segunda-feira, 29 de junho de 2020

Os Anjos Ensinaram Segredos aos Homens


Gerações de exegetas, desde os primeiros escritores cristãos, perderam sono com apenas quatro versículos da Bíblia, registrados em Gên. 6:1-4. Ainda hoje o desconforto é geral entre os autores religiosos: “difícil passagem” (Ballarini), “episódio difícil” (Bíblia de Jerusalém: nota aos versículos), “um dos trechos mais difíceis da Bíblia” (Cimosa). Afinal, por que esses poucos versículos são tidos como tão espinhosos? Entenda-se: espinhosos de interpretar, visto que em brevíssimas linhas compilou-se e consignou-se no texto canônico, definitivo, uma velha tradição iaveísta (partidária do tetragrama hebraico Iavé) referente à união sexual dos ‘filhos de Deus’ com as ‘filhas dos homens’: os primeiros desceram à terra para copular com belas mulheres, daí resultando o nascimento de uma geração ímpia. Então Deus tinha filhos? O texto bíblico é inequívoco ao falar dos bene ha’elohim e a única tradução possível é mesmo ‘filhos de Deus’. Mas como é possível seres divinos unirem-se carnalmente a seres humanos, no caso as tais belas mulheres? Vejamos o trecho que há milênios tanto tem escandalizado pios leitores da Bíblia:

Quando os homens começaram a multiplicar-se na superfície do solo e lhes nasceram filhas, sucedeu que os filhos de Elohim1 se aperceberam de que as filhas dos homens eram belas. Tomaram, portanto, para si mulheres entre todas que tinham escolhido. Então Iahvé disse: “Meu espírito não ficará para sempre no homem, pois ele ainda é carne. Seus dias serão de cento e vinte anos”. Naquele tempo havia gigantes sobre a terra, e também depois: quando os filhos de Elohim se uniam às filhas dos homens e estas lhes davam filhos, estes eram os heróis que foram outrora homens de renome.2

1. Uma das diversas designações da divindade israelita, normalmente traduzida por ‘Deus’; o nome Iahvé, que aparece logo a seguir neste relato, é com frequência traduzido por ‘Senhor’. No primeiro relato da Criação (Gên. 1-2: 14a), por exemplo, a divindade é Elohim, no segundo (que começa em Gên 2: 4b) é Iahvé Elohim.

2. A tradução aqui usada é a de Dhorme (1956).
A história, na verdade, por mais bizarra que pareça, insere-se no preâmbulo do Dilúvio, pois na sequência (versículos 5-7 do mesmo capítulo 6) sugere-se que daquela união espúria nasceu uma geração perversa que só pensava no mal, e assim Iahvé, irritado e arrependido de haver criado a humanidade, decidiu suprimi-la por afogamento. O resto constitui a história de Noé. De qualquer modo, embora inserido na narrativa do Dilúvio, o trecho sobre os filhos de Deus contraria o entendimento corrente da religião bíblica.

Antes de tudo há o problema do antropomorfismo, implícito nos fatos de que (a) Deus tinha filhos e, portanto, (b) não estava sozinho no céu. Com efeito, acostumamo-nos à ideia de que essa divindade sequer tinha forma e, como na criação do mundo, era o espírito solitário por excelência. No entanto, fala-se de seu braço (Is 52: 10), rosto (Ex 33: 23), olhos (1 Sam 15: 19), boca (Deut 8: 3), ouvido (1 Sam 8: 21), lábios (Jó 11: 5) etc. Ademais, acorda como um guerreiro dominado pelo vinho (Sal 78: 65), passeia em seu jardim e conversa com os homens (Gên 3), fecha a porta da arca de Noé (Gên 7: 16), inspeciona a cidade e a torre em construção (Gên 11: 5), aspira odor e resmunga (Gên 8: 21), visita Abraão (Gên 18). O antropopatismo também é evidente quando a divindade, por exemplo, sente alegria (Deut 28: 63), arrepende-se (Gên 6: 6), sente ira (Gên 6: 6 e Êx 4: 14), perdoa (Jer 5: 1, 31: 34, 33: 8) e tem compaixão (Deut 32: 36), vinga-se (Ez 25: 17). Assim, a exemplo de tantas outras religiões do Oriente Próximo, o deus hebraico foi concebido em forma humana, e só uma teologia posterior inverteria tal noção, afirmando que o homem teria sido criado à imagem de Deus (Gên 1: 26-27).

A grande divindade bíblica tampouco estava sozinha no céu. Ao contrário, compartia sua morada com um panteão numeroso, deuses que lhe eram subordinados e que lhe prestavam homenagem como verdadeiro rei celestial. Afora os bene ha’elohim (filhos de Deus), havia os mal’akim (mensageiros, enviados, os ággeloi, anjos, na tradução grega da Bíblia). Em grupos formavam os dat’el (conselho divino), a qahal (assembléia) e o sod (círculo íntimo) dos qedoshim (santos, os que têm assento em volta de Deus). Constituíam, na prática, a corte celeste tal como descrita na visão de Miquéias: “Eu vi Iahvé sentado no trono com todo o exército do céu diante dele, à sua direita e à sua esquerda”(l Rs 22: 19). Ademais, ajudavam Deus a julgar os homens com base nos livros onde se inscreviam seus atos: “Mil milhares o serviam e miríades de miríades se mantinham diante dele. O tribunal tomou assento e os livros foram abertos” (Dan 7: 10). Podiam proteger os homens (Sal 34: 8, 91: 11-12), mas também causavam destruição e morte (Êx 12: 23, 2 Sam 24: 16, Sal 78: 49). No caso dos querubins e serafins, sua imagem é fortemente influenciada por representações correntes no Oriente Próximo, aparecendo como seres híbridos com traços humanos e animais.
Além dos demônios que povoavam e aterrorizavam a terra, alguns personalizados, como Azazel (Lev 16: 9 segs.), Lilit (por exemplo Is 34: 14), Asmodeu (Tob 3:8), entre outros, o deus hebraico tinha oponentes em sua própria corte, dos quais o mais célebre é Satã. Mas acima de tudo Elohim/Iahvé enfrentava continuamente as potências do caos que ameaçavam a sua criação. Tais potências, também elas divinizadas, personificavam-se no Tehom (águas primordiais), palco da criação do mundo (Gên 1: 2), como o monstro marinho Rahab (o nome significa ‘agitação, impetuosidade’) e a serpente ou dragão Leviatã: para criar e manter sua criação,

Deus tem de combatê-los e eliminá-los, e aqui o relato imprime uma dimensão cósmica ao trabalho da divindade. Assim, Deus não hesita em cortar Rahab em pedaços para o aniquilar (Is 51: 9, Sal 89: 10-11, Jó 26: 12) e em esmagar as cabeças de Leviatã (Sal 74: 14, Is 27: 1).

De novo os hebreus inserem-se nas tradições mitológicas do Oriente Próximo. Um primeiro paralelo estabelece-se com o poema acadiano da criação, em que o deus Marduk corta o monstro Tiamat em duas partes, faz de uma destas o oceano celeste e fecha sua água com ferrolhos, assim como Iahvé derrota os monstros das águas primordiais, fende o mar (Sal 74: 13) e impõe seus limites, fechando sua água com ferrolhos (Jó 38: 10). O segundo paralelo vem do ciclo épico de Baal em Ugarit, em que esse deus “esmaga Lotan, a serpente escorregadia, destrói a serpente tortuosa, Shalyat de sete cabeças”, em termos idênticos aos que se encontram em Sal 74: 14 e Is 27: 1,51:9. Por fim, um terceiro paralelo vem do Egito, onde, no âmbito da teologia solar, a serpente Apep (Apófis) ameaça diariamente a criação, na tentativa de fazer o mundo retornar às águas primordiais (Nun), e por isso tem de ser também diariamente derrotada e exterminada.

Removida a dificuldade inicial sobre a visão de um Elohim/Iahvé ‘humano’ que domina, afinal, um extenso panteão, voltemo-nos ao significado dos tais filhos de Deus. Quem eram eles? Os primeiros escritores cristãos preocuparam-se com o problema de sua identificação: como assinalam Comente e Pinero, “é a origem do mal com a história dos anjos caídos, junto com a procedência dos demônios, o que parece interessar mais a esses escritores” ao discorrerem sobre essa passagem. Autores dos séculos II e III, como Justino, Taciano, Irineu, Clemente de Alexandria, Tertuliano, Cipriano, Atenágoras, e no século IV Ambrósio, não só admitiram a história como sustentaram que os filhos de Deus eram anjos. No correr dos séculos IV e V, com João Crisóstomo, Agostinho, Cirilo de Alexandria e Teodoreto, predominou a interpretação de que os ‘filhos de Deus’ eram os descendentes de Set e as ‘filhas dos homens’ descendentes de Caim. Assim não se comprometia a transcendência divina, argumentando-se que os ‘casamentos’ foram legais e que não faria sentido seres divinos se preocuparem com legitimações de origem humana. Outra interpretação é a de que os ‘filhos de Deus’ representam o povo eleito e as ‘filhas dos homens’ “são simplesmente as mulheres jovens”.

Piruetas e contorções exegéticas à parte, não é difícil estabelecer a identidade dos filhos de Deus. Antes de mais nada, como todos os outros seres divinos do panteão celeste, faziam parte da corte de Iahvé, e assim o primeiro grupo de autores cristãos dos séculos II e III, influenciado pelos textos apócrifos e pela Septuaginta (tradução grega da Bíblia feita no século III a.C. para os judeus de Alexandria, que não sabiam ler hebraico), estava certo ao identificá-los como anjos. Em outras passagens do Antigo Testamento, vemos que se apresentam diante de Iahvé (Jó 1: 6 e 2: 1), tributam glória a este (Sal 29: 1) e compartilham de sua essência (Sal 89: 7), mas acima de tudo participaram da Criação ao lado de Iahvé, que mereceu seu aplauso ao concluir a obra (Jó 38: 7), e “quando o Altíssimo repartia as nações, quando separava os homens uns dos outros, fixou as fronteiras dos povos segundo o número dos filhos de Deus”(Deut 32: 8).15

15. Na Bíblia hebraica a alusão é aos ‘filhos de Israel’, mas se trata de um equívoco: discussão em Hedel (1993: 180).
Fora do horizonte estritamente bíblico, é possível detectar a tradição que ‘contaminou’ a história narrada no texto sagrado. Com efeito, é frequente a expressão ‘filhos de deus’ ou ‘descendentes de deus’ (banu ili ou banu ili-mi) nos textos religiosos de Ugarit, na Síria, dos séculos XV a XIII a.C, onde o venerando El — cujo nome significa literalmente ‘deus’ — é o pai dos deuses e dos homens. Tampouco era incomum no Oriente Próximo a ideia de uma divindade unir-se sexualmente a mortais. O próprio El de Ugarit gerou de duas mulheres Shahar (deus da manhã) e Shalim (deus do poente). Na Mesopotâmia a deusa Ishtar corteja abertamente Gilgamesh, rei de Uruk: “Vem, Gilgamesh, sê meu amante, dá-me o presente do teu fruto, serás meu marido e eu tua mulher”.17 No Egito o deus Amon toma a aparência do faraó para ter relações sexuais com a rainha, tornando-se assim o pai de Hatshepsut (c. 1475-1458 a.C.) e de Amenófis III (1390-1353 a.C): Amon foi ao quarto da rainha quando esta dormia, e então “ela acordou com a fragrância do deus. (…) Ele chegou-se logo e com ela copulou; ardendo de desejo, deu-lhe seu coração, de modo que ela pudesse vê-lo em sua forma de deus. Ao aparecer diante dela, ela regozijou-se com a visão de sua beleza e seu amor passou por dentro de seus membros, que a fragrância do deus inundava”.

17. Ver a fala completa da deusa, na sexta tabula da Epopéia de Gilgamesh, em Heidel (1967: 49-50), Speiser (1969: 83b-84a) e Bottéro (1992: 123-124).
Mas a melhor fonte no âmbito judaico — aliás utilizada pelos autores cristãos dos séculos II e III —, que recolhe a mesma tradição dos livros canônicos, porém consigna muito mais do que estes, são os chamados textos apócrifos, em particular o livro dos Jubileus (Jub), escrito no século II a.C. e conservado numa versão etíope de cerca de 500 d.C, feita a partir de uma tradução grega do original hebraico, e os livros de Enoque (En), escritos entre os séculos III e I a.C. e conservados em versão completa etíope composta entre 350 e 600 d.C, feita a partir de tradução grega do original hebraico. Em ambos os livros se conta a mesma história de Gên 6: 1-4, mas ali não só os filhos de Deus são chamados de anjos, como se explicita claramente que os gigantes nasceram da união destes com as mulheres. No relato de Jub 5: 1 é dito que “quando os filhos dos homens começaram a multiplicar-se sobre a face da terra e tiveram filhas, viram os anjos do Senhor, em um ano deste jubileu, que eram formosas de aspecto. Tomaram por mulheres as que elegeram entre eles e lhes pariram filhos, que foram os gigantes”. A narrativa de En 6-7: 1-2 é mais rica em informações:

Naqueles dias, quando se multiplicaram os filhos dos homens, sucedeu que lhes nasceram filhas belas e formosas. Viram-nas os anjos, os filhos do céu, desejaram-nas e disseram entre si: “Eia, escolhamos dentre os humanos e engendremos filhos”. Semyaza, seu chefe, disse-lhes: “Temo que não queirais que tal ação chegue a executar-se e seja eu sozinho a pagar por tamanho pecado”. Responderam-lhe todos: “Juremos e comprometamo-nos sob anátema entre nós a não mudar esta decisão e a executá-la certamente”.

Então juraram todos juntos e se comprometeram a isso sob anátema. Eram duzentos os que desceram a Ardis, que é o cume do monte Hermon, ao qual chamaram assim porque nele juraram e se comprometeram sob anátema. Estes eram os nomes de seus chefes: Semyaza, que era seu chefe supremo, Urakiva, Rameel, Kokabiel, Tamiel, Ramiel, Daniel, Ezequiel, Baraquiel, Asael, Armaros, Batriel, Ananel, Zaquiel, Samsiel, Sartael, Turiel, Yomiel e Araziel. Estes eram seus decuriões.

E tomaram mulheres. Cada um escolheu a sua e começaram a conviver e a unir-se com elas, ensinando-lhes feitiços e conjuros e adestrando-as em recolher raízes e plantas. Ficaram grávidas e engendraram enormes gigantes de três mil cevados de estatura cada um.

Ora, em Gên 6: 1-4 o relato parece truncado, não ficando clara a relação entre a união sexual de seres divinos com mulheres e o nascimento de uma raça de gigantes, o que se esclarece em Jub e En nos trechos anteriormente transcritos.

De qualquer modo, a história só se aclara por inteiro com a continuação da narrativa, que em Gên 6: 5-8 permanece parcial, no sentido de que nem tudo é dito:

Iahvé viu que a maldade do homem era grande sobre a terra e que todo objeto dos pensamentos de seu coração era sempre o mal. Iahvé arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra e irritou-se em seu coração. Iahvé disse: “Farei desaparecer da superfície do solo os homens que criei, e com os homens os animais, os répteis e os pássaros do céu, porque me arrependo de os ter feito”. Mas Noé encontrou graça aos olhos de Iahvé.

Mais uma vez, dessa exposição extremamente concisa, apenas se infere que a maldade podia provir dos gigantes, e tampouco nada se esclarece sobre a natureza de sua iniquidade. Mas por enquanto importa reter que o arrependimento do deus criador em relação à sua criação não é novidade em mitologias do Oriente Próximo. No Egito tratava-se do deus Ra, que, ao ficar velho, percebe que a humanidade tramava contra ele e por isso decide exterminá-la. Na Mesopotâmia, o deus Enlil pretende destruir os homens por meio de pestes e dilúvio, porque estes haviam se multiplicado tanto que seu vozerio chegava ao céu e perturbava os deuses: “A terra ficou muito grande, o povo tornou-se numeroso, a terra bramia como gado selvagem. O deus (Enlil) incomodou-se com sua gritaria. Enlil ouviu seu alarido e disse aos grandes deuses: — Opressivo tornou-se o alarido da humanidade, seu alarido impede meu sono”. Como os homens viviam eternamente, Enlil provocou uma série de catástrofes para diminuir seu número, até decidir-se pelo dilúvio, mas o deus Enki escolheu um homem chamado Atramhasis (também Atrahasis, Atráxis) para salvar-se da inundação, ensinando-lhe a construir uma grande barca que abrigaria sua família e certo número de animais. Uma vez salva a humanidade, Enki sugeriu que a população diminuiria com a criação da morte natural. Também da Mesopotâmia nos chegou a longa Epopeia de Gilgamesh, modelo inequívoco da história bíblica do Dilúvio, tantas e tamanhas são as semelhanças em ambos os relatos.

É igualmente fora do texto canônico da Bíblia, mas ancorada nas próprias tradições hebraicas mais antigas, que encontramos a explicação da ira de Iahvé em relação à humanidade. Hendel sustenta que o castigo divino aos humanos resultou do surgimento de um desequilíbrio cósmico representado pelo acasalamento dos filhos de Deus com as filhas dos homens, e a primeira resposta de Iahvé foi a limitação da vida em 120 anos, e em seguida o Dilúvio, quando pereceram os gigantes.25 O desequilíbrio cósmico ocorreu, mas não devido simplesmente (ou somente) à união sexual de anjos com mulheres, e sim ao desvendamento de segredos ou de conhecimentos até então vedados aos homens, tal como expresso em En 8, em cuja versão etíope se afirma que:

Azazel ensinou os homens a fabricar espadas, facas, escudos, machados, os metais e suas técnicas, braceletes e adornos; como enegrecer os olhos e embelezar as sobrancelhas, e dentre as pedras as que são preciosas e seletas, todos os corantes e a metalurgia. Houve grande impiedade e muita fornicação, erraram e corromperam-se seus costumes. Amezarak adestrou os encantadores e os que arrancam raízes; Armaros, como anular os encantamentos; Baraquiel, os astrólogos; Kokabiel, os signos; Tamiel ensinou astrologia; Asradel, o ciclo lunar. Mas os homens clamaram em sua ruína e chegou sua voz ao céu.

25. Em muitas inscrições funerárias egípcias, onde se consigna a autobiografia do morto, não é raro encontrar o registro de idade muito avançada para este, mas como observa Hornung, “permanece questão aberta se tal asserção contém um algarismo exato, um conveniente número redondo ou uma vontade idealizada”, porquanto “para os egípcios, ‘110 anos’ significa o limite ideal da existência terrestre. E a idade que ocorre repetidamente em inscrições, expressa na forma de um desejo. O Antigo Testamento, do mesmo modo, adota essa idade perfeita para José e Josué”.
Uma das versões gregas conservada em fragmentos por Sincelo (cerca de 800) é mais detalhada (En 8: 1-3):

Azazel, o décimo dos chefes, foi o primeiro a ensinar-lhes a fabricar espadas, escudos e toda espécie de instrumentos bélicos; também os metais da terra e o ouro (como trabalhá-los e fazer com eles adornos para as mulheres) e a prata. Ensinou-lhes também a fazer brilhantes os olhos, a embelezar-se, as pedras preciosas e as tintas. Os homens fizeram tais coisas para si e para suas filhas; pecaram e fizeram errar aos santos. Houve então uma grande impiedade sobre a terra e corromperam-se seus costumes. Logo o grande chefe Semyaza ensinou-lhes os encantamentos da mente e as raízes das plantas da terra. Farmarós ensinou-lhes feitiçarias, encantos, truques e antídotos contra os encantos. O nono ensinou-lhes a observação dos astros. O quarto, a astrologia; o oitavo, a observação do ar; o terceiro ensinou-lhes os signos da terra; o sétimo, os do sol; o vigésimo, os da lua. Todos eles começaram a descobrir os mistérios para suas mulheres e filhos.

Eis a intolerável transgressão: “descobrir os mistérios”, revelar o conhecimento divino, compartilhar e ensinar o que até então era insondável. E o rompimento do limite humano que provoca o desequilíbrio cósmico, e no próprio livro canônico do Gênese temos mais duas transgressões desse tipo que suscitaram o castigo de Deus. A primeira é a história da expulsão de Adão e Eva do Paraíso em virtude de comerem o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal; como declara a serpente a Eva (Gên 3: 5), “Elohim sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal”. A segunda história é a da torre de Babel (Gên 11: 1-9), em que os homens desejam construir “uma cidade e uma torre cujo topo penetre nos céus”, ultrapassando assim a medida humana.

Nos relatos apócrifos, caudatários da mesma tradição que o canônico, torna-se explícito que a ira divina antes do Dilúvio recaiu sobre os gigantes (nefilim), filhos da união espúria dos anjos com as mulheres. Em Jub 5: 2 diz-se que “todos corromperam sua conduta e norma, começaram a devorar-se mutuamente, cresceu a iniquidade sobre a terra”, e na versão etíope de En 7: 3-6 afirma-se que os gigantes “consumiam todo o produto dos homens, até que foi impossível a estes alimentá-los. Então os gigantes se voltaram contra eles e comiam os homens. Começaram a pecar com aves, bestas, répteis e peixes, consumindo sua própria carne e bebendo seu sangue”. Na versão grega conservada por Sincelo de En 6: 2 e 8: 3-4 registra-se que “aumentaram em número, mantendo o mesmo tamanho, e aprenderam eles mesmos e ensinaram a suas mulheres feitiços e encantamentos”, e que “depois disto começaram os gigantes a comer a carne dos homens e estes começaram a diminuir em número sobre a terra”.

Ora, esses gigantes não só foram iniciados nos mistérios divinos, como espalharam o terror na terra e transgrediram normas de conduta. Sua simples existência, aliás, é associada a degradação, “pois os homens selvagens arquetípicos do Antigo Testamento são os grandes rebeldes contra o Senhor, os que desafiaram a Deus, os antiprofetas, os gigantes e os nômades. (…) Como os anjos que se rebelaram contra o Senhor e foram arremessados do céu, estes homens rebeldes continuam – compulsivamente, diríamos nós – a cometer o pecado de Adão”. Por isso são punidos continuamente. A própria palavra que designa ‘gigante’, nefil ou nefiyl, liga-se à raiz do verbo nafal, que significa ‘cair’, mas que se associa também às noções de morte, imperfeição, corrupção e julgamento. Assim, os gigantes são reiteradamente ‘exterminados’ da terra, seja por Moisés (Jos 12:4-6), por Josué (Jos 11: 21-22), por Caleb (Jos 15: 14 e Ju 1: 20), ou até na dupla morte de um mesmo personagem, Golias, que é abatido por Davi (1 Sam 17) e por Elanã (2 Sam 21). A recorrência não é contraditória, pois no pensamento do homem antigo no Oriente Próximo:

os deuses são potências animadoras da natureza. Esta situa-se no plano da realidade. Apesar de sua infinita diversidade, o real é factualmente único. Um objeto possui apenas uma realidade palpável e quantificável. Todavia, para além do real único da experiência humana, reinam forças ordenadoras do mundo, as quais suscitam o plano da verdade. Esta verdade contém todas as potencialidades do imaginário. Para a física moderna, o real e o verdadeiro devem superpor-se. O antigo egípcio via isso de outro modo: se o real era único, o verdadeiro era múltiplo, consequência de sua inacessibilidade imediata. A multiplicidade dos verdadeiros e, portanto, das descrições míticas do mundo, autorizava a diversidade de respostas às questões levantadas pelos homens observadores da natureza. Tal multiplicidade de abordagens permitia a justaposição de imagens míticas aparentemente contraditórias.

A história que começa com os filhos de Deus unindo-se a mulheres e termina com o Dilúvio insere-se, portanto, no ciclo de relatos em que a humanidade é várias vezes punida e ‘exterminada’ por transcender sua própria condição e aproximar-se do divino. Nesse caso específico a narrativa canônica acentua o cunho moral, mas a tradição conservada nos apócrifos revela a causa primeira do castigo: o conhecimento interdito dos mistérios divinos que leva ao desequilíbrio cósmico como ameaça à Criação.

Referências Bibliográficas

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