sikil-lil-la-ke como “Lilith” em um fragmento Sumérico de Gilgamesh. O texto relata um incidente que esta fêmea fixou residência em um tronco de árvore na qual havia um pássaro Zu empoleirado nas ramagens e uma cobra vivendo nas raízes. Este texto foi usado para interpretar uma escultura de uma mulher com garras do pé de ave como fazendo uma descrição de Lilith. Desde o começo esta interpretação foi questionada só que depois some debate nem a fêmea na história, nem a figura foi assumida como sendo Lilith. (Vol. 4, p. 324)
O baixo-relevo em questão é uma terracota Suméria ou Assíria que mostra uma figura feminina híbrida disposta de pé, frontalmente, acompanhada por vários animais do deserto. A face apresenta um formato redondo com bochechas proeminentes, sobrancelhas unidas, lábios carnudos, olhos grandes bem delineados e nariz regular. O vulto tem uma evidente conformação rotunda, com expressão severa, potente e inefável. O corpo é robusto, com formas femininas bastante acentuadas, coxas grossas e uma ampla bacia. A energia humana parece concentrada nas costas e peito, com seios firmes e bem redondos. A figura feminina apresenta-se nua e ornada com diversas jóias, como pulseiras, colares, etc. A mitra é impressionante, segundo o esquema mesopotâmico ou proto-assírio.
Ela mantém os braços abertos, os cotovelos dobrados em direção aos flancos, com as mãos abertas e dedos unidos. Creio que esta disposição de mãos tenha um significado especial, provavelmente representa um ato de oração ou demonstra um êxtase de superioridade sobre as feras.
Os objetos que ela tem nas mãos não é nem um pouco desconhecido, como alguns autores interessados em Lilith tem proposto. Trata-se de um símbolo da justiça do deus-sol babilônico. Esse mesmo símbolo se encontra facilmente em muitos outros tabletes de argila, inclusive na parte superior de estela onde foi escrito o famoso Código de Hamurabi há uma figura do rei recebendo esse símbolo da justiça e usando uma mitra idêntica a desta mulher. (veja as figuras).
O objeto em sua mão direita está desgastado ou quebrado, mas, da para distinguir claramente que ela possuía símbolos similares nas duas mãos. Entretanto, pode haver uma explicação, mas para mim o porque de um símbolo do deus Sol ter sido posto em ambas as mãos de uma mulher com asas e pés de coruja (indicativos de vida noctívaga) permanece um mistério.
Das costas da mulher descem duas asas esculpidas com exatidão e no final das pernas vê-se pés de coruja com garras afiadas. A disposição das garras é simétrica, vertente, com um acento de domínio. Esta mulher-pássaro está em pé sobre duas leoas agachadas. Nos lados, estão dispostas duas corujas em posição frontal, com as patas unidas em tudo semelhantes àquelas da mulher. São animais vigilantes que rematam a representação.
As corujas, as leoas e a mulher sobre as leoas encontram-se ainda sobre uma enorme cobra, que ou envolve todos terminando por morder a própria cauda, como um ouroboros, ou morde a cauda (ou a cabeça) de outra cobra igualmente grande.
Tanto as asas quanto a mitra ostentosamente ornada que a mulher está usando são características de representações de antigas divindades. O único motivo pelo qual esta imagem distingue-se da maioria das imagens de deusas no mundo antigo são os pés de pássaro e o acompanhamento de animais. A presença de animais não é de todo inusual. De fato, as leoas sobre as quais ela estende-se cria algum problema para os que pretendem considera-la como sendo Lilith, pois eles são geralmente associados com Inanna. Para identificação com Lilith, a chave está na coruja e nos pés de pássaro. Lilith é identificada com a coruja em Isaías 34. Também o prólogo de Gilgamesh associa a moradora da árvore hulupu com a coruja, mas se a moradora da árvore é Lilith, isto reforçaria o argumento. Minha interpretação corrente é que os pé de coruja indica-nos que aquela não é Inanna, mas se esta é Lilith é ainda um assunto aberto à especulação.
LEIS GRAVADAS EM PEDRA: O Código de Hamurabi foi inscrito em 3.600 linhas de escrita cuneiforme numa estela de 2,5 m de altura, no alto da qual o rei recebe os símbolos da justiça do deus-sol babilônico.
Tablete representando a reedificação de um templo solar (Sippar, Babilônia, século IX A.C. British Museum).
Além deste baixo relevo citado anteriormente, também foi encontrado uma imagem muito similar (ver foto abaixo) – Esta é uma placa de barro/argila cozido do Antigo período Babilônico (2000-16000 AC). (Paris, Louvre [AO 6501]).
Parece seguro assumir, que esta representa a mesma figura híbrida apresentada na precedente, apesar da mudança no “cenário”. Ela agora estende-se sobre dois animais. Creio que sejam dois cabritos montês machos, pois possuem chifres. Abaixo uma formação cilíndrica mal esculpida e quebrada, que poderia muito bem constituir o corpo de uma serpente lisa, sobre a qual estão os cabritos, da mesma forma que no outro estavam, as leoas. Entretanto a serpente do primeiro relevo tinha escamas. Todas as bordas deste estão quebradas e gastas, portanto não tem como saber se originalmente haviam mais animais ao redor.
A mitra, pés e asas são certamente idênticos. As mãos também estão completamente desgastadas, portanto não se pode averiguar se neste relevo ela segurava ou não o símbolo do deus-sol.
O fato de ter mudado de animal é significativo, ou seja indica que ela não tem uma relação especial somente com um tipo, como as leõas, que poderiam ser um emblema ou algo assim. Temos aqui os exemplos de corujas, leoas, cabritos e serpentes, entretanto ela provavelmente domina sobre todos os animais, tanto mamíferos, quanto ovíparos, tanto de grande porte quanto de pequeno, tanto carnívoros quanto herbívoros, tanto macho quanto fêmea, etc. Entretanto o principal é, tanto diurnos quanto noturnos… Temos entre os animais esculpidos representantes de cada uma dessas classes.
Como já visto antes, a mitra e as asas são motivos comuns, mas, como notado acima, os pés de pássaro são um importante símbolo de identificação, mesmo sem as corujas. É claro que o mesmo problema aplicado em uma é na outra. Se aquele não for Lilith, este provavelmente também não é.
Agora, para finalizar essa discussão sobre uma possível origem ou inspiração não judaica de Lilith, existe uma teoria – que é tanto defendida por diversos estudiosos quanto contestada por outros – que pretende que o Hebraico tenha sofrido influências do sânscrito; ou ainda que ambas as línguas tenham sido derivadas de um outro idioma, ainda desconhecido . Supondo que “Lilith” fosse originalmente uma palavra sânscrita, ela teria como raiz “Li”, que significa dissolução, destruição; igualdade, identidade. E isso com certeza é a essência de Lilith na mitologia hebraica! Uma palavra realmente derivada de “Li” é “Lîlâ”, literalmente diversão, jogo, passatempo. Nas escrituras ortodoxas hindus explica-se que “os atos da divindade são lîlâ ou uma diversão”.
Um som semelhante a Lîlâ aparece na epopéia de Gilgamesh, na frase que Kramer traduziu como contendo “Lilith”: ki-sikil-lil-la-ke. De qualquer forma se o sânscrito não fosse conhecido dos mesopotâmicos, etc, ainda há uma probabilidade menos remota de ter influenciado judeus do período helenístico (a tempo de entrar no texto massorético das escrituras e no Alfabeto de Bem Sira), ou mesmo, mais dificilmente, durante o “cativeiro na Babilônia”.
Notas:
Targum (aramaico, significa “tradução”) são traduções comentadas da Bíblia em aramaico. Um targum pode ser bem literal ou constituir quantidade considerável de midrash. As traduções da Torá eram feitas originalmente linha a linha, por tradutores profissionais, à medida que se lia o Pentateuco na sinagoga. Fazia-se assim para permitir que os judeus falantes do aramaico, que não entendiam hebraico, compreendessem o texto.
As citações do Talmud foram retiradas das traduções de I. Epstein. (The Babylonian Talmud. London: Socino Press, 1978) e Raphael Patai, Patai81, pp. 184f. O Talmud (hebraico, significa “estudo”) constitúi a obra mais importante da Torá oral, editada sob a forma de um longo comentário em aramaico sobre sessões da mishná. O Talmud também é conhecido por seu nome aramaico, Guemará, que veio a ser amplamente usado para evitar a crítica dos censores cristãos do Talmud. O Talmud foi redigido numa versão palestina (Ierushalmi, literalmente “de Jerusalém”) em c. 400 d.C., e numa versão babilônia mais autorizada (Bavli), cerca de 100 anos depois. As duas recensões do Talmud refletem diferenças entre as condições sociais e pontos de vista das comunidades da Terra Santa e da Babilônia. As leis agrícolas, relevantes para os agricultores judeus da Palestina, ocupam lugar proeminente no Talmud da Palestina, mas não no babilônio. Este último tinha uma tradição de demonologia muito mais desenvolvida que a do primeiro, refletindo a cultura babilônica. Ambos os Talmuds tratam principalmente da halachá, mas cerca de um terço do Bavli e um terço do Ierushalmi focalizam a agadá, o que envolve não só teologia mas também midrash, folchore, medicina, astrologia, magia, provérbios e histórias sobre rabinos talmúdicos. O estudo da Torá deve ser feito num enfoque mental de seriedade, mas o Talmud deve ser abordado com mais brilho e vivacidade, e seu texto estudado de forma melopéica, usando-se melodias tradicionais. O Talmud babilônio é a principal matéria de estudo nas academias de ieshivá, onde os professores geralmente usam um método dialético de exegese em suas incursões aventurosas no que é chamado de “o Mar do Talmud”.
Houve divergências no início do período rabínico quanto às circunstâncias exatas em que a Torá permite o divórcio (Deut.24). A escola conservadora de Shamai o proibia, exceto em casos de má conduta sexual da mulher (adultério), quando o marido é obrigado a se divorciar dela. A escola de Hilel o permitia se a mulher se comportasse de maneira imprópria, por exemplo, estragando a comida do marido, e a ulterior halachá seguiu a opinião de Akiva de que um homem pode divorciar-se de sua mulher até por ter encontrado outra que ele prefira àquela. A falta de filhos também é motivo de divórcio.
Ben Sira: Texto grego dos apócrifos baseado num original hebraico, considerado parte do cânon das escrituras por algumas denominações cristãs. Ben Sira é uma coleção de provérbios e máximas, como os da bíblica Literatura de Sabedoria. O autor Simão (ou Josué/Jesus) Ben Sira, revela uma tendência marcante para as idéias religiosas dos fariseus, enfatizando a grandeza de Israel e a fruição dos prazeres deste mundo dentro dos limites proscritos. A obra é altamente considerada na literatura rabínica e houve, até, uma tentativa infrutífera de incluí-la no cânon hebraico. Sua leitura em público, no entanto, foi posteriormente proibida, para evitar que fosse confundida com a Escritura. Um tesouro em manuscritos foi descoberto numa guenizá do Cairo, depois que um erudito inglês, Solomon Shechter, teve acesso a uma página de um original hebraico de Ben Sira proveniente de lá. Entre os manuscritos que ele recuperou estava uma grande parte do original de Ben Sira.
Haviam amuletos (em hebraico “kemea”) utilizados como proteção contra demônios, mau olhado, doença, combater hemorragia nasal, incêndios, assaltantes, inimigos, para fazer uma mulher estéril conceber, tornar fácil o parto, garantir a felicidade de um recém nascido, obter sabedoria e diversos outros fins. Esses amuletos são textos e desenhos geralmente escritos em pequenos pedaços de pergaminho e incluem sinais mágicos, permutações de letras e os nomes de Deus (Agla, Tetragramaton, etc.) ou de anjos como o de Rafael, Mikael, etc. O amuleto é usado em volta do pescoço ou às vezes pendurado numa parede de casa. Para que um amuleto seja considerado eficaz, tem que ser escrito por uma pessoa santa (segundo a tradição judaica), exímia na prática da Cabala. Se ele se mostrar eficaz na cura de alguém em três ocasiões diferentes, será então, comprovadamente, considerado um amuleto. Embora, aparentemente, amuletos tenham sido amplamente usados no período talmúdico, Maimônides e outros rabinos de mente mais voltada para a filosofia, como Ezequiel Landau, opunham-se a eles, considerando-os superstições vazias. Seu uso, no entanto, foi apoiado pelos místicos e pela crença popular. Até mesmo os cristãos buscavam amuletos com os judeus na Idade Média.