terça-feira, 11 de agosto de 2020

Ramon Llull e o diálogo inter-religioso na cultura ibérica medieval

 


Resumo: O Livro do Gentio e dos Três Sábios é uma belíssima exposição das três doutrinas religiosas (judaísmo, cristianismo e islamismo), num ambiente pacífico, harmonioso e contemplativo, chamado literariamente de locus amoenus. A obra foi escrita por volta de 1274 pelo beato e filósofo catalão Ramon Llull (Raimundo Lúlio, 1232-1316). Sua idéia central é a necessidade do permanente diálogo entre as religiões para que o mundo viva em paz. Este diálogo medieval baseava-se, sobretudo, na humildade: o bom estudioso, como afirmou o monge Hugo de São Vítor (c. 1096-1141), deveria ser humilde e manso, afastado das preocupações vãs; que aprendesse a refletir longamente sobre alguma coisa antes de julgá-la, pois todo conhecimento é bom. Os três sábios do Livro são representantes de suas religiões, prudentes estudantes que navegam suavemente pela natureza, prova cabal da existência de Deus. Cada religião tem igualmente seu espaço para expor suas bases doutrinárias, todos ouvem pacientemente o expositor, todos sentem prazer com as palavras da outra fé. O capítulo do documento em questão em que o judeu discursa será confrontado com outro, a Vikuah (c. 1264) do rabino Nahmânides de Girona, que participou de um debate (real) em 1263 em Barcelona com autoridades cristãs. Nosso objetivo é mostrar como a Idade Média cristã também possuiu projetos pluralistas e pacíficos de convivência étnica e cultural, propostas em sua maior parte esmagadas pela bota repressiva do binômio Modernidade/Estado, sempre sob a égide da Unidade, vista como algo essencialmente bom, especialmente a partir do século XV.

Palavras-chave: Livro do Gentio e dos Três Sábios – Ramon Llull – Nahmânides - Vikuah - História das religiões.

Senhor, tenhais glória e louvor por todos os tempos (...) No princípio da disputa, convém que seja ordenado ter boa intenção, olhar para a verdade, concordar e vir com seu adversário em coisas comumente reconhecidas e acreditadas para que se possam fazer argumentos e pedidos.Ramon Llull. O Livro da Contemplação em Deus, c. 1274-1276)1
Quando o historiador observa retrospectivamente a Idade Média em seu processo histórico, percebe que, à medida que ela avançou para seu crepúsculo, a intolerância cresceu2; à medida que os estados nacionais se constituíam, a política passou a ser mais repressiva; à medida que os cristãos percebiam que eram minoria no mundo e eram cada vez mais ameaçados pelo avanço muçulmano no Oriente, houve um recrudescimento da violência; à medida que as bases filosóficas do cristianismo passavam a ser solapadas nas universidades com o deslumbramento de outras filosofias – como o averroísmo, por exemplo – as instituições cada vez mais se fechavam em dogmas e proibições.3
De fato, com o fim da Idade Média e o alvorecer da Modernidade, os novos tempos modernos trouxeram, em seu conjunto, muito mais intolerância e derramamento de sangue que o período medieval – embora isso seja muitas vezes esquecido. Trata-se da “decadência do espírito medieval”, como bem salientaram os irmãos Carreras e Artau.4 E o ponto de mudança, o momento da virada decisiva ocorreu no século XIII, tempo de grandes e importantes transformações sociais e culturais que alavancaram o ocidente medieval5, mas também um tempo de perseguições, de exclusão, de purificação e de purgação da cristandade.6
Por outro lado, circunstâncias históricas geográficas muito precisas fizeram com que um espaço europeu preservasse, não sem dificuldades, não sem avanços e retrocessos, um espírito de relativa convivência inter-étnica e religiosa: a Península Ibérica. E nesse mundo ibérico em que viviam as três religiões monoteístas, talvez um dos últimos e certamente um dos maiores representantes do conceito medieval de tolerância tenha sido o beato catalão Ramon Llull (1232-1316).7 Na história das relações entre o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo, Ramon ocupa um lugar proeminente. Ele, suas idéias e sua vida, sintetizaram o desejo medieval de diálogo, de tolerância e, naturalmente, de conversão.
Assim, a proposta desse paper é apresentar – muito sucintamente – uma de suas mais de duzentas e cinqüenta obras, todas dedicadas à conversão de muçulmanos e judeus: o Livro do Gentio e dos Três Sábios, um escrito de 1274 considerado seu texto apologético mais importante e que integra uma longa tradição de obras religiosas polemizantes.8 Devido à concisão do espaço reservado a essa comunicação, pretendemos abordar do texto apenas a exposição religiosa do judeu, isto é, os aspectos do judaísmo expostos por Ramon Llull em seu debate imaginário, confrontando-o com outro documento do período, a Vikuah de Nahmânides9, um dos mais vívidos textos medievais que tivemos a oportunidade de ler.

I. As circunstâncias históricas
O progressivo avanço cristão em direção ao sul da Península Ibérica trouxe novos problemas e circunstâncias sociais e religiosas para a convivência entre as três religiões chamadas do Livro. Esse contato gradativamente aumentado fez com que os escritores da Península Ibérica medieval produzissem uma extensa literatura proselitista, tratados de caráter polêmico, expositivo ou crítico, dependendo do propósito de seus autores.10 Por exemplo, para nos atermos somente à expansão do reino de Aragão no século XIII, estima-se que sua população de não-cristãos chegava a um quarto de seu total, isto é, cerca de 250.000 pessoas num total de 900.000.11 Como os reinos da França e de Castela passavam por um período de intenso desenvolvimento demográfico, Aragão se expandiu através do Mediterrâneo, com um intenso comércio com o norte da África mas também conquistando a Sicília (1282), a Cerdeña (1323) e o sul da Itália (isso já no séc. XV).12
Por todos esses motivos, os dominicanos catalães Ramon de Penyafort (1175-1275) e depois seu discípulo Ramon Martí (1220-1224) escreveram importantes tratados apologéticos que precederam os escritos lulianos. No entanto, ao contrário do Livro do Gentio e dos Três Sábios, o tom dessas obras não era nada simpático às outras religiões.13
De qualquer modo, o grande impulsionador desse contato entre o cristianismo e as outras religiões e o elo entre todos os escritores apologetas foi Ramon de Penyafort. O dominicano já havia solicitado a Tomás de Aquino (c. 1225-1274) que escrevesse uma obra contra os erros dos infiéis (a Suma contra os Gentios, c. 1269)14, e provavelmente também incentivou Ramon Martí a escrever suas obras polêmicas e apologéticas – entre elas, a Explanatio symboli Apostolorum (1257), a Suma contra os erros do Alcorão (1260) e a Pugio fidei adversus mauros et judaeos (1278).15
Quanto ao beato Ramon Llull, sabemos, através de sua autobiografia intitulada Vida Coetânia (1311), que ele era amigo de Ramon de Penyafort, pois este o aconselhou a estudar em Maiorca ao invés de viajar a Paris, como era seu desejo:
Uma vez completada a dita peregrinação, preparou-se para empreender o caminho até Paris, para aprender gramática e qualquer outra ciência apropriada a seu propósito. Mas seus parentes e amigos e, sobretudo, frei Ramon da ordem dos pregadores (que em outros tempos havia compilado as Decretais do senhor Gregório IX), com suas persuasões e conselhos o dissuadiram e fizeram-no retornar a sua cidade de Maiorca (RAMON LLULL, Vida coetânia, II, 10).16
Llull tinha então mais de 30 anos e não parecia ter o perfil mais adequado para iniciar estudos em Paris.17 De qualquer modo, das propostas dominicanas então vigentes, Llull incorporou o tema da fundação de colégios para ensinar línguas orientais a missionários desejosos de encontrar o martírio, um dos três objetivos de toda a sua vida – os outros dois eram o próprio martírio e “escrever o melhor livro do mundo contra os erros dos infiéis” (Vida Coetânia, I, 6). Ramon de Penyafort já havia organizado em Túnis, Múrcia e Maiorca escolas de árabe e de hebraico. No entanto, os métodos missionários dos dominicanos mostraram-se um fracasso. Por exemplo, o próprio Ramon Martí, nos anos 1268-1269, tentara inutilmente converter al-Mustansir, sultão de Túnis, fato mais tarde criticado por Llull em vários de seus livros, como, por exemplo, no Livro do Fim (1305):
Em Túnis havia um rei sarraceno chamado Miramamolim.18 Não faz muito tempo que um religioso desejou-lhe provar, em língua árabe, que a lei dos sarracenos era falsa, coisa que é fácil de demonstrar. Então este rei lhe pediu que, se provasse a fé dos cristãos, nesse momento se tornaria cristão e batizaria os habitantes de sua pátria. Aquele religioso não era muito instruído nem em Filosofia, nem em Teologia, e respondeu que a fé cristã não poderia ser provada, somente crida. O rei tomou estas palavras como um engano, e disse que não desejava deixar uma crença por outra, mas que, de bom grado, abandonaria uma crença pela inteligência da verdade.
Portanto, se aquele religioso tivesse fornecido razões convincentes de nossa fé – razões que se encontram na Sagrada Escritura e também, estou seguro, em meus livros já citados – o rei não lhe teria podido contradizer e se tornaria cristão e, com ele, a sua gente. (RAMON LLULL, Livro do Fim, I.5)19

II. Os judeus e o Debate de Barcelona de 1263
Quanto aos judeus, ocorreu na própria Catalunha um acontecimento de grande importância: um debate público em 1263 chamado pelos historiadores de “A Disputa de Barcelona”20, curiosamente no mesmo ano da conversão de Ramon Llull – quando o beato teve cinco visões do Cristo crucificado no momento em que escrevia uma canção para uma dama.21 Muito provavelmente, os ecos da disputa de Barcelona influenciaram as três decisões que Ramon Llull tomou após sua conversão: 1) buscar o martírio, 2) tentar, junto aos poderes constituídos, fundar mosteiros para que homens “sábios e literatos” estudassem as línguas dos infiéis e fossem até eles para pregar o cristianismo e 3) escrever o melhor livro do mundo contra os erros daqueles infiéis.22
O rei Jaime I de Aragão, o Conquistador (1208-1276), a pedido de Ramon de Penyafort, convocou o rabino e cabalista Moshe ben Nahman Gerondi, também conhecido como Nahmânides (ou ainda Bonastruc ça Porta, 1194 - c. 1270), para vir de Girona e debater publicamente sua fé com Paulo Cristão, judeu convertido.23 O acontecimento reuniu a comunidade barcelonesa, que assistiu com interesse o debate.
Na realidade, esse tipo de polêmica antijudaica nasceu na França, após denúncias formuladas contra o Talmude em 1238 por parte de outro judeu convertido ao cristianismo, Nicolau Donin de La Rochelle.24 Seu pedido ao papa Gregório IX (1227-1241) para não respeitar o Talmude pelo fato dele conter blasfêmias contra Jesus e sua mãe25, além de provocar a realização de um debate em Paris (em 1240)26 teve como conseqüência a morte de cerca de três mil judeus, o batismo forçado de outros quinhentos e a queima de 1200 manuscritos do Talmude por ordem do papa Gregório IX (1227-1241). [27]27 Aragão e Catalunha, mais sensíveis às correntes ultrapirenaicas, logo aderiram às disputas apologéticas. Por isso, Nahmânides se viu obrigado em 1263 a comparecer a Barcelona para discutir “heresias” do Talmude com Paulo Cristão.
Embora tenha havido um tom muito mais conciliatório no debate de Barcelona que no de Paris – o objetivo não era condenar, e sim converter28 – e apesar de suas condições terem sido relativamente justas, o simples fato de ele ter ocorrido foi um sinal que a situação dos judeus na Espanha começou a se deteriorar: chegava ao fim a Idade de Ouro do judaísmo na Espanha.29

O debate de Barcelona ocorreu em cinco sessões:

1ª.) 20 de julho de 1263 (sexta-feira),
2ª.) 23 de julho (segunda-feira),
3ª.) 26 de julho (quinta-feira),
4ª.) 27 de julho (sexta-feira) e
5ª.) 04 de agosto (sábado).

Segundo o próprio depoimento do rabino Nahmânides (a Vikuah), a primeira sessão aconteceu no palácio de Jaime I (com a presença do rei e a de seus conselheiros); asegunda, em um convento na cidade (com “todas as pessoas (...) gentios e judeus (...) o bispo e todos os padres e os estudiosos dos minoritas [franciscanos] e dos frades pregadores [dominicanos]...”)30; a terceira sessão foi realizada novamente no palácio do rei, mas dessa vez a portas fechadas; a quarta uma vez mais foi no palácio, mas a portas abertas (com a presença do bispo e de muitos fidalgos, cavaleiros e gente de todos os cantos da cidade, “até mesmo alguns da plebe”31); e, por fim, a quinta ocorreu na sinagoga, com uma visita cerimonial do rei Jaime I, quando então ele proferiu um discurso.32
Como expusemos anteriormente, confrontaremos o discurso do sábio judeu do Livro do gentio e dos três sábios com a narrativa de Nahmânides do debate de Barcelona, a Vikuah, um expressivo depoimento medieval que capta o calor dos acontecimentos relacionados ao debate de maneira notável. Para isso, comentaremos as passagens do Livro do Gentio e, a seguir, o trecho da Vikuah em que percebemos algumas possíveis analogias com o discurso luliano.

III. Ramon Llull e o Livro do gentio e dos três sábios
Já dissemos que os métodos apologéticos dos mendicantes foram rejeitados por Ramon Llull. O beato catalão ficou insatisfeito tanto com a forma dos debates realizados – baseados sempre nas respectivas autoridades de cada religião – quanto com os resultados. Convencido que poderia provar os dogmas da fé cristã, especialmente o da Santíssima Trindade, através de sua Arte, Llull escreveu otimista o Livro do gentio e dos três sábios entre os anos 1274 e 1276. É seu primeiro escrito em que aplica a nova linguagem descoberta após ter recebido uma iluminação de Deus no monte Randa, em sua propriedade na ilha de Maiorca.33
A iluminação de Randa foi um acontecimento crucial na vida do beato, que tinha então cerca de 42 anos, pois foi então que ele concebeu seu método apologético, que chamou de Arte (a obra mestra com esse conteúdo intitula-se Arte abreviada de encontrar a verdade34).
Após subir ao monte para contemplar a Deus e ficar ali quase uma semana, “...aconteceu certo dia, enquanto olhava atentamente o céu, que subitamente o Senhor ilustrou sua mente, dando-lhe a forma e a maneira de fazer o livro contra os erros dos infiéis”.35 O texto do Livro do gentio expressa sua necessidade de expor e provar a capacidade de argumentação de sua filosofia religiosa frente às outras religiões reveladas36, bem como a possibilidade de sua utilização como método de se chegar à verdade última das coisas.
A obra é um belo debate imaginário: três sábios religiosos expõem seus respectivos credos (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo) a um desolado ateu que se encontra próximo da morte e deseja saber a verdade. Logo em seu Prólogo, Llull informa ao leitor o objetivo de sua obra:
Como convivi longamente com os infiéis e entendi seus erros e suas falsas opiniões, para que eles dêem louvor de Nosso Senhor Deus e venham para o caminho da salvação perdurável, eu, que sou um homem culpado, mesquinho, pobre, pecador, menosprezado pelas gentes, indigno de ter meu nome escrito nesse livro ou em outro, seguindo a maneira do livro árabe Do gentio, desejo, confiando na ajuda do Altíssimo, me esforçar com todos os meus poderes para encontrar uma nova maneira e novas razões pelas quais os errados possam ser encaminhados à glória que não tem fim, e fujam dos infinitos trabalhos.37
O objetivo de nosso autor é claro: que ao ler o livro, o infiel se converta e tenha assim sua alma salva das penas do Inferno! Para isso, basta seguir o caminho proposto por sua Arte. Mas Ramon esclarece que tem consciência da dificuldade da linguagem que utiliza, e que, por isso, escreveu sua Arte nesse livro com “vocábulos claros” para os “homens leigos”, mas sem esquecer dos “homens letrados e amantes da ciência especulativa”. Em outras palavras: Llull escreveu o Livro do gentio em uma forma que hoje chamaríamos de literária.38

III.1. O locus amoenus luliano
A seguir, após expor a organização interna da obra, Ramon inicia sua narrativa com a descrição mais completa de um bosque de toda a literatura luliana.39 O gentio, “muito sábio em filosofia”, considera sua velhice, a morte e as bem-aventuranças desse mundo. Seus olhos então se enchem de lágrimas e seu coração de tristeza, com suspiros e dor, já que a vida mundana é tão prazerosa e a morte é o fim de tudo! Nada podia consolá-lo. Ele não conseguia parar de chorar com sua reflexão sobre o sentido da existência. Pensou então que se partisse em direção a uma floresta deserta e com muitas fontes e belas e frondosas árvores, poderia encontrar consolo para seu coração.
Ao chegar a essa floresta maravilhosa, o gentio
...viu as ribeiras e fontes, os prados, e que nas árvores havia pássaros de diversas linhagens que cantavam muito docemente. Sob as árvores havia cabritos, cervos, gazelas, lebres, coelhos e muitas outras bestas prazerosas de se ver. As árvores eram carregadas de diversos tipos flores e de frutos que exalavam um odor muito prazeroso (...) o gentio colhia as flores e comia os frutos das árvores para descobrir se o odor das flores e o sabor dos frutos lhe dariam algum remédio. Mas como pensava que teria que morrer e que chegaria o tempo em que seria nada, sua dor, seu pranto e seu sofrimento se multiplicavam.40
O tema da natureza paradisíaca é muito recorrente tanto na literatura medieval como um todo quanto nos escritos lulianos.41 Ele possui um título: locus amoenus. O ambiente paradisíaco é tão belamente descrito no Livro do gentio que ultrapassa o próprio sentido de cenário que serve de ambiente para o futuro debate e passa a ser mais um personagem.42 Os conceitos de “flor”, “fruto” e “árvore” remetem a coisas agradáveis, belas, boas, e que predispõem os protagonistas e o próprio leitor a uma felicidade dialética e amorosa graças à força poética do ambiente.43 Essa é uma característica cultural do século XIV: a jardinagem, isto é, a jardinagem com um sentido metafísico e transcendental. O tema do jardim como refúgio do mundo e local ideal para a discussão intelectual (ou mesmo a procura do amor), mais do que remontar à tradição clássica de Virgílio (70-19 a.C.)44, possuía então uma forte influência da estética islâmica.45
No entanto, na literatura luliana (e medieval), o locus amoenus é redimensionado para ser o próprio cosmo cristão: a natureza é um livro escrito por Deus, um símbolo sagrado da inteligência espiritual. Por exemplo, para São Boaventura (1221-1274), os filósofos naturalistas conhecem apenas a natureza em si, não a natureza como indício. Por isso, sua “leitura” está somente acessível aos espíritos mais elevadamente contemplativos, que conseguem passar do sensível ao inteligível, do mundo físico às suas significações, da sombra para a luz.46
Com Ramon Llull ocorre o mesmo – inclusive o ambiente do jardim islâmico lhe era bem conhecido: no palácio do rei Jaime I em Maiorca, chamado Palacio de la Almudaina (porque anteriormente fora de posse islâmica)47, há um belo jardim em sua parte inferior e que ainda segue, em seus contornos gerais, os motivos estéticos islâmicos.48
Dessa forma, o gentio, assim como os filósofos naturalistas, não consegue alcançar o sentido profundo do que vê na natureza; sem a revelação divina – e cristã – regido apenas pela razão, o homem não consegue ascender à verdade impressa na fauna e flora natural. O locus amoenus luliano recorda ao leitor os valores éticos cristãos e os conceitos de geração e continuidade do ser49: a natureza é uma extensão do homem, e ambos – homem e natureza – são criações perfeitas de Deus.
Enquanto o gentio permanecia em sua angústia, em suas lágrimas e em seus suspiros, entrementes, três sábios se encontraram fora de uma cidade – e é interessante observar que eles se encontram fora do ambiente característico das ordens mendicantes (vimos como Ramon se opunha aos seus métodos apologéticos). Todos se cumprimentaram e caminharam até àquela floresta em que estava o gentio. No entanto, encontraram antes uma dama, muito bela, nobremente vestida e cavalgando em um belo cavalo, que bebia em uma fonte junto a cinco árvores. Nessas árvores havia muitas flores com letras. A dama era a Inteligência, que então explicou aos sábios o significado das árvores e de suas flores.

III.2. As árvores no bosque da sabedoria transcendental
As flores das cinco árvores representam alegoricamente as combinações binárias dos conceitos das figuras A e V de sua Arte. A dama Inteligência explicou aos sábios o que representa cada árvore:

Primeira Árvore: As dignidades de Deus (21 flores)
Segunda Árvore: As sete dignidades da primeira árvore e as sete virtudes criadas (49 flores)
Terceira Árvore: As sete dignidades da primeira árvore e os sete vícios (49 flores)
Quarta Árvore: As sete virtudes criadas (21 flores)
Quinta Árvore: As virtudes criadas e os sete pecados mortais (49 flores).

Cada árvore tem duas condições (premissas). Por exemplo, as duas condições da primeira árvore que representa as dignidades de Deus são essas:
Uma é que sempre se deve atribuir e reconhecer em Deus a maior nobreza em essência, em virtudes e em obras; a outra é que as flores não sejam contrárias umas às outras, nem sejam umas menos que as outras. Sem que se tenha conhecimento dessas duas condições, não se pode ter conhecimento da árvore, nem de suas virtudes e obras.50
Além das duas condições de cada árvore, há duas condições gerais para o entendimento e funcionamento desse jogo combinatório: que todas as condições de cada árvore concordem com um fim e que não se oponham a esse fim, que é “amar, conhecer, temer e servir a Deus”51, objetivo último que Ramon não se cansa de repetir ao longo de suas obras.
O manuscrito de Bolonha (n. 1732, do século XIV) possui belas iluminuras que representam as cinco árvores do bosque do conhecimento do Livro do gentio. Para nos atermos a somente um exemplo, a primeira árvore representa as combinações das sete dignidades de Deus: Bondade, Grandeza, Eternidade, Poder, Sabedoria, Amor e Perfeição.
A premissa que Deus possui qualidades próprias e inerentes era comum a todas as três religiões. Com isso, Ramon desejava que todos os debates apologéticos iniciassem com um ponto de partida a partir desses princípios mais gerais, pontos aceitos por todos sem nenhuma contestação – observem que essas dignidades lulianas já foram identificadas pelos especialistas com assefirot judaicas e as hadras islâmicas.52
Após expor o conhecimento metafísico da natureza, o bosque do conhecimento luliano, a dama Inteligência partiu. Então os três representantes das três religiões permaneceram, sob as árvores, junto à bela fonte, quando um deles lamentou que o mundo não vivia sob uma mesma fé:
Não deveria haver rancor nem má-vontade entre os homens, mas eles se odeiam uns aos outros por causa da diversidade e contrariedade de crenças e seitas! (...) Cogitai, senhores, quantos são os danos que se seguem porque os homens não têm somente uma seita, e quantos são os bens que existiriam se todos tivessem somente uma fé, uma lei.53
Essa passagem mostra bem o grau de tensão existente entre as diferentes religiões no final do século XIII na Península Ibérica: os homens conviviam, mas se odiavam! Além disso, o trecho também ilustra o desejo que Ramon tinha de unificar o mundo sob a égide do cristianismo, o que já foi chamado de “o sonho luliano de unidade”.54
Nesse momento, o sábio que proferiu esse discurso propôs que todos eles ficassem embaixo da árvore, “ao lado da bela fonte”, e discutissem o que acreditavam, conforme o significado das flores das árvores, mas, sobretudo, através de razões “demonstrativas e necessárias”, isto é, sem recorrer às autoridades de suas respectivas crenças. Em outras palavras, Ramon realizou na fantasia do Livro do gentio todas as condições propícias para a utilização de sua Arte por parte dos sábios das outras religiões, para, assim, fazer com que eles se convertessem à fé cristã.
Os outros sábios aceitaram a proposta do debate e começaram a olhar as flores e relembrar o que a dama Inteligência dissera, quando então viram chegar o gentio. A descrição física do gentio feita por Ramon corresponde a seu angustiado estado espiritual:
...tinha uma grande barba, longos cabelos, vinha como um homem cansado, magro e abatido pelo sofrimento de seus pensamentos e pela longa viagem que fazia; em seus olhos corriam lágrimas, seu coração não cessava de suspirar, nem sua boca de chorar.55
Com sua chegada, o palco estava preparado para o debate. O gentio saudou os três sábios que o receberam agradavelmente, e eles perguntaram sobre seu estado. Após mirar por um instante a beleza das árvores e as palavras escritas em suas folhas – sinal que tinha em si a chave para encontrar o significado da existência de Deus na criação – o gentio contou aos três sobre sua angústia, a proximidade da morte e sua incompreensão a respeito do fim da vida. Disse que se alguém lhe provasse racionalmente a existência de Deus, ele conseguiria afastar a dor de sua alma e ficar em paz. Movidos pela caridade e pela piedade, os três decidiram mostrar a existência de Deus ao gentio e suas dignidades (a Bondade, a Grandeza, etc.), para que ele tivesse esperança na ressurreição e deixasse sua alma no caminho da salvação.
Guiados pelos conselhos da dama Inteligência, os sábios iniciaram então o literário e alegórico caminho do debate racional que a arte luliana proporciona àqueles que buscam a verdade e, curiosamente, o primeiro a expor e tratar sobre a primeira árvore (das dignidades divinas) foi o próprio gentio, após a indecisão de quem iniciaria a exposição. Quando todos terminaram de percorrer as cinco árvores e provar a existência de Deus e de Suas dignidades, o gentio teve seu entendimento “iluminado pelo resplendor divino” e “enamorou seu coração pelo caminho da salvação”, fazendo um discurso lamurioso por sua condição anterior de ignorância. A seguir, lembrou-se de sua terra, de sua família e de todas as pessoas que já haviam morrido e das que, ainda vivas, estavam no “caminho do fogo perdurável”. Então perguntou aos três sábios porque eles não tinham piedade de todas aquelas pessoas e não se encaminhavam àquela terra para realizar sua conversão.
Nesse importante momento da narrativa, o gentio ficou perplexo, pois descobriu que cada sábio tinha uma fé: um era judeu, outro cristão e outro muçulmano. Então, novamente angustiado, ele perguntou qual delas era a “melhor lei”, já que cada uma delas era verdadeira. Ao ouvir de cada um que a sua fé era a verdadeira, o gentio ficou ainda mais triste que antes, e exclamou, inconsolável:
Ah, senhores! Em quão grande alegria e esperança me havíeis colocado! E quão grande tristeza vós havíeis expulsado de meu coração! Mas agora me fizestes retornar a uma ira e a uma dor muito maiores do que costumava estar, pois eu não tinha o temor de suportar os infinitos trabalhos depois de minha morte, e agora que estou seguro que se não estiver no caminho verdadeiro, toda a pena estará pronta para atormentar perduravelmente minha alma depois de minha morte! Ah, senhores! Que ventura é essa que havia me expulsado de um erro tão grande em que se encontrava minha alma? E por que minha alma retornou a dores muito mais graves que as primeiras?56
Nesse profundo estado de melancolia, o gentio suplicou aos três sábios “com mais humildade e devoção” que disputassem racionalmente diante dele e mostrassem qual o verdadeiro caminho da salvação. Os sábios disseram-lhe que já estavam dispostos a isso antes dele chegar, e decidiram seguir o caminho iluminado pela dama Inteligência. Concederam então ao judeu a primazia do discurso, por sua fé ter vindo primeiro.

III.3. A exposição do judeu no Livro do gentio e as analogias com a Vikuah de Nahmânides
No entanto, o judeu, preocupado com a recepção de suas palavras por parte do cristão e do muçulmano, pergunta antes ao gentio e aos outros dois se eles contestariam suas palavras. Por vontade do gentio – que aqui é colocado como intermediador – todos combinaram que um não contestaria o outro enquanto durasse sua exposição.
Esse questionamento preliminar do judeu é um aspecto do texto de Ramon que muito se assemelha à Vikuah de Nahmânides. Em seu texto, o rabino de Girona afirma ter sido intimado por Jaime I a comparecer em seu palácio em Barcelona e sustentar um debate com frei Paulo, quando teria respondido:
“Farei como meu senhor o rei ordena, se me for dada permissão de falar como eu desejar (...)”
Frei Ramon de Pennaforte respondeu: “Contanto que não faleis de forma desrespeitosa.”
Eu lhes disse: “Eu não gostaria de ter de me submeter ao vosso julgamento a esse respeito, mas de falar como eu desejar sobre o assunto a ser debatido, da mesma forma como vós falais tudo o que desejais; e eu tenho suficiente discernimento para falar com moderação sobre os assuntos do debate, exatamente como vós, mas que isto seja de acordo com meu próprio critério.” Assim, eles todos me deram permissão de falar livremente.57
Naturalmente, como se pode perceber pela energia transbordante do texto do rabino e sua resposta incisiva, o debate real foi muito mais ríspido e forte que o debate imaginário narrado por Llull no Livro do gentio. A função de intermediador das três religiões que o gentio possui no texto de Ramon foi realizada na vida real por Ramon de Penyafort, conhecido por sua postura humanista e mais civilizada em relação às outras religiões.58 Ademais, as características culturais e históricas da Catalunha imprimiram um tom um pouco mais brando no relacionamento cristãos e judeus – por exemplo, o próprio Jaime I ignorou diversas cartas do papado com instruções para dispensar judeus de postos administrativos que ocupavam em sua coroa. De qualquer modo, é possível fazer uma analogia entre a função do gentio nessa passagem e a de Ramon de Penyafort no debate real, no que se refere ao caráter intermediador entre os debatedores, embora possa se perceber a tensão no ar e imaginar o constrangimento do rabino ao ter que comparecer a um debate público para se defender.
Após ter o consentimento de todos que não iria ser interrompido, o sábio judeu fez uma comovente oração – que parece se referir à amidah (parte central da pregação judaica)59 – e passou a expor sua fé. O judeu disse os oito artigos nos quais ele acreditava, provavelmente com base nos treze artigos de Maimônides (1135-1165).60 A seguir, provou a existência de somente um Deus, utilizando, entre outras razões, a teoria medieval dos quatro elementos.61
O judeu ainda, entre outras coisas, combateu a teoria (averroísta) da eternidade do mundo, mostrou ao gentio que, antes do mundo ser criado, Deus tinha em Si mesmo uma obra eterna, uma ação intrínseca, “amando e entendendo a si mesmo e entendendo todas as coisas”62, e que seu povo se encontrava no cativeiro por causa da “falta de seus primeiros pais” (Adão e Eva) e que, portanto, o Messias ainda não veio, já que, se tivesse vindo, eles não se encontrariam na servidão que se encontram agora.63

III.3.1. O cativeiro dos judeus
O gentio então perguntou há quanto tempo os judeus se encontravam nesse cativeiro. O judeu respondeu:
– Nós já estivemos em dois cativeiros. Um durou setenta anos e outro quatrocentos, mas este tem mais de mil e duzentos anos. Dos dois primeiros cativeiros sabemos a razão pela qual estivemos neles, mas deste cativeiro no qual estamos não sabemos por que aí estamos, nem porque não.
Disse o gentio ao judeu: – É possível que vós estejais em algum pecado pelo qual estejais contra a bondade de Deus, no qual pecado não pensas estar nem pedes perdão à bondade de Deus, a qual convém com a justiça? Assim, essa justiça não deseja vos libertar até que reconheçais o pecado e peçais perdão.64
Toda a passagem sobre o cativeiro dos judeus no Livro do gentio merece nosso comentário. Os dois primeiros cativeiros aos quais se refere o sábio judeu são o da Babilônia e o do Egito. Quanto ao terceiro, Llull certamente se refere à crucificação de Cristo, fato na Idade Média normalmente associado à culpa coletiva dos judeus.65 E paradoxalmente, embora o tema sirva para o beato relembrar o deicídio judaico, a culpa do povo de Israel, e fazer com que o gentio pergunte ao sábio judeu se isso não ocorre porque “eles estão em pecado”, ele serve igualmente para que o judeu mostre ao gentio o erro dos cristãos e comprove a tese do chamado messianismo restaurativo de Maimônides66, isto é, que o verdadeiro messias ainda não veio. Ou seja, Jesus Cristo não é o messias como afirmam os cristãos, pois se Ele tivesse vindo, os judeus não estariam mais “na servidão de todas as gentes”!67
O tema do cativeiro dos judeus também foi exposto na disputa de Barcelona: a segunda sessão do debate, como vimos, ocorreu em uma segunda-feira, em um convento da cidade, na presença de gentios, cristãos e judeus, do bispo e das ordens mendicantes. No final da primeira sessão, o próprio rei Jaime I havia, curiosamente, feito uma instigante pergunta a Nahmânides (“Onde está o Messias agora?”). O rabino respondeu irônica e provocativamente – como ele mesmo o afirma – que o rei poderia encontrá-lo, talvez, “...nos portões de Toledo, se um de vossos mensageiros correr até lá”.68 Certamente atônito com essa resposta tão atrevida, o rei Jaime suspendeu a sessão e o debate reiniciou no convento. Nahmânides permaneceu na ofensiva e logo pediu a palavra (“Deixai-me explicar claramente minha opinião sobre o Messias...”), debatendo corajosamente com o próprio rei:
Ora, alguns de nossos Sábios escreveram que o Messias só nascerá perto do tempo do Fim, quando ele virá para nos tirar do exílio, e por esse motivo eu não acredito na parte desse livro onde se diz que ele nasceu no dia da destruição do Templo...69
E essa é exatamente a mesma tese do sábio judeu no Livro do gentio:
Todo o povo dos judeus tem esperança que, pela virtude e o poder de um homem, isto é, o Messias, seja vencido e derrotado todo o poder dos homens deste mundo sob os quais estamos em servidão. Ora, para significar que o poder de Deus é muito grande e que dará àquele homem, isto é, o Messias, tão grande poder, e que nos ordenou ter grande esperança de sermos libertados da servidão na qual nos encontramos sob tantos homens, Deus ordenou que estejamos no cativeiro no qual estamos e sejamos libertados somente pelo poder de um homem. Por isso, está provado que o Messias deve vir para nos libertar...70
Com exceção da substituição da palavra cativeiro por exílio, a argumentação é a mesma. Provavelmente Llull substitui o conceito de exílio pelo de cativeiro porque o primeiro está carregado de um significado de culpa, de expiação pelo erro dos judeus, concepção dos cristãos em relação aos filhos de Israel. A palavra exílio somente se refere à expatriação forçada, ao degredo e à solitude do exilado. Em nenhum momento Nahmânides se refere a um cativeiro. Pelo contrário, ainda mais contundente, o rabino de Girona diz ao rei Jaime:

Senhor meu rei, ouvi-me. O Messias não é fundamental para nossa religião. Ora, para mim, vós valeis mais do que o Messias! Vós sois rei e ele é um rei. Vós sois um rei gentio e ele é um rei judeu; pois o Messias é tão somente um rei de carne e osso como vós. Quando eu sirvo ao meu Criador em vossas terras no exílio, na aflição, servidão e reprovação dos povos que “nos reprovam continuamente”, minha recompensa é grande. Pois estou oferecendo a Deus um sacrifício de meu corpo, pelo qual serei considerado cada vez mais merecedor da vida no mundo vindouro. Mas quando houver um rei de Israel da minha religião, governando sobre todos os povos, e não houver escolha para mim senão continuar na religião judaica, minha recompensa não será tão grande.71

III.3.2. O tema da Trindade
A seguir, Nahmânides passa ao ponto central de divergência entre o judaísmo e o cristianismo: a Santíssima Trindade, ponto fulcral de toda a arte luliana. O rabino é muito contundente em sua crítica a esse dogma cristão:
...o verdadeiro ponto de divergência entre judeus e cristãos reside no que vós dizeis sobre a questão da divindade: uma doutrina realmente desagradável. Vós, senhor nosso rei, sois cristão e filho de cristão, e por toda a vida ouvistes os padres que atulharam vosso cérebro e a medula de vossos ossos com esta doutrina, e ela se instalou em vós devido àquele hábito entranhado. Mas a doutrina na qual acreditais e que é o fundamento de vossa fé não pode ser aceita pela razão, não encontra base na natureza e tampouco os profetas jamais a expressaram (...) a mente de um judeu, ou de qualquer outra pessoa, não consegue aceitar isso; e vossas palavras são pronunciadas totalmente em vão, pois esta é a raiz de nossa controvérsia.72
Esta é uma crítica tão pesada à crença que os cristãos tinham de estarem vivendo na era messiânica (e que a cristandade era a própria realização do ideal messiânico) – e proferida certamente em meio a um público tão hostil – que Maccoby chegou a se perguntar se realmente Nahmânides disse isso, pois soaria como pura blasfêmia aos ouvidos dos cristãos, do rei e dos frades menores.73 Seja como for, ela mostra bem a crucial diferença entre judeus e cristãos, e Ramon Llull certamente tinha isso em conta, pois toda a sua arte tinha como objetivo provar a existência da Santíssima Trindade, tanto em Deus como em toda a criação.74
Após mostrar a todos, baseado em Isaías (2,4 e 11,9), que Jesus não poderia ser o Messias porque após a Sua vinda “o mundo inteiro tem estado cheio de violência e saques, e os cristãos vêm derramando mais sangue que o resto dos povos, além de serem também praticantes de adultério e incesto”75, no último dia dos debates, Nahmânides tentou provar que qualquer defesa da Trindade em termos de atributos estava fadada ao fracasso. Nesse último encontro, o rei afirmou que nunca vira um “homem do lado errado argumentar tão bem”; a seguir, Ramon de Penyafort pregou sobre a Trindade, dizendo que ela “consistia de sabedoria, vontade e poder”. Debatendo com Nahmânides, que lhe perguntou “O que é a Trindade?”, Penyafort declarou que a Trindade era uma entidade originária de três, como os corpos são derivados dos quatro elementos (uma argumentação adotada mais tarde por Ramon Llull em seus escritos). Como a tríade sabedoria-vontade-poder é encontrada no conjunto dos atributos divinos na teologia judaica, era uma argumentação que partia de um pressuposto comum a judeus e cristãos – novamente a mesma idéia seria seguida mais tarde por Llull. No entanto, a argumentação de Nahmânides, mesmo partindo do mesmo pressuposto dos cristãos (e de Llull), isto é, que aquelas qualidades não eram acidentais em Deus, mas atributos essenciais, tentou provar exatamente o contrário: que não poderiam ser identificados e separados na Pessoa de Deus!
Ademais, o rei havia citado o vinho como um bom exemplo da trindade na unidade: o vinho tem três aspectos (cor, sabor e odor) e é um só. Nahmânides retrucou:
Mas isso é um grande equívoco, pois o vermelho, o gosto e o perfume do vinho são três qualidades separadas, sendo que uma delas pode estar presente sem a outra – pois existe o vinho tinto e o vinho branco, e vinhos de outras cores, e o mesmo acontece com o sabor e o odor (...) Portanto, é uma substância concreta com três propriedades acidentais independentes que não formam nenhuma unidade. E se erroneamente assim considerarmos, então seremos obrigados a reivindicar uma Quaternidade, pois a substância que é a Divindade, da mesma forma que sua sabedoria, vontade e poder, deve ser incluída, totalizando quatro. Deveríeis até mesmo ir além e reivindicar uma Quinternidade, pois Deus vive e sua vida é uma qualidade, tanto quanto Sua sabedoria; de forma que Sua definição seria: vivo, sábio, dotado de vontade, poderoso e divindade propriamente dita, perfazendo cinco. Mas tudo isso é claramente um erro.76
Antes de passarmos à argumentação de Nahmânides e sua relação com Ramon Llull, comentemos brevemente a analogia do vinho, pois é outra semelhança do pensamento luliano com aVikuah. Por exemplo, em várias passagens do Livro da Alma Racional (1296) Llull se refere ao vinho analogicamente para provar as três potências ativas da alma racional (lembrar, entender e amar) que, por sua vez, é um reflexo da Santíssima Trindade.77 A analogia com o vinho era, portanto, comum à época, para se fazer entender questões de natureza metafísica, e não deixa de ser interessante o fato dela ter sido citada em um debate como o de Barcelona, e justamente pelo rei Jaime I (e antes, no debate, por Ramon de Penyafort).
Quanto à discussão sobre os atributos divinos, Penyafort poderia, como argumenta Maccoby, explicar que a questão dos atributos – e o exemplo do vinho – não era uma prova da Trindade, mas uma analogia imperfeita da possibilidade da unidade existir na multiplicidade. Tais analogias pretendiam mostrar que a doutrina da Trindade não era absurda, e que a argumentação dos atributos era “essencialmente defensiva”, isto é, “não pretendia convencer ninguém da verdade ou da necessidade lógica da doutrina da Trindade”.78 Isto até Ramon Llull, que daria o passo seguinte, tentando mostrar, por razões necessárias, a existência da Trindade, e assim converter judeus e muçulmanos.

Conclusão
A defesa que Nahmânides faz do Talmude na disputa de Barcelona possui alguns pontos convergentes com o discurso luliano, especificamente com o Livro do gentio e dos três sábios. A forma como as regras foram acertadas, o tema do cativeiro/exílio dos judeus, a questão do Messias e o acalorado debate sobre a Trindade são exemplos de como a disputa de Barcelona pode ter repercutido nos anos seguintes e, particularmente, na filosofia apologética de Ramon Llull.
O beato também conhecia o Talmude, pois no Livro do gentio o judeu afirma que é um texto com “uma grande exposição e muito sutil”79, embora nessa mesma passagem Llull afirma que os judeus são um povo sem ciência.80 Essa foi uma idéia recorrente em seus escritos e mostra seu desconhecimento da opinião que os judeus tinham do estado em que se encontravam, pois durante boa parte da Idade Média eles se consideravam um povo civilizado vivendo entre selvagens (como a própria passagem da Vikuah em que Nahmânides acusa o mundo cristão de violento nos mostra).
Nesse diálogo aparente que é o Livro do gentio81 – aparente no sentido também de “representação ideal de um diálogo” – Ramon Llull pôs em prosa o que considerava serem as condições propícias a um verdadeiro debate apologético, certamente tendo como realidade a disputa de Barcelona. Como não se pode conclusivamente provar sua presença ao debate – apenas que provavelmente ele ocorreu no mesmo ano de sua conversão (o que não deixa de ser bastante significativo) – podemos concluir que o beato maiorquino prosseguiu e aprofundou a s idéias de respeito ao outro e imparcialidade no direito à exposição por parte das outras religiões que haviam sido formuladas por Ramon de Penyafort, em que pese sua discordância quanto à metodologia empregada pelos dominicanos, como vimos, especialmente no que se refere à não discussão sobre os temas da Encarnação e da Trindade82 – a falta de insistência de Penyafort na disputa de Barcelona em prosseguir no debate sobre a Trindade com Nahmânides é um bom exemplo disso. Certamente Ramon Llull, se estivesse debatendo ali, teria ficado horas discutindo com Nahmânides sobre esse ponto.
Quando se despediu do rei, Nahmânides ganhou 300 dinares de presente, e Jaime I lhe disse: “Retorna a tua cidade com saúde e em paz”; o rabino se despediu dele “com grande carinho”.83 Os três sábios do Livro do gentio fizeram o mesmo, e cada um pediu perdão ao outro caso tivesse dito alguma palavra vil contra a sua Lei.84Contudo, Jaime I posteriormente assinou posteriormente o relato cristão do debate, que dizia que Nahmânides havia mentido para escapar da discussão (embora provavelmente tenha assinado sem ter lido o texto); por sua vez, em sua velhice, Ramon Llull passou a dar mais ênfase em seus escritos apologéticos à cruzada, à via armada como o primeiro passo para a conversão. Os homens tinham dado um passo à frente, mas depois deram dois passos atrás; os tempos de tolerância e simbiose estavam chegando ao fim.

Notas
1.RAMON LLULL. “Libre de Contemplació”. In: Obres Essencials (OE). Barcelona: Editorial Selecta, vol. II, 1960, cap. CLXXXVII, 1, p. 546.
2.KRIEGEL, Maurice. “Judeus”. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude (coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval II. São Paulo, Bauru: Edusc, Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 37.
3.Averróis (1126-1198) foi o principal intérprete de Aristóteles na filosofia árabe, e seu pensamento influenciou a filosofia judaica e cristã. Na segunda metade do século XIII, formou-se no mundo latino uma orientação filosófica chamada averroísmo latino que defendia, entre outras teses, a teoria da dupla verdade (uma, correspondente ao dogma e à fé, outra, correspondente ao exercício da razão), a eternidade do mundo, a unidade do entendimento na espécie humana (ou monopsiquismo) e a negação da imortalidade pessoal e do livre-arbítrio, o que causou sua condenação oficial por parte da Igreja. Assim, os averroístas diziam, entre outras coisas, que não se podia afirmar que o mundo foi criado no tempo, que Deus é providência, que a alma é imortal, que a produção dos seres provém de um ato de liberdade e que existe revelação de verdades por parte de Deus. Também defendiam a eternidade do mundo, um intelecto único comuna a todos os homens, o determinismo universal e a negação da liberdade e da Providência. Para esse tema, ver especialmente RAMÓN GUERRERO, Rafael. Filosofías árabe y judía. Madrid: Editorial Síntesis, s/d, p. 215-246, e REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia I. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, p. 536-541. Duas das principais obras de Ramon Llull contra o averroísmo (Do nascimento do menino Jesus e o Livro da Lamentação da Filosofia) estão publicadas em RAIMUNDO LÚLIO. Escritos Antiaverroístas. Porto Alegre: Edipucrs, 2001. Todas as obras lulianas desse período estão publicadas em ROL V-VIII, e a melhor discussão sobre o tema se encontra no Prefácio de ROL VI.
4.CARRERAS Y ARTAU, Tomás y Joaquín. Historia de la Filosofia Española. Filosofia cristiana de los siglos XIII al XV. Volum 1. Edició facsímil. Barcelona/Girona, 2001, p. 44.
5.MOURA, Odilon, OSB. “Introdução à Suma contra os Gentios”. In: TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes: Sulina; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1990, vol. I, p. 04-05.
6.LE GOFF, Jacques. São Luís. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 706.
7.Tolerância “à moda medieval” era ter como pressuposto que as contradições culturais podiam (e deviam) ser simultaneamente positivas e produtivas. Essa noção complexa e ambivalente era a própria base cultural da vida na Idade Média: “cultura” para os medievais significava a união de uma série de contrários, o “sim” e o “não”, simultaneamente, e a busca da razão através da religião – a capacidade de pensar que as diferenças, tanto individuais quanto coletivas, são fecundas e enriquecedoras. Ver MENOCAL, María Rosa. O ornamento do mundo. Como muçulmanos, judeus e cristãos criaram uma cultura de tolerância na Espanha medieval. Rio de Janeiro: Record, 2004.
8.BONNER, Antoni. “Introducció”. In: Obres Selectes de Ramon Llull (1232-1316). Mallorca: Editorial Moll, 1989, vol. I, p. 91. Citado a partir de agora como OS. A bibliografia básica sobre o Livro do gentio e dos três sábios é a seguinte: BADIA, Lola. “Poesia i art al Libre del Gentil de Ramon Llull”. In: Teoria i pràctica de la literatura en Ramon Llull. Barcelona: Edicions dels Quaderns Crema, 1991, p. 19-29; COLOMER, Eusebi. “El pensament ecumènic de Ramon Llull”. In: Estudis Universitaris Catalans “Estudis de Llengua i Literatura Catalanes oferts a R. Aramon i Serra III” XXV. Barcelona: Curial, 1983, p. 61-80; SERVERA, Vincent. “Utopie et histoire. Les postulats théoriques de la praxis missionnaire”. In: Raymond Lulle et le Pays d'Oc “Cahiers de Fanjeaux” 22. Tolosa: Privat, 1987, p. 191-229; HEUSCH, Carlos. La mise en scène du savoir dans le Livre du gentil et des trois sages de Ramon Llull (Tese, Universidade de Paris, 1986, 358 p); HEUSCH, Carlos. “Le problème de l'alterité dans le Libre du gentil et des trois sages de Raymond Lulle: Paganisme et infidélité”.In: Les représentations de l'Autre dans l'espace ibérique et ibéro-américain, ed. Augustin Redondo, “Cahiers de l'UFR d'Études Ibériques et Latino-Américaines” 8. Paris: Presses de la Sorbonne Nouvelle, 1991, p. 33-43; MILLÁS VALLICROSA, José M.ª. “Las relaciones entre la doctrina luliana y la Cábala”. In: L'homme et son destin. Actes du premier congrès international de philosophie médiévale, 28 août-4 septembre 1958. Lovain-Paris, 1960, p. 635-642 ; BRUMMER, Rudolf. “Algunes notes sobre el Libre del gentil e los tres savis de Ramon Llull”. In: Studia in honorem prof. M. de Riquer 3. Barcelona: Quaderns Crema, 1988, p. 25-34; BRUMMER, Rudolf. “Un poème latin de controverse religieuse et le Libre del gentil e los tres savis de Ramon Llull”. In: EL 6 (1962), p. 275-281; TRIAS MERCANT, Sebastià. “Judíos y cristianos: la apologética de la tolerancia en el Llibre del gentil”. In: Revista Española de Filosofía Medieval 5. Saragossa, 1998, p. 61-74; HAMES, Harvey J. “Conversion via Ecstatic Experience in Ramon Llull's Llibre del gentil e dels tres savis”. In: Viator 30 (1999), p. 181-200 e LANGLOIS, Ch.-V. “Du gentil et des trois sages, par Ramon Lull”. In: La vie en France au Moyen Âge du XIIe au milieu du XIVe siècle 4: La vie spirituelle. Paris, 1928, p. 327-381.
9.“A Vikuah de Nahmânides: Tradução e comentário”. In: MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento. Os debates judaico-cristãos na Idade Média. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 111-157.
10.GARCIAS PALOU, Sebástian. “Introduccio”. In: RAMON LLULL. Obres Essencials (OE). Barcelona: Selecta, 1957, vol. I, p. 1049.
11.HILLGARTH, J. N. Los reinos hispánicos, 1250-1516. Vol. I, 1250-1410: Un equilibrio precario. Barcelona-Buenos Aires-Mèxic: Ediciones Grijalbo, 1979, p. 51-53.
12.HILLGARTH, J. N. “Vida i importancia de Ramon Llull en el context del segle XIII”. En: Anuario de Estudios Medievales 26. Barcelona: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1996, p. 968.
13.Ver, por exemplo, PARDO PASTOR, Jordi. “Diálogo inter-religioso” ou “diálogo aparente” durante a Idade Média hispânica: Ramon Llull (1232-1316). Conferência proferida no Centro da Cultura Judaica – Casa de Cultura de Israel (São Paulo), no dia 28.07.2004.
14.TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes: Sulina; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1990.
15.HILLGARTH, J. N. Ramon Llull i el naixement de lul.lisme. Barcelona: Curial Edicions Catalanes, 1998, p. 32-33.
16.Obres Selectes de Ramon Llull (1232-1316). Mallorca: Editorial Moll, 1989, vol. I, p. 17. A Vida coetânia é uma autobiografia que Ramon ditou a um monge amigo da Cartuxa de Vauvert (Paris) em 1311, sendo assim um inestimável documento para o conhecimento da vida do beato.
17.Ver também BATLLORI, Miquel. “L’Entrevista amb Ramon de Penyafort a Barcelona”. In: Ramon Llull i el lul.lisme. Obra completa vol. II. València: Três i Quatre, 1993, p. 45-49.
18.Miramamolim não era o nome de uma pessoa, mas a forma vulgarizada em textos medievais ocidentais do título de alguns soberanos muçulmanos (em árabe amir al-mu' minin), especialmente os califas almôadas (dinastia da Península Ibérica, de 1130 a 1269).
19.RAMON LLULL. Darrer Llibre sobre la conquesta de Terra Santa (introd. de Jordi Gayà; trad. de Pere Llabrés). Barcelona: Clàssics del Cristianisme 91. Facultat de Teologia de Catalunya / Fundació Enciclopèdia Catalana, 2002, p. 91-92.
20.Sobre a Disputa de Barcelona, o trabalho que consideramos o mais importante é o de MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento. Os debates judaico-cristãos na Idade Média. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Outros trabalhos importantes sobre o tema: ROTH, Cecil, “The Disputation of Barcelona (1263)”, The Harvard Theological Review 43 (1950), p. 117-144; CHAZAN, Robert, “The Barcelona 'Disputation' of 1263: Christian Missionizing and Jewish Response”, Speculum 52 (1977), p. 824-842; BURNS, Robert I., “The Barcelona 'Disputation' of 1263: Conversionism and Talmud in Jewish-Christian Relations”, The Catholic Historical Review 49 (1993), p. 488-495; SARAYANA, Josep-Ignasi, “A propósito de la disputa de Barcelona de 1263. (La razón especulativa versus la fe teologal)”,Pensamiento Medieval Hispano. Homenaje a Horacio Santiago-Otero, ed. José María Soto Rábanos, 2 (Madrid: CSIC - Consejería de Educación y Cultura. Junta de Castilla y León - Diputación de Zamora, 1998), p. 1513-1527; DEL VALLE, Carlos, “La disputa de Barcelona de 1263”, La controversia judeocristiana en España. (Desde los orígenes hasta el siglo XIII). Homenaje a Domingo Muñoz León, ed. Carlos del Valle Rodríguez, (Madrid: CSIC, 1998), p. 277-291.
21.RAMON LLULL, Vida coetânia, I, 2-5. In: OS, vol. I, p. 12-14.
22.As três decisões de Ramon estão descritas em sua Vida Coetânia (I, 5-6). In: OS, vol. I, p. 14-15; a influência da Disputa de Barcelona em sua decisão foi sugerida por PRING-MILL, Robert. D. F.Estudis sobre Ramon Llull. Barcelona: Publicacions de l’Abadia de Montserrat, 1991, p. 39.
23.Não é nosso desejo aqui analisar os aspectos da cabala de Nahmânides. Para isso, indicamos HAMES, Harvey J. The Art of Conversion. Christianity & Kabbalah in the Thirteenth Century. Leiden; Boston; Köln: Brill, 2000, especialmente as páginas 45 a 65.
24.O Talmude (“estudo” em hebraico) é uma compilação das interpretações e comentários da lei oral judaica, codificada na Mishna (tratado de ética e leis baseado na tradição oral do séc. V a.C. até o séc. II d. C.). O texto hebraico da Mishna recebeu novas interpretações e comentários, copiados em aramaico e conhecidos como Guemara. Além de ser uma compilação de leis, o Talmude possui seções relativas a assuntos de natureza não jurídica (medicina, astronomia, ensinamentos e narrativas).
25.LE GOFF, Jacques. São Luís. Biografia. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 713.
26.Para o debate de Paris, ver também MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento. Os debates judaico-cristãos na Idade Média, op. cit., p. 23-42.
27.CARRERAS Y ARTAU, Tomás y Joaquín. Historia de la Filosofia Española. Filosofia cristiana de los siglos XIII al XV. Volum 1. Edició facsímil. Barcelona/Girona, 2001, p. 47. “Concibamos que cualquiera de estos volúmenes demoraba meses, sino años en escribirse con gran denuedo y costo. Estamos hablando del apogeo en la era de los Tosafot (comentaristas talmúdicos de Francia y Alemania cuyas glosas y observaciones se hallan al lado del Talmud en algunos casos y en otros están impresos en libros separados) quienes con mucho coraje y riesgo transmitieron sus escritos que hoy todavía poseemos. Muchos de sus comentarios aún no estaban tan difundidos y serían perdidos para siempre. Esta no fue la primera acometida de Donin en contra de sus anteriores correligionarios. Previamente, ya en 1236 había instigado y participado de la conversión forzosa de algunos judíos de la ciudad de Anjou y Poitiers.” – OPPENHEIMER, David (Rabino y Director de la Comunidad Ajdut Israel de Buenos Aires), Sha’ali Serufa; La quema del Talmud.
28.MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento. Os debates judaico-cristãos na Idade Média, op. cit., p. 43.
29.Ver LEWIS, Bernard. Judeus do Islã. Rio de Janeiro: Xenon Ed., 1990, p. 67-101; MENOCAL, María Rosa. O ornamento do mundo. Como muçulmanos, judeus e cristãos criaram uma cultura de tolerância na Espanha medieval, op. cit., p. 109-118.
30.“A Vikuah de Nahmânides”. In: MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento, op. cit., p. 123.
31.“A Vikuah de Nahmânides”. In: MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento, op. cit., p. 143.
32.“Aqui Jaime I mostrou outras facetas de sua complexa personalidade: seu amor à discussão, manifestado não só no fato de ter-se aventurado como teólogo amador, mas também em sua disposição de ouvir a resposta, e a tolerância básica demonstrada em seu respeito pelas instituições judaicas.” – MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento, op. cit., p. 153.
33.VEJA, Amador. Ramon Llull y el secreto de la vida. Barcelona: Ediciones Siruela, 2002, p. 35.
34.Ars compendiosa inveniendi veritatem (Art abreujada d'atrobar veritat), escrita em Maiorca por volta de 1274 e publicada em Beati Raymundi Lulli Opera, ed. Ivo Salzinger, I (Magúncia: Häffner, 1721; reimpr. F. Stegmüller, Frankfurt, 1965), p. 433-473.
35.RAMON LLULL, Vida coetânia, III, 14. In: OS, vol. I, p. 23.
36.VEJA, Amador. Ramon Llull y el secreto de la vida, op. cit., p. 35.
37.RAMON LLULL. “El Libre del gentil e dels tres savis”, Del Pròleg. In: OS, vol. I,. p. 107-108 (a tradução é nossa). Indicamos também a tradução de Esteve Jaulent, RAIMUNDO LÚLIO. O Livro do gentio e dos três sábios (1274-1276). Petrópolis: Editora Vozes, 2001.
38.Lola Badia prefere o conceito de “expressão literária” do que literatura, seguindo Jordi Rubió i Balaguer. Ver BADIA, Lola. “Ramon Llull i la tradició literária”. In: Teoria i pràctica de la literatura en Ramon Llull. Barcelona: Edicions dels Quaderns Crema, 1991, p. 73-95.
39.BADIA, Lola, BONNER, Anthony. Ramón Llull: vida, pensamiento y obra literária. Barcelona: Sirmio, Quaderns Crema, 1992, p. 166.
40.RAMON LLULL. “El Libre del gentil e dels tres savis”, Del Pròleg. In: OS, vol. I,. p. 109-110; RAIMUNDO LÚLIO. O Livro do gentio e dos três sábios (1274-1276). Petrópolis: Editora Vozes, 2001, p. 43-44.
41.Ver, por exemplo, o cenário paradisíaco na primeira parte do Romance da Rosa (c. 1268), de Guillaume de Lorris. GUILLAUME DE LORRIS, JEAN DE MEUNG. El Libro de la Rosa (introd. de Carlos Alvar, trad. de Carlos Alvar y Julián Muela, lectura iconográfica de Alfred Serrano i Donet). Barcelona: Ediciones Siruela, 2003.
42.RUBIÓ I BALAGUER, Jordi. “Alguns aspectes de l’obra literària de Ramon Llull”. In: Ramon Llull i el lul.lisme. Barcelona: Publicacions de l’Abadia de Montserrat, 1985, p. 286.
43.BADIA, Lola, BONNER, Anthony. Ramón Llull: vida, pensamiento y obra literária, op. cit., p. 166.
44.Il paesaggio nell’immaginario poético – Locus Amoenus – Virgilio, Ecloga II. (consulta no dia 19.11.2004)
45.A bibliografia sobre o jardim islâmico é vasta. Indicaremos apenas algumas obras: DICKIE, James. “The Islamic Garden”. In: Dumbarton Oaks Colloquium on the History of Landscape Architecture, Vol. IV, The Islamic Gardens, Washington, D.C., 1981; SCHIMMEL, Annemarie Schimmel. “The Celestial Garden”. In: MACDOUGALL, Elizabeth and ETTINGAUSEN, Richard (eds.). The Islamic Garden. Dumbarton Oaks, l976, p. 13-39; TABBAA, Yasser. “The Medieval Islamic Garden: Typology and Hydraulics”. In: HUNT, John Dixon (ed.). Garden History: Issues, Approaches, Methods. Dumbarton Oak, 1992, p. 303-29.
46.SÃO BOAVENTURA, Collationes in Hexameron. Citado em GREGORY, Tullio. “Natureza”. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval II. Bauru, SP: Edusc; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 265-266.
47.Almudaina em árabe significa “cidadela”, ou “último recinto fortificado”.
48.Real Sitio de La Almudaina.
49.BADIA, Lola. “Poesia i art al Libre del Gentil de Ramon Llull”. In: Teoria i pràctica de la literatura en Ramon Llull. Barcelona: Edicions dels Quaderns Crema, 1991, p. 26.
50.RAMON LLULL. “El Libre del gentil e dels tres savis”, Del Pròleg. In: OS, vol. I,. p. 111; RAIMUNDO LÚLIO. O Livro do gentio e dos três sábios (1274-1276), op. cit., p. 45-46.
51.RAMON LLULL. “El Libre del gentil e dels tres savis”, Del Pròleg. In: OS, vol. I,. p. 112; RAIMUNDO LÚLIO. O Livro do gentio e dos três sábios (1274-1276), op. cit., p. 47.
52.PARDO PASTOR, Jordi. “Diálogo inter-religioso” ou “diálogo aparente” durante a Idade Média hispânica: Ramon Llull (1232-1316). Conferência proferida no Centro da Cultura Judaica – Casa de Cultura de Israel (São Paulo), no dia 28.07.2004.
53.RAMON LLULL. “El Libre del gentil e dels tres savis”, Del Pròleg. In: OS, vol. I,. p. 112; RAIMUNDO LÚLIO. O Livro do gentio e dos três sábios (1274-1276), op. cit., p. 47.
54.“La unidad era tan vital para Llull que constituía una verdadera obsesió. Su pensar se caracteriza por un fuerte poder centralizador (...) Es toda la ciencia luliana la que está bajo el signo de la unidad...” – OLIVER, Antonio. “El poder temporal del papa según Ramón Llull y postura de éste relativa a las controversias de su tiempo”. In: Estudios Lulianos. Palma de Mallorca: Maioricensis Schola Lullística, Instituto Internacional del Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, vol. V, 1961, p. 102.
55.RAMON LLULL. “El Libre del gentil e dels tres savis”, Del Pròleg. In: OS, vol. I,. p. 113; RAIMUNDO LÚLIO. O Livro do gentio e dos três sábios (1274-1276), op. cit., p. 48.
56.RAMON LLULL. “El Libre del gentil e dels tres savis”, Del Pròleg. In: OS, vol. I,. p. 140-141; RAIMUNDO LÚLIO. O Livro do gentio e dos três sábios (1274-1276), op. cit., p. 82.
57.“A Vikuah de Nahmânides: Tradução e Comentário”. In: MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento, op. cit., p. 111.
58.MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento, op. cit., p. 45. “Penyafort determinou as regras pelas quais se realizaria a Inquisição na Catalunha. Se o sistema tivesse sido aplicado como ele propunha, a Inquisição não teria se tornado mais tarde uma instituição opressiva. Os hereges em exame deveriam ser tratados humanamente, pois o objetivo final da investigação era reformar ut vita. Em casos de dúvida não era permitida a sentença, e só uma declaração, ou uma declaração contraditória contra um homem acusado de heresia, ou ainda, declarações contraditórias de diversos testemunhos, eram consideradas provas suficientes para a não aplicação do castigo. Com uma compreensão pessoal de todas as possíveis faltas religiosas, os hereges teriam de ser aconselhados e moralmente ajudados; também deveriam receber a comida necessária para que não morressem de fome durante a prisão (...) pouco antes de completar essa tarefa, Penyafort renunciou às suas atividades como dominicano para se dedicar a deveres mais práticos e menos dogmáticos de uma outra ordem recentemente fundada: a ordem da Mercê.” – TRUEDA, Josep. L’espirit de Catalunya. Barcelona: Edicions 62, 2003, p. 59. Infelizmente quando, séculos mais tarde, a coroa de Castela estendeu seu domínio à Catalunha, substituiu a Inquisição do rei Jaime I de Aragão criada por Penyafort pela sua, demonstrando e afirmando a nova hegemonia castelhana.
59.COLOMER, Eusebi. “La actitud compleja y ambivalente de Ramon Llull ante el judaísmo y el islamismo”. In: DOMÍNGUEZ REBOIRAS, Fernando y DE SALAS, Jaime (eds.). Constantes y fragmentos del pensamiento luliano. Actas del simposio sobre Ramon Llull en Trujillo, 17-20 septiembre 1994, Tubingen: Max Niemeyer Verlag, 1996, p. 82.
60.BONNER, Antony. OS, vol. I, p. 142-143, nota 2. “Ninguém ilustra melhor a suprema importância da erudição na sociedade judaica medieval. Ele foi tanto o arquétipo como o maior dos catedocratas.” – JOHNSON, Paul. História dos Judeus. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1989, p. 181. Para a filosofia de Maimônides, ver RAMÓN GUERRERO, Rafael. Filosofías árabe y judía. Madrid: Editorial Síntesis, s/d, p. 273-286.
61.Para a teoria medieval dos quatro elementos, ver COSTA, Ricardo da. “Olhando para as estrelas, a fronteira imaginária final – Astronomia e Astrologia na Idade Média e a visão medieval do Cosmo”. In: Dimensões - Revista de História da UFES 14. Dossiê Territórios, espaços e fronteiras. Vitória: Ufes, Centro de Ciências Humanas e Naturais, EDUFES, 2002, p. 481-501; PRING-MILL, Robert.Estudis sobre Ramon Llull. Barcelona: Curial Edicions Catalanes, 1991.
62.Passagem que explica a famosa atividade ad intra de Deus, ação que, na filosofia luliana, dá origem a tudo. Para esse tema, ver BADIA, Lola, BONNER, Anthony. Ramón Llull: vida, pensamiento y obra literária, op. cit., p. 78-79.
63.RAMON LLULL. “El Libre del gentil e dels tres savis”, op. cit., p. 152-153; RAIMUNDO LÚLIO. O Livro do gentio e dos três sábios (1274-1276), op. cit., p. 98-99.
64.RAMON LLULL. “El Libre del gentil e dels tres savis”, op. cit., p. 160; RAIMUNDO LÚLIO. O Livro do gentio e dos três sábios (1274-1276), op. cit., p. 107-108.
65.Veja, por exemplo, essa passagem do Livro das Maravilhas (1288-1289), Livro I, 11: “Senhor, disse Félix, um eremita de vida muito santa entrou em uma cidade onde havia muitos judeus. Aquele eremita andava por toda a cidade para ver e alegrar-se das coisas em que Deus era amado e conhecido, e das coisas contrárias a Deus, chorar e clamar misericórdia para que ordenasse ser mais amado e conhecido. Um dia aconteceu daquele eremita entrar na sinagoga dos judeus e os ouvir maldizerem Jesus Cristo. Os judeus não se preocuparam com sua presença, porque julgaram que ele fosse judeu. Aquele santo eremita teve grande desgosto ao pensar como o rei cristão sofreria ao saber que sua cidade tinha homens que eram contra a lei do rei e que desonravam o Senhor, que era senhor do rei. Quando aquele santo homem eremita saiu da sinagoga dos judeus, viu que o corregedor fazia justiça com um cristão que havia matado um judeu na sexta-feira de Páscoa, porque lembrava a desonra que os judeus haviam feito a Jesus Cristo na cruz, na qual deixaram morto e nu a fim de que lhe fosse feita grande desonra. Muito se maravilhou o santo homem com o fato de o rei e os cristãos daquela cidade poderem conviver com tais gentes, tão contrárias à alta honra que convém à Jesus Cristo, pensando que serão honrados por Ele para sempre na glória de seu Pai, que tanto ama sua honra e todos aqueles que O honram nesse mundo, e que tanto desama todos aqueles que Lhe fazem desonra.” (a tradução é nossa) – RAMON LLULL. OS, vol. II, 1989, p. 62.
66.COLOMER, Eusebi. “La actitud compleja y ambivalente de Ramon Llull ante el judaísmo y el islamismo”, op. cit., p. 82.
67.RAMON LLULL. “El Libre del gentil e dels tres savis”, op. cit., p. 159; RAIMUNDO LÚLIO. O Livro do gentio e dos três sábios (1274-1276), op. cit., p. 106.
68.“A Vikuah de Nahmânides: Tradução e Comentário”. In: MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento, op. cit., p. 123.
69.“A Vikuah de Nahmânides: Tradução e Comentário”. In: MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento, op. cit., p. 124-125.
70.RAMON LLULL. “El Libre del gentil e dels tres savis”, op. cit., p. 161; RAIMUNDO LÚLIO. O Livro do gentio e dos três sábios (1274-1276), op. cit., p. 108-109.
71.“A Vikuah de Nahmânides: Tradução e Comentário”. In: MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento, op. cit., p. 128.
72.“A Vikuah de Nahmânides: Tradução e Comentário”. In: MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento, op. cit., p. 128-129.
73.MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento, op. cit., p. 67.
74.Veja, por exemplo, essa passagem: “Esta Arte existe com a intenção de endereçar aqueles homens que estão no erro, os quais não têm arte nem doutrina para virem à verdade, pois esta Arteé comum a gentios, judeus, cristãos, sarracenos e a todas as gentes de qualquer seita, e isso porque os princípios da Arte são comuns, pelos quais princípios pode-se conhecer qual povo está na verdade e qual está no erro, e é dada doutrina para que o povo que esteja na verdade possa, com a ajuda de Deus, conduzir à verdade o povo que está no erro contra a verdade.” – RAMON LLULL. “Arte demonstrativa”. In: OS, vol. I, 1989, p. 384.
75.“A Vikuah de Nahmânides: Tradução e Comentário”. In: MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento, op. cit., p. 131.
76.“A Vikuah de Nahmânides: Tradução e Comentário”. In: MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento, op. cit., p. 156.
77.Veja, por exemplo, essa passagem do Livro da Alma Racional: “Questão 3: Se a alma tem quantidade composta, convém que sua quantidade seja substancial, já que de partes acidentais não se pode fazer composição? Solução: Se não pudesse ser feita composição de partes acidentais, todos os acidentes das substâncias seriam quantidades indiscretas e descontínuas, e a alma seria de partes discretas e não uma na outra, como o quarto, e a cor do vinho vermelho e da água não teriam uma quantidade contínua na taça que contém o vinho e a água, nem a água quente poderia aquecer a água fria, ou a fria resfriar a quente.” – RAMON LLULL. “Livro da Alma Racional”. In: Obres Originals de Ramon Llull (ed. S. Galmés e outros). Palma de Mallorca: 1950, vol. XXI, p. 244.
78.MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento, op. cit., p. 70.
79.RAMON LLULL. “El Libre del gentil e dels tres savis”, op. cit., p. 165; RAIMUNDO LÚLIO. O Livro do gentio e dos três sábios (1274-1276), op. cit., p. 113.
80.Harvey Hames chamou a atenção que essa crítica de Ramon Llull aos judeus dizia respeito à população em geral, não às elites judaicas. Além disso, Hames acredita que essa afirmação é uma prova do conhecimento de Llull sobre os judeus de seu tempo, pois a pedagogia educacional judaica de então dava mais ênfase nas Escrituras e no Talmude que no estudo das artes liberais. Ver HAMES, Harvey. “Ramon llull y su obra polémica contra los judíos”. In: DEL VALLE RODRÍGUEZ, Carlos (ed.). La controversia judeocristiana en España. (Desde los orígenes hasta el siglo XIII). Homenaje a Domingo Muñoz León. Madrid: CSIC, 1998, p. 331.
81.PARDO PASTOR, Jordi. “Diálogo inter-religioso” ou “diálogo aparente” durante a Idade Média hispânica: Ramon Llull (1232-1316). Conferência proferida no Centro da Cultura Judaica – Casa de Cultura de Israel (São Paulo), no dia 28.07.2004.
82.BONNER, Antoni. “El pensament de Ramon Llull”. In: OS, vol. I, 1989, p. 60.
83.“A Vikuah de Nahmânides: Tradução e Comentário”. In: MACCOBY, Hyam. O Judaísmo em Julgamento, op. cit., p. 157.
84.RAMON LLULL. “El Libre del gentil e dels tres savis”, op. cit., p. 270-271; RAIMUNDO LÚLIO. O Livro do gentio e dos três sábios (1274-1276), op. cit., p. 247.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

História da Bruxaria


As raízes da Antiga Religião
O surgimento do Cristianismo
A era das Fogueiras
O renascer da Bruxaria 

As Raízes da Antiga Religião

Quando iniciamos o estudo de algo que nos é novo, a primeira pergunta que nos vêm à mente é: “de onde surgiu?”. Portanto, nada mais correto do que usar a história da Arte como ponto de partida. De onde veio a Wicca? Como tornou-se o que é hoje? O que ela é hoje?
Wicca é uma palavra do inglês arcaico que quer dizer “bruxo” (plural wicce). Há quem diga que seu significado é “sábio”, mas isso não corresponde à verdade. A palavra tem sua origem na raiz indo-européia ‘wikk-’, significando ‘magia’, ‘feitiçaria’.
O nome Wicca é o mais usado para denominar nossa religião. Ela também é conhecida como Bruxaria, Feitiçaria, Antiga Religião e Arte dos Sábios, ou, simplesmente, A Arte.
As origens da Bruxaria remontam à aurora da humanidade. Nossas crenças começaram a tomar forma no Paleolítico, há aproximadamente vinte e cinco mil anos. Neste período, o ser humano era nômade, e suas principais fontes de subsistência eram a caça e a coleta. Tudo era misterioso para o homem e a mulher do paleolítico: o trovão, o sol, a escuridão… Para eles, o mundo era um lugar perigoso, cheio de forças que deveriam ser temidas, respeitadas e reverenciadas. Com o tempo, a idéia das forças foi evoluindo para a idéia de Deuses. Um dos primeiros e, seguramente, o mais importante Deus primitivo a surgir foi o Deus de Chifres.
Para que o clã nômade sobrevivesse, uma das principais atividades era a caça: dela provinham carne para alimentar-se, peles para vestir-se, ossos e chifres para fazer instrumentos. Os animais considerados mais valiosos, cujo abate cobria de honras aquele que o realizava, eram animais que possuíam chifres, como cervos e bisões. Assim, tomou forma na mente do ser humano primitivo a idéia de um Deus das Caçadas, dotado de chifres, símbolo de seu poder. Alguns membros do clã iniciaram a prática de atividades de caráter mágico-religioso, compostos por um elemento religioso (esboços de rituais e mitos dedicados à adoração do Deus de Chifres, forças da natureza e espíritos dos antepassados) e por um elemento mágico (práticas que tentavam atrair a benevolência destas divindades e espíritos, a fim de manipulá-la para interesses práticos do clã). Neste momento estava se delineando algo que se assemelhava muito a grosso modo com uma classe sacerdotal.
Estes ‘sacerdotes’ realizavam ritos do que hoje é denominado magia simpática, ou seja, práticas baseada na atração dos semelhantes. Pintavam-se cenas de membros do clã vencendo e abatendo animais cobiçados, para garantir o sucesso da próxima caçada. Miniaturas destes mesmos animais eram confeccionadas, em osso, chifre ou barro, e então simulava-se sua caça e abate. Estes ritos eram geralmente dirigidos por um destes ‘sacerdotes’, geralmente usando a primeira de todas as túnicas: peles de animais e uma máscara dotada de chifres. Em Trois Frères, na França, existe uma pintura de doze mil anos, conhecida como “Le Sorcière” (“O Feiticeiro”). É a figura de um homem vestido de peles, com cauda e chifres de cervo. À sua volta, paredes cobertas por pinturas de animais em caçadas. A seus pés, uma saliência na rocha, constituindo um altar.
Mas as caçadas não eram a única coisa que faziam o clã sobreviver. Havia um Mistério: o da fertilidade. O clã precisava continuar. De tempos em tempos, a barriga das mulheres crescia, e, ao fim de algumas luas, delas surgia um novo membro da tribo, pequeno, mas que crescia com o passar do tempo. Os animais também tinham filhotes, e isso garantia o alimento das futuras gerações. A chave de todo esse Mistério era a mulher, aquele enigmático ser que, se já não bastasse ser a única responsável pela continuação da tribo (ainda não havia a consciência da participação do homem na reprodução), também alimentava as crianças com leite de seu próprio corpo. Além disso, aquela criatura mágica vertia sangue de dentro de seu corpo em algumas ocasiões, mas mesmo assim não morria. Todas estas constatações deram origem ao surgimento de uma Deusa da Fertilidade, uma Grande Mãe.
Figuras pré-históricas desta Deusa são incontáveis. Uma das mais famosas é a Vênus de Willendorf: seu corpo parece uma grande massa disforme da qual se destacam um gigantesco par de seios e uma proeminente barriga grávida. Ela não tem pés nem braços, e seu rosto está coberto. Estas características são comuns a várias outras ‘Vênus’ pré-históricas, e se devem à ênfase que o ser humano primitivo dava ao aspecto de fertilidade da mulher . A Deusa era a Grande Mãe Natureza, fonte de toda a vida.
Com o tempo, os homens foram se conscientizando de seu papel na reprodução, e o aspecto de fertilizador passou a ser mais um dos atributos do Deus de Chifres. Ele tornou-se filho da Deusa, pois dela era nascido, e também seu amante, pois a fertilizava para que um novo ser surgisse. A partir desta concepção, novos ritos foram adicionados às práticas mágico-religiosas, onde esculpiam-se ou pintavam-se animais ou humanos copulando, e todo o clã entregava-se ao ato sexual, já tendo recebido a graça dos Deuses.
No Neolítico, o ser humano desenvolveu a agricultura, e começou a formar aldeias e povoados. Com a descoberta das técnicas de plantio, a Deusa assumiu maior importância, passando a acumular também o aspecto de guardiã da colheita. O Deus de Chifres começou a ganhar uma nova face, a de alegre Deus das Florestas, protetor dos animais e criaturas dos bosques. Quando o homem adquiriu a noção das estações do ano, esboçaram-se as primeiras idéias sobre a Roda do Ano. Havia um período quente e fértil, onde realizavam-se as colheitas e a natureza mostrava todo seu esplendor. Neste período, reinava a Deusa em seu aspecto de Mãe Fértil. Mas havia outro período, frio e escuro, quando as folhas das árvores secavam e caíam e tudo parecia estar morto. O povo voltava a depender da caça para sobreviver, pois não podia viver só dos alimentos armazenados. Quem regia este período era o Deus das Caçadas, que também adquiria seu novo aspecto de Sombrio Senhor da Morte (nesta época nasceram também os primeiros conceitos sobre a vida após a morte). Surgiram então os primeiros mitos sobre a descida da Deusa ao mundo subterrâneo, que, séculos mais tarde, tomaria forma definitiva na Grécia, com o mito de Perséfone, e na Mesopotâmia, com a lenda de Ishtar.
As culturas desenvolveram-se com o passar dos séculos, e novos aspectos dos Deuses foram descobertos. Cultos religiosos se estruturaram, centrados nos ciclos de nascimento, morte e renascimento da natureza. O tempo da plantação e o tempo da colheita eram muito importantes, marcados com festividades, assim como o período do recolhimento do gado e a época de sua liberação ao pasto. Nestas datas, juntamente com as de mudanças de estação, realizavam-se encenações de mitos nos quais um Deus Velho morria para um Deus Jovem nascer, representando a morte da antiga colheita e o nascimento de uma nova.
Estes cultos possibilitaram o refinamento da classe sacerdotal, que chegou ao requinte de gerar representantes como os druidas, sacerdotes celtas que encantaram os gregos e romanos com sua profunda filosofia e integração com a natureza. Sua erudição era admirável, e acumulavam funções como a de legisladores, médicos, poetas, bardos e guardiões da tradição oral. Na Grécia Antiga, floresceram os Cultos de Mistério, dos quais deve destacar-se os Ritos de Elêusis e os Mistérios Órficos. Também foram de grande importância os cultos dionisíacos.
Deve-se ter em mente que estas são linhas gerais do início da bruxaria, que confunde-se com o surgimento das primeiras manifestações religiosas humanas. O que relatei acima aconteceu, em épocas diferentes, nos mais variados lugares. É verdade que nem tudo ocorreu exatamente da mesma maneira em todos os lugares: enquanto no Crescente Fértil da Mesopotâmia nasciam avançadas civilizações, na Europa ainda vivia-se de caça e coleta. Mas o que impressiona e é importante não são as diferenças, e sim as semelhanças dos primeiros esboços de religião. Meu objetivo, com a pequena exposição acima, foi dar ao estudante noções de como foi o surgimento da idéia dos Deuses e seu desenvolvimento. Para aqueles que desejarem um estudo mais detalhado, há uma lista de leitura recomendada no fim dos polígrafos.


O Surgimento do Cristianismo

Ao contrário do que se pensa, o cristianismo não foi imediatamente adotado pelo povo europeu ao ser declarado religião oficial do Império Romano. Esta conversão dos Romanos ao catolicismo teve motivos políticos, e não teve grande penetração fora dos centros urbanos. A grande massa da população permaneceu fiel a seus deuses antigos.
Os cultos antigos, então, receberam a denominação pejorativa de “pagãos” (“pagani”, plural de paganu, ‘ morador do campo’), por ter como foco de resistência à nova religião o povo dos campos, longe das cidades e das zonas de comércio e ensino. Os missionários cristãos, com o tempo, passaram a ter mais aceitação nas cidades, mas continuavam sendo repelidos no campo, nas montanhas e nas regiões distantes, verdadeiros enclaves da Antiga Religião.
Houve ainda uma tentativa de reativar o paganismo e o culto aos Deuses antigos como religião oficial do Império Romano. Esta última esperança deveu-se ao Imperador Juliano (conhecido como “O Apóstata”), que reinou no século IV EC. Mas, como sabemos, essa tentativa não foi frutífera, derrubada pela própria conjuntura da época, onde já se pressentia o poder de manipulação, domínio e intriga do cristianismo, evidenciado nos séculos seguintes.
Um dos ardis utilizados pelos cristãos era o de apropriar-se de festividades pagãs como comemorações religiosas de sua própria religião. Assim, por exemplo, o festival do solstício de inverno, onde se comemorava o nascimento do Deus-Sol, transformou-se no Natal cristão. Também o festival de Samhain, comemorado em intenção dos mortos, recebeu o nome de Dia de Todos os Santos, logo seguido pelo dia de Finados. A despeito destas tentativas, as tradições pagãs continuaram mantendo sua força.
A partir de um decreto do papa Gregório, os cristãos também se apossaram dos locais sagrados da Antiga Religião e, derrubando os templos ali existentes, erigiram suas igrejas. Os Deuses de cada santuário foram transformados em santos e santas (um exemplo é Santa Brígida, da Irlanda, na verdade a Deusa Bhríd, protetora do fogo e dos partos). Quando os cristãos deram-se conta da importância da Deusa-Mãe para as pessoas, aumentaram a proeminência da Virgem Maria no culto cristão. Mitos e práticas pagãs foram, sistematicamente, absorvidas, distorcidas e transformadas em ritos cristãos. Esculturas de temas pagãos foram incluídos em igrejas e capelas . O maior exemplo de sincretismo entre costumes pagãos e cristãos é o cristianismo irlandês, que ainda hoje conserva hábitos célticos mesclados a liturgias cristãs. Os padres tinham a seu favor o tempo, o poder e a força. Os pagãos tinham que lutar sozinhos contra a profanação de seus templos, crenças e costumes. Desta maneira, o povo simples dos campos foi acostumando-se à nova religião, e, gradualmente, foi sendo convertido.
Mas os sacerdotes restantes da Antiga Religião não se renderam à nova ordem. Juntamente com pessoas ainda fiéis às antigas crenças, mantiveram o culto ao Deus de Chifres e à Deusa Mãe. As crenças pagãs, enfatizando a adoração aos Deuses e a realização dos festivais de fertilidade, foram amalgamando-se à magia popular, criando a Bruxaria Européia. A magia popular consistia em um conjunto de feitiços feitos com o uso de ervas, bonecos e diversos outros meios. Estes feitiços tinham como objetivo a cura, a boa sorte, atrair amores, e fins menos nobres,como a morte de algum inimigo. São práticas desenvolvidas a partir do que restara da magia simpática pré-histórica, unidas ao conhecimento xamânico dos povos bárbaros. Os teólogos cristãos passaram então a sustentar que a Bruxaria não existia. Assim, pretendiam terminar com a credibilidade dos bruxos e anular sua influência. Foi um período de relativa paz para a Arte.
Mas logo os cristãos perceberam que seus esforços para exterminar completamente o paganismo não haviam dado resultado. Fizeram então mais uma tentativa: transformaram o Deus de Chifres na personificação do Mal, do Antideus, do Inimigo. A natureza dos Deuses pagãos é completamente diferente da do todo-poderoso “senhor de bondade” dos cristãos. Nossos Deuses são quase “humanos”, pois têm características tanto ‘boas’ quanto ‘más’. A teologia cristã já pressupunha a existência de um antagonista a seu Jeová (o ‘Satan’ hebraico do Antigo Testamento e o ‘diabolos’ do Novo): um Inimigo. Ele ainda não possuía forma definida e, quando era representado, o era em forma de serpente, como a que persuadiu Adão a comer a fruta da Árvore da Sabedoria. Dando a seu Satã a forma do Deus de Chifres (notadamente de deuses agropastoris como Pã e Sileno, dotados de cascos de bode e pequenos cornos), os cristãos conseguiram iniciar um clima de terror e medo em relação aos praticantes da Antiga Religião, o que os forçou a praticarem seus ritos em segredo. Mas a era mais triste da Arte ainda estava por vir.


A Era das Fogueiras

A situação da Igreja até o século XIII era caótica. Facções adversárias lutavam entre si, cada uma degladiando-se em favor de um dogma. Nos numerosos concílios realizados, ora uma das facções impunham sua visão, ora outra. Isso favorecia um desmoralizante ‘entra-e-sai’ de dogmas, o que desacreditava a Igreja. Algumas destas facções também criticavam a corrupção e o jogo de poder dentro da classe sacerdotal, e levantavam dúvidas sobre o poder espiritual do papado. Foi então criado um instrumento de repressão: o Tribunal de Santa Inquisição. Consistia em um corpo investigatório ignorante, brutal e preconceituoso, dirigido pela ordem dos Dominicanos. Sua função primordial era a de acabar com as facções que se opunham à Igreja (denominadas ‘heréticas’), através do extermínio sistemático de seus membros. Exemplos destas facções ‘heréticas’ eram os cátaros, os gnósticos e os templários.
Com o tempo, os cristãos perceberam outro uso para seu Tribunal. Ainda persistiam cultos aos Deuses Antigos, e, graças à transformação do Deus de Chifres no Demônio Cristãos, eram acusados de delitos absurdos, como o canibalismo, a destruição de lavouras (acusar de tal crime uma Religião dedicada à manutenção da fertilidade das colheitas é, no mínimo, ridículo) e muitos outros. Foi então proclamada, em 1484, a Bula contra os Bruxos, pelo Papa Inocêncio VIII. Neste documento, ele relacionava os crimes atribuídos aos bruxos e dava plenos poderes à Inquisição para prender, torturar e punir todos aqueles que fossem suspeitos do ‘crime de feitiçaria’. Em 1486 foi publicado o Malleus Malleficarum (‘Martelo dos Feiticeiros’), escrito pelos dominicanos Kramer e Sprenger. O livro, absurdo e misógino, era um manual de reconhecimento e caça aos bruxos, e, principalmente, às bruxas (o livro trazia afirmações surpreendentes, como : “quando uma mulher pensa sozinha, pensa em malefícios”). A partir daí, a Igreja abandonou completamente a postura de ignorar a Bruxaria: pelo contrário, não acreditar na sua existência era considerada a maior das heresias. Iniciou-se então um período de duzentos anos de terror, conhecido entre os bruxos como “Era das Fogueiras”. Mas os bruxos (e também os hereges e inocentes: doentes mentais, homossexuais, pessoas invejadas por poderosos, mulheres velhas e/ou solitárias) não pereciam só em fogueiras: eram também enforcados e esmagados sob pedras. Isso quando não pereciam nas torturas, as quais são tão cruéis e sádicas que não merecem nem ser mencionadas.
A Inquisição tornou-se uma válvula de escape para as neuroses da época: em época de forte repressão sexual, condenavam-se mulheres jovens, que eram despidas em frente a um grupo de ‘investigadores’, tinham todo seu corpo revistado diversas vezes, à procura de uma suposta ‘marca do diabo’, e, por fim, eram açoitadas, marcadas a ferro e violentadas. Terminavam condenadas e executadas como bruxas. Seu crime: serem mulheres jovens, belas e invejadas. Anciãs que moravam sozinhas, geralmente em companhia de alguns animais, como gatos (daí a lenda da ligação dos gatos com as bruxas), eram alvo de desconfiança e logo declaradas ‘feiticeiras’, e, assim, assassinadas. A maioria das vítimas dos tribunais de Inquisição não eram verdadeiros praticantes da Arte, mas muitos bruxos pereceram na mão dos cristãos. Aproximadamente nove milhões de crimes como este foram cometidos durante a Inquisição, ironicamente em nome de uma religião que se dizia ‘de amor’. Nunca uma religião demonstrou tanta necessidade de exterminar seus antagonistas como o cristianismo.
A perseguição aos bruxos não resumiu-se apenas ao países católicos: espalhou-se pela Europa protestante. Os protestantes não se guiavam pelo Malleus Malleficarum, mas davam razão à sua paranóia através do uso de uma citação do Antigo Testamento: “não deixarás que nenhum bruxo viva”.
Na Era das Fogueiras, os praticantes da Antiga Religião adotaram o único comportamento que lhes possibilitaria a sobrevivência: “foram para o subterrâneo”, ou seja, mantiveram o máximo de discrição e segredo possível. A sabedoria pagã só era passada por tradição oral, e somente entre membros da mesma família ou vizinhos da mesma aldeia. Como técnica de proteção, os próprios bruxos ajudaram a desacreditar sua imagem, sustentando que a Bruxaria não passava de lenda, ou disseminando idéias de bruxos como figuras cômicas e caricatas, dignas de pena e riso.
Por volta do final do século XVII, a perseguição aos bruxos foi diminuindo gradativamente, estando virtualmente extinta no século XVIII. A Bruxaria parecia, finalmente, ter morrido. Mas os grupos de bruxos (“covens”) resistiam, escondidos nas sombras. Algo que surgiu nos primórdios da humanidade não morreria assim tão facilmente. 

O Renascer da Bruxaria

A partir da metade do século XIX, a Bruxaria tornou-se novamente objeto de discussão, graças ao renascer do interesse em mitologia, folclore e magia. Em 1862, Jules Michelet lançou sua obra “A Feiticeira” , na qual falou sobre a sobrevivência dos cultos pagãos nas Idades Média e Moderna e sobre o surgimento paralelo do satanismo. Apesar de importante, as principais intenções de seu livro eram políticas: pretendia provar que a Bruxaria era um culto surgido nas camadas inferiores da sociedade em protesto à repressão da classe dominante. Isso pode ser verdadeiro para o satanismo, mas não corresponde à realidade quando se trata de Bruxaria.
Mas isso não diminui a importância de seu livro: sua tese da sobrevivência dos cultos pagãos influenciou o trabalho de vários antropólogos e folcloristas do final do século XIX e do início do século XX. Um deles foi o norte-americano Charles Leland, um folclorista conhecido na época por suas pesquisas sobre cultura cigana. Em 1899, Leland lançou um livro intitulado “Aradia, ou o Evangelho das Bruxas”. Foi a primeira obra de grande importância para o renascimento da Bruxaria no século XX. Neste livro, Leland registrava as crenças reunidas por uma bruxa toscana chamada Maddalena, que ele conhecera em uma viagem pela Itália no ano de 1866. O livro fala da vecchia religione praticada naquela região: o culto à Deusa Aradia, filha de Diana com seu irmão Lúcifer. Aradia foi la prima strega (‘a primeira bruxa’), enviada à Terra por sua mãe para ensinar as artes da feitiçaria aos humanos. A idoneidade do livro é contestada atualmente por alguns historiadores da feitiçaria, que argumentam que Leland dirigiu sua pesquisa para enquadrar-se em suas concepções e nas idéias de Michelet. Outros dizem ainda que Maddalena traiu a boa fé do folclorista. O fato é que nada disto tira o mérito do livro, um clássico da Bruxaria moderna.
A década de 20 produziu dois importantes livros para a Bruxaria moderna: um deles foi “O Ramo de Ouro” (‘The Golden Bough’), gigantesca obra do antropólogo James Frazer, versando sobre rituais de fertilidade. As idéias que expôs em sua obra, juntamente com o conhecimento passado por Leland em ‘Aradia’ levaram a antropóloga Margaret Murray a lançar seu importante livro “O Culto de Bruxaria na Europa Ocidental” (‘The Witch-Cult in Western Europe’), em 1921. Nele Murray sustentava que a Bruxaria era uma antiquíssima religião organizada, presente em toda a Europa, baseada no culto a um deus chifrudo da fertilidade, que ela denominou de Dianus (ela falou mais sobre ele em seu livro ‘The God of the Witches’). De acordo com ela, essa religião havia sobrevivido à perseguição e continuava com suas práticas, de maneira oculta. Muitas críticas já foram feitas à Murray, e a maioria se baseou na fraqueza de alguns de seus argumentos para defender a suposta ‘organização’ dessa religião. Hoje sabemos que ela não era tão organizada nem praticada em tantos lugares quanto Murray sustentava, mas indubitavelmente existia um culto pagão, praticado de formas diferentes em lugares diferentes, que sobreviveu à perseguição.
Em 1948 Robert Graves escreveu sua excelente obra ‘A Deusa Branca’ (‘The White Goddess’), no qual concordava com Murray quanto à existência de um culto pagão disseminado pela Europa, mas apoiava a tese de que sua divindade mais importante era uma Deusa-Mãe, e não o Deus de Chifres. Três anos depois, em 1951, caíram as últimas leis anti-feitiçaria da Inglaterra. A porta estava aberta para os bruxos.
Surge então Gerald Gardner, o mais importante personagem do renascimento da Bruxaria como religião. Gardner era um folclorista inglês, amigo pessoal do grande mago Aleister Crowley. Admirador de Frazer e Murray, realizava profundas pesquisas sobre os cultos de fertilidade pré- cristãos e sua sobrevivência. No decorrer destas pesquisas, em 1939, conheceu um grupo de pessoas que mais tarde descobriu fazerem parte de um Coven secreto (como o eram todos, na época). Gardner ficou fascinado: a existência destes bruxos confirmava as teses de Margaret Murray. Estabeleceu uma relação de amizade profunda com os membros deste Coven (denominado Coven de New Forest), e acabou por receber Iniciação.
O Coven de New Forest, dirigido por uma bruxa conhecida por ‘Old Dorothy’, era representante de uma tradição que havia sobrevivido às perseguições. Há quem insinue que Gardner inventou o Coven para dar bases à seu trabalho posterior, e que Old Dorothy nem ao menos existiu. Essas declarações foram refutadas com alegadas evidências históricas por Doreen Valiente, no ensaio “Em Busca de Old Dorothy”, publicado no livro “The Witches’ Way” (‘O Caminho dos Bruxos’), do casal Janet e Stewart Farrar. Com o passar do tempo, Gardner preocupou-se com o futuro da Tradição, pois todos os membros do Coven eram idosos, e não havia previsão de aceitar novos iniciados. Ele não aceitou esse destino, e pediu permissão para publicar algumas práticas da religião. Relutantes, os Sábios do Coven negaram.
Mesmo assim, Gardner publicou, em 1948, “High Magic’s Aid”, um romance no qual descrevia, sutilmente, alguns rituais da Arte. A publicação do livro causou polêmica entre o Coven de New Forest, e Gardner quase foi banido. Mas, com a queda das leis anti-feitiçaria, os Sábios do Coven reviram sua posição e deram permissão a Gardner para afirmar que a Bruxaria estava viva, desde que não revelasse nenhum segredo. Então, em 1954, Gerald Gardner publicou o primeiro livro da Bruxaria Moderna: “Witchcraft Today”, seguido de “The Meaning of Witchcraft” (1959). Neles, Gardner afirmava estarem certas as teorias de Murray, pois ele mesmo era um bruxo iniciado. Os livros falavam apenas superficialmente sobre a Tradição que lhe havia sido confiada, concentrando-se mais no aspecto histórico da religião.
Paralelamente à publicação dos livros, Gardner saiu do Coven de New Forest e iniciou seu próprio Coven, iniciando pessoas que lhe pareciam sinceras e dedicadas. A essas pessoas, transmitia integralmente o conteúdo de um manuscrito, por ele denominado de “Livro das Sombras”. Este livro continha integralmente a Tradição do Coven de New Forest, mesclada a práticas mágicas retiradas da Clavícula de Salomão e dos escritos de Crowley. Seu conteúdo, copiado por todo iniciado, passou a ser denominado de Tradição Gardneriana, a primeira Tradição da Bruxaria Moderna.
O ‘Livro das Sombras’ Gardneriano teve três versões, conhecidas pelas letras A, B e C. O texto que é utilizado atualmente pelos Covens Gardnerianos é o C, escrito por Gardner em conjunto com uma de suas iniciadas, Doreen Valiente, responsável por grandes mudanças no texto original. Valiente ‘paganizou’ ao máximo os ritos e textos, retirando qualquer influência de magia judaico-cristã ou textos escritos por Crowley. Atualmente, a Gardneriana é a mais sigilosa de todas as Tradições modernas.
Gardner morreu em 1964, e o comando de seus Covens foi passado à Monique Wilson, conhecida como Lady Olwen. Na década de 60, surgiu outro personagem importante na história moderna da Arte: Alex Sanders, que recebeu o título de “Rei dos Bruxos”. Sanders era um grande interessado em bruxaria, que nunca havia conseguido ingressar em um dos Covens Gardnerianos. De algum modo que até hoje não está bem esclarecido, conseguiu tomar posse de um ‘Livro das Sombras’ Gardneriano. Uniu o conhecimento do livro (provavelmente cópia do texto A) ao que afirmava ter sido transmitido por sua avó, uma bruxa familiar. Sanders possuía um temperamento completamente antagônico ao de Gardner. Era um especialista em marketing pessoal, o que lhe deu extrema notoriedade. Milhares de pessoas foram iniciadas em seus Covens, e ele aparecia em entrevistas em TV, rádio e jornais. Era tão público que foi ameaçado de maldição por bruxos mais tradicionais, temendo que ele revelasse algum grande segredo da Arte. Mas isto nunca ocorreu: Sanders era um ‘show-man’, mas não era burro.
A Tradição Alexandriana, fundada por Alex Sanders, é muito semelhante à Gardneriana. Sua principal diferença é a maior ênfase mágico-cabalística, quase inexistente na Tradição de Gardner. Sanders morreu em 1988, mas sua Tradição é uma das mais difundidas no mundo. Existe também uma Tradição moderna denominada Alexandriana-Gardneriana (Al-Gard), que tenta conciliar os ensinamentos de ambas, com a inclusão de novos elementos, em sua maioria de origem céltica. Os maiores representantes públicos atuais da Al-Gard são Janet e Stewart Farrar, da Irlanda.
Nos EUA, o primeiro bruxo a se manifestar publicamente foi o anglo-gitano Raymond Buckland, iniciado por Gardner e Lady Olwen. Considerado pelo próprio Gardner um de seus herdeiros, Buckland migrou para os Estados Unidos logo após a morte do bruxo. Lá, ganhou notoriedade por seus livros sobre Ocultismo e por ser o fundador da Tradição Saxônica da Bruxaria, a Seax-Wica. Nos Estados Unidos, com raras exceções, a Arte ganhou um novo aspecto, inexistente na Bruxaria Européia: o aspecto político.
A Bruxaria uniu-se ao feminismo para gerar uma nova forma da Religião. Surgiram então Covens denominados “Diânicos” , formados só por bruxas. Algumas das representantes da Bruxaria feminista americana são Starwahk, Zsuzsana Budapest e Laurie Cabot. Com exceção da primeira, nenhuma delas é levada muito a sério pelos bruxos tradicionalistas europeus, que julgam-nas produtoras de distorções no verdadeiro espírito da Arte.


O Sabbath e as Missas Negras


Julius Evola  
Em apêndice ao que acabamos de expor no que se refere a evocações suprassensíveis com base erótica, indicaremos brevemente o conteúdo real das experiências do Sabbat e igualmente das chamadas missas negras.

A «demonologia» dos séculos passados é, na sua generalidade, um assunto interessante que espera ainda ser estudado convenientemente. Este ponto de vista não é professado nem pelos autores que, do ponto de vista teológico, tudo imputam ao satanismo, como sucedeu outrora com os juízes da Inquisição, nem por aqueles que desejariam reduzir tudo a puras superstições ou a fatos derivados da psicopatologia e da histeria. Os defensores do segundo ponto de vista — psiquiatras e psicanalistas — esforçaram-se recentemente por destruir toda a interpretação teológica e sobrenatural através de provas experimentais, indicando os casos em que simples tratamentos psicoterapêuticos fizeram desaparecer variados fenômenos atribuídos anteriormente a influências ou a contatos demoníacos. Este fato confirma a superficialidade que caracteriza tudo aquilo a que nos nossos dias se convencionou chamar «científico» ou «positivo». Desprezou-se, contudo, a possibilidade de certos indivíduos tarados apresentarem de fato distúrbios psíquicos reais, mas de tudo isso não constituir senão uma simples condição ou causa ocasional para a manifestação ou inserção supra-sensível de fatos de ordem diferente. Em todos os casos deste género é evidente que, se dum modo ou do outro, se consegue «curar» o indivíduo, as manifestações cessarão uma vez que desapareceu a sua possibilidade material sem que isso no entanto tenha algum significado quanto à sua verdadeira natureza, e à existência duma dimensão mais profunda nos fenômenos observados. Abstraindo, evidentemente, outros casos que, por pertencerem ao passado, não se podem tornar objeto dum exame apropriado, mas que foram, no entanto, incluídos no número daqueles que fornecem o pretexto à interpretação psicopatológica simplista que acabamos de indicar.
Quanto ao Sabbat, e mesmo que se estabeleça uma larga margem para aquilo que se pode atribuir à superstição e à sugestão (sugestão espontânea ou criada nos acusados no decorrer do processo) estão confirmados certos fatos de experiência interior de estrutura suficientemente constante e típica. Com o fim de propiciar estas experiências em determinados indivíduos, predispostos ou não, empregavam-se substâncias cujos efeitos eram análogos aos dos filtros. Do lado material, figuram entre estas substâncias quer os pós afrodisíacos, quer os narcóticos e os estupefacientes — os textos dessa época mencionam a beladona, o ópio, o acónito, o quadrifólio, o meimendro, as folhas de choupo, certas espécies de papoila, etc. além das gorduras animais que facilitavam as misturas, permitindo confeccionar unguentos, que por absorção cutânea intoxicante provocavam um duplo efeito. Obtinha-se, por um lado, um sono profundo e a libertação da força plástica da imaginação para a produção de imagens de sonhos lúcidos e de visões; e por outro, o despertar da força elementar do sexo e a sua ativação nesse plano extático-visionário e imaginativo. Os outros mencionam, contudo, uma espécie de consagração ritual das substâncias empregadas — diz-se por exemplo: «n’oubliant pas en teste composition l’învocatîon particulière de leurs démons, et cérémonies magiques instituées par iceux» O. Estas palavras aludem, evidentemente, a uma operação secreta tendo por fim dar uma «eficácia» especial à ação das drogas em questão. É evidente que este fator deveria ter uma importância fundamental neste conjunto. Reconhecer-lhe, ou não, uma certa realidade, depende, por exemplo, da medida em que se crê não se reduzirem os sacramentos a simples cerimônias simbólicas. É, certamente, devido a este fator que se verifica a diferença entre a ação geral e desordenada que os estupefacientes e os afrodisíacos podem, ainda hoje, exercer nos novatos, e a ação específica ligada a fatos evocadores que dava origem às experiências do Sabbat. Poderemos, enfim, supor como fator ainda mais essencial, algo como uma «tradição»: um fundo fixo de imagens deveria ser transportado por uma corrente psíquica coletiva, na qual se inseria cada individualidade, no próprio ato de se agregar aos grupos que se entregavam a tais práticas, daí derivando uma grande concordância nas experiências fundamentais.
Na sua Daemonomania, Johannes Vierres tinha sustentado já a tese, oposta à de Bodin, de que embora estas experiências tivessem por base uma influência sobrenatural (o «diabo») se produziam num estado do sono ou de transe, em que o corpo se mantinha imóvel no mesmo lugar, enquanto o indivíduo supunha dirigir-se fisicamente para o Sabbat. Görres narrou certas experiências feitas no século XIV por um beneditino (seguidas de outras até pelo próprio Gassendi) com pessoas que, depois de terminados os preparativos rituais para se dirigirem ao Sabbat, foram amarradas aos seus leitos e observadas. Caíam, freqüentemente, num sono profundo, letárgico ou cataléptico, a ponto de não serem despertadas nem por queimaduras ou picadas. Seja como for, encontramos nas informações que chegaram até nós uma constante, isto é, que «para ir ao Sabbat» era necessário adormecer depois de untado com um ungüento e de ter pronunciado fórmulas determinadas. A interpretação mais simples seria, pois, que se tratava de orgias da imaginação erótica, vividas durante o sono. Contudo, aquele que sabe que este estado implica uma alteração do nível da consciência no ensinamento tradicional hindu, ou seja, a passagem virtual ao chamado plano «subtil», pode pensar em qualquer coisa mais do que uma fantasmagoria sugestiva do mesmo gênero de um sonho banal. Por outro lado, de Nynauld, autor por nós já citado, distingue, ao classificar as diferentes espécies de ungüentos segundo a sua ação, vários que poderiam provocar «tin transport qui ne se fait pas simplement par illusion estant endormy profondément», isto é, que teriam como efeito senão uma verdadeira deslocação, pelo menos uma bilocação: um «ir ao Sabbat», diverso duma pura alucinação solitária e subjetiva.
Poderemos considerar esta última possibilidade como sendo real, na medida em que, se admite, em princípio, a realidade em certos casos de fenômenos de bilocação; sabemos que são também mencionados na vida dos santos cristãos (1). Devemos contudo notar que no decorrer dos controles acima indicados se constataram menos casos de desdobramento como o que se verificava naquele que, imobilizado e inanimado no seu leito por virtude das drogas, podia por vezes relatar com exatidão o que se passava à sua volta (Görres). Não devemos, pois excluir completamente a possibilidade de experiências, que sendo embora essencialmente «psíquicas» não tiveram todavia o caráter de irrealidade dos sonhos comuns e das alucinações dos esquizofrênicos, apresentando, ao contrário, uma dimensão objetiva sui generis. Não devemos excluir também a possibilidade de terem persistido, na Idade Média, resíduos de ritos extremamente antigos, extáticos, que culminavam no ato sexual, como se fosse um sacramento, e que apresentavam muitas das características atribuídas ao Sabbat. Figurava neles uma divindade cornuda denominada Cernunnos, tendo sido descoberto por baixo dos alicerces do templo da Grande Deusa cristã, Nossa Senhora de Paris, um altar consagrado a esta divindade (2). Qualquer que tenha sido o plano sobre o qual se desenvolveu a experiência dos adeptos, devemos notar que os participantes da cerimônia, real ou vivida num transe lúcido, fizeram confissões espontâneas, sem tortura — morriam sem medo e sem remorso, convencidos de terem assegurado a vida eterna. As jovens declaravam ter assistido à cerimônia por êxtase para com o deus, sentido no seu coração e na sua vontade, diziam que o Sabbat era a «religião suprema», que se tratava do verdadeiro paraíso, fonte de prazeres extáticos de tal ordem que seria impossível descrevê-los; orgulhavam-se das suas experiências e afrontavam a morte com a mesma firmeza tranquila dos primeiros Cristãos (3).
No que se refere todavia ao conteúdo das experiências do Sabbat propriamente ditas, trata-se em particular de evocações imprecisas de arquétipos e de situações rituais relacionadas justamente com os antigos cultos. Podemos se quisermos referirnos à subconsciência coletiva considerada como receptáculo de imagens já vividas, capazes de se atualizarem de novo, de ser revitalizadas no plano subtil, às quais se misturam, contudo, toda a espécie de resíduos do subconsciente individual, pois devemos lembrar-nos igualmente que, em princípio, os sujeitos destas experiências pertenciam ao povo, e não tinham nem uma preparação, nem uma tradição regulares, comparáveis à dos Mistérios antigos. Temos além disso de ter em linha de conta o fato duma deformação ou degradação particular devido à presença duma tradição diferente estigmatizante, como sucedia com a tradição cristã, que a tudo quanto era sexo atribuía um caráter pecaminoso. Nestas circunstâncias, e num regime de evocações confusas e desordenadas, podem bem surgir nas manifestações formas «antinômicas» e «diabólicas». O demonismo não se refere, freqüentemente, senão à maneira particular e distorcida como se apresentam motivos e figuras dum culto precedente, no âmbito dum outro culto que o segundo veio substituir. Deparamos com numerosos casos na história das religiões. Quando, no mecanismo do subconsciente se revitalizaram resíduos psíquicos deste gênero, sucede que tomem facilmente como apoio imagens contrárias, demoníacas, até mesmo satânicas (4).

Podemos, pois, pensar que aquele que tentava experiências como as do Sabbat, raramente se apercebia do seu conteúdo real, não o vivendo senão indiretamente, através da fantasmagoria, da sarabanda, do modo de fornecer de boa-fé confissões conformes ao cenário diabólico que os inquisidores já tinham montado. Diremos, finalmente, algumas palavras a propósito do elemento animal que figura nestas fantasmagorias. Deveremos recordar aqui os efeitos eventuais duma agitação das camadas mais profundas, pré-pessoais do ser, onde se encontram também as possibilidades latentes e as co-possibilidades animais excluídas pelo processo evolutivo que formou a figura humana típica. Estas possibilidades que tomam também uma parte importante no totemismo dos povos primitivos, podem ser ativadas e arrastadas no processo evocatório e produzir por projeção (quase como através da sua «assinatura») imagens humano–animais ou deformações animalescas da figura humana, correspondendo, em geral, àquilo que no processo global desperta de mais degradado e informe (como antiforme). Porém este processo é igual sob todos os outros aspectos ao desenfreamento dionisíaco e aos antigos ritos de iniciação eróticoorgíaca.
S. de Guaita, na base de informações de autores — como Buguet, N. Remígius, Bodin, Del Rio, Binsfeldins, Dom Calmet, etc. — que, no decorrer dos séculos passados, se ocuparam deste assunto (5), reconstruiu a estrutura principal das experiências do Sabbat nos seguintes termos: No encontro diabólico a «rainha do
Sabbat» aparecia como uma jovem nua de particular beleza montando um carneiro negro (diz-nos Pierre de Lancre: «Toutes celles que nous avons vues qualifiées du tiltre de Roynes estaient douces de quelque boanté plus singulieres que les aultres».
O bode iniciava a virgem por meio duma série de sacramentos (encontramos o equivalente desta cerimônia na consagração tântrica das mulheres por meio do nyâsa) sendo ungida e depois violada sobre o altar. Seguia-se uma orgia geral, pandêmica, em que o modo antinômico da manifestação em que se verificava um eros elementar, isto é, um eros no estado livre, e destituído de qualquer forma, se dramatizava por vezes através de relações adúlteras, incestuosas, ou contra a natureza — à parte a experiência duma posse carnal, polimorfa e simultânea vivida pela nova sacerdotisa. Sobre o seu corpo estendido, como que sobre um altar palpitante, o bode transformado em figura humana, ou semi-humana, oficia, oferecendo trigo ao «Espírito da Terra», princípio de toda a fecundidade, libertando por vezes pássaros, como rito simbólico duma libertação para os assistentes (evocação do «demônio da liberdade» — e recordamos que um dos nomes dados a Dionísio, em Roma, era também Liber). Amassava-se uma bola para se proceder a uma «confarraetio», isto é, a uma comunhão por meio da ingestão de parcelas distribuídas aos assistentes. Pensa-se que no fim da cerimônia a rainha do Sabbat se levantava, e, vítima triunfante, gritava uma fórmula como a seguinte: «Raio de Deus, ataca se ousas»; num rito do mesmo gênero, de base sexual, cuja existência na Slavónia está confirmada até ao século XII, a fórmula empregada teria sido:

«Alegremo-nos hoje, porque Cristo foi vencido (6).» Um elemento a seu modo objetivo teria sido constituído pelo fato de que aquele que participava nesta iniciação orgíaca teria obtido a revelação de segredos e processos, como os da composição de filtros, venenos ou elixires. Parece estar suficientemente confirmada a posse de semelhantes dons (7). Segundo os dados recolhidos, em certas formas de Sabbat invocava-se Diana e com ela Lucifer, transposição evidente, «invertida» do deus masculino luminoso (8). Sabe-se que na área germânica Vrowe Holda constituía uma figura central; possuía os traços ambivalentes, suaves e terríveis de distribuidora de graças e destruidora, que já foi por nós analisada no arquétipo feminino; aqui o monte de Sabbat e da noite de Walpurgis confundia-se com aquele que Vénus teria elegido para seu domicílio, o qual, segundo as perspectivas cristãs, se teria transformado num local demoníaco e de pecado. No caso dos ritos reais, é significativo o fato de serem freqüentemente celebrados próximo das ruínas de templos pagãos e de destroços antigos (por exemplo o cume do Puy-de-Dôme, no Auvergue, onde se encontravam os restos de um templo de Ermete), de dolmens e de outros monumentos megalíticos.
Observou-se com freqüência que no cenário fantasmagórico do Sabbat reaparece, com a figura do bode, o hircus sacer, animal simbólico sagrado, identificado pelos gregos ora a Pã, ora ao próprio Dionísio, pelo qual as jovens se deixavam possuir num dos cultos da Antiguidade egípcia, no sentido duma hierogamia. A mulher nua, adorada como deusa viva, é uma variante dum antigo tema mediterrânico; recordamos já, por exemplo, que na área egeia, o culto da deusa se confundia freqüentemente com o da sua sacerdotisa, e mencionamos também o fato de subsistirem resíduos análogos nas cerimônias orgíacas secretas de certas seitas eslavas. Tinham sido atribuídas aos Gnósticos, embora tendenciosamente, certas estruturas rituais semelhantes à do Sabbat; assim, Marco, o Gnóstico, teria desflorado jovens excitadas que fazia subir desnudadas ao altar, consagrando-as por este meio e tornando-as profetisas. Se este fato tiver correspondido à verdade, tratar-se-á evidentemente da técnica de iniciação sexual que já analisamos, mencionando também o fator específico constituído pelo desfloramento. Através do testemunho de Plínio (9) sabe-se também que se realizaram, na Antiguidade, Sabbats noturnos sobre o monte Atlante: danças desenfreadas e desencadeamento orgíaco das forças elementares do homem com a presença ou a manifestação de antigas divindades da natureza. Devemos pois pensar que a base do Sabbat foi constituída por uma reativação destas estruturas rituais, baseadas numa obscura libertação de energias no plano subtil: no qual podem efetivamente atuar formas de arquétipos e verificar-se formas de êxtases raramente realizadas no domínio da consciência em estado de vigília. Veremos, de resto, suficientemente confirmada a idéia de que mesmo no caso de ritos praticados com pessoas humanas reais, com atos materiais e acessórios físicos, a condição necessária para que esses ritos tenham qualquer eficácia, é que a consciência se desloque exatamente para o plano subtil.
Aludimos já às causas técnicas da «diabolização» da experiência, e ao papel que nela pode ter desempenhado um fator específico, isto é, a inibição e a condenação teológica da sexualidade próprias ao cristianismo. Em princípio devemos, contudo, considerar também a possibilidade dum emprego instrumental consciente de tudo quanto apresente a característica dum substrato demoníaco e informe, refreado pelas formas duma religião determinada: utilização esta que está ligada ao objetivo de uma transcendência particular destas formas e duma participação potencial no incondicionado. Poderíamos dizer, de um modo talvez mais claro, que apresentando-se a forma nestes casos como uma limitação, aquilo que se encontra abaixo da forma será perigosamente mobilizado como meio contra ela para atingir o que está acima (a esta forma correspondem, sobretudo nas religiões teístas, figuras divinas determinadas, dogmas, preceitos positivos, interdições, etc.). Em casos anômalos em que se fica, apesar de tudo, na corrente psíquica da tradição correspondente, uma técnica como esta pode apresentar efetivamente traços de uma contra-religião, de uma religião invertida, ou de «satanismo».
Neste contexto convém pôr em evidência um pormenor interessante. Segundo a descrição do Sabbat, o crisma da fé satânica dos participantes teria sido um beijo obsceno (l’osculum sub cauda) dado ao deus do rito, à sua imagem, ou àquele que o representava como oficiante. Contudo, em certos testemunhos, declarava-se claramente que não era exigido qualquer rito deste gênero. Seja como for, poderá tratar-se duma versão deformada de modo incrível e obsceno, dum fato totalmente diverso. O próprio De Lancre observa que o ato de que se tratava realmente dizia respeito a um segundo rosto negro que o ídolo ou o oficiante tinham atrás da cabeça, por vezes sob a forma de máscara presa à nuca, o que o fazia apresentar dois rostos, tal como a cabeça de Janus (10). É assaz transparente o simbolismo de tudo isto: se a face anterior e clara representava o Deus «exterior» e manifesto, a face posterior e negra era o símbolo da divindade abissal, informe e superior à forma; é a divindade a que se referem os Mistérios egípcios na fórmula do último segredo: «Osiris é um deus negro», encontrando-se também na primeira patrística grega alusões muito precisas a esta fórmula, influenciadas pela misteriosofia e pelo neoplatonismo, como, por exemplo, em Dionísio, o Aeropagita. Assim, em lugar dum rito obsceno de feitiçaria, poderia tratar-se duma profissão de fé ou duma «adoração» cujo objeto era justamente a divindade informe no quadro da técnica acima indicada, isto é, da utilização daquilo que é inferior à forma para atingir aquilo que lhe é superior, «o deus negro», o Deus Ignotus. E contudo difícil saber em que medida é este o verdadeiro significado em várias cerimónias e cultos obscuros, entre os quais poderiam incluir-se igualmente as missas negras.
Embora as informações de que dispomos a propósito destas, e das suas celebrações efetivas, sejam raras e duvidosas, é-nos contudo suficientemente confirmada a técnica duma inversão «diabólica» do ritual católico. Abstraindo aqui o modo absolutamente blasfematório, grotesco e sacrílego próprio a descrições como o relato romanceado de Huysmans, o pouco que chega ao nosso conhecimento referese a operações de finalidade menos extática do que baixamente mágica: como, por exemplo, no caso da missa negra que Catarina de Médicis teria feito celebrar. De qualquer modo, reaparece na estrutura da cerimónia a dos ritos antigos do Mistério afrodisíaco e tudo quanto era vivido na fantasmagoria do Sabbat actuava, aqui, no plano da realidade. O centro do rito era efetivamente constituído por uma mulher nua estendida sobre o altar desempenhando o seu corpo essa função. A posição por vezes indicada — pernas afastadas de forma a mostrar o sexo — os sacrum, «la boca sacra», segundo a expressão dum texto hermético — era a mesma que se encontrava representada por várias antigas divindades femininas mediterrânicas. Parece-nos que o rito, à parte a celebração invertida da missa, se desenvolvia duma forma idêntica à que foi descrita para o Sabbat. O pormenor mais horrível, o sacrifício duma criança frente ao altar, conduz-nos para além da ideia duma contrafacção demoníaca do rito do sacrifício eucarístico da missa, ao tema dos sacrifícios e efusão de sangue com que a Deusa se deleitava em numerosas formas de culto antigo, mas podia também, por outro lado, tratar-se de uma técnica mágica, tendente a fornecer um corpo para a sua presença real num dado lugar.

Apresentamos, em seguida, um pormenor importante, relacionado não somente com este ponto particular, mas com a generalidade da questão: julgava-se ser absolutamente necessário que o rito fosse praticado por um padre regularmente ordenado. Com efeito, segundo a doutrina católica, e exceptuando aqueles que pretendem ter sido consagrados directamente pelo Senhor, somente o padre pode operar o mistério da transubstanciação das espécies, por meio dum poder objetivo que lhe podem impedir de exercer interditando-o, mas que, graças ao character indelebilis que lhe confere a ordenação não pode ser destruído ou revogado. Acontece, pois, que os ritos indicados não podem ter qualquer eficácia se não se acreditar que o oficiante dispõe desse poder de transubstanciação, capaz de evocar e ativar presenças reais nas espécies sensíveis, não somente nas coisas inanimadas (como a hóstia eucarística) como também nos seres humanos. Deveria verificar-se um «mistério» deste género, ou pensava-se que ele tinha acontecido na própria pessoa da mulher nua estendida no altar, de modo a provocar nela uma incarnação mágica momentânea do arquétipo, do poder da mulher transcendente da deusa. Tendo-se evocado esta força supra-sensível podia conceber-se também a sua utilização operacional. Devemos notar, todavia, que o emprego da técnica da contra–religião com a ativação de tudo quanto é informe e inferior e que é refreado por uma tradição histórica comporta um risco extremo, pois pressupõe nos oficiantes uma qualificação particular, excepcional, a fim de que o conjunto não se transforme num «satanismo» no sentido próprio, pejorativo e unicamente tenebroso da palavra. O perigo é menor nos casos em que certos ritos análogos de magia sexual, dentro do quadro duma tradição não antitética que lhes é própria, não se servem da técnica de inversão nem apresentam o carácter antinómico de que falámos, como sucede nos exemplos de que nos ocuparemos em breve.
Parece que a divindade que presidia às práticas de magia negra nos séculos XVII e XVIII era essencialmente feminina. Chamava-se Astaroth, nome cuja raiz é a mesma de Astarte, Ashtoreth, Attar, Ash-tur-tu, etc., o que faz supor que estivesse relacionado com Astarte-Ishtar (nas línguas semíticas o th — Astaroth — é a desinência do plural) e o seu sexo era também indeterminado (11). As missas negras eram então oficiadas por mulheres.
Resta-nos sublinhar, como última observação relativa ao Sabbat, que, mesmo empregando as mesmas técnicas, as experiências no plano subtil não se reduzem a simples orgias oníricas de fantasia erótica individual, mas implicam evocações e contactos reais, que só com dificuldade serão possíveis para o homem moderno. Já não existe o clima psíquico necessário, e um processo crescente de materialização encerrou o indivíduo em si próprio, na sua simples subjetividade. Exceptuando casos verdadeiramente excepcionais, o único plano de experiências possíveis para além dos processos psíquicos normais é tal que, em princípio, se podem aplicar interpretações banais de género das de Jung ou entram então no campo a que se dá agora o nome de «psicodélico» e se relaciona com o uso profano e desordenado de algumas drogas.

Retirado de “A metafísica do sexo” de Julius Evola. 

Ordo Sunyata Vajra


“Não há lei além de Faça o que tu queres.”

– Liber AL vel Legis, III:60

“Deve-se dar lugar à mente que não habita em nenhum lugar.”
– O Sutra de Diamante

Faça o que tu queres há de ser tudo da Lei.

A Ordo Sunyata Vajra, a Ordem do Vazio Adamantina, é um veículo da Gnose estelar de Thelema, expressando as raízes profundas do Aeon da criança coroada e conquistadora que descobre sua fonte na corrente primeva de iniciação que influencia a humanidade desde a aurora do tempo.

Influências da Gnose estelar foram descobertas ao longo da história, sendo que apareceu primeiramente associado com as lendas da Lemúria e a cidade submersa de Atlântida. As eras pré-dinásticas do antigo Egito, e os cultos draconianos das dinastias negras posteriores, viram o ressurgir da tradição estelar que transitou nas tradições ocidentais de Hermetismo e Qabalah. No oriente, as grandes filosofias “não-duais” das tradições Prajna-Paramita do Budismo, Taoismo, e Vedanta, para nomear algumas, passaram esses ensinamentos de uma forma velada.

Thelema incorpora essa evolução viva desse ciclo de despertar direto, as correntes da Sabedoria Estelar amadurecidas na quintessência de uma nova dispensação do Aeon de Hórus. Traçando suas fontes através de raízes profundas, a Ordem incorpora aspectos de ambos magia ceremonial ocidental e ritual e misticismo oriental, providenciando uma expressão única de magia ritual Thelemica e misticismo interno que está fundamentada de maneira sólida nos princípios do Liber AL vel Legis, o Livro da Lei.

Ordo Sunyata Vajra não é uma ordem de treinamento. Nós não temos juramentos de fidelidade, nem temos taxas para afiliação. Os membros são esperados a trabalhar em sua própria Luz, o fruto da iniciação sendo o resultado do trabalho realizado. Entretanto, nós temos vários níveis de afiliação aos que desejam uma exploração mais profunda de nosso Trabalho.

Um ritual público central, a Gema Diamante Safira de Luz Radiante, é aberto a todos os interessados em celebrar os mistérios profundos de Thelema como indivíduos de mentalidade semelhante.

Possa a Luz, Vida, Amor e Liberdade ser estendida universalmente a todos, sob a regência de uma Lei de Thelema.

Amor é a lei, amor sob vontade.

http://www.ordosv.org/

Invocações e Evocações: Vozes Entre os Véus

Desde as eras mais remotas da humanidade, o ser humano buscou estabelecer contato com o invisível. As fogueiras dos xamãs, os altares dos ma...