sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Lilith - A Rainha da Noite

 


Lilith aparece no Tanak, quando Isaías, ao descrever a vingança de Deus durante a qual a terra de Édom seria transformada num deserto, proclamou isso como um sinal de desolação: “Lilith repousará lá e encontrará seu local de descanso” (Isaías 34:14) A Bíblia de Jerusalém apresenta Isaías 34, 14-17 da seguinte forma:


14 Os gatos selvagens conviverão aí com as hienas,

os sátiros chamarão os seus companheiros.

Ali descansará Lilith,

e achará um pouso para si.

15 Ali a serpente fará o seu ninho, porá os seus ovos,

chocá-los-á e recolherá à sua sombra a sua ninhada.

Também ali se encontrarão as aves de rapina (corujas),

cada uma com a sua companheira.

16 Buscai no livro de Iahweh e lede:

nenhum deles faltará,

nenhum deles ficará sem o seu companheiro,

porque assim ordenou a sua boca;

o seu espírito os ajuntou.

17 Ele mesmo lançou a sorte para eles,

a sua mão distribuiu-lhes, com o cordel, a porção de cada um.

Eles a possuirão para sempre,

de geração em geração a habitarão.


Esta passagem refere-se a futura desolação de Édom, por causa da forma como trataram Israel, quando Deus jogar seu poder sobre este povo. O contexto na profecia é a predicação que a terra dos Moabitas se tornará um deserto desolado.


A palavra no texto em Hebraico aqui é “Lilith” mas infelizmente ela é um hapax legomenon (uma palavra que ocorre apenas uma vez no Antigo Testamento). Por isso não podemos determinar seu significado por comparação com outros usos na Bíblia. – Então somos forçados a recorrer à linguagens cognatas (Akkadian, Aramaico, Ugaritic, etc.), versões (traduções mais antigas) ou à tradição judaica para determinar seu significado.


Consultando-se outras fontes de tradição hebraica, pode-se chegar à conclusão de que quando é dito “os sátiros chamarão os seus companheiros” (a palavra hebraica aqui traduzida como “Sátiros” é “se’ir”) está-se falando de Samael e outros demônios. Depois aparece a companheira dele: “Ali descansará Lilith”. Em seguida fica o veredicto de que a terra de Édon – a que se referia todo o texto – seria a futura morada dos demônios e daqueles animais considerados impuros “eles a possuirão para sempre”.


A tradução ‘criaturas da noite’, que aparece em algumas versões para outras línguas, representa uma especulação, uma tentativa de ler ‘lilith’ baseado em sua similaridade com a palavra hebraica “laylah” (noite). As tradições de Lilith também, as vezes, fazem esta conecção etimológica – particularmente desde que uma de seus papéis é o de succubus, e ela foi muitas vezes associada com corujas, como nesta passagem.


[Se formos comparar as diversas versões e traduções da Bíblia atual, descobrimos que em muitas delas “Lilith” não aparece em Isaías 34: 14-15. A diferença entre esta tradução e outras refere-se a uma diferença fundamental na tradução filosófica da Bíblica. – Algumas versões tem uma abordagem de tradução, especialmente no Tanak (a parte Hebraica, Antigo Testamento) que pretende naturalizar algumas referências de criaturas mitológicas ou sobrenaturais, exceto anjos, substituindo-as por animais conhecidos. Por exemplo, pode-se encontrar Bíblias que traduzem ‘leviathan’ como ‘crocodilo’, ‘behemoth’ como ‘peixe-boi’, etc. Mas o problema de Lilith é ainda mais complexo daquele de behemoth ou leviathan, pois estes são pelo menos bem descritos nos capítulos 40 e 41 de Jó. Leviathan é mencionado algumas vezes (Jó 3:8 Jó 41:1 Salmos 74:14 Salmos 104:26 e Isaías 27:1) e também behemoth é um hapax legomenon mas nós temos uma descrição completa deles, o que não é o caso com Lilith.

Note que as traduções também diferem na tradução de ‘se’ir’ – isto é um bode ou um bode/demônio/sátiro? Suponho que o significado de ‘se’ir’ tem sido determinado pelo significado de ‘lilith’. Se ‘lilith’ é uma demônia, então ‘se’ir’ deve ser alguma espécie de demônio. Por outro lado, se ‘lilith’ é algum tipo de animal indeterminado, então se’ir é um bode].


A tradição judaica, claro, aponta-nos na direção da criatura mitológica.

Um fragmento da antiga comunidade de Qumran contendo menção de Lilith (4QCânticos do Instrutor/ 4QShir – 4Q510 frag. 11.4-6a // frag. 10.1f), foi encontrado nos Manuscritos do Mar Morto. Esta passagem é claramente baseada em Isaías 34:14 e pode ajudar a compreender o real significado do texto:


E Eu, o Instrutor, 

proclamo a majestade de seu esplendor

a fim de assustar e ater[rorizar]

todos os espíritos dos anjos da destruição

e os espíritos bastardos,

demônios, Liliths, corujas e [chacais…]

e aqueles que atacam inesperadamente

para desviar, desencaminhar o espírito de conhecimento…

11QPsAp


Aqui há dois pontos de interesse para nós. O primeiro é que o contexto deixa claro que a comunidade que produziu isto vê a passagem de Isaías como referindo-se ao demoníaco mais do que animais do deserto. Segundo, aqui, nós temos ‘liliths’ no plural, ao contrário de Isaias, no singular. Provavelmente isto não é apenas uma licença poética, pois a tradição diz – e o próprio texto de Isaías da a entender claramente – que Lilith teria filhos, cujas fêmeas são tradicionalmente chamadas de Liliths e os machos de Lillim, sendo que este termo aparece no Targum Jerushalami [1], a bênção sacerdotal dos Números, VI, 26 que contém esta versão:


“O Senhor te abençoe em todo ato teu e te proteja dos Lillim!”


Segundo Alan Unterman (Dictionary of Jewish Lore & Legend) há um costume, ainda praticado em Jerusalém, de espantar esses filhos do corpo morto de seu pai, andando em círculo com o cadáver antes do sepultamento e atirando moedas em diferentes direções para distrair os filhos demônios.


Entretanto, para sabermos mais a respeito dos filhos de Lilith, teremos de recorrer ao Talmude [2] (coleção de tradições rabínicas que interpretam a lei de Moisés), que – em duas ocasiões – fala sobre estes seres. A primeira referência fala de sua origem:


“Rabbi Jeremia ben Eleazar falou, “Durante aqueles anos (depois de sua expulsão do jardim), nos quais Adão, o primeiro homem, esteve separado de Eva, ele tornou-se o pai de ghouls e demônios e lilin.” Rabbi Meir falou, “Adão, o primeiro homem, tornou-se muito devoto e descobriu que ele havia causado morte, que viria ao mundo, fez abstinência por 130 anos, e ele próprio afastou-se de sua esposa por 130 anos, e cultivou figueiras de vinho por 130 anos. Sua paternidade dos espíritos malignos, referidos aqui, tornou-se um resultado de sonhos molhados.” (b. Erubin 18b)


A segunda referência faz apenas menção da morte de um filho específico, Hormin, mas não se estende sobre o assunto:


“Rabba bar bar Hana falou, “Eu uma vez vi Hormin, um filho de Lilith, correndo nas muralhas de Mahoza…. Quando o demoníaco governante soube disso, eles mataram-no [para exibir-se].”” (b. Baba Bathra 73a-b)


O Talmud também da breves descrições de Lilith: “Lilith é uma demônia com aparência humana exceto que ela possui asas.” (b. Nidda 24b); “Lilith desenvolveu longos cabelos.” (b. Erubin 100b) E aconselha:


“Rabbi Hanina falou, “Nenhum homem pode dormir só em uma casa; quem quer que durma só em uma casa, será pego por Lilith”” (b. Shab. 151b)


Este trecho aconselha os homens a casarem-se, para poderem dormir com suas esposas e não sofrerem com o desejo. Do contrário, Lilith viria copular com eles durante o sono para gerar filhos Lillim. Apesar disso, não faltaram homens para “dormirem sós”. A obra Jewish Folktales retomou um antigo conto judaico “Lilith e a Folha de Capin”, que fala sobre um judeu que não seguiu este conselho do Talmud:


Certa vez um judeu foi seduzido por Lilith e ficou enfeitiçado por seus encantos. Mas ele estava muito perturbado com isso, e então foi ao Rabino Mordecai de Neschiz para pedir ajuda.


Mas o rabino sabia por clarividência que o homem estava vindo, e avisou a todos os judeus da cidade para não deixa-lo entrar em suas casas ou dar-lhe lugar para dormir. Assim, quando o homem chegou não encontrou nenhum lugar para passar a noite e deitou-se num monte de feno num quintal. À meia-noite, Lilith apareceu e sussurrou-lhe:


– Meu amor, saia desse feno e venha até aqui.


– Por que eu deveria ir até você? – perguntou o homem – Você sempre vem a mim.


– Meu amor, nesse monte de feno há uma folha de capim que me causa alergia.


– Então – disse o homem – por que você não me mostra? Eu a jogo fora e você pode vir.


Assim que Lilith a mostrou, ele pegou a folha de capim e enrolou-a em volta do pescoço, livrando-se para sempre do domínio dela.


Por vezes, Lilith atacava mesmo os homens casados e, para combatê-la, os judeus desenvolveram rituais elaborados para bani-la de suas casas. Tenho aqui três exemplos, o primeiro trata-se de um amuleto persa com Lilith no centro, circundada por um texto profilático em Aramaico. (The Semetic Museum, Harvard University):


“Vocês estão atados e selados, todos vocês demônios, diabos e liliths, forte e poderosamente presos, assim como estão presos Sison e Sisin… A maligna Lilith, que faz os corações dos homens perderem-se e aparece nos sonhos noturnos e nas visões do dia, que queima e derruba com pesadelo, ataca e mata crianças, meninos e meninas. Ela está dominada e selada fora da casa e moradia de Bahram-Gushnasp filho de Ishtar-Nahid pelo talismã de Metatron, o grande príncipe, que é chamado O Grande Curandeiro da Misericórdia… que vence demônios e diabos, artes negras e poderes da bruxaria. Afasta-os da casa e moradia de Bahram-Gushnasp, filho de Ishtar-Nahid. Amém, Amém, Selah.


Vencidas estão as artes negras e os poderes da bruxaria. Vencida a mulher feiticeira, ela, suas bruxarias e seus ataques, suas maldições e suas invocações, e afastadas das quatro paredes da casa de Bahram-Gushnasp, o filho de Ishtar-Nahid. Vencida e jogada abaixo está a mulher feiticeira – vencida na Terra e vencida no céu. Vencidas estão suas constelações e estrelas. Atados estão os trabalhos de suas mãos. Amém, Amém, Selah.”


Aqui vemos a associação de Lilith com outros seres demoníacos, menção contra a pratica da astrologia “Vencidas estão suas constelações e estrelas”, bruxaria e encantamentos – o que envolvia não só bruxedos em geral mas também a pratica da sedução, fascinação e até mesmo a prostituição.


O “exorcismo” de Lilith e de quaisquer espíritos que a acompanhavam muitas vezes tomava a forma de um mandado de divórcio, expulsando-os nus noite adentro. É disto que trata os outros 2 exemplos seguintes (Lilith recebe Divórcio):


Este é o guet para demônios e espíritos e Satã 

… e Lilith em ordem de bani-los de … toda a casa.

Yah …interrompa o Rei dos demônios 

… a grande governante das liliths.

Eu adjuro você … seja você macho ou fêmea, 

Eu adjuro você….

Assim como os demônios escrevem cartas de divórcio 

E dão-nas para suas esposas e não retornam para elas,

Então pegue sua carta de divórcio, 

Aceite sua quantia de sustento [ketubá],

E vá e deixe e parta da casa…. 

Amém, Amém, Amém, Selah.


O hebraísmo, em certos casos, admite o divórcio (em hebraico “guerushin”) [3]. A iniciativa é tomada pelo marido, que da a sua mulher um documento de divórcio chamado guet. Esse documento pode ser dado mesmo se a mulher discordar. Após o divórcio, a quantia de sustento estipulada no contrato de casamento (ketubá) é paga pelo marido. Vejamos agora um outro guet em forma de amuleto contra Lilith (University Museum, University of Pennsylvania):


“Este amuleto está designado em nome do Senhor das salvações, pelo selamento da casa deste Geyonai bar Mamai, que aqui escapa da maligna Lilith. Em nome de “YHWH-El foi dispersado”; a Lilith, o macho lilin, as fêmeas liliths, a Bruxa, e o Ladrão; os três de vocês, os quatro de vocês e os cinco de vocês.


Despidos estão vocês, enviados para longe. Nem você está vestida, com seus cabelos desalinhados que deixa voar atrás de suas costas.

Isto é feito conhecido para você, cujo pai é chamado Palhas e cuja mãe é Pelahdad:


Escuta, obedece e saia da casa e moradia deste Geyonai bar Mamai e de Rashnoi sua esposa, filha de Marath…. Estejam informados com isto que Rabbi Joshua bar Perahia enviou o banimento conta vocês…. Uma carta de divórcio [guet] desceu para nós do paraíso, e nesta é encontrado escrito seu aviso e sua intimação, em nome do Palsa-Pelisa [“Divorciador-Divorciado”], que rende a vós teus divórcios e tuas separações. Então, Lilith, macho lili e fêmea lilith, Bruxa e Ladrão, estejam incluídos no banimento… de Joshua bar Perahia, que tem assim falado: Uma carta de divórcio que cruzou o mar veio para vocês… Saibam disto e deixem a casa e moradia deste Geyonai bar Mamai, e de Rashnoi sua esposa, a filha de Marath.


Vocês não podem aparecer para eles novamente, tanto nos sonhos à noite quanto no repouso de dia, porque vocês estão selados com o signo de El-Shaddai, e com o signo da casa de Joshua bar Perahia e pelos Sete que estão depois dele.


Então, Lilith, macho lili e fêmea lilith, Bruxa e Ladrão, Eu adjuro vocês pelo forte [Deus] de Abbraham, pela rocha de Isaac, pelo Shaddai de Jacob, Por Yah [que é] seu nome…, Por Yah sua memória… Eu adjuro vocês à despedirem-se deste Geyonai bar Mamai, e de Rashnoi sua esposa, a filha de Marath. O divórcio, escrita e carta de separação de vocês (foi)… Enviado através de santos anjos… Os Exércitos de fogo nos astros, a Carruagem de El-Panim depois de sua duração, as bestas adorando no fogo de seu trono e na água… Amém, Amém, Selah, Aleluia!”


Os dois amuletos apresentados anteriormente contém um desenho tosco no centro, representando Lilith. Em ambos ela apresenta, longos cabelos, cintura fina, ancas largas e está com os braços cruzados sobre o corpo. No primeiro ela está de saia xadrez, com o busto exposto. O rosto de ambas dão a vaga impressão de faces de corujas. A segunda figura usa um incrementado vestido e ornamentos. No geral apresenta um óbvio propósito de sedução (apesar das figuras serem excessivamente mal feitas, aparentando-se aos rabiscos de uma criança no papel).

Lilith no Alfabeto de Bem Sira (sua origem e amuletos de proteção):


Uma outra fonte importante da tradição judaica sobre Lilith e os Lillim é o Alfabeto de Ben Sira, onde encontramos a mais conhecida história da origem de Lilith – como “a primeira esposa de Adão”. [É interessante notar que no Alfabeto de Ben Sira Lilith reivindica igualdade alegando que, assim como Adão, ela foi feita da terra; ou seja, não saiu da costela de Adão como Eva, portanto não era uma parte dele. Talvez a mulher por cima revelasse uma superioridade hierárquica ou ainda, Lilith por cima de Adão sugerisse o sexo por prazer, sem procriação (pois na antigüidade acreditava-se que era mais difícil para a mulher engravidar se copulasse por cima). O que Adão exigia era sexo apenas com a finalidade de procriação]. Estudiosos tendem a datar o Alfabeto entre os séculos 8 e 10, CE [4].. Entretanto, alguns pesquisadores sustentam que a história em si possa ser mais antiga:


Logo após o jovem filho do rei ficar doente, falou Nabucodonozor, “Cure meu filho. Se você não fizer, eu o matarei.” Ben Sira imediatamente sentou-se escreveu um amuleto com o Nome Sagrado, e nele inscreveu os anjos encarregados da medicina por seus nomes, formas e imagens, e por seus flancos, mãos, e pés. Nabucodonozor olhou para o amuleto (e perguntou) “O que é isto?”


(Ben Sira respondeu:) “Os anjos que são encarregados da medicina: Snvi, Snsvi, e Smnglof [Pronuncia-se Sanvi, Sansavi e Semengalef ]. Depois que Deus criou Adão, que estava só, Ele disse, ‘não é bom para o homem estar só’ (Gen. 2:18). Então Ele criou a mulher para Adão, da terra, assim como Ele havia criado o próprio Adão, e chamou-a Lilith. Adão e Lilith começaram a brigar. Ela disse, ‘Eu não vou deitar por baixo,’ e ele disse, ‘Eu não vou deitar por baixo de você, mas apenas acima. Para você é adequado apenas estar na posição inferior, portanto apenas eu estarei na superior.’ Lilith respondeu, ‘Nós somos reciprocamente iguais tanto que ambos fomos criados da terra.’ Mas eles não ouviam um ao outro. Quando Lilith disse isso, pronunciou o Nome Inefável e voou para longe no ar. Adão ficou em prantos depois (falou a) seu Criador: ‘Soberano do universo!’ disse ele, ‘a mulher que você deu-me foi embora.’ De uma vez, o Santo Senhor, bendito seja Ele, enviou estes três anjos para traze-la de volta.


“Disse o Santo Senhor para Adão, ‘Se ela concordar voltar, (está tudo) bem. Se não ela deve permitir que uma centena de suas crianças morram todos os dias.’ Os anjos deixam Deus e seguiram Lilith, a quem eles pegaram no meio do mar, nas poderosas águas nas quais os Egípcios estavam destinados a afogarem-se. Eles falaram-na as palavras de Deus, mas ela não queria retornar. Os anjos disseram, ‘Nós iremos afogar você no mar.’


“Deixem-me!!’ ela disse. ‘Eu fui criada apenas para causar doenças às crianças. Se a criança é macho, eu tenho domínio sobre ele por oito dias depois de seu nascimento, e se fêmea, por vinte dias.’


“Quando os anjos ouviram as palavras de Lilith eles insistiram que ela voltasse. Mas ela jurou à eles pelo nome do Deus vivo e eterno:


‘Sempre que eu ver vocês ou seus nomes ou suas formas em um amuleto, eu não terei poder sobre esta criança.’ Ela também concordou ter uma centena de suas crianças mortas todo dia. De acordo (com isto), todo dia uma centena de demônios pereciam, e pela mesma razão, nós escrevemos os nomes dos anjos nos amuletos de jovens crianças. Quando Lilith vê seus nomes, ela lembra-se de seu juramento, e a criança restabelece-se.” [Alfabeto de Ben Sira Questão #5 (23a-b)]


Esta versão da origem de Lilith ficou amplamente conhecida de forma que até hoje existe o costume, entre algumas pessoas, de utilizar um amuleto [5] com o nome dos três anjos para proteger crianças.


Alan Unterman diz em seu “Dicionário Judaico de Lendas e Tradições” que “Lilith é uma figura sedutora com longos cabelos, que voa como uma coruja noturna para atacar aqueles que dormem sozinhos, para ter filhos demônios dos homens por meio de suas poluções noturnas, para roubar crianças e para fazer mal a bebês recém-nascidos. Se não consegue consumir crianças humanas ela come até mesmo sua própria prole demoníaca. Como proteção contra ela costumava-se pendurar amuletos e talismãs na parede e sobre a cama para mantê-la afastada ou pregar amuletos com as palavras “Adão e Eva excluindo Lilith” nas paredes da casa em que uma mulher se preparava para o nascimento do filho. A porta do quarto das crianças tinha os nomes dos três anjos escritos sobre ela, e, às vezes, cercava-se o quarto com um círculo de carvões ardentes. Nas vésperas de Shabat e da lua nova, quando uma criança sorri é porque Lilith está brincando com ela. Para livrá-la de qualquer mal, deve-se bater de leve três vezes em seu nariz pronunciando-se uma fórmula de proteção contra Lilith. Na Idade Média era considerado perigoso beber água nos solstícios e equinócios, porque nessa época o sangue menstrual de Lilith pingava, poluindo líquidos expostos.”


Como foi visto, segundo a tradição, Lilith ataca as mulheres no parto e causa a morte dos infantes, pois tem inveja da alegria da maternidade. Ela constitui assim uma ameaça ao embrião. Por isso, no passado, o processo de nascimento era cercado de práticas mágicas com a intenção de proteger a mãe e o filho das forças demoníacas. (Também se sussurravam sortilégios no ouvido das mulheres para facilitar o trabalho de parto).

Amuletos contra Lilith costumam trazer nomes de anjos encarregados da medicina, como Sanvi, Sansavi e Samangelaf, Gabriel ou mais raramente Metraton mas também outros tipos podem aparecer:


“Os judeus baniram essa primeira esposa de Adão, escrevendo nas paredes ‘Adam chava chuz Lilith’ [‘Afaste-se daqui, Lilith!] (John Praetorius. Anthropodemus Plutonicus. 1666).


Um talismã típico é um círculo mágico no qual as palavra “Eva e Adão” barram a entrada de Lilith, habitualmente escritas com carvão na parede do aposento onde a criança está e em cuja porta estão escritos os nomes dos três anjos. A alternativa: “Não deixem Lilith entrar aqui” costuma ser escrita na cabeceira da cama da mulher que espera um filho, usando-se tinta vermelha. Em muitas partes do mundo atual há pessoas que ainda usam amuletos como estes.


Teria Lilith uma origem não Judaica?


Alguns estudiosos sustentam que Lilith já existia na forma de um demônio (Lilil ou Lilitu) na mitologia suméria e mesopotâmica, o que tem causado muita polêmica.


As duas representações mais importantes, que estão no centro da discussão, são um trecho do “Prologo de Gilgamesh” (que faz parte do épico babilônico “Gilgamesh” – aproximadamente 2000 A.C.) e um baixo relevo representando uma mulher com asas e patas de coruja, etc. Para melhor compreensão do tema exposto, apresento a seguir as duas fontes acrescidas de comentários.


A seguinte passagem do Prólogo de Gilgamesh foi entendia e traduzida por Samuel Kramer, que – segundo ele – inclui a mais antiga referência conhecida de Lilith na escrita. (A tradução para português foi feita a partir da em língua inglesa de Kramer38:1f)


Depois do céu e da terra terem sido separados

e feitos terem sido criados,

depois de Anûum, Enlil e Ereskigal terem tomado posse

do céu, terra e do submundo;

depois que Enki havia deslizado para o submundo

e o mar baixar e afluir em honra de seu senhor;

neste dia, uma árvore huluppu

que havia sido plantada sobre as margens do Eufrates

e nutrida por suas águas

foi arrancada pelo vento do sul

e levada para longe do Eufrates.

Uma deusa que estava andando entre às margens

siezed a árvore oscilada

E – sob o comando de Anu e Enlil –

Levou-a para o jardim de Inanna em Uruk.

Inanna cuidou da árvore atentamente e amavelmente

ela esperava Ter um trono e uma cama

feito para ela de sua madeira.

Depois de dez anos, a árvore havia crescido.

Mas neste meio tempo, ela descobriu para seu desânimo/assombro

que suas esperanças não poderiam ser realizadas.

Porque durante aquele tempo

um dragão havia construído seu abrigo nos pés da árvore

o pássaro Zu havia posto sua cria no cume,

e uma demônia Lilith havia construído sua casa no centro .

Mas Gilgamesh, que havia ouvido a dificuldade de Inanna,

veio em seu socorro.

Ele pegou seu pesado escudo

matou o dragão com seu machado de bronze maciço,

que mede sete talentos e sete minas.

Então o pássaro Zu voou para as montanhas

Com seus filhotes,

enquanto Lilith, petrificada de medo,

fugiu de sua cada e voou para o deserto


Este texto foi a base para a identificação de um baixo relevo (ver foto), as vezes especulada como sendo Lilith. Entretanto, a conecção entre Lilith e este relevo é correntemente considerada por alguns scholars como duvidosa e tem sido seriamente questionada por alguns eruditos. O seguinte trecho vem do verbete Lilith no Anchor Bible Dictionary (Lowell K. Handy):


Duas fontes de informações previamente usada para definir Lilith são ambas suspeitos. Kramer traduziu ki-sikil-lil-la-ke como “Lilith” em um fragmento Sumérico de Gilgamesh. O texto relata um incidente que esta fêmea fixou residência em um tronco de árvore na qual havia um pássaro Zu empoleirado nas ramagens e uma cobra vivendo nas raízes. Este texto foi usado para interpretar uma escultura de uma mulher com garras do pé de ave como fazendo uma descrição de Lilith. Desde o começo esta interpretação foi questionada só que depois some debate nem a fêmea na história, nem a figura foi assumida como sendo Lilith. (Vol. 4, p. 324)


O baixo-relevo em questão é uma terracota Suméria ou Assíria que mostra uma figura feminina híbrida disposta de pé, frontalmente, acompanhada por vários animais do deserto. A face apresenta um formato redondo com bochechas proeminentes, sobrancelhas unidas, lábios carnudos, olhos grandes bem delineados e nariz regular. O vulto tem uma evidente conformação rotunda, com expressão severa, potente e inefável. O corpo é robusto, com formas femininas bastante acentuadas, coxas grossas e uma ampla bacia. A energia humana parece concentrada nas costas e peito, com seios firmes e bem redondos. A figura feminina apresenta-se nua e ornada com diversas jóias, como pulseiras, colares, etc. A mitra é impressionante, segundo o esquema mesopotâmico ou proto-assírio.


Ela mantém os braços abertos, os cotovelos dobrados em direção aos flancos, com as mãos abertas e dedos unidos. Creio que esta disposição de mãos tenha um significado especial, provavelmente representa um ato de oração ou demonstra um êxtase de superioridade sobre as feras.


Os objetos que ela tem nas mãos não é nem um pouco desconhecido, como alguns autores interessados em Lilith tem proposto. Trata-se de um símbolo da justiça do deus-sol babilônico. Esse mesmo símbolo se encontra facilmente em muitos outros tabletes de argila, inclusive na parte superior de estela onde foi escrito o famoso Código de Hamurabi há uma figura do rei recebendo esse símbolo da justiça e usando uma mitra idêntica a desta mulher. (veja as figuras).


O objeto em sua mão direita está desgastado ou quebrado, mas, da para distinguir claramente que ela possuía símbolos similares nas duas mãos. Entretanto, pode haver uma explicação, mas para mim o porque de um símbolo do deus Sol ter sido posto em ambas as mãos de uma mulher com asas e pés de coruja (indicativos de vida noctívaga) permanece um mistério.


Das costas da mulher descem duas asas esculpidas com exatidão e no final das pernas vê-se pés de coruja com garras afiadas. A disposição das garras é simétrica, vertente, com um acento de domínio. Esta mulher-pássaro está em pé sobre duas leoas agachadas. Nos lados, estão dispostas duas corujas em posição frontal, com as patas unidas em tudo semelhantes àquelas da mulher. São animais vigilantes que rematam a representação.


As corujas, as leoas e a mulher sobre as leoas encontram-se ainda sobre uma enorme cobra, que ou envolve todos terminando por morder a própria cauda, como um ouroboros, ou morde a cauda (ou a cabeça) de outra cobra igualmente grande.


Tanto as asas quanto a mitra ostentosamente ornada que a mulher está usando são características de representações de antigas divindades. O único motivo pelo qual esta imagem distingue-se da maioria das imagens de deusas no mundo antigo são os pés de pássaro e o acompanhamento de animais. A presença de animais não é de todo inusual. De fato, as leoas sobre as quais ela estende-se cria algum problema para os que pretendem considera-la como sendo Lilith, pois eles são geralmente associados com Inanna. Para identificação com Lilith, a chave está na coruja e nos pés de pássaro. Lilith é identificada com a coruja em Isaías 34. Também o prólogo de Gilgamesh associa a moradora da árvore hulupu com a coruja, mas se a moradora da árvore é Lilith, isto reforçaria o argumento. Minha interpretação corrente é que os pé de coruja indica-nos que aquela não é Inanna, mas se esta é Lilith é ainda um assunto aberto à especulação.


LEIS GRAVADAS EM PEDRA: O Código de Hamurabi foi inscrito em 3.600 linhas de escrita cuneiforme numa estela de 2,5 m de altura, no alto da qual o rei recebe os símbolos da justiça do deus-sol babilônico.



Tablete representando a reedificação de um templo solar (Sippar, Babilônia, século IX A.C. British Museum).


Além deste baixo relevo citado anteriormente, também foi encontrado uma imagem muito similar (ver foto abaixo) – Esta é uma placa de barro/argila cozido do Antigo período Babilônico (2000-16000 AC). (Paris, Louvre [AO 6501]).


Parece seguro assumir, que esta representa a mesma figura híbrida apresentada na precedente, apesar da mudança no “cenário”. Ela agora estende-se sobre dois animais. Creio que sejam dois cabritos montês machos, pois possuem chifres. Abaixo uma formação cilíndrica mal esculpida e quebrada, que poderia muito bem constituir o corpo de uma serpente lisa, sobre a qual estão os cabritos, da mesma forma que no outro estavam, as leoas. Entretanto a serpente do primeiro relevo tinha escamas. Todas as bordas deste estão quebradas e gastas, portanto não tem como saber se originalmente haviam mais animais ao redor.


A mitra, pés e asas são certamente idênticos. As mãos também estão completamente desgastadas, portanto não se pode averiguar se neste relevo ela segurava ou não o símbolo do deus-sol.


O fato de ter mudado de animal é significativo, ou seja indica que ela não tem uma relação especial somente com um tipo, como as leõas, que poderiam ser um emblema ou algo assim. Temos aqui os exemplos de corujas, leoas, cabritos e serpentes, entretanto ela provavelmente domina sobre todos os animais, tanto mamíferos, quanto ovíparos, tanto de grande porte quanto de pequeno, tanto carnívoros quanto herbívoros, tanto macho quanto fêmea, etc. Entretanto o principal é, tanto diurnos quanto noturnos… Temos entre os animais esculpidos representantes de cada uma dessas classes.


Como já visto antes, a mitra e as asas são motivos comuns, mas, como notado acima, os pés de pássaro são um importante símbolo de identificação, mesmo sem as corujas. É claro que o mesmo problema aplicado em uma é na outra. Se aquele não for Lilith, este provavelmente também não é.


Agora, para finalizar essa discussão sobre uma possível origem ou inspiração não judaica de Lilith, existe uma teoria – que é tanto defendida por diversos estudiosos quanto contestada por outros – que pretende que o Hebraico tenha sofrido influências do sânscrito; ou ainda que ambas as línguas tenham sido derivadas de um outro idioma, ainda desconhecido . Supondo que “Lilith” fosse originalmente uma palavra sânscrita, ela teria como raiz “Li”, que significa dissolução, destruição; igualdade, identidade. E isso com certeza é a essência de Lilith na mitologia hebraica! Uma palavra realmente derivada de “Li” é “Lîlâ”, literalmente diversão, jogo, passatempo. Nas escrituras ortodoxas hindus explica-se que “os atos da divindade são lîlâ ou uma diversão”.


Um som semelhante a Lîlâ aparece na epopéia de Gilgamesh, na frase que Kramer traduziu como contendo “Lilith”: ki-sikil-lil-la-ke. De qualquer forma se o sânscrito não fosse conhecido dos mesopotâmicos, etc, ainda há uma probabilidade menos remota de ter influenciado judeus do período helenístico (a tempo de entrar no texto massorético das escrituras e no Alfabeto de Bem Sira), ou mesmo, mais dificilmente, durante o “cativeiro na Babilônia”.


Notas:


Targum (aramaico, significa “tradução”) são traduções comentadas da Bíblia em aramaico. Um targum pode ser bem literal ou constituir quantidade considerável de midrash. As traduções da Torá eram feitas originalmente linha a linha, por tradutores profissionais, à medida que se lia o Pentateuco na sinagoga. Fazia-se assim para permitir que os judeus falantes do aramaico, que não entendiam hebraico, compreendessem o texto.


As citações do Talmud foram retiradas das traduções de I. Epstein. (The Babylonian Talmud. London: Socino Press, 1978) e Raphael Patai, Patai81, pp. 184f. O Talmud (hebraico, significa “estudo”) constitúi a obra mais importante da Torá oral, editada sob a forma de um longo comentário em aramaico sobre sessões da mishná. O Talmud também é conhecido por seu nome aramaico, Guemará, que veio a ser amplamente usado para evitar a crítica dos censores cristãos do Talmud. O Talmud foi redigido numa versão palestina (Ierushalmi, literalmente “de Jerusalém”) em c. 400 d.C., e numa versão babilônia mais autorizada (Bavli), cerca de 100 anos depois. As duas recensões do Talmud refletem diferenças entre as condições sociais e pontos de vista das comunidades da Terra Santa e da Babilônia. As leis agrícolas, relevantes para os agricultores judeus da Palestina, ocupam lugar proeminente no Talmud da Palestina, mas não no babilônio. Este último tinha uma tradição de demonologia muito mais desenvolvida que a do primeiro, refletindo a cultura babilônica. Ambos os Talmuds tratam principalmente da halachá, mas cerca de um terço do Bavli e um terço do Ierushalmi focalizam a agadá, o que envolve não só teologia mas também midrash, folchore, medicina, astrologia, magia, provérbios e histórias sobre rabinos talmúdicos. O estudo da Torá deve ser feito num enfoque mental de seriedade, mas o Talmud deve ser abordado com mais brilho e vivacidade, e seu texto estudado de forma melopéica, usando-se melodias tradicionais. O Talmud babilônio é a principal matéria de estudo nas academias de ieshivá, onde os professores geralmente usam um método dialético de exegese em suas incursões aventurosas no que é chamado de “o Mar do Talmud”.


Houve divergências no início do período rabínico quanto às circunstâncias exatas em que a Torá permite o divórcio (Deut.24). A escola conservadora de Shamai o proibia, exceto em casos de má conduta sexual da mulher (adultério), quando o marido é obrigado a se divorciar dela. A escola de Hilel o permitia se a mulher se comportasse de maneira imprópria, por exemplo, estragando a comida do marido, e a ulterior halachá seguiu a opinião de Akiva de que um homem pode divorciar-se de sua mulher até por ter encontrado outra que ele prefira àquela. A falta de filhos também é motivo de divórcio.


Ben Sira: Texto grego dos apócrifos baseado num original hebraico, considerado parte do cânon das escrituras por algumas denominações cristãs. Ben Sira é uma coleção de provérbios e máximas, como os da bíblica Literatura de Sabedoria. O autor Simão (ou Josué/Jesus) Ben Sira, revela uma tendência marcante para as idéias religiosas dos fariseus, enfatizando a grandeza de Israel e a fruição dos prazeres deste mundo dentro dos limites proscritos. A obra é altamente considerada na literatura rabínica e houve, até, uma tentativa infrutífera de incluí-la no cânon hebraico. Sua leitura em público, no entanto, foi posteriormente proibida, para evitar que fosse confundida com a Escritura. Um tesouro em manuscritos foi descoberto numa guenizá do Cairo, depois que um erudito inglês, Solomon Shechter, teve acesso a uma página de um original hebraico de Ben Sira proveniente de lá. Entre os manuscritos que ele recuperou estava uma grande parte do original de Ben Sira.


Haviam amuletos (em hebraico “kemea”) utilizados como proteção contra demônios, mau olhado, doença, combater hemorragia nasal, incêndios, assaltantes, inimigos, para fazer uma mulher estéril conceber, tornar fácil o parto, garantir a felicidade de um recém nascido, obter sabedoria e diversos outros fins. Esses amuletos são textos e desenhos geralmente escritos em pequenos pedaços de pergaminho e incluem sinais mágicos, permutações de letras e os nomes de Deus (Agla, Tetragramaton, etc.) ou de anjos como o de Rafael, Mikael, etc. O amuleto é usado em volta do pescoço ou às vezes pendurado numa parede de casa. Para que um amuleto seja considerado eficaz, tem que ser escrito por uma pessoa santa (segundo a tradição judaica), exímia na prática da Cabala. Se ele se mostrar eficaz na cura de alguém em três ocasiões diferentes, será então, comprovadamente, considerado um amuleto. Embora, aparentemente, amuletos tenham sido amplamente usados no período talmúdico, Maimônides e outros rabinos de mente mais voltada para a filosofia, como Ezequiel Landau, opunham-se a eles, considerando-os superstições vazias. Seu uso, no entanto, foi apoiado pelos místicos e pela crença popular. Até mesmo os cristãos buscavam amuletos com os judeus na Idade Média.

Gênese Vampírica e o Mito de Caim e Abel

 


Uma questão que sempre levantou acirrados debates nos círculos estudiosos é a de como a gênese vampírica se vincula ao mito de Caim e Abel. São vários os relatos míticos que tencionam descrever a autêntica origem da linhagem vampírica. Entre muitas culturas, a judaico-cristã também possui algumas versões, mas nenhuma delas está disponível nos textos canônicos. O mesmo processo que filtrou, eliminou e adulterou os documentos produzidos nos meios pré-cristão e cristão primitivo, de tal modo a autorizar os dogmas e doutrinas da ortodoxia católica, também purgou qualquer menção explícita aos vampiros nas narrativas bíblicas. Muito embora a intenção e o empenho da igreja católica fosse o de destruir todos os livros que, de alguma forma, contradissessem a sua compilação diretamente “inspirada” pelo espírito santo, alguns lograram sobreviver e hoje são conhecidos como apócrifos ou escritos proibidos. É num raro e reduzido grupo destes que encontramos os únicos relatos remanescentes sobre vampiros dentro da cultura bíblica. Recentemente a pretensa antiguidade de um livro deste grupo foi negada; estudos históricos e análise de estilo dataram o surgimento do original por volta do século XI. Neste manuscrito, Caim é posto propositalmente como o antepassado mais remoto da linhagem. O intuito disfarçado na elaboração deste livro é compor mais um elemento para a cortina de fumaça que encobre as intenções filosóficas originais das passagens bíblicas. Sendo assim, não merece uma consideração maior.


Meu interesse se volta mais para uma certa versão gnóstica do Livro do Gênese. Esse texto, em sua transcrição copta, foi preservado por uma seita gnóstica cristã minoritária chamada “astanfitas”, pertencente ao mesmo braço herético responsável pelos “ofitas” e “caimitas”. Devido ao número extremamente reduzido de seguidores, esta seita pôde passar incógnita até proximamente o século IX, quanto foi cruel e sigilosamente exterminada nos alvores da inquisição. Antes de assumir suas feições gnósticas, ela fazia parte das dissidências judaicas do período pré-cristão. Surgiu como uma resposta heterodoxa à outra seita cismática que marcou essa época com seu fundamentalismo austero: os essênios. Estes se referiam aos astanfitas como os inimigos da verdade, um título que eles não rejeitavam de todo; já que, revelando notável concordância com os filósofos céticos, pregavam que a certeza é um engano, a dúvida é fundamental; a mente sem ilusão não tem certeza, a inteligência honesta duvida. Mais tarde, resumiriam: “Toda gnose possível é dúvida rigorosa”. A princípio parece um total niilismo e um profundo pessimismo; mas; para eles; uma conduta moral somente poderia ser construída sobre a dúvida alcançada a duras penas. O homem moralmente apto é aquele que pode se responsabilizar por seus atos e um ato é responsável desde que tenha sido executado por livre opção. Contudo, não há o que decidir se a certeza já nos é dada pela verdade. E optar pelo errado não é uma atitude livre, é apenas uma louca inconseqüência. Logo, é legítima somente a decisão que for pautada numa dúvida muito bem estabelecida, pois apenas ela nos provê de opções, a verdade elimina todas. Assim, chegam a um certo humanismo moral, onde desprezam a verdade revelada que tira do homem a responsabilidade por seus atos. A verdade, diziam os astanfitas, produz apenas dois tipos de homens; os imbecis irresponsáveis e os loucos inconseqüentes.


Depois do desaparecimento dos astanfitas, demorou quatro séculos para que surgisse indícios da sobrevivência de algo dos seus manuscritos. Então, na península ibérica, começou a circular, entre os cabalistas, exemplares de textos nitidamente astanfitas vertidos para o árabe. Inafortunamente, nenhuma dessas obras escapou completa do fogo da inquisição, tudo o que nos restou foram poucos fragmentos dispersos, insuficientes para dar idéia geral sobre o que tratava o texto integral do qual provinham. Comentários, inserções e indicações nos tratados de alquimia e cabala do período, quando não são sucintos em demasia, são herméticos em excesso ou propositalmente evasivos.


Após esse breve aparecimento, só no século XX o interesse na gnose astanfita veio a se reacender através de novos e sensacionais achados. Sintomaticamente, duas das mais importantes coletâneas de textos gnósticos vieram à luz em datas quase concomitantes na década de quarenta. Em dezembro de 1945, foram encontrados, num complexo de cavernas no alto Egito, os famosos “manuscritos de Nag Hammadi” que, após superarem mais de trinta anos entraves de todo tipo, puderam contar uma estória diferente do início do cristianismo.


Em março de 1946, foi a vez dos menos conhecidos “manuscritos astanfitas de Hagia Sophia”. Tendo um percurso tão mirabolante e mais antigo que o da primeira descoberta, sua estória começa quando um colecionador, em 1935, doou à igreja de Hagia Sophia, recém transformada em museu, um maço de pergaminhos aos quais não se deu muita importância, pois se tratava na maior parte de homilias e sermões de padres ortodoxos que oficiavam na basílica entre os séculos XIII e XV. Durante mais de dez anos ficaram preteridos no depósito, quando finalmente foi feito um exaustivo trabalho de recuperação, em que as folhas grudadas pelo mofo e umidade foram separadas cuidadosamente uma a uma. Entremeado aos textos eclesiais, encontrou-se um códice em copta com datação mais remota que o restante do material. Era uma legítima compilação astanfita feita provavelmente no quinto ou sexto século.


Quando soube do achado, o colecionador confessou ter adquirido o maço, junto com diversos outros artefatos egípcios, de um ladrão de túmulos no Cairo, pouco antes da primeira guerra. Este lhe contou que os papéis lhe foram passado numa transação arriscada feita com um receptador de Istambul, mas que, antes dele, estiveram em posse de um padre da igreja ortodoxa que, por sua vez, os haviam recebido em confiança de um operário que trabalhou na recuperação de Hagia Sophia após o terremoto de 1894. O vício em ópio, além de outros prazeres mais caros, levou o sacerdote a negociar os documentos com o comerciante desonesto em troca de algum dinheiro que lhe suprisse, pelo menos por uns dias, suas necessidades mais prementes.


Ao que parece, vários dos manuscritos ficaram por muito tempo resguardados da sanha dos inquisidores em recônditos obscuros dentro da sólida construção de Hagia Sophia, sob a custódia de alguns padres simpatizantes ou simplesmente tolerantes da heresia astanfita. Também há rumores de que o faziam em respeito aos projetistas do edifício: o matemático Anthemius de Tralles e o arquiteto Isidorus de Miletus; estes sim – sustentam certas fontes – eram astanfitas praticantes, fato que mantiveram em segredo durante toda vida por razões óbvias. Sobre isso nada podemos afirmar. Seja como for, o encargo foi passado dentro de um círculo restrito de padres, geração a geração. Até que a tomada de Constantinopla pelos turcos no século XV obrigou os padres a esconder, apressadamente, seus livros e documentos em recintos selados, para que não ficassem ao alcance dos pagãos e fossem destruídos. No meio dessas pilhas de papéis ordinários, os manuscritos astanfitas foram inseridos sorrateiramente sem que os outros padres incumbidos da tarefa suspeitassem. A esperança era que logo os invasores seriam expulsos e os documentos novamente recuperados. Tais expectativas não se cumpriram e a basílica não só permaneceu em domínio turco como foi feita mesquita imperial pelo conquistador, o Sultão Mehmet. E assim foram esquecidos por mais de cinco séculos; quando, então, um terremoto abriu uma das câmaras secretas expondo seu conteúdo. A abertura foi descoberta primeiramente por um dos operários que vieram trabalhar na restauração da igreja. Visando obter algum lucro no comércio ilegal de antiguidades, ele extraviou uns poucos pacotes de escritos, enquanto pode manter oculta a passagem para a cela. Quando, no canteiro de obra, começaram a desconfiar de seus estranhos pacotes, supondo que logo seria despedido, lacrou de vez a passagem, pensando poder voltar assim que a situação fosse esquecida. Nesse meio tempo, deixou seu espólio sob guarda de um padre que era seu conhecido para não levantar suspeitas. Seu azar foi que o tal padre não tinha uma vida tão devota e estava sempre desesperado em busca de dinheiro para sustentá-la. Logo, não demorou muito para cair na tentação e vender todos os pacotes no mercado negro de itens antigos. Ele não poderia imaginar o quanto antigos eram os documentos e que valiam bem mais que as garrafas de absinto e a noite de satisfação carnal. Contudo, não tardou para que todos os seus problemas fossem definitivamente resolvidos; o operário, ao saber que mais nada restava, apunhalou o padre e fugiu. A sorte do fugitivo não melhorou, o padre tinha irmãos menos tementes a deus, que o emboscaram e mataram alguns dias depois.


Depois do relato feito pelo colecionador, começou-se as buscas pela cela secreta e ela foi encontrada. Passou-se, então, ao tedioso trabalho de recuperação e, no seu decorrer, outros textos astanfitas foram surgindo paulatinamente. Entre eles, algumas preciosidades como um evangelho desconhecido e que nem mesmo estava presente na biblioteca de Nag Hammadi. Enigmaticamente, em sua primeira linha lê-se: “Estes são os relatos feitos por Lásarus, o primeiro vivo, sobre Jesus, o segundo vivo”. Outros são conhecidos por Nag Hammadi ou outras fontes, mas designam autores diferentes. É o caso de certos livros, cuja autoria sempre foi dada a João, que aparecem atribuídos a Lásarus, o primeiro vivo. Esse Lásarus evangelista, discípulo e depois mestre de Jesus confunde os pesquisadores imensamente. Nos evangelhos canônicos, ele é apenas o rapaz ressuscitado, irmão de Marta e Maria. Talvez “primeiro vivo” derive do fato de ter precedido Jesus na ressurreição do corpo. O seu evangelho astanfita diz explicitamente isso, mas também revela que a ressurreição foi apenas aparente; já que, efetivamente, eles jamais chegaram a morrer. Nos seus termos:


“A ressurreição só é possível enquanto ainda não sobreveio a morte física. O fruto da arvore da vida é para ser comido pela carne e quem assim o saborear ressuscita e passa a ser um ‘vivo’ como Jesus e, antes dele, Lásarus”.


Tudo isso é muito interessante, todavia estamos nos desviando de nosso tema. Haverá outras ocasiões propícias para retomarmos a esse assunto instigante. No momento, devemos nos ater a uma obra magnífica e sem precedentes revelada entre os manuscritos de Hagia Sophia. Nunca houve qualquer citação sobre ela, tudo que lhe dissesse respeito foi sumariamente destruído. Parece que até mesmo os monges de Nag Hammadi a rejeitaram ou a desconheciam. Nem os detratores da heresia gnóstica que existiram dentro da patrística – normalmente os responsáveis por sobreviver alguma memória dos textos que atacavam e, por paradoxal que pareça, sem eles a existência de certas concepções não ortodoxas seriam completamente varridas da História – ousaram mencioná-la uma vez que fosse. Era como jamais tivesse sido escrita até as descobertas de Hagia Sophia. Talvez os padres da igreja tenham pensado que era mais sensato e prudente omitir comentários e não chamar atenção sobre ela, deixá-la obscura e restrita como estava, não deviam salientar qualquer aspecto de seu conteúdo, até tachá-la de apostasia imperdoável seria conceder-lhe uma importância perigosa. Neste caso, julgaram que o melhor era calar e proceder, sem aviso e demora, uma devassa permanente para busca e apreensão de todas as cópias que surgissem, as quais seriam lançadas ao fogo de imediato. Felizmente, os astanfitas eram poucos e astutos, não se revelavam com facilidade e suas condutas não os denunciavam. Além de tudo, eram muito estimados, pois se destacavam em diversas das artes e ciências da época, inclusive assumiam posto de responsabilidade dentro do império e, mais tarde, na própria igreja. Graças a essas providenciais peculiaridades, um pergaminho contendo uma inspirada versão alternativa do gênese bíblico chegou aos nossos tempos.


Os historiadores catalogaram esse códice com o título de “O Livro de Astanfeus”, já que Astanfeus, um dos sete anjos da criação, é o protagonista da trama narrada no manuscrito. A sua epopéia inicia-se precisamente no trecho bíblico encontrado em gênesis 3:22 nas bíblias atuais e relata sua contenda com Iaodabaoth, outro anjo da criação; metáfora para o conflito eterno entre liberdade e tirania. O sentimento filantrópico nutrido por Astanfeus o levará a defender o homem contra os desmandos megalômanos de Iaodabaoth. Sua interferência se faz, a princípio, através de Eva, pois só ela lhe podia ouvir, isto porque a sensibilidade de Adão foi totalmente embotada pelo domínio que Iaodabaoth exerce sobre a aparência. Astanfeus passa, então, a incentivá-la para que compartilhe com seu parceiro o fruto interdito do conhecimento do bem e do mal, assegurando-lhe que não iriam morrer como sentenciou o anjo que lhes dizia ser um deus único. E, além disso, seus olhos se abririam, o que os tornaria iguais aos anjos. Sua investida surtiu efeito e o fruto foi consumido, o que desagradou profundamente Iaodabaoth, fazendo-o exigir a expulsão do casal humano do éden, para evitar que também usufruíssem da árvore da vida. Todavia, sua moção não foi acatada pelos outros seis anjos da criação; os elohim, o próprio Astanfeus sendo um deles. Enfurecido, Iaodabaoth se volta contra os humanos, persuadindo-os de que nada havia mudado; continuavam a ser as mesmas criaturas indefesas de antes, só que agora estavam eternamente marcadas pelo pecado da desobediência e da soberba de desejarem ser deuses, tornando mister que sofressem uma severa punição: o exílio.


Prefigurando uma notável ingenuidade, eles aceitam as manobras ladinas do anjo contrariado em seu amor próprio. É voluntariamente que se submetem e se humilham a um poder que já não possuía controle sobre seus destinos. E por que fizeram isso? Qual a razão de tal disparate? O texto delata uma cumplicidade tácita entre os dois lados dessa relação de poder. Evidencia que os pais da humanidade não foram enganados, nem poderiam ser; o fruto do conhecimento havia lhes concedido clareza de espírito suficiente para flagrar qualquer tentativa de logro. O que choca é concluir com o autor que eles deliberadamente se deixaram enganar. E isso não é a mesma coisa, está muito longe de ser. Inadvertidamente, usa-se um conceito pelo outro sem considerar a inversão que ocorre entre agente e paciente do dolo. O logrado aqui, no fim das contas, é Iaodabaoth que tomou como sincera a crença depositada em suas palavras.


A que leva e qual a motivação desse estranho jogo de interesse? Depois que conheceram o bem e o mal, Adão e Eva se encontram numa situação semelhante a que passaram antes de comer o fruto. Na ocasião, nada havia que lhes desse certeza de qual dos dois anjos estava certo e, sendo honestos consigo mesmos, esse ponto ainda permanecia incerto; já que Iaodabaoth sentenciou que morreriam, mas não disse quando. Mesmo assim, tomaram uma decisão e declinaram em favor de Astanfeus. Comido o pomo da discórdia, descobriram que o esclarecimento não lhes trouxe a verdade, nem resolveu inteiramente o certo do errado; o que fez foi refinar, de modo extraordinário, a dúvida; paradoxalmente tornando-a algo líquido e certo. O bem e o mal se confundem, se mesclam, permutam incessantemente, variam de acordo com as circunstâncias, são recíprocos de uma mesma inteireza, um consubstancia o outro, entre eles há uma mútua afirmação e uma alternância cíclica de feições. Nessa dança interminável, as alternativas estarão sempre sendo geradas, as escolhas irão se sucedendo a cada passo. O primeiro casal humano percebeu, aturdido, que não lhe seria exigido apenas mais uma decisão; encadeadas a esta viriam várias, uma após outra até o fim da vida que pudessem ter. Vislumbraram uma existência repleta de livres opções e responsabilidade por cada ato. Se a primeira decisão não havia sido fácil, imagine enfrentar isso a todo momento e para sempre. Diante de Eva, Adão pondera:


– De que nos adiantou ter os olhos abertos, enxergamos em detalhes e minúcias o que antes era plano e compacto, abandonamos uma imagem simples e imediata de tudo que era exterior a nós por uma complexa compreensão que não delimita fronteira entre o dentro e o fora. Agora, podemos antecipar que nosso futuro não está previsto, são muitas as possibilidades e nenhuma garantia é possível; o dia seguinte se tornou uma bela esperança. Essa liberdade exasperante que devemos exercer cotidianamente nos será cobrada com mais e mais necessidades. Quanto mais se amplia a potência de nossos atos, mais aumenta nossa responsabilidade pelas conseqüências. A partir do fruto, se não assumirmos e suportarmos esse peso, não nos consideraremos dignos, nem razoáveis. Perdemos totalmente a capacidade de acreditar no quer que seja, sempre conseguiremos ver outras alternativas e, então, fazer mais uma escolha será inevitável, como a responsabilidade dela decorrente. Nunca escaparemos desse destino repleto de opções angustiantes, sempre seremos levados a tomar decisões cruciais e dolorosas. E tudo isso, toda essa demanda valerá a pena? Qual recompensa receberemos pelo extremo esforço? Também sobre isso nada é certo. Nosso discernimento recém adquirido não sustenta um só sentimento de segurança.


– Talvez, Eva, fosse melhor para nós devolver esse dom ingrato. Voltar a fechar os olhos como antes e esquecer tudo que vimos. Apaguemos de vez essa clareza de espírito. Se nos recusarmos a usá-la, ela deve desaparecer com o tempo. Com isso, a jogaremos no olvido junto com todo o resto. Façamos, Eva, com que nossa segunda decisão seja a última. Na primeira, eu te segui e demos ouvidos à serpente; eis que este é o momento de tu me seguires e ficarmos ao lado do Senhor Nosso Deus. A dádiva do fruto que nos trouxe infortúnio também nos mostra a alternativa para escaparmos dele. Argúcia e inteligência não nos convêm, nada mais que sofridos dilemas advirão deles. Como criaturas estúpidas, poderemos voltar a crer em Deus e ficaremos despreocupados em Seu regaço, livres de qualquer responsabilidade.


Eva se deixa convencer e capitula diante de Iaodabaoth para acompanhar Adão no desterro. Aceitam de bom grado o injustificado sentimento de culpa que o demiurgo lançou sobre eles. E obedecem cabisbaixos a ordem para que abandonem o éden e se confinem numa distante caverna nas terras ocidentais.


Nesta escura caverna, Eva gesta e dá luz a Caim (aquele que possui a si mesmo) e Luluva, as metades máscula e feminil do primeiro filho do homem, cuja fecundação se deu no meio do éden em pleno efeito do fruto do conhecimento. Já Abel (vaidade) e Aclia foram fecundados na clausura e no alheamento. Assim, no tempo das origens, o humano nascia, na aparência, com suas partes masculina e feminina separadas em irmãos gêmeos, destinados a se religarem no enlace sexual e recompor o hermafrodita primordial. Entretanto, isso jamais esteve nos planos de Iaodabaoth, pois a imagem humana dividida em dois sexos foi propositalmente concebida por ele, um premeditado arranjo para tornar o homem mais vulnerável ao seu aliciamento. Então, para impedir que a reunião se consumasse, convence Adão e Eva de que os casais deveriam ser prometidos trocados.


Caim e luluva crescem inconformados com a situação injusta a que seus pais estavam sujeitos. Chegaram cedo à convicção de que não precisavam, nem deveriam, adorar Iaodabaoth como deus único. Logo perceberam que era uma entidade insidiosa e com um hipertrofiado conceito de si mesmo, apenas preocupada em alimentar uma vaidade insana. Contrariando Adão e Eva, recusaram-se a louvá-lo, repudiaram seus caprichos, não aceitaram a condição de servos tementes, pois sabiam que ele dependia da anuência de suas vítimas para tocá-las. Mesmo com as imprecações ouvidas de seus genitores, viviam fora da caverna em peremptória e intencional ignorância às determinações do deus de seus pais. Mas não só deles, também seus irmãos Abel e Aclia se converteram em fiéis seguidores e condenavam o modo de vida que adotaram, que consistia em explorar as extensões dos campos ao redor, coletando vegetais e frutas, aprendendo os mecanismos da natureza. Despertaram suas mentes para o céu e o passar do tempo. Descobriram padrões e correlações, intuíram leis benéficas no crescimento dos vegetais, aprenderam técnicas de sobrevivência com os animais. E tudo isso os levou às artes e às ciências. Enquanto seus irmãos enveredaram por outros caminhos; confinaram os animais fora de seus habitats, cevando-os para abate, impondo-lhes ritmos de vida artificiais.


Os fragmentos em árabe deste texto que foram preservados apresentam pequenas discordâncias, em relação ao pergaminho astanfita, quanto à descrição de como foi efetuada a oferenda de Caim e Luluva. No códice, nem mesmo há oferenda, eles se recusam terminantemente em prestar qualquer homenagem àquele deus que tanto desprezavam. Nas versões em árabe até encetam a oblação, cedendo às suplicas dos pais, contudo o desfecho dado vai se modificando nitidamente em cada fragmento. Em exemplares mais tardios, a oferta é mínima, suficiente para não ofender um certo senso de desperdício que não conseguiram negligenciar; enquanto nos de datação mais remota, foram mais radicais e, desistindo na última hora, retiram tudo, ignorando peremptoriamente os apelos e admoestações dos pais e dos irmãos.


Não importa o quanto essa atitude foi minimizada nas versões árabes, a ira despertada em Iaodabaoth é irretocável. Não podendo atingi-los diretamente, nutre a vaidade de Abel e fomenta nele uma crescente desconfiança contra o irmão. E conduz a intriga num estilo que em muito antecipa o Iago no Othelo de Shakespeare:


– Abel, tu bem sabes que te amo tanto quanto a teus pais, que tuas oferendas me são agradáveis e as recebo com júbilo. Tu mereces toda minha deferência, mas teu irmão é o oposto de ti, rejeitou a verdade que te dei de bom grado e enfrenta a dúvida e a incerteza a cada dia. Ele não ouve as súplicas de teus pais e me odeia por puro orgulho, nada fiz contra ele para justificar essa má vontade e não retribuo o mesmo sentimento. Nunca neguei a ele o justo poder que permito a ti que exerças sobre a natureza, através dos animais que criei para te servir e aplacar tua fome. Mas não, por birra, ele prefere se sujeitar aos caprichos da natureza para se alimentar de vegetais ao invés de reinar sobre ela. Fiz-te forte e robusto por meio do que comes, enquanto ele ficou fraco e frágil devido ao seu alimento pobre; não é como um homem deveria ser; o vigor sanguíneo de teu rosto não se compara à tez pálida de teu irmão. A jovial beleza que possuis contrasta com a sobriedade pedante desse primogênito arredio. Talvez eu espere demais de quem é fruto do pecado de teus pais, que foi gerado na desobediência de minhas leis. Muito diferente és tu; filho do amor puro e casto, vieste à luz graças ao enlace que perante mim foi consagrado e comprometido. Bem-aventurado, então, foi teu nascimento e eu o abençoei e permaneci ao teu lado todos os dias de tua vida e jamais te abandonarei. Porém, teu irmão sempre se afastou de minha presença, seduzido por palavras evocativas e sibilinas repudiou minha guarda e proteção. Mesmo se impondo por arrogância, não pode esconder que seu desejo mais profundo é, na verdade, usufruir a intimidade que compartilhamos. Todo o desdém é dissimulado; apesar das recusas enfáticas, ambiciona secretamente todas as dádivas que te concedi. E assim, porque me importo com tua segurança, alerto-te para que te acauteles contra teu irmão. Porque me amas, logo Caim passará a te odiar como odeia a mim. Ele, agora, está enfurecido e rebelou-se totalmente contra meus desígnios. Aviso-te para que saibas: ele inveja-te mais do que nunca depois que te favoreci; reluta em aceitar minha decisão de fazer tua prometida a mais bela das irmãs. A obsessão por Luluva o está consumindo e há intenções hostis em seus gestos. És o predileto de teu Deus e não quero que sofras pelos atos de teu irmão, portanto previna-se contra a violência que ele poderá perpetrar. Tu conheces a morte, a tens provocado com tuas próprias mãos. O que ainda não te dei a conhecer é que não só os animais morrem; no exílio, também o homem morre. Ciente disto, tu perceberás que, em certos momentos, devemos nos antecipar ao mal para que ele não prevaleça.


Bem, o que se seguiu a isso é fácil prever. Abel, temendo a morte nas mãos de Caim, se antecipa e tenta matar o irmão usando seu instrumento de trabalho, ao que ele se defende por puro instinto de sobrevivência e ambos vão ao solo. Não conseguindo conter a fúria do irmão e no afã de o fazer parar, Caim reage reflexamente e desfere um golpe na cabeça de Abel com o que, no momento, estava mais ao alcance de sua mão; uma pedra. Abel tomba para o lado, mortalmente ferido, agoniza e morre. Caim se levanta atônito diante de uma visão que não pôde conciliar; olha o corpo inerte e sanguinolento e não reconhece, nele, seu irmão. Ele havia desencadeado um processo que, de um instante para outro, transformou algo vivo numa massa bruta e sem identidade. Sentia que era uma situação muito grave e, talvez, irreparável. Mas, transtornado, não queria pensar que fosse assim, freneticamente buscava em sua imaginação meios que pudesse reverter os fatos. A lembrança mais reconfortante que lhe ocorreu foi das sementes germinando do solo. Coisas inertes postas sob a terra úmida brotavam para a vida. O mesmo poderia suceder se, literalmente, plantasse aquilo que fora seu irmão. Com esse pensamento, cavou desarvoradamente o solo e na cova acomodou o cadáver, cobrindo-o com a terra solta. Contudo, não se tranqüilizou, sabia: algumas sementes não germinam. Apesar da dúvida, decidiu que nada mais poderia fazer senão esperar. Foi quando ouviu a voz que vem em silêncio lhe inquirir:


– Caim, onde está Abel, teu irmão?

– E logo tu, que deverias saber, me perguntas?


Lógico que sabia; Iaodabaoth perguntava apenas por intimidação. E, ainda a pouco, estivera com os Elohim pedindo para que intercedessem por Abel; primeiro, que lhe restituíssem a vida e segundo, que punissem severamente Caim por seu crime inominável. Ao primeiro disseram: “Há limites a todo poder: a vida é como a água que derrama do vaso partido no solo seco; é possível restaurar o vaso, mas a mesma água não poderá ser reposta”. Ao segundo deliberam que qualquer pena seria injusta: “Posto que nem Caim, nem Abel podem ser responsabilizados pelos seus atos; pois ambos foram privados de opção: A Caim, o ímpeto de sobreviver tirou todas e a Abel, tu não deixaste nenhuma”.


Porém, de nada disso tinha conhecimento Caim e prosseguiu afrontando o demiurgo em seu total estado de transtorno:


– Por certo, não és tu o guardião de meu irmão? Não era teu o compromisso de o proteger de todo mal? Pois, não o protegeste contra mim e agora jaz sob o solo que piso. Minha esperança é que a terra que dá vida ao trigo o faça renascer. Então, por que não mostras o quanto és poderoso e lhe devolves a vida que tirei?


Caim só tentava mais uma solução desesperada para seu drama pessoal, todavia Iaodabaoth encarou aquilo como um desafio; fora profundamente atingido em seu orgulho, não poderia deixar que uma criatura tão inferior o desacatasse assim. Movido pela arrogância e o despeito, Iaodabaoth comete a mais hedionda das ofensas à vida; desrespeita a morte e macula a inocência de um cadáver ao tocá-lo para reanimar seus membros. Tal intenção desnaturaliza sua existência e o torna um elemento estranho para a terra que o acolhe. E, então, num espasmo, ela expele o corpo de Abel de volta a superfície. Perplexo, Caim tem novamente o irmão morto diante de si. Intrigado levanta os olhos e interroga seu interlocutor divino:


– O que estás fazendo, queres brincar com a minha inquietação?

– Não, apenas estou respondendo ao teu desafio e pondo a prova tua descrença.

– Mas ele não se move, ainda o sinto morto. Nada fizeste senão desfazer meu trabalho. Oh, deixa-nos em paz e volta para tuas alturas.


Caim voltou a enterrar Abel na mesma cova e, de novo, o solo fértil recusou-se a recebê-lo em seu seio. Por três vezes Caim tentou devolver o irmão ao úmido útero da terra; ela, entretanto, em todas as tentativas o lançou fora. Na terceira, toda a criação é violada; os olhos de Abel se abrem e o irmão vivo fica mortificado. Nada mudou, é a mesma massa bruta despersonalizada, algo tão apavorante quanto uma pedra que abrisse, de repente, olhos que nunca tivera. O coração de Caim gela quando o irmão, que ainda sente morto, lhe pede, numa voz sumida, para levantá-lo dali, afastá-lo da terra calcinante que queima dolorosamente suas costas. Caim atende e ao erguê-lo percebe que a pele dele está cheia de ulcerações. De pé, Abel começa a se recompor, lança um olhar desvairado para o irmão e diz em tom de contrito lamento: “Tenho fome, muita fome, tanta fome que não penso em mais nada senão em satisfazê-la”. Dito isso, sai, sem aviso, correndo a esmo entre os arbustos até avistar uma presa; num rompante, salta sobre ela e a captura. Com uma expressão de extasiado deleite, mostra o desafortunado animal ao irmão, aperta-o sofregamente entre as mãos e crava os dentes em seu pescoço; em vão ele se contorce e guincha, mas seu sangue jorra e é sorvido avidamente pela boca crispada. Terminado, a carcaça totalmente exaurida de seus fluídos é largada ao chão como um bagaço de fruta chupada. Ato contínuo, o corpo revivo de Abel entra num frenesi convulsionado e, quando cessa, vasculha freneticamente ao redor, ansiando por mais. Assim, se põe a cata de novas vítimas e afasta-se rapidamente do irmão. Caim, terrificado, não tem coragem de ir atrás dele e o deixa à sua sorte. Já presenciara vários predadores em caça, porém nada visto era comparável ao que acabara de assistir, algo excessivamente doentio passara a habitar o corpo de Abel.


Sem alternativa, outra vez volta-se para a voz desincorporada e indaga sobre o que era aquilo:


– O que fizeste ao meu irmão? Não foi vida que lhe reenviaste, mas apenas movimento ao corpo. Ele é um morto que aparenta estar vivo. Algo medonho e abominável criado por mero capricho.


– Como ousas julgar minhas ações. Os meus motivos estão muito além do teu entendimento. Antes de eu criar a vida de aparência, tu criaste a morte de fato. Somos cúmplices nesse horror que se espalhará pela terra. A descendência de Abel proliferará entre os homens, enquanto a tua será apartada da humanidade, proscrita do convívio de seus próprios semelhantes, rechaçada onde quer que vá.

– Como tua maldição poderá se cumprir? Como conseguirão distinguir minha descendência das demais?

– Há uma marca indelével em ti que passarás, inapelavelmente, para todos de tua linhagem.

– Eu não tenho marca alguma e não deixarei que me marques como Abel marcava seus animais!

– Não preciso marcar a ti. Será na humanidade que infundirei a minha marca, um selo que não poderás, nem desejarás, simular. Deste modo, tu e tua descendência é que estarão marcados, justo por não possuírem marca alguma.


Iaodabaoth, imprudentemente, havia reconstituído o vaso: mas um vazamento permaneceu e toda a água nele posta não seria contida por muito tempo. O demiurgo deu a luz a um ser desviante, vazio de vida. Partejou um aborto da natureza que sobreviverá absorvendo a vida de outros. O que é bem diferente dos seres naturais que consomem a matéria para alimentar a vida que lhes é própria.


Bem, é isso. Já me estendi demais nesta resenha. É o que basta para apresentar a gênese mística dos vampiros dentro de uma perspectiva de origem judaica, como havia proposto. E se você achar tudo isso surpreendente demais, lembre-se que a história é escrita pelos vencedores. Quanto aos que insistem na prosaica pergunta: “Então, está é a verdade?”; responderei como faziam os astanfitas: “Não, apenas faz mais sentido!”.

A Comunhão do Nosferatu

 


Este ritual é baseado em certas tradições de Magia Negra da Romênia, que, segundo a  lenda, haveriam sido legadas aos seguidores de Vlad Dracul, que as teria recebido do  Príncipe das Trevas.  Diz a lenda que Vlad, um Cristão revoltado contra as mentiras da Igreja, escolheu  identificar-se com o Diabo. Este ritual se baseia nas conexões entre vampiros e o Príncipe  das Trevas.

O “Self” na tradição dos Vampiros

O conceito de “Self” nas tradições vampirescas é geralmente o de “não-morto”, com suas  conotações de imortalidade e Segredo da vida e morte. Vampiros freqüentemente possuem  poderes físicos e mentais supra-normais, além de um certo gosto excêntrico.

A imortalidade é freqüentemente confundida com a recusa de morrer. O Vampiro/Magista  escolhe viver completa e intensamente esta vida, e não permitir que a sua consciência se  desintegre após a sua morte física. Esta sobrevivência da consciência não depende de  símbolos mágicos, nomes ou participação em diversos rituais. Depende apenas do  reconhecimento do próprio “Self” e da vontade de continuar a existir, o que ou onde quer  que seja.

O Sangue é muito importante nas tradições de Vampiros. Hoje, é visto como simbólico. No satanismo comtemporâneo de grupos como, a Ordem do Vampiro, a Igreja de Satã e o Templo de Set, não vêem significado no consumo ou no  escorrimento de sangue em sacrifícios.

O sangue simboliza “Vida”. O Mago Negro Vampiro é, portanto, visto como um magista  que deseja e pratica a mais alta Vida, enquanto reconhece as energias da Besta interior – as  energias primevas da Licantropia e da mutação, que formam outro aspecto da magia dos  Vampiros.

O ritual que se segue simboliza um despertar solitário e isolado para um estado  Vampiresco, e uma auto-iniciação ao Caminho da Mão-Esquerda. É um ritual que pode ser  adaptado ou alterado conforme as circunstâncias ou a inspiração de cada um. Como em  todo ritual mágico, cada um deve assumir seu próprio risco, já sabendo que uma prática  como esta não é adequada aos instáveis ou imaturos.

0 – Preparatio

Robe negro.
Vela negra.
Sino.
Cálice com líquido avermelhado.
Local: Um local em que você não seja perturbado.
Uma câmara escura, ou pintada ou coberta em  preto ou similar (ex: azul muito escuro). Ou uma floresta afastada. A escolha é sua.

Vestimenta: o ideal é o robe negro. A idéia é que você se torne o próprio modelo de  vampiro que existe na sua mente. Preste atenção em cada um dos seus sentidos: perfume,  vestimenta, música, oferendas.

Dê nove badaladas no sino. Nove, nas tradições de Magia Negra, simboliza a evolução  dinâmica até a perfeição.

Acenda a chama negra.

I – Invocatio

“Nesta noite negra, eu me torno um Vampiro: um mestre da vida e da morte.  Eu acendo a Chama Negra em honra ao Príncipe das Trevas, e me torno o Vampiro que  minha mente cria, ardendo em paixões na perseguição de tudo o que eu desejo.  Eu abandono as restrições do Caminho da Mão Direita, e com Vontade eu me dedico a  controlar o meu próprio destino. Eu agora encaro os testes e as tribulações do Caminho da  Mão Esquerda!

Eu me encho de Poder com a Essência do Vampiro: ser invisível, mesmo sob o dia  escaldante; saber quando ser silencioso, e quando orar; saber explorar por completo minha  psique!

Eu me desfaço desta maldição! Eu, o Vampiro (__nome__,) percorro o Caminho da Mão  Esquerda, e a minha Vontade é impenetrável!  Eu honro o Sangue, que é a minha Vida, e me torno mais do que fumaça e sombras.

Abram-se os Portais do Inferno! Diante da nobre presença do Senhor Negro, eu proclamo o  Juramento que me torna um Vampiro, juro ser verdadeiro para com meu próprio Ser e meu  Caminho escolhido  Salve, Vampiro! Salve, Senhor das Trevas!”

II – Graal Nigrum

O Cálice é o Graal Negro, ou a Taça Herética: a que é sempre buscada, mas raramente  encontrada.  O Graal deve estar cheio de líquido vermelho, simbolizando o sangue, como suco de  tomate, frutas vermelhas ou vinho. Sangria é um ótimo elixir!  Enquanto bebe o elixir, visualize-se apoderando-se dos Poderes das Trevas.  Você está comungando da sua própria essência e do Vampiro que é parte da divindade que  há em seu interior.

III – Fechando os Portais do Inferno  

Feche o ritual tocando novamente o sino, nove vezes.

IV – O despertar

Agora, iniciado nos mistérios dos Vampiros, você pode ver o mundo com olhos diferentes.  Após o primeiro ritual, você poderá ter algumas intuições sobre a natureza dessa magia e do  seu controle sobre ela, e de como moldar o seu destino. Contudo, alguma prática pode ser  necessária.

Algumas pessoas podem apenas se sentir tolas, por estarem se prestando a essa tarefa, ou  mesmo entediadas. Para essas pessoas, desejamos uma vida feliz e temos certeza de que  terão a vida que merecem.

Um Trabalho de Auto-Criação


Raízes Judaicas da Magia Sexual

 


Para aqueles que não estão familiarizados, a história da magia sexual começa com os Cavaleiros Templários. Fundado em 1118 EC, o propósito declarado dos Templários era proteger os peregrinos que iam para o Oriente Médio durante a Segunda Cruzada. A história dos Templários é bastante fascinante, mas para nossos propósitos basta dizer que eles foram suprimidos em 1312 por autoridades religiosas e temporais que tinham inveja de seu poder e riqueza. Vários dos seus membros foram presos ou mortos. Seu líder, Jacques DeMolay, foi queimado vivo. Os Templários, como outros acusados ​​de heresia, feitiçaria e prática de magia, foram acusados ​​de uma litania de crimes. Essas acusações provavelmente foram apenas um ardil perpetuado pela igreja e pelo estado para obter a imensa riqueza e amplas propriedades que os Templários possuíam. A história aceita é que os templários aprenderam magia sexual com os sufis do Oriente Médio, que a aprenderam com os tântricos da Índia. Os alquimistas medievais receberam esta informação dos Templários e a codificaram em alguns ensinamentos em suas obras. Eventualmente, Aleister Crowley, que aprendeu sobre magia sexual em suas viagens à Índia e à África, começou a experimentar tanto as técnicas tradicionais quanto as suas próprias técnicas recém-criadas.

Enquanto isso, um homem chamado Pascal Beverly Randolph havia descoberto os segredos da magia sexual ou inventado algumas novas técnicas também. Nascido em 1815, era filho de um médico e de uma dançarina de salão. Tornou-se grumete e aprendeu o ofício de marinheiro, tornando-se em seguida mestre de embarcação. Ser marinheiro permitiu-lhe viajar muito. Aos vinte e cinco anos, foi iniciado na Irmandade Hermética de Luxor. Em 1868 (depois de várias viagens à França), fundou a Irmandade de Eulis, que acabou tendo muitos seguidores. Ele publicou um livro (Magia Sexual) que postulava um tipo de bissexualidade espiritual junto com a ideia de que o orgasmo era mágico e sagrado. Randolph influenciou as pessoas que recriaram os Cavaleiros Templários na forma da Ordo Templi Orientis (OTO). Crowley se juntou a esta Ordem e, eventualmente, após uma batalha divisória, tornou-se seu chefe. Hoje, assim como a maioria dos ensinamentos sobre magia cerimonial foi filtrada pelas lentes dos membros da Golden Dawn, também a maioria dos ensinamentos sobre magia sexual foi filtrada através da lente de Aleister Crowley e da OTO.

A história acima é precisa, mas representa apenas uma parte da corrente. É uma versão um tanto quanto limitada da história da magia sexual ocidental – uma visão de túnel que ignora a realidade mais ampla e falha em duas áreas:  Primeiro, não identifica onde e como a magia sexual se desenvolveu originalmente. Em segundo lugar, implica que a magia sexual permaneceu relativamente inalterada ao longo do tempo (especialmente no último século) e simplesmente transportada para o presente. De fato, há ampla evidência de que a magia sexual tem uma história muito mais ampla do que é comumente reconhecida. Para entender essa história mais profunda, no entanto, devemos primeiro examinar a natureza da Cabala.

Nos últimos anos, tive a sorte de dar palestras em todos os EUA, da Flórida a São Francisco e de San Diego a Nova York. Uma das coisas que faço agora perto do início de cada palestra, não importa o assunto, é escrever as seguintes letras no quadro-negro: T F Y Q A

As letras representam as palavras em inglês para “Pense por si mesmo. Questione a autoridade”. Continuo explicando que simplesmente porque eu ou qualquer outra “autoridade” ou autor escreve ou diz algo não o torna verdadeiro. Eu sempre peço aos meus alunos que ouçam o que eu tenho a dizer, mas depois que verifiquem. Encorajo as pessoas a confiar em si mesmas em vez de acreditar em um líder ou professor, mesmo quando esse professor seja eu.

Muitos de vocês, sem dúvida, estão familiarizados com a Cabala. São os fundamentos místicos do judaísmo, do cristianismo e até, até certo ponto, do islamismo. Aqueles de vocês familiarizados com a Cabala usada em grupos ocultistas conhecem suas teorias sobre a Árvore da Vida com suas correspondências, bem como os sistemas numerológicos como a gematria. Na minha biblioteca, tenho bem mais de 1.000 livros especificamente relacionados à Cabala ou associados a ela. A maioria deles são semelhantes em conteúdo, simplesmente expressando as mesmas coisas de maneiras diferentes. Todos eles alegam explicar as bases do que é a “A” Kabalah.

Todos eles estão errados.

Para aqueles de vocês que foram estudantes da Cabala, eu lhes peço que reflitam sobre estas questões: Não é possível que a Cabala seja muito mais do que gematria, notarikon, temurah e a Árvore da Vida e suas correspondências? Se sim, então por que tão pouco se sabe de outros aspectos da Cabala? Para responder isso temos que olhar um pouco de história.

Nos anos 1700, um grupo de judeus ortodoxos e piedosos se formou na Europa Oriental. A palavra para “piedoso” em hebraico é Hasid (pronuncia-se: “RASSID”). Assim, essas pessoas ficaram conhecidas como os “Piedosos” ou os Hasidim.

Anteriormente, o judaísmo místico incluía muitas maneiras de desenvolver poder sobre o ambiente: o que hoje chamaríamos de magia. Mas os hassidim não queriam nada disso. Eles buscavam a exaltação espiritual, não a capacidade de mudar o mundo. Eles queriam aumentar o poder de suas orações, não o poder sobre as coisas ao seu redor. Como resultado, eles se concentraram nos aspectos mentais da Cabala, incluindo correspondências sobre a Árvore da Vida, meditação sobre como Deus criou o mundo e as manipulações de letras e números, uma versão moderna (para a época) de formas místicas mais antigas do que é chamado de “magia das letras”.

Como essa informação era mística, era inevitável que ela chegasse ao mundo oculto local (alemão), onde se tornou parte da tradição maçônica daquele país. Esses ensinamentos foram posteriormente traduzidos para as línguas românicas e acabaram se tornando, para muitas pessoas, os ensinamentos centrais da Cabala.

Mesmo depois dessa história, muitas pessoas vão duvidar do que estou dizendo sobre a Cabala. Peço-lhe, então, que olhe para o único trabalho publicado que é aceito como talvez o texto cabalístico mais importante – o Zohar. Há muito pouco lá sobre tal numerologia. O mesmo ocorre no pequeno mas importante livro cabalístico primitivo, o Sepher Yetzirah.

Para resumir, a versão da Cabala que é mais amplamente aceita entre os ocultistas hoje é basicamente nada mais do que parte dos ensinamentos místicos dos hassidim alemães. Isso não torna tais estudos de forma alguma “ruins” ou “errados” ou mesmo incompletos. Em vez disso, simplesmente indica que tais estudos são apenas uma abordagem em um tipo ou escola da Cabala,  e não na coisa toda.

Quando comecei a estudar a Cabala, ou melhor, o que é comumente conhecido entre os ocultistas ocidentais por esse nome, eu era como um cachorro faminto na loja de um açougueiro de bom coração. Eu queria provar e experimentar tudo.

Para quem não conhece a gematria, sua ideia básica é simples. Cada letra hebraica está associada a um número. Soma-se os números das letras de uma palavra e, se forem iguais ou tiverem relação com os números de outra palavra, há uma relação entre as duas palavras. Em Magia Moderna dei o famoso exemplo que mostrava como, em hebraico, a enumeração da palavra “amor” era igual ao valor numérico da palavra “unidade” e como, quando suas numerações são somadas, o total é igual a o valor numérico de uma palavra hebraica para “Deus”. É um sistema numerológico simples que, neste caso, indica que Deus é uma unidade e que Deus é amor.

Muitas noites eu ficava acordado até as primeiras horas da manhã seguinte me debruçando sobre cálculos para tentar provar alguma coisa. Analisei meu nome mágico de três letras escolhido em um papel que tinha várias páginas. Da mesma forma, tenho visto pessoas analisando seções das obras de Aleister Crowley, rituais da famosa Ordem Hermética da Golden Dawn, seções da Bíblia, etc., por mais páginas do que gostaria de lembrar.

Mas um dia percebi que faltava algo. Fiquei com a pergunta atormentadora que Peggy Lee fez em sua música: “Isso é tudo o que existe?” Depois de anos de manipulação numerológica cabalística, cheguei à conclusão de que – para mim, pelo menos – uma exploração mais aprofundada já não provava nada de importante. Percebi que havia se tornado uma estrada falsa, como um falso vidente que parece dar muitas informações, mas na verdade fala pouco.

Claro, eu poderia passar horas provando que as palavras estavam relacionadas. Esse tipo de trabalho ainda é feito hoje (veja, por exemplo, os livros de Kenneth Grant) e pode ser de grande valia para pessoas que sentem que precisam desse tipo de prova. Para eles, esse trabalho é importante e valioso. Eu também precisei disso no passado e recebi isto muitas recompensas e insights espirituais.

Mas para mim, os ensinamentos comumente considerados o núcleo da Cabala agora pareciam nada mais do que uma forma de masturbação mental. Para o exemplo de “amor mais unidade é igual a Deus”, eu disse: “E daí? Isso já não é aceito por muitos (inclusive eu)?” Eu já sabia disso. Eu não precisava “provar” isso para mim ou para qualquer outra pessoa. Sei que a Declaração da Independência foi assinada em 1776. Não preciso passar horas tentando provar que esse evento aconteceu. Não preciso ler centenas de livros para saber que esse evento ocorreu em um determinado ano. Fazer tal estudo neste momento da minha vida seria chato e uma perda de tempo. Um dos tipos de pessoas que encontramos no caminho oculto é o “mago de poltrona” que fará alguma magia assim que “acabar com mais um livro” ou “construir mais uma ferramenta mágica”. Ele não consegue nada prático porque nunca faz mágica. Sim, ele ganha conhecimento, o que certamente é um objetivo digno em si. Mas o conhecimento por si só não é o objetivo de um mago praticante. Para todos os efeitos práticos, ele está fazendo o mesmo trabalho que os do místico hassídico do século XVIII. Isso não era o suficiente para mim. Um mágico de poltrona não era alguém que eu queria ser. Esta foi uma grande crise. Eu estava prestes a perder completamente meu interesse pela Cabala – algo que havia me transformado e tinha sido o maior interesse da minha vida por mais de vinte anos. Eu hibernei, fiz leituras de tarô para mim mesmo e meditava. Então, um dia, ficou claro.

Experiência! Era isso que faltava em todas as manipulações numerológicas. Cheguei à conclusão de que pensar em algo não era suficiente para mim. Eu sou ação. E embora muitas das técnicas cabalísticas que usam a numerologia cabalística para fazer talismãs bem-sucedidos, por exemplo, proporcionassem uma gratificação tardia quando o talismã atingia seu objetivo, eu queria algo mais imediato. Eu conhecia apenas uma técnica que forneceu a aventura, ação e experiência que eu desejava: Pathworking cabalístico.

Devido a muitos trabalhos publicados, o termo pathworking perdeu seu significado original. Hoje, pathworking significa qualquer tipo de meditação guiada em que se faz uma viagem mental ou astral visualizada ou algum tipo de viagem. Eu uso a expressão “pathwork cabalístico para representar o significado original da palavra pathworking: andar na Árvore da Vida cabalística enquanto estiver no plano astral. A chave aqui é ser capaz de separar a consciência do corpo e viajar no plano astral. Em outras palavras, esta técnica cabalística requer que você alcance um estado alterado de consciência. Exceto pelos métodos fornecidos em fontes como The Golden Dawn de Regardie e as várias versões dessas instruções que foram publicadas, pouca informação apareceu de um antigo ponto de vista cabalístico. Se o pathworking cabalístico requerer acesso ao plano astral através de um estado alterado de consciência, segue-se que deve haver métodos cabalísticos tradicionais para alcançar tal estado.

Um método que descobri nas obras de Aryeh Kapi era simplesmente colocar a cabeça entre os joelhos. Isso muda o fluxo de sangue para o cérebro, resultando em um estado alterado. No entanto, ao investigar mais, descobri outro método para alcançar um estado alterado, uma técnica que Marsha Schuchard chama de transe sexual. Este método faz parte da teoria cabalística, embora tenha sido ignorado pela maioria dos pesquisadores e praticantes, pois não era uma parte publicada do movimento hassídico alemão. E enquanto esta chave cabalística para o mistério tem estado no subsolo por mais de 2.500 anos, ela vazou ou foi redescoberta de tempos em tempos e formou a base da magia sexual ocidental, em todas as suas formas, como existe hoje. Eu precisava daquilo.

Se você ler a Bíblia como um tipo de história, verá que os profetas de todas as gerações criticaram os hebreus por não adorarem os deuses e deusas de outras culturas. A implicação disso é que os hebreus não eram monoteístas desde a época de Abraão, mas eram tão politeístas quanto suas culturas vizinhas. De fato, em The Hebrew Goddess, o respeitado antropólogo Raphael Patai mostra que os hebreus adoravam uma deusa tanto em suas casas quanto no templo sagrado em Jerusalém até a destruição do segundo templo em 70 EC, você encontrará frequentemente nos artigos sobre as práticas religiosas dos primeiros hebreus, práticas que incluíam a adoração tanto de um Deus quanto de uma Deusa.

Na maioria dos templos judaicos de hoje, o local onde reside a Torá – os primeiros cinco livros da Bíblia em forma de pergaminho – está localizado em uma plataforma elevada. Essa plataforma geralmente tem a forma de um tipo de palco onde o Rabino (o líder das orações) e o Cantor (o líder dos cantos ) também têm suas posições rituais. Esta área é conhecida como bimah (pronuncia-se: bee-mah). A palavra “bimah” significa uma plataforma ou palco. No entanto, a origem da palavra é bamah (bah-mah) que se refere à ideia de um “lugar alto”. No Oriente Médio, uma área elevada era comumente onde várias divindades, não apenas o Deus judeu, eram adoradas. Outros resquícios de tempos pagãos anteriores – incluindo a adoração da Lua como uma forma da Deusa Lunar Levanah (que agora é o próprio nome da Lua em hebraico) – também são encontrados em várias tradições folclóricas judaicas.

As primeiras formas de paganismo tinham vários propósitos, talvez o mais importante fosse a fertilidade. Os primeiros pagãos praticavam ritos para garantir a fertilidade das colheitas, rebanhos e pessoas. Freqüentemente, esses ritos incluíam comportamento sexual. Por exemplo, em algumas culturas, os pagãos teriam ritualizado a relação sexual em cima de colheitas recém-plantadas. Acreditava-se que a energia levantada durante seu rito, através da imitação de sua magia sexual elementar, ajudaria as plantações a crescer.

Existe alguma evidência de que os primeiros hebreus, como seus vizinhos politeístas, tinham ritos e mistérios sexuais? A resposta é sim. Na verdade, alguns desses ritos têm até versões modernas.

Um exemplo é a prática da circuncisão. Antes que essa prática fosse fixada no judaísmo para oito dias após o nascimento de um menino, provavelmente fazia parte dos ritos da puberdade. Em outras palavras, era realizada quando um menino atingia a maioridade como sinal de maturidade sexual. Os ritos de puberdade para meninos e meninas são comuns nas culturas pagãs. Em algumas culturas, os ritos de circuncisão masculina na puberdade ainda são praticados como parte dos “Mistérios Masculinos”. No judaísmo, os meninos ainda têm um tipo de tal rito (embora sem a circuncisão) quando passam pelo ritual de entrada na idade adulta conhecido como Bar Mitzvah. Mais recentemente, as meninas foram adicionadas a essa tradição quando passam por um Bat Mitzvah semelhante.

Na Torá, a circuncisão é um sinal de um pacto entre Deus e os judeus. Nisto se insinua a ligação entre sexualidade e espiritualidade. Outras vezes, você lerá sobre situações em que colocar a mão na “coxa” é sinal de acordo, geralmente entre um humano e o Divino. “Coxa” é um eufemismo para “pênis” (assim como a Bíblia usa o verbo “conhecer” para significar “coito”). Essa ideia foi adotada ou emprestada de outras culturas onde um homem juraria colocando a mão sobre os testículos do outro. De fato, nossa palavra “testemunhar” (derivada, é claro, da palavra “testes”) vem dessa prática.

Há mais evidências de ritos sexuais no antigo judaísmo. O livro de Raphael Patai, “The Hebrew Goddess “, mostra claramente que não havia apenas um forte componente sexual no misticismo judaico mais antigo, mas que era algo muito importante.

Desde a realização do filme Caçadores da Arca Perdida, muitas pessoas se familiarizaram com a forma da Arca da Aliança. Em cima dela estavam dois Querubins. De acordo com Patai, há uma tradição talmúdica de que “… enquanto Israel cumpriu a vontade de Deus, os rostos dos querubins estavam voltados um para o outro: no entanto, quando Israel pecou, ​​eles viraram os rostos um do outro. ” O que isso pode significar?

A Arca da Aliança foi mantida no “Santo dos Santos”, a parte mais privada e sagrada do templo em Jerusalém. Já o famoso historiador primitivo dos judeus, Flávio Josefo (37 D.C.–100 D.C.), escreveu que não havia nada no Santo dos Santos. Por quê? É bem aceito que ele queria representar o judaísmo como “anti-icônico”, uma religião livre da adoração de ídolos ou ícones. Mas haveria algo mais? Algo que Josefo poderia até ter vergonha de mencionar?

A resposta vem de um historiador ainda mais antigo, Filo (30 A.C-45 D.C ). Ele escreveu que na parte mais interna do templo, na parte mais sagrada do local judaico mais sagrado, havia as estátuas dos Querubins. E esses Querubins estavam “entrelaçados como marido e mulher”. Ou seja, eles foram mostrados tendo relações sexuais.

Isso foi verificado mais tarde pelo relato de um talmudista conhecido como Rabi Qetina, que afirmou que nos dias santos, quando as pessoas iam em peregrinação para ir ao templo, os sacerdotes realmente mostravam os Querubins a eles e diziam: “Vejam! o amor diante de Deus é como o amor do homem e da mulher”. Várias centenas de anos depois, o famoso Rashi escreveu: “Os Querubins estavam unidos, agarrados e abraçados, como um macho que abraça uma fêmea”.
Em outras palavras, o segredo final do Santo dos Santos não era que ele continha a Arca da Aliança, a Torá ou as tábuas dos Dez Mandamentos. Em vez disso, era a natureza espiritual do sexo. A tradição talmúdica mencionada anteriormente implicaria que os querubins estariam envolvidos em relações sexuais constantes enquanto Israel cumprisse a vontade de Deus, mas eles se separariam de seu abraço se Israel pecasse. Além disso, acreditava-se que Deus “falava” entre os Querubins.

Lembre-se, de acordo com a Torá e a Cabala, Deus cria através da fala: “E o Senhor disse: “Haja luz.” E eis que havia luz.” Esta, então, é a revelação do segredo cabalístico da magia sexual: profecia, adivinhação e invocação que podem resultar do sexo espiritualizado.  De fontes talmúdicas também sabemos que um dos maiores feriados para os antigos judeus ocorreu cerca de duas semanas após o Ano Novo Hebraico. Os peregrinos vinham ao templo em Jerusalém de todas as partes para este feriado que era considerado uma festa alegre. No entanto, ao final dos sete dias desta festa, que era celebrada tanto por homens como por mulheres, as festividades se tornariam tão intensas que homens e mulheres se misturariam e cometeriam atos que eufemisticamente chamavam de “vertigem”. Em termos modernos, a multidão corria sexualmente desenfreada. Este comportamento terminou algo entre cerca de 100 AEC. e 70 d.C.

Outra fonte que indica que o judaísmo primitivo tinha ritos sexuais é encontrada no livro O Cântico dos Cânticos, de Carlo Suares, que é sua interpretação desse pequeno texto bíblico (conhecido também por seu título mal traduzido, Cantares de Salomão). Na introdução, Suares descreve brevemente o honrado Rabi Akivah (também conhecido como Akiba), que nasceu em 40 D.C e foi executado no ano 135.
D.C. depois de passar muitos anos na prisão por ser um apoiador da guerra judaica contra Roma. Hoje, Rabi Akivah é homenageado por judeus em todo o mundo. Poemas e orações atribuídos a ele são recitados por judeus fiéis. Ainda me lembro da bela e ritmada oração cantada que começa com “Amar Rabi Akivah…” (assim falou Rabi Akiba…). Ele é considerado o pai da versão escrita das leis orais judaicas conhecidas como Mishná. Ele também é considerado por muitos como o pai da Cabala.

Assim como as principais seitas cristãs têm divisões entre si, também houve divisões no judaísmo. No primeiro século EC, o rabino Ismael assumiu uma posição semelhante à de alguns cristãos fundamentalistas modernos de hoje. Ele e seus apoiadores sustentavam que os escritos sagrados judaicos foram escritos em uma linguagem que falava diretamente aos homens e deveriam ser aceitos literalmente. Rabi Akivah discordou e sustentou que as palavras eram apenas a forma da mensagem. O verdadeiro significado da Torá deveria ser encontrado em sua interpretação mística, sua essência interior. Assim, quando uma discussão sobre quais livros deveriam ser considerados parte da Bíblia judaica estava ocorrendo entre os principais Rabinos, a maioria deles queria excluir o aparentemente profano poema de amor que é o Cântico dos Cânticos. Afinal, como poderia um judeu hoje em dia ter frases como “beije-me com os beijos de sua boca” e “seus seios são como dois filhotes” em seu livro sagrado?

Rabi Akivah foi um dos rabinos mais honrados de seu tempo e assim permanece até os dias atuais. Em seu tempo, ele foi mantido em grande respeito e era considerado uma autoridade poderosa no judaísmo. Akivah exerceu sua reputação e autoridade para mudar a atitude dos outros rabinos. “O universo inteiro não vale o dia em que aquele livro… [foi] dado a Israel”, disse ele, “porque todas as escrituras são sagradas, mas o Cântico dos Cânticos é o mais sagrado”.

Quando li pela primeira vez esta citação, fiquei fascinado e intrigado. Não é estranho que um dos rabinos mais importantes da história judaica tenha defendido a canção de amor não apenas como um bom livro, não (como alguns diriam) porque é Deus dizendo como Ele ama Israel (ou vice-versa), mas porque é a “santíssima” de todas as escrituras?

Lembre-se, Akivah é considerado o pai da Cabala. Não poderia a razão para a defesa do livro de Akivah ser que ele retinha o segredo sagrado do judaísmo, o segredo da magia sexual? Este segredo teria então sido passado para seus seguidores e de lá para muitas das escolas da Cabala.

Mesmo o bastante enfadonho e pedante AE Waite, em The Holy Kabbalah, refere-se ao fato de que os judeus místicos consideravam o casamento um sacramento e que praticavam um “ensino em caminhos pouco freqüentados, algo herdado do passado … [dos quais ] há algum vestígio de ensino no Oriente.” Isso aparece na seção do livro de Waite intitulada “O Mistério do Sexo”, e indica que entre os cabalistas havia um ensinamento de magia sexual que era de certa forma semelhante aos ensinamentos sexuais dos taoístas e tântricos. Em uma nota de rodapé ele diz que os magos sexuais cabalísticos:

… tinham um ideal interior, espiritual e divino, no qual eles habitavam, e pelo qual eles parecem ter realizado transmutações abaixo. Isto é, sua magia sexual (que era tanto um ato físico quanto espiritual) e produzia mudanças – magia – no plano físico.

Como nota final para esta seção, eu acrescentaria que entre os judeus devotos de hoje é uma mitsvá (uma palavra que significa tanto um mandamento de Deus quanto uma bênção) fazer sexo com seu cônjuge no sábado. Isso porque Deus é considerado um andrógino Divino e ao fazer sexo, unindo homem e mulher, eles estão simulando Deus. Uma interpretação alternativa é que eles estão imitando Deus em união com sua consorte, a Shekhina (semelhante à noção pagã ocidental do Deus unido à Deusa ou à noção hindu de Shiva unida a Shakti).

A Disseminação da Cabala Após a destruição do Segundo Templo no ano 70 d.C., os judeus foram dispersos por toda a Ásia e Europa. Muitos judeus consideravam isso um castigo de Deus sobre eles por não seguirem as tradições do judaísmo. Especificamente, eles não estavam seguindo as muitas leis judaicas e estavam adorando outros deuses e deusas. Mas os cabalistas alegaram que, ao dispersar os judeus, a sabedoria da Cabala se espalhou por todo o mundo. Deste ponto de vista, a diáspora não era uma maldição para os judeus, mas uma bênção para o resto do mundo. E essa bênção, a Cabala, consistia, pelo menos em parte, nos segredos da magia sexual. À medida que os judeus se moviam pela Europa, formavam pequenas comunidades. Em alguns deles havia escolas de cabalistas. A separação entre as comunidades acrescentou diversidade, e muitos dos ensinamentos cabalísticos, incluindo aqueles relativos à magia sexual, devem ter mudado e evoluído. Mas como os ensinamentos foram além das escolas do judaísmo místico? A resposta, acredito, vem da própria natureza do judaísmo e sua longa tradição de judeus sendo o povo do livro. À medida que a Igreja Católica se fortaleceu, a educação secular (incluindo leitura, escrita e matemática) dos fiéis foi desaprovada e limitada à realeza, aos ricos, escribas da Igreja e certos membros das forças armadas. Mas porque muitos judeus sabiam ler, escrever e sabiam matemática, agiam como mensageiros viajantes ou como cobradores de impostos para os ricos. Com alguns deles veio junto Cabala e a magia sexual.

Eles se comunicavam com outros que viajavam, incluindo os músicos errantes conhecidos por nomes como trovadores, menestreis, bardose os posteriores minicantores e meistersingers que vagavam por partes da Europa ocidental nos séculos XII e XIII d.C.  Não eram apenas homens como como registrado por historiadores do sexo masculino que, durante séculos, subestimaram a importância das mulheres na história, algumas mulheres também atuavam assim.

No século XIII, um livro pouco conhecido chamado Iggeret Ha Kodesh (A Carta Sagrada) foi difundido entre os judeus na Espanha. Foi por muitos anos atribuído ao famoso rabino chamado Nachmanides, mas os estudiosos hoje concordam que o rabino provavelmente não foi o autor. O livro era tão popular que três manuscritos variados deste livro são conhecidos. Foi dito que todos os livros verdadeiramente sagrados podem ser lidos em três níveis: físico, espiritual e místico. No nível físico, este livro parece ser um manual de casamento judaico. Em um nível espiritual, este livro é visto como uma “obra cabalística que descreve o relacionamento de Deus” com os judeus. Mas em um nível místico revela virtualmente todos os mistérios e técnicas de magia sexual que estão em uso até hoje. É minha opinião que os menestréis errantes medievais tinham alguma familiaridade com este livro ou com aqueles que usaram suas técnicas e ajudaram a difundir o conhecimento.

Até então, os casamentos não eram muito conhecidos. As pessoas viveriam juntas e se chamariam de marido e mulher. Eles eram considerados casados ​​mesmo sem um ritual de casamento. Nas Ilhas Britânicas, as regras para proteger as mulheres tornaram-se parte do que era conhecido como “lei comum [principalmente não escrita]”. Assim, após um certo período de tempo de convivência e alegando ser marido e mulher (e aceito como tal pela comunidade), uma mulher seria legalmente reconhecida como esposa de direito comum de um homem. Daquele ponto em diante, ele não poderia simplesmente jogá-la na rua quando estivesse cansado dela. Ela tinha direitos sob as leis do divórcio, embora eles não tivessem passado por uma cerimônia formal de casamento. O direito comum é inda hoje uma das bases do sistema jurídico americano.

Geralmente, na sociedade ocidental, controlada pelos cristãos, eram apenas os ricos e a realeza que se casavam. O objetivo dessa exibição pública era mostrar a todos que apenas os filhos dessa mulher seriam os herdeiros legítimos de um determinado homem. Na verdade, o casamento era mais um contrato legal do que um desejo de se unir por amor. Às vezes, pinturas eram feitas para mostrar a cena do casamento para provar que um casamento havia sido realizado.

Governantes e homens ricos queriam saber que seus filhos, na verdade, eram seus filhos de sangue. Acreditava-se que o sangue tinha qualidades mágicas inatas. Existe até uma crença hoje entre alguns bretões no “Toque do Rei” – que o próprio toque de um rei (que também foi aprovado pelo Deus cristão, ou então como ele poderia ser rei?) poderia curar várias doenças. Para garantir uma linhagem contínua, a monogamia tornou-se a regra para as esposas dos ricos e da realeza. Mesmo assim, há ampla evidência de que tanto as esposas quanto os maridos costumavam fazer sexo fora do casamento.

Eventualmente, a ideia de amor tornou-se um acessório do casamento. Foi uma conseqüência da noção de “amor cortês” que foi difundida pelos bardos viajantes. Eles até tinham regras para o amor cortês, algumas das quais escondiam os segredos da magia sexual. Por exemplo, a regra 30, de acordo com Andreas Capellanus cerca de 1.500 anos atrás, diz: “Um verdadeiro amante é continuamente é ininterruptamente obcecado pela imagem de sua amada”.

Dentro dessas palavras está um segredo de magia sexual que alguns dizem ter sido “descoberto” por A. O. Spare neste século. Como pode ser visto, este aspecto da magia sexual antecedeu Spare em mais de um milênio!

Outro grupo de viajantes eram os comerciantes, artesãos capazes de muitas habilidades valiosas. Eles vieram desde os primeiros tempos (quando cada ofício também estava associado a uma divindade) e continuaram no Renascimento. Na Roma antiga, essas guildas eram conhecidas como collegia (a fonte de nossa palavra “faculdade”). Eles tinham seus próprios edifícios onde eles compartilhariam os segredos de sua guilda. Os membros realizavam festas conhecidas como ágape, provavelmente a fonte das festas ágape cristãs do primeiro século. Para identificar outros membros ou permitir entrada nos limites das casas de guildas, eles tinham sinais de mão, gestos e toques especiais, incluindo beijos especiais e ritualísticos. Dessa forma, eles eram os elos entre as antigas escolas de mistérios e as modernas lojas ocultistas. De fato, os collegia foram influenciados pelos gregos, que, por sua vez, foram influenciados por uma variedade de culturas do Oriente Médio, incluindo os ensinamentos dos egípcios, dos sírios e dos antigos Hebreus.


Jacques Bergier - Melquisedeque

  Melquisedeque aparece pela primeira vez no livro Gênese, na Bíblia. Lá está escrito: “E Melquisedeque, rei de Salem, trouxe pão e vinho. E...