segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Ritual Safira Estrela


A busca pelas raízes tântricas do deus Seth nos leva a um ritual desenvolvido por Crowley, baseado, uma vez mais, nos ritos da Golden Dawn, sociedade secreta na qual ele foi iniciado e que continuou a influenciar sua visão mágica do mundo por toda sua vida. Eu me refiro ao Ritual Safira Estrela ou Liber XXXVI, como é mais conhecido.

Esse ritual foi publicado em O Livro das Mentiras com a finalidade de substituir o Ritual do Hexagrama da Golden Dawn. A Golden Dawn possui dois rituais funcionais que todos os membros tinham de aprender e executar. Um deles é o Ritual do Pentagrama, usado tanto em invocações quanto em banimentos, dependendo da direção que os pentagramas são traçados. O pentagrama se relaciona aos quatro elementos mais o espírito. Este é o ritual fundamental da Golden Dawn e versões dele têm sido adaptadas e vastamente utilizadas por inúmeros grupos hermetistas há mais de cem anos, inclusive wiccanos que, na grande maioria das vezes, ignoram as origens desse ritual às vezes chamado de a Invocação das Torres de Vigia, uma referência direta aos rituais da Golden Dawn, largamente baseados na Magia Angélica do magista elizabetano John Dee e seu médium, Edward Kelly, quem Crowley acreditava ser uma reencarnação.

O outro ritual, mais complexo, é a cerimônia conhecida como o Ritual do Hexagrama. Neste ritual, cada uma das seis pontas do hexagrama é designada a um dos seis planetas visíveis, com o centro representando o sol. Assim, dependendo da maneira como é traçado o hexagrama, invoca-se ou bane-se a influência desses planetas.

Crowley produziu uma versão thelêmica destes dois rituais. O pentagrama foi substituído pelo Rubi Estrela, também conhecido como Ritual da Estrela de Sangue, cujos nomes angelicais – Michael, Rafael, Gabriel e Uriel – foram substituídos por formas divinas mais apropriadas a Thelema: Therion «a Besta», Nuit, Babalon e Hadit.[1]

Contudo, concernente ao Ritual do Hexagrama, uma mudança fundamental ocorre, embora não seja óbvio em um primeiro momento. Este foi o ritual que atraiu a atenção de Theodor Reuss, o principal fundador da O.T.O., quem visitou Crowley em Londres acusando-o de publicar o segredo central da Ordem em seu livro, por volta de 1912. O ocorrido levou Crowley a receber o IXº. Ele já era um iniciado do VIIº, mas não fazia a menor ideia de que os Graus superiores da Ordem eram baseados nos mistérios sexuais. Crowley, ao escrever seus rituais sexualmente carregados, estava sendo apenas ele mesmo. Ele afirmou que a Safira Estrela lhe ocorreu quando se encontrava com a consciência iluminada, da mesma maneira que os Livros Sagrados, como discutimos anteriormente. Foi Reuss quem lhe revelou o Arcano fundamental do ocultismo ocidental, cujo escopo das práticas – da alquimia a magia cerimonial – eram sexuais em natureza e que a iconografia do ocultismo – incluído rasacrucionismo, alquimia, misticismo e magia – oculta segredos sexuais ou, mais apropriadamente, psico-biológicos.

Crowley reformulou os rituais da O.T.O. ao se tornar líder da Ordem nos países de língua inglesa e posteriormente de todos os países após o episódio conhecido como a Conferência Weida, por volta de 1925. Portanto, esse ritual merece uma análise mais acurada, pois ele foi o catalisador que levou Crowley a se tornar o líder mundial da O.T.O. Ele é também, segundo o próprio Reuss, «o Segredo do IXº em forma impressa». Adicionalmente e mais importante no caso de nosso estudo, o ritual coloca Seth, o Senhor das Trevas, na frente e no centro de sua execução. Portanto, o que mais nos interessa nesse momento, é encontrar a percepção que Crowley tinha de Seth no contexto thelêmico.

O ritual começa com a frase: « Que o Adepto seja armado com seu Crucifixo Mágico e provido com sua Rosa Mística». Essa foi à frase que chamou a atenção de Reuss. O Crucifixo Mágico é a vara ou baqueta e se refere à cruz na qual Cristo foi crucificado. A Cruz e a Rosa são os símbolos da sociedade secreta mais famosa da Europa, a Rosa Cruz. Assim, podemos considerar que essa instrução é, senão inocente, destituída de qualquer conotação sexual quando colocada sob a perspectiva das sociedades secretas da Europa do Séc. XVII. Contudo, o resto do ritual coloca essa frase em um contexto completamente diferente.

Após a execução dos sinais de L.V.X. e N.O.X. – que tiveram sua origem também na Golden Dawn – o adepto é instruído a ir nos quatro quadrantes do espaço, começando pelo Leste, procedendo no sentido horário aos outros quadrantes, pronunciando uma série de fases em latim na medida em que traça o hexagrama de cada direção. A tradução das frases em latim segue:

Pai e Mãe, Um Deus, ARARITA.

Mãe e Filho, Um Deus, ARARITA.

Filho e Filha, Um Deus, ARARITA.

Filha e Pai, Um Deus, ARARITA.

Ararita é a mesma palavra que aparece na versão do Ritual do Hexagrama da Golden Dawn e é um acrônimo da frase em hebraico que diz: «Um é seu início. Um é sua individualidade. Sua permutação é Um». No fim, o adepto retorna ao centro e é instruído a «executar o sinal da Rosa Cruz», repetindo Ararita três vezes, após o que ele faz:

Os sinais aí devem ser os de Set triunfante e de Baphomet. Também Set aparecerá no Círculo. Que ele beba do Sacramento e comungue do mesmo.

A instrução segue com outras frases em latim e seu significado é importante para o entendimento do mecanismo do ritual:

Tudo em Dois; Dois em Um; Um em nenhum; estes não são Quatro nem Tudo nem Dois nem Um em Nenhum.

Glória ao Pai, a Mãe, ao Filho, a Filha e ao Espírito Santo de fora e ao Espírito Santo de dentro que foi, é e será, para todo o sempre, seis em um através do nome sétuplo ARARITA.

A ênfase nessas frases que reduzem toda dualidade na unidade é uma evidência do fascínio que Crowley tinha sobre o conceito hindu de advaita ou não-dualidade.

Crowley insistia no fato de que não havia percebido o segredo do IXº até que Theodor Reuss lhe revelou, enfatizando que este era o segredo por trás de todo ocultismo ocidental. Crowley escreveu essa instrução na forma de um ritual sexual e explicou sua intenção em um capítulo posterior da obra, denominado O Caminho para o Êxito e o Modo de Chupar Ovos,[2] mas ele estava completamente inconsciente do que havia tropeçado. Pode ser que ele apenas estivesse reinterpretando os rituais nos termos sexuais ao invés de ter descoberto e propagado o Arcano por trás deles. Mas o que Seth tem a ver com tudo isso? E por que ele é «triunfante»?

Este ritual sendo interpretado de maneira sexual, como foi à intenção de Crowley, somos deixados com a inconfortável percepção de que três dos quatro «pares» do ritual têm a natureza incestuosa: Mãe e Filho, Filho e Filha, Pai e Filha. Crowley foi delicado o suficiente ou pragmático o suficiente de não incluir Mãe e Filha ou Pai e Filho, provavelmente porque a cópula do IXº seja necessariamente heterossexual no qual tanto os fluídos masculinos e femininos são requeridos para criação do Sacramento. Este Sacramento deve ser consumido pelo adepto e depois partilhado. A última palavra é proveniente da Missa Latina e indica que o Sacramento deve ser partilhado para que aqueles que partilham comunguem da força espiritual invocada. Na Missa Latina isso é feito através do pão e do vinho transmutados no corpo e sangue de Cristo, para todos aqueles que comungam, quer dizer, tomam a comunhão, partilharem da experiência do contato com Jesus, o deus morto e ressurreto.

No Ritual Safira Estrela, notoriamente sexual, o Sacramento é composto dos fluídos masculinos e femininos e é na forma de uma Missa Gnóstica mais resumida. O mistério do Sacramento reside no fato de que ele não é simplesmente composto do material grosseiro dos fluídos sexuais, mas sim uma substância transmutada através da execução do ritual. Portanto, ele contém qualidades ocultas que o sêmen ou as secreções vaginais – seja a menstruação ou a secreção da mucosa da vagina – não possuem em si mesmos. Essas qualidades não têm nada a ver com o processo de reprodução física, quer dizer, o Sacramento não é destinado a produzir uma criança humana. Um elemento essencial neste ritual – e de fato de toda magia sexual – é o contato com forças que estão além do mundo físico para que todo processo grosseiro do intercurso sexual como os desejos, a excitação, o coito, o orgasmo e os fluídos resultantes possam ser reimaginados, transformados e transcendidos.

Sendo um ritual de sexualidade transgressiva, fica fácil entender o papel de Seth. Seth é «triunfante» – de acordo com os textos egípcios até agora decifrados – em situações de homicídio, estupro, sodomia etc. Quando Seth está defendendo a barca de Rá, sua violência é direcionada ao bom serviço do panteão, ocasião em que ele se torna triunfante a destruir a serpente Apep ou Apófis, quem, paradoxalmente, ele é às vezes identificado. No Ritual Safira Estrela os poderes transgressivos de Seth primeiro são identificados e então empregados em um ato designado a colocar o adepto em contato com seu Sagrado Anjo Guardião, como o próprio Crowley aponta no capítulo 69 de O Livro das Mentiras, onde o tema sobre o hexagrama é discutido nos termos sexuais, incluindo uma referência explícita a «postura 69» de sexo oral mútuo.

As instruções da Golden Dawn sobre o Ritual do Hexagrama deixam claro sua característica macrocósmica (relacionado aos sete planetas da Árvore da Vida), diferente do Ritual do Pentagrama cuja característica é microcósmica (relacionado aos quatro elementos mais o espírito). Nós podemos dizer então que o Ritual do Hexagrama, tanto o original da Golden Dawn quanto a reformulação de Crowley, é um ritual celeste enquanto que o Ritual do Pentagrama é terrestre.

Portanto, a invocação de Seth Triunfante no clímax do ritual indica a abertura do Portal entre este mundo e o outro, não o Portal aberto por Osíris. Ele não tem nada a ver com a morte ou a ressurreição, mas a abertura do Portal do Lado Noturno da Árvore da Vida que Grant chama de Túneis de Seth. Aqui, novamente Crowley demonstrou a verdadeira natureza por trás do mito, em um ritual concebido em um estado alterado de consciência similar ao que deu nascimento ao Livro do Coração Cingido pela Serpente: um livro que conecta Crowley o magista ao visionário Lovecraft.[3]

Na religião, os humanos são subservientes a Deus ou aos Deuses, especialmente as religiões abraâmicas e monoteístas. Em Thelema a ênfase é revertida com foco total no potencial humano. Não existem dogmas religiosos na magia, tanto quanto possa parecer estar implícito. Magistas se atrevem a fazer o que as pessoas devotas e religiosas não têm coragem: abordar ativamente o Trono dos Deuses utilizando qualquer meio que esteja à disposição, até mesmo os mais blasfemos. Os Deuses podem ser mais poderosos e até mesmo mais perigosos, mas o magista apropriadamente treinado pode navegar pelos céus ou infernos com impunidade.

Caos e Babalon – ou Seth e Ishtar, Dumuzi e Inanna, Śiva e Śakti – representam um processo oculto profundo que subjaz o jogo de māyā, a ilusão da criação. Caos e Babalon são portais para o Lado Negro da criação, da mesma maneira que a sexualidade humana é um portal para os processos e funções da poderosa mente subconsciente. Essas são as forças irracionais que apavoraram Lovecraft: elas são imunes à razão e o entendimento científico da mesma maneira que a vastidão profunda do espaço reside fora da habilidade da mente em poder contemplá-la.

Os outros deuses – Ísis, Osíris, Hórus, Thoth, Anúbis etc. e não apenas deidades egípcias, mas gregas, romanas, africanas, chinesas, indianas e muitas outras de outros panteões – são aspectos básicos e fundamentais destes dois, Caos e Babalon. Por conveniência, eles podem ser considerados refinamentos de aspectos específicos, pontos de vista, componentes químicos, secreções fisiológicas e qualidades biológicas – e isso não denigre seu valor ou importância ao magista. Qualquer uma dessas deidades é uma força potente muito superior a qualquer capacidade humana de contê-la.

A Tradição Tifoniana, de acordo com a tese de Grant, é mais antiga que todas as tradições e cultos religiosos. Sua origem é nas estrelas e ela reside no âmago de todos os cultos que se desenvolveram posteriormente. Isso significa que seus deuses são os protótipos de todos os outros deuses posteriores e seus rituais a forma mais prístina de todos os cultos que se desenvolveram no percurso dos tempos. Portanto, suas Trilogias Tifonianas não são apenas guias pelos quais podemos transitar pelos Túneis de Seth no Lado Noturno da Árvore da Vida: eles são avisos sinceros, diferente dos avisos fantasiosos de Lovecraft.

A fim de compreender essas forças, é necessário ver como elas foram invocadas nos rituais secretos e profanos dos cultos mais sombrios ao redor do mundo. Mas isso é tema para outro estudo oportuno.

[1] No texto original de O Livro das Mentiras, Crowley havia substituído os nomes angelicais por Caos, Babalon, Eros e Psique, com o objetivo de mantê-lo completamente alinha a tradição grega. Depois ele mudou os nomes para uma nomenclatura adequada a Thelema. Contudo, Caos e Babalon parecem ser mais apropriados, especialmente sob a luz do Credo da Missa Gnóstica, discutido anteriormente.

[2] Capítulo 69.

[3] Existe a execução do ato sexual e a consumação do sacramento. Isso demonstra que a prática thelêmica envolve o contato com o Senhor das Trevas, Seth, o deus oculto, na tese grantiana.

Extrato do texto «A Redescoberta da Tradição Sumeriana», que será publicado integralmente na Revista A Lança de Seth, Vol. I, No. 2.