Ao longo da história, os conceitos de “bem”, “mal”, “deuses”, “anjos” e “demônios” muito se modificaram, variando entre regiões, culturas e vertentes mágicas, religiosas e científicas. Sendo assim, este texto irá explorar a evolução das definições de demônios e outros termos correlatos, explicando sua modificação ao longo das eras até se consolidarem na prática da Goécia como a conhecemos hoje.
O culto aos deuses começou, na maioria dos povos, na forma de um “culto a demônios”. As entidades cultuadas eram temidas, e por meio de oferendas e cerimônias poder-se-ia apaziguar a ira destes seres, conseguindo boas colheitas e outras benesses. Muitas vezes, as cerimônias incluíam sacrifícios até mesmo humanos. Os pais muitas vezes entregavam seus próprios filhos aos sacerdotes em prol de benefícios a toda a comunidade. Porém, com o tempo, começou a ganhar força a ideia de que os sacrifícios humanos poderiam ser substituídos por animais, e as cerimônias passaram a contar com imolação de animais vivos, oferendas de seu sangue e banquetes com sua carne. Na Bíblia, este conceito se apresenta por exemplo na substituição de Isaac por um cordeiro sobre a pedra sacrificial.
GOLFO DA GUINÉ
Na região africana do Golfo da Guiné, onde a humanidade surgiu segundo a maioria das teorias científicas atualmente aceitas, o conceito de “mal” estava relacionado aos aspectos primordiais do mundo. No quesito de potencial para causar efeitos nocivos aos humanos, mas sem estarem associadas ao conceito de “mal”, as Iyami Oxorongá cumpriam um papel importante ao representar este aspecto.
Estas feiticeiras eram as mães da magia, e foram suplantadas quando os Orixás chegaram ao Aiê para instituir a civilização humana. Assim, tomaram a forma de aves, principalmente aquelas de rapina, e passaram a viver no alto de árvores, de onde podiam enviar malefícios ou benefícios para as pessoas de cidades próximas. Em algumas versões, Nanã teria sido uma dessas forças primordiais, e responsável por criar os homens a partir do lodo primordial. Em outras versões, esta substituição de regência das Iyami pelos Orixás marca a evolução das sociedades Matriarcais para as Patriarcais.
EGITO
No Egito Antigo, desde as primeiras dinastias (~3.500 AC), Set representava as forças naturais relacionadas à destruição, na forma da seca, da lua minguante, do sol flamejante, da febre e do deserto. Ao mesmo tempo que assassinou Osíris, foi responsável pela evolução da sociedade, quebrando estruturas não mais úteis e ensinando a arte da guerra aos reis. Já Taweret era representada como um hipopótamo vestindo uma pele de crocodilo, ou então um animal híbrido entre os dois, e estava relacionada ao poder das águas e das bestas aquáticas do Nilo, podendo proteger contra Set. Tem similaridades em iconografia com a besta Amemit, devoradora das almas dos não merecedores. Sendo assim, observa-se que seres bestiais poderiam ser protetores, enquanto as forças da natureza poderiam ser personificadas na forma de entidades nocivas aos homens.
Além disso, por volta de 3 mil a 2 mil Antes de Cristo, a ideia do “bem” começou a se manifestar na forma de uma árvore, considerada a árvore da vida. Esta ideia pode ter sido Egípcia (aparecendo em alguns murais atacada por Apep) ou ter sido posteriormente levada ao Egito, mas de qualquer forma se fortaleceu na Assíria e na Babilônia, sendo representada ostensivamente. A Árvore da Vida era visada pelas forças do mal porque era responsável por prover alimento e vitalidade aos humanos, em alguns casos provendo também a imortalidade. A ideia foi mantida na Grécia com as maçãs das Hespérides e também nos povos nórdicos, com os frutos que proviam imortalidade aos deuses e a própria Yggdrasil. Na Bíblia, a Árvore foi localizada no centro do Éden, e na Cabala se tornou a estrutura central dos estudos.
LEVANTE
No próprio Egito e na região do Levante, por volta de 2.500 AC, o mal começou a ser entendido não só como as forças naturais nocivas em si, mas como as forças primordiais de um planeta violento que precisava ser domado e aplacado para que a sobrevivência humana ocorresse. Iniciaram-se os ciclos de mortes de deuses primais por deuses mais próximos dos humanos, em uma evolução gradual rumo à civilização.
Baal Marduk se apresentou, na Assíria, como o herói capaz de enfrentar o dragão primordial Tiamat, que era representado como um animal híbrido juntando partes de vários animais. O “mal”, então, não tinha juízo moral, era apenas primitivo e agia guiado por seus instintos.
Ao longo dos ciclos de morte e reprodução, deuses e demônios passaram a ter um caráter menos generalista e mais especializado. Antes, os grandes deuses e demônios eram criadores e destruidores de todo o universo por meio de todas as graças e elementos nocivos. Agora, cada um deles representava uma força primordial ou um aspecto divino. Os filhos de Tiamat utilizavam suas especialidades para vingar a mãe morta por Marduk, e os ventos que vinham de cada quadrante tomavam faces diferentes correspondentes a demônios específicos (por exemplo Pazuzu, vento Sudoeste que trazia tempestades).
Mesmo se especializando cada vez mais, ainda não havia na Suméria, Acádia e Caldeia uma ideia de dualismo, com um Deus ou anjo específico correspondendo a cada Demônio. Embora houvesse heróis divinos, esperava-se que cada demônio assassinasse seu gêmeo. Estátuas da versão “benéfica” do demônio eram usadas para proteger-se contra a versão “maléfica” do mesmo. O Mas bom deveria combater o Mas mau, o Lamma bom combateria o Lamma mau, e o mesmo ocorria para Utuqs, Alapi e Nergalli.
Na Pérsia, por sua vez, se estabeleceu o mais simétrico dualismo, com uma corte celeste e um império demoníaco se contrapondo em estrutura e qualidades. O Rei Persa ou Ahura Mazda eram representados lutando contra um demônio primordial na forma de unicórnio, semelhante a Tiamat. Anjos ou Fravashis eram representados lutando contra daêvas ou demônios que regiam o lado negativo de cada aspecto.
NA TORÁ
Por volta de 1.000 AC, os primeiros hebreus tinham diversas leis proibindo bruxas e magos (Êxodo 22, Levítico 20), pois o verdadeiro poder somente poderia vir do Deus verdadeiro, Yahweh. Porém, em tempos difíceis, não faltam relatos sobre israelitas procurando a ajuda de feiticeiros. Um dos relatos mais famosos se encontra também na Bíblia, quando Saul — após ter mandado matar todas as bruxas da região — recorreu à Bruxa de Endor para pedir conselhos ao espírito de Samuel, já falecido (1 Samuel 28).
Na Torá há muitos relatos sobre demônios espreitando em locais escuros. Na mitologia hebraica, temos por exemplo os Seirim (demônios-quimera ou bodes), os Shedim (outros demônios) e Lilith (a primeira esposa de Adão). Na Bíblia, exemplos podem ser encontrados em Levítico 17, Deuteronômio 30 e 32, 2 Crônicas 11, Isaías 13 e 34, Salmos 106.
Como o poder mágico era monopólio de um único Deus verdadeiro, os deuses de outras culturas foram considerados deuses falsos ou demônios, e seus poderes seriam meros simulacros de um poder que almejavam — mas nunca conseguiriam — possuir. Porém, devido ao seu uso em rituais ou proteção contra os mesmos, esses demônios foram compilados e muito bem descritos em livros e grimórios. Passaram a ser usados com o aval do poder de Deus, pois estariam cumprindo os desígnios Dele, como meras ferramentas. Este fato permitiu que fossem conhecidos no mundo contemporâneo, e fez com que suas histórias pudessem ser conhecidas mesmo após a destruição de seus cultos originais.
Aos poucos, o mito de Marduk e Tiamat foi se tornando uma lembrança cada vez mais esquecida, e tomando outras formas na Mitologia Hebraica. O combate entre o Deus primordial e o dragão demoníaco continuava sendo citado, mas o próprio conceito de Deus havia evoluído bastante. No antigo testamento, a batalha entre Deus e o Dragão é citada em várias instâncias e apresenta vários heróis e monstros (Leviatã, Rahab, Behemoth) repetindo o ciclo, porém o primeiro combate em si não é citado. Nas citações ao episódio, era pressuposto que todos já o conheciam, de forma que não se pensou necessário narrá-lo por escrito.
ÍNDIA
Nem sempre a serpente foi considerada símbolo do mal e dos demônios. No hinduísmo principalmente, desde ~4.000 AC mas com simbolismo fortalecendo-se em ~2.000 AC, era tida como o símbolo da eternidade e dos ciclos do tempo. A serpente Ananta é um exemplo deste conceito, e permitia que Vishnu flutuasse sobre a substância ainda não diferenciada que viria a formar o Universo. Esta serpente, também chamada Vasuki, era representada em outros casos enrolada no Pilar Universal, uma coluna erigida sobre o casco da tartaruga cósmica Kurm, um avatar de Vishnu.
Na cultura indiana, observa-se que a existência de demônios era algo aceito e até mesmo visto como necessário para a manutenção da tensão que movimenta o Cosmos. Porém a maioria dos demônios devia servir aos poderes divinos — e inclusive ser devota aos deuses -, causando destruição ou rupturas apenas quando permitido pelo plano cósmico. Um exemplo pode ser encontrado nas histórias de quando dois irmãos demônios foram destruídos por Vishnu ao irem contra as leis sagradas. Hiranya-Ksha ameaçou destruir o mundo inteiro, e Vishnu o matou com suas presas incorporando seu avatar de Javali. O irmão do demônio, Hiranya-Kasipu, zombou da onipresença de Vishnu, duvidando que ele pudesse estar em todos os lugares, por exemplo em uma coluna de pedra. Vishnu saiu de dentro da coluna na forma de um leão monstruoso e estraçalhou o demônio.
Além dos demônios propriamente ditos, diversas divindades hindu estão relacionadas com quebras, revolução e destruição como parte de uma criação vibrante e cíclica. Talvez a principal representante deste poder renovador, Kali é representada pisando no ego de seu esposo e destruindo com uma mão enquanto cria com a outra. No budismo tibetano, era representada como o demônio mKha’sGroma.
JAPÃO E CHINA
No Japão e na China, por volta de 600 DC, os demônios eram vistos como personificações das catástrofes naturais ou das forças da natureza que ainda não podiam ser mitigadas. O demônio do trovão, por exemplo, também poderia trazer outros males súbitos, como doenças, acidentes, terremotos e desmoronamentos. Demônios eram vistos como o imprevisto que rondava a vila para atingir os desavisados.
No imaginário Japonês e Chinês, também reinava a noção de que os demônios eram responsáveis pelo julgamento pós-morte, acusando o morto e solicitando que se retratasse pelo que fez em vida. O tribunal do Meifu era a representação do julgamento da alma (retomando então o conceito egípcio), onde o morto deveria assistir aos seus feitos em um espelho que mostrava toda a sua vida. Os demônios do tribunal Meifu eram conhecidos pela sua função no julgamento pós-morte. Kongo era o xerife, Emma o juiz, e os demônios Gozu (com cabeça de veado) e Mezu (com cabeça de cavalo) faziam parte do grupo de executores e torturadores. Caso as ações boas do morto prevalecessem, ele reencarnaria em um estado mais elevado de existência. Caso as más ações fossem mais relevantes, deveria reencarnar como o animal que representasse seu caráter. Caso tivesse sido demasiadamente cruel, seria torturado até a expiação total de seus pecados.
NO BUDISMO
No Tibet, em cerca de 650 DC, começou a se delinear o conceito de que os demônios seriam aspectos psicológicos que impedem a evolução e a transcendência individual, por vezes personificados na forma de um ser que traz tentações e dúvidas.
O demônio Mara segura a roda do Samsara, e em seu centro estão os elementos que prendem os homens no ciclo eterno de reencarnações: paixão, pecado e preguiça. Ao seu redor, estão os 12 elementos que ocorrem na vida de cada pessoa: ignorância, repetições, senciência, personalidade, sentidos, sensações, sentimento, desejo, obsessão, aceitação, reprodução, morte.
Quando Buddha estava próximo à sua iluminação, o demônio Mara aparece com seu exército de demônios para tentar fazê-lo desistir da jornada que iniciara há 7 anos. Estes demônios representam tentações que podem impedir a evolução pessoal, e são luxúria, descontentamento, fome e sede, desejo, preguiça, covardia, dúvida, hipocrisia e soberba. Se entregar a eles não traz sofrimento, mas sim prazer e felicidade; e estes prazeres podem impedir a transcendência caso sejam excessivos, por serem estritamente físicos e passageiros.
GRÉCIA
Antes da chegada dos ideais cristãos à sua Terra, por volta de 1.000 AC, os Gregos e outros povos próximos como os Etruscos já possuíam um conceito bem detalhado do que seria o Submundo. O conceito de Hades e Tártaro, e também do submundo Etrusco onde o demônio Tuchulcha atormentava as almas, se mesclaram ao inferno cristão e ao Sheol judaico para formar a concepção usada em Roma.
As almas humanas se tornariam Eidolons ou meros ecos no Hades, enquanto as almas de heróis (como Hércules) poderiam se dividir entre uma vida no Olimpo e uma no Hades como sombras. Outros heróis como Menelau poderiam viver em Elysion (similar ao Paraíso), comandado por Radamantis — que mostra a forte influência egípcia pela sua origem Ra Amentis, Rá que rege o Amenti (submundo). O próprio mito de Tifão em muito lembra o da cobra Apep.
Com o passar dos ciclos escatológicos, assim como ocorre em outras culturas, os deuses dos povos da península itálica evoluem, se tornando mais próximos dos seres-humanos. Surge o arquétipo do herói salvador, e este herói se torna cada vez mais um humano comum, e até mesmo humilde, com grandes habilidades. Os demônios também se humanizam, passando a ser monstros parcialmente humanos, híbridos entre diversos animais, ou perigos cotidianos enfrentados pelos heróis para salvar seu povo.
O arquétipo do herói solar se apresenta em várias instâncias durante a miscigenação das religiões próximo a Roma. Hércules, Perseu, Belerofonte, Baal Merkath (da Tíria), Bel (da Babilônia), o herói de Khorsabad, Jesus, Mitra, passam por histórias parecidas com extremo caráter solar. Alguns deles até mesmo enfrentam 12 trabalhos ou provações que se relacionam com os 12 signos na passagem do Sol pelos céus, incluindo a morte e o renascimento. Os heróis solares humanizados conseguem salvar a humanidade, e se sacrificam por ela.
Em alguns casos, devido a seus feitos, acabam sendo punidos pelos deuses. Prometeu traz o fogo aos homens, e por isso é aprisionado em uma pedra. Em outras versões do mito, como a retratada no Vaso de Chiusi, Prometeu é amarrado a um mastro ou então crucificado.
ORIENTE MÉDIO
No Oriente Médio, de 200 AC ao ano 0, diversos sistemas de crenças tiveram intercâmbios importantes entre si que refletiam os próprios intercâmbios de mercadoria e as miscigenações do povo que ali vivia. Os judeus ficaram familiares com as culturas Assíria, Babilônia e Persa, e muito assimilaram em suas crenças. O dualismo persa foi em grande parte levado em conta, com uma estrutura infernal mimetizando a estrutura celeste, e mesmo com algumas entidades sendo trazidas para dentro de seu sistema de crenças. Na história de Tobit, por exemplo, Asmodeu (o Aeshma Daeva persa, ou Espírito da Ira) se apaixona por uma mulher, e no Talmude ele se converte no demônio da luxúria.
Por volta do ano 0, se delinearam fortemente os ideais gnósticos de um deísmo trino baseado em Pai, Filho e Espírito Santo — este último por vezes representado como Sofia ou como a Mãe, ecoando as tríades egípcias (ex: Ísis, Osíris e Hórus). A salvação pessoal viria pela transcendência individual, como no budismo, ou pela evolução coletiva, pela vinda do Messias. Vários sectos gnósticos se proliferaram no Oriente Médio, como os Sabianos ou Batistas, os Essenos, os Ebionitas, e outros grupos como os Fariseus e os Saduceus. Um dos grupos gnósticos mais conhecidos foi o dos Nazarenos, de onde veio Jesus.
Para os Gnósticos, a trindade era composta por Deus Pai, Deus Filho e Deus Mãe (a sabedoria ou Sophia). Sophia seria a esposa cósmica de Deus, também chamada de Pneuma ou Logos. Este conceito é similar ao do Budismo, em que a trindade é representada pelo Buddha ao lado do Dharma (ciclos) e do Sangha (comunidade). O próprio termo Sophia pode ser uma tradução de Bodhi, a iluminação do Budismo.
Por volta de 1600, já em um contexto de “neo-gnosticismo”, o filósofo Jacob Böhme escreveu o livro Os Três Princípios, que foi publicado quase cem anos depois, após a sua morte. Neste livro, Böhme descreve como o Bem e o Mal se desenrolam no Tempo, e argumenta que esta seria a trindade necessária para a existência do Universo. Deus seria a união do Bem e do Mal, na forma do Todo, e ao tentar se manifestar acabaria sempre gerando estas duas qualidades em um terceiro domínio, o Universo, regido pelo Tempo. O conceito de pecado, para Böhme, seria alguém se prender ao mundo material, interpretando ao pé da letra as escrituras e focando apenas no que é tangível. A verdadeira salvação seria alcançada mergulhando nas escrituras e entendendo o sentido metafísico por trás delas, recorrendo à Bíblia como um conjunto de metáforas para explicar o Cosmos.
ROMA
Mitra é uma divindade solar persa cujo culto se estendeu a várias regiões incluindo Roma, em cerca de 300 DC. Embora a versão bíblica e religiosa de Jesus tenha relação com a de vários outros heróis e deuses do Oriente Médio, Europa e Ásia, as associações a Mitra acabam sendo mais diretas, até mesmo pelo fato de muitas delas serem propositais.
O Mitraísmo incluía batismos, a reencenação da morte de um touro para remissão dos pecados, e uma cerimônia de nascimento do Sol realizada no dia 25 de dezembro. São Crisóstomo, pioneiro no estabelecimento do Cristianismo, cita em um de seus discursos que o dia de Mitra foi escolhido para a comemoração do nascimento de Cristo porque os cristãos teriam mais paz para realizar suas cerimônias enquanto os romanos estivessem comemorando o nascimento do Deus Sol.
Æon ou Zrvan Akarana (que significa tempo ilimitado) é um Deus primordial no Mitraísmo representante do Caos Primordial. Carregando uma chave, uma tocha e um bastão de medição, com corpo de homem e cabeça de leão, é o estado primordial de existência a partir do qual Ahura Mazda nasce. A cobra enrolada em suas pernas representa as revoluções do tempo e também a impossibilidade de se mover, pois tudo se cancela e retorna ao mesmo ponto. As quatro asas representam as quatro estações e a onipresença. Também está associado a Hefesto, Esculápio, Hermes e Dionísio, todos em um, conforme símbolos aos seus pés. Para alguns pesquisadores, era representante do conceito de demônio, um pai tirano que não permite movimento algum, a imobilidade fervilhante do Caos.
Abraxas, também presente em Roma, significa “aquele a ser adorado”, e era representado como uma versão de Esculápio com cabeça de galo ou plumas de galo na cabeça. O Agathodaemon (Espírito bom) era uma entidade originalmente fenícia com corpo de serpente e cabeça de águia, galo ou Leão. Representava a vida longa e era desenhado em amuletos contra doenças e para proteção. Já Iao era um Deus com cabeça de galo que se movia rapidamente e era onipresente, por isso suas pernas eram representadas como serpentes, símbolos da gnose e da rapidez do pensamento. Essas três entidades, Abraxas, Agathodaemon e Iao, chegaram a ser igualadas ou associadas entre si pelos gnósticos, o que explica suas simbologias similares, e se tornaram patronos da saúde, da sabedoria secreta, dos mistérios e da magia. Podem também ser associadas na Goécia ao Daemon Decarabia.
Serapis, uma forma helenizada de Osíris-Ápis, era representada de forma similar ao Æon do Mitraísmo, e seu símbolo principal era uma cruz. Do culto de Serapis, que buscava remontar aos mistérios de Osíris sob uma roupagem mais Helênica, saíram as inspirações para os monastérios Cristãos que viriam a se instalar no Egito e depois em Roma. O próprio Imperador Adriano de Roma chegou a se referir aos adoradores de Serapis como Cristãos ou Bispos de Cristo, dados o intercâmbio e o sincretismo entre os cultos que já se encontravam em estado avançado em sua época.
MANUSCRITOS APÓCRIFOS
De 500 AC até 500 DC, surgiu uma profusão de textos escritos sob inspiração divina que buscavam explicar os mistérios do universo e da divindade, com ou sem citações a seu filho humano. Os diferentes movimentos gnósticos, judaicos e proto-cristãos tinham suas formas próprias de ver o mundo, que muitas vezes se chocavam e contradiziam.
Os movimentos que saíram vitoriosos e que angariaram mais seguidores acabaram escolhendo os textos que fariam parte de seu cânon (a Bíblia), em relação ao velho e principalmente ao novo testamentos. São Jerônimo, no ano 500, cunhou o termo “apócrifo” para denominar os textos que supostamente não haviam sido escritos por inspiração divina, e que portanto ficaram de fora da Bíblia, mesmo que muitos deles não tenham contradições e sejam inclusive complementares aos livros escolhidos. Em 1 Reis, por exemplo, é citado o “Livro dos Atos de Salomão”, que seria apócrifo, e as epístolas de Judas citam acontecimentos relacionados a Enoque que somente constam nos apócrifos “Livros de Enoque”.
No Evangelho de Nicodemos ou Atos de Pilatos, manuscrito apócrifo escrito entre 150 d.C. e 400 d.C., é narrada a descida de Jesus ao inferno para salvar as almas atormentadas injustamente por lá. O texto começa com uma conversa longa entre Belzebu (Príncipe do inferno) e Satã (Rei do inferno) sobre um suposto filho de Deus que havia nascido na Terra e prometido descer até seus domínios. Ao chegar nos portões do inferno e abri-los facilmente com luz e poder, Jesus explica aos atormentados que seu sofrimento é causado pela sua própria mente. O inferno seria um lugar de prisão apenas para quem considera que pecou, e a libertação se daria pela ressignificação do conceito de pecado, eliminando a culpa acumulada sobre suas ações em vida. Os Santos se libertam de suas próprias prisões mentais, e seguem Jesus, conquistando a Morte.
O apocalipse de São Pedro, outro livro apócrifo do ano 200 DC, descreve o céu e o inferno como lugares físicos, sendo que o céu é um jardim eterno com flores, árvores frutíferas, e uma luz indescritível. Já o inferno é descrito com maiores detalhes, sendo escuro e desesperador. Blasfemos são pendurados pelas línguas sobre o fogo, injustos são imersos em areia escaldante e perfurados por anjos negros, adúlteras penduradas sobre o fogo por suas tranças, e seus amantes com a cabeça enterrada em areia quente. Fetos abortados soltam raios que atingem os olhos das mães que os abortaram, enquanto elas ficam em uma piscina de sangue.
O livro Apócrifo Pistis Sophia, escrito por volta de 300 DC, narra algumas questões de Maria sobre o Universo que são respondidas por Jesus. Também chamado “As Questões de Maria”, é um dos livros-base do gnosticismo. O inferno é descrito no Pistis Sophia como um dragão que cerca o mundo e come seu próprio rabo. Dentro do Dragão existem 12 masmorras de tormento eterno, onde reinam absolutos 12 demônios. Cada um dos demônios tem um nome a cada hora, e muda de aparência a cada hora do dia.
CRISTIANISMO
Os atos atribuídos a Jesus nas primeiras escrituras compiladas levam a crer que ele compartilhava do senso comum das pessoas da época, ao entender o demônio como o conjunto de tentações, imoralidades e mesmo doenças (principalmente as psiquiátricas) que afligiam as pessoas. Também levam a crer que os acontecimentos da vida do Jesus histórico (que viveu de 7–2 AC até 30–33 DC) foram mesclados com mitologias diversas que falavam de Bem e Mal e cujas informações tinham chegado até então na Região do Oriente Médio.
Na descrição bíblica, Jesus foi tentado pelo diabo (assim como Buddha por Mara), e as falas de Jesus refletem um pensamento de que a vida após a morte seguiria uma lógica de compensação, e não propriamente de recompensa ou punição por boas e más ações. Por trás da moral incutida no relato, entende-se que seria natural Lázaro viver uma pós-vida plena apenas pelo fato de ter vivido em sofrimento, e o Rico viver a pós-vida no inferno apenas por já ter recebido benesses em vida.
Já no que toca à dominação do Cristianismo sobre outras vertentes religiosas, a Revelação de São João ou Apocalipse de João, escrita entre 68 e 70 DC, foi um dos livros escolhidos para estar na Bíblia e que permite entender as relações de poder entre os grupos da época. No texto, são descritos alguns apóstolos que não seriam realmente inspirados por Deus (ou seja, falsos profetas), como os Nicolaítas e os da cidade de Tiatira, enquanto o próprio João e seus seguidores seriam escolhidos para partilhar das maravilhas do paraíso. Outras visões sobre o Paraíso e o Inferno eram perigosas para o estabelecimento da nova religião única, e podem ser encontrados nos apócrifos Livro de Enoque, Evangelho de Nicodemos, As Questões de Maria, entre outros citados anteriormente.
O apocalipse de São João mostra em seus meandros o ideal de conquista e de dominação que havia por parte de seu grupo. É explicitado que quem guardasse os trabalhos de Cristo até o final — isto é, ele e seus seguidores, mas não os “falsos apóstolos” — teria o poder sobre as nações. Com o segundo advento de Cristo, supostamente anunciado pela queima de Roma por Nero (nome somando 666) em sua própria época, João poderia destruir as religiões que considerava falsas, e isto incluiria obviamente as de inspiração Babilônia e Suméria, assim como os adoradores de outros deuses e heróis como Baal, Marduk, Astarte, Moloch, Belial, etc.
No Apocalipse de João, o cordeiro rompe os 7 selos, e 4 cavaleiros do apocalipse são soltos, carregando uma coroa, uma espada, uma balança e a própria morte, seguidos pelo inferno. O Sol se torna negro, a Lua se torna vermelha, e os mártires recebem túnicas brancas. Um anjo anuncia 3 vezes, e 4 anjos que haviam sido presos (possivelmente os mesmos do Livro de Enoque) são soltos para matar 1/3 dos homens. Uma mulher prestes a dar à luz luta contra o dragão que aguarda para devorar seu filho. A velha cidade Babilônia, mãe das abominações, monta uma besta de 7 cabeças e traz seus filhos demônios para comer a carne dos mortos. Satã é preso por 1.000 anos e libertado de novo, quando então Gog e Magog são conquistados, e Jerusalém Celeste desce sobre a Terra. Então, 12 tribos passam a viver na cidade, e Deus é a luz em seu centro.
Já por volta de 400 DC, Santo Agostinho reformulou o cristianismo negando a existência do mal como um conceito independente, e associando-o mais fortemente ao pecado original cometido por Adão e Eva. Jesus teria o condão de salvar todos os humanos desse pecado, desde que eles se arrependam. Assim, a entidade “diabo” continuou existindo como tudo o que desvia o homem da real iluminação (ou seja, todos os inimigos da Igreja), nos moldes de Mara, do Budismo. Os Santos eram as pessoas que conseguiam resistir a estas tentações, ou mesmo destruir o adversário, e performar milagres usando os poderes atribuídos a eles por Deus.
Nos anos que se seguiram, para angariar mais seguidores, a Igreja começou a compilar histórias de Santos que eram baseadas em mitologias locais por onde passava. Esta tarefa foi simples, uma vez que as mitologias mais populares se baseavam em Arquétipos simples ou eficazes, quase universais, ou mesmo haviam sido baseadas umas nas outras e mescladas por meio de migrações, conquistas e sincretismos. Sendo assim, a estrutura do mito já estava pronta, bastando escolherem-se personalidades reais de cada país para serem encaixadas ali. São Jorge é um exemplo interessante pois se encaixa em um número estonteante de lendas, por exemplo Baal-Marduk contra Tiamat, Miguel contra o Dragão, Indra contra Vritra, Sigurd contra Fafnir, Rá contra Apep, e em todos os mitos que falam de entidades humanizadas (ordem) contra uma entidade bestial (caos). A história real dos santos, porém, nem sempre é digna de mitos, levando em conta que Jorge havia sido um arcebispo da Alexandria com um histórico tirano, a ponto de ter sido deposto e preso no ano 361 D.C, e morto em 362.
Enquanto as funções mais mundanas, como trazer a ordem ao povo, foram distribuídas entre os Santos, os anjos ganharam funções mais espirituais que outros povos atribuíam às suas divindades. O papel de pesar as almas e julgá-las, por exemplo, seria realizado pelo anjo Miguel no fim dos tempos. Esta atribuição era de Anúbis, por excelência, no Egito, e realizada pelo tribunal Meifu no Japão. O Arcanjo Miguel também foi encaixado em mitos de derrota do dragão, mas em um contexto mais definitivo, no Fim dos Tempos. Assim como Thor contra Jormungand no Ragnarok e Zeus contra Tifão na gigantomaquia, o anjo seria o responsável pela vitória absoluta contra o mal.
EUROPA
Por volta de 480 DC, o Cristianismo se espalhou por toda a Europa. Além de ser temido, o diabo passou a ser ridicularizado em histórias onde a inteligência humana prevalecia sobre sua malícia. Assim como nas histórias Nórdicas, os humanos, santos e deuses conseguiam favores e riquezas dos demônios (ou gigantes) com base em sua lábia e astúcia. As peças de teatro apresentavam demônios como seres facilmente enganáveis, e cada peça geralmente tinha 4 diabos com personalidades distintas, daí a expressão “fazer o diabo a quatro” como significando enganar ou maltratar de forma magistral uma pessoa.
Assim como os Gigantes Nórdicos, o Diabo pedia sacrifícios em troca de deixar os humanos em paz. Ele poderia, também, ser enganado para ajudar os humanos, pois tinha poderes inesgotáveis e muito úteis. Uma das histórias conta que um pastor pediu ao diabo para construir uma ponte nova, pois a ponte que costumava atravessar com seus cabritos estava correndo o risco de cair. O diabo construiu uma ponte nova em cima da ponte antiga, e em troca iria levar a primeira alma que passasse sobre a ponte. Porém, o pastor enviou um cabrito sozinho sobre a ponte, e o diabo estraçalhou o animal, de tanto ódio que sentiu por ter sido enganado.
Em outro conto onde o diabo é ridicularizado, fala-se de um fazendeiro que não conseguia ter boas colheitas. Ele então fez um pacto com o diabo e pediu pela fertilidade de suas terras, mas o diabo disse que só aceitaria o pacto se pudesse ficar com metade da colheita a cada ano. O fazendeiro poderia, porém, escolher a metade que queria. Dito e feito. No ano em que plantava mandioca, o fazendeiro deixava a metade de cima das plantas para o diabo. No ano em que plantava trigo, deixava para o demônio a metade de baixo.
Mesmo acreditando em um Deus Único, as religiões hebraico-cristãs sempre acreditaram no poder da magia. Por isso mesmo tiveram que reconhecer e categorizar os atos mágicos feitos pelos outros povos como algo negativo, e por seus próprios adeptos como algo positivo. Assim, a inquisição que ocorreu desde os anos 1100 até cerca de 1700 foi ao mesmo tempo uma tentativa de perseguir todos aqueles que, de uma forma ou de outra, desafiavam os dogmas da igreja (imputando-lhes culpa mesmo quando não houvesse), como também foi um reconhecimento público de que a magia, mesmo quando feita sem licença divina, tinha potencial transformador, e por isso deveria ser combatida.
Enquanto a magia dos outros era herética e pecadora, a magia realizada por homens que faziam parte da egrégora dominante era chamada de “milagre”. Neste sentido, os mesmos atos realizados por bruxas e que poderiam levá-las à fogueira foram feitos sem problema por homens da igreja. Papas e padres tinham seus grimórios, e a atuação de demônios era aceitável desde que se dissesse que haviam sido compelidos pelo poder de Deus. O homem, com a ajuda de Deus, poderia comandar demônios e pedir a eles que fizessem tarefas, sem correr o risco de ser tachado como herege ou queimado como bruxo.
NÓRDICOS
O Conceito do Mal para os povos Nórdicos na Era Viking (~800 DC), assim como em vários outros povos, era o das forças primordiais, personificadas principalmente na forma de Hel ou Hela e seus irmãos. Estes três seres eram filhos de Loki, o Trickster — que representava, acima de tudo, o livre-arbítrio, metaforicamente sendo a origem do mal. Hela era uma mulher metade morta, e cuidava da Terra dos mortos. A serpente Jormungand ficava ao redor do mundo (Midgard), e o Lobo Fenrir foi aprisionado em correntes inquebráveis dentro de uma caverna.
O Ragnarok é uma passagem da mitologia nórdica bastante enigmática, uma vez que contém elementos do Dilúvio e também do Apocalipse cristãos, e pode ter sido adaptada já sob influência da Igreja (nas Eddas Poéticas de ~1300 DC) para explicar a passagem do politeísmo para o monoteísmo. Nesta passagem, a volta de Baldur, Deus da luz e da pureza, inicia uma reviravolta cósmica. Os filhos de Loki e os gigantes de Gelo (de Jotunheim) e de Fogo (de Muspelheim) lutam contra os deuses e Surt queima a árvore da vida Yggdrasil com sua espada flamejante. O fogo faz o céu derreter e inundar a Terra, mas dois seres humanos sobrevivem em uma caverna ou dentro da casca da própria Árvore, assim como Baldur. Os sobreviventes reconstroem o mundo, e Baldur passa a ser seu Deus único.
Da mesma forma que a cultura Nórdica foi influenciada pela Igreja, a figura do Diabo no cristianismo foi muito influenciada pela cultura Nórdica. Sua figura era associada ora aos gigantes de fogo de Muspelheim, ora aos gigantes de gelo de Jotunheim. No inferno de Dante, o último círculo do inferno (inferus, inferior) é feito de gelo, e a palavra “Hell” é deliberadamente adaptada de Hel, o reino dos mortos na Yggdrasil. O diabo é novamente entendido como aquele que comanda os terrenos e tem controle sobre eventos primordiais como vulcões e terremotos — assim como os gigantes.
Assim como os gigantes Nórdicos, o diabo poderia solicitar oferendas para não destruir construções humanas. Por isso, muitas vezes eram sacrificadas pessoas na fundação de muralhas e de torres, acreditando-se que os sacrifícios garantiriam sua integridade. Os corpos enterrados nos alicerces da cidade eram o imposto a se pagar para as forças da natureza. Esta prática era tão comum que foi tida como aceitável pelo Deus de Israel, como pode ser lido em 1 Reis 16:34: “Em seus dias Hiel, o betelita, edificou Jericó. Quando lançou os seus alicerces, morreu-lhe Abirão, seu primogênito; e quando colocou as suas portas, morreu-lhe Segube, seu filho mais moço; conforme a palavra do Senhor, que ele falara por intermédio de Josué, filho de Num”.
Referências: Paul Carus — The History of the Devil; Skinner & Rankine — The Goetia of Dr. Rudd.