De forma geral, todos os conceitos reunidos na demonologia ao longo do tempo influenciaram de alguma forma o surgimento da Goécia enquanto prática mágica cerimonial, e os grimórios que tratam de demônios, como o Ars Goetia, já surgem em um período de grande influência cristã.
DEMONIZAÇÃO
Para os cristãos, a magia dos outros povos era arte do demônio, e os deuses dos outros povos foram considerados como demônios. Algumas cerimônias de batismo incluíam a renúncia aos deuses pagãos que o fiel seguia anteriormente, descrevendo-os como deuses falsos do inferno. Em uma abjuração batismal germânica, lê-se por exemplo “eu renuncio às obras e às palavras do demônio, e a Thor e a Odin e a Saxnot, e a todos os seres maléficos em sua companhia”.
Junto com os relatos de abjuração a falsos deuses, surgiram nos anos 1500 muitos grimórios de magia divina. Os objetivos dos feitiços descritos nestes grimórios eram idênticos aos do grimório de uma bruxa, com a ligeira diferença de usarem sempre caracteres hebraicos, palavras em latim e símbolos divinos permitidos pela igreja, como cruzes (principalmente a de Amalfi ou de Malta). O poder de Deus era usado para os mesmos objetivos antes delegados a outros deuses, daemons e demônios. A profusão de intelectuais que publicavam livros neste sentido só não foi maior que a profusão de rituais que surgiram no meio do povo. A magia folclórica era, muitas vezes, atribuída a Santos, para que pudesse ser aceita pela igreja.
Autor importante da época, Cornelius Agrippa foi um mestre de filosofia e magia que escreveu em 1510 um livro importante para a história do ocultismo, chamado De Occulta Philosophia. Neste livro, Agrippa descreve métodos de Magia Natural e Magia Celestial, que seriam muito superiores à dita Magia Negra, Nigromancia ou Necromancia. Os métodos descritos utilizavam a ajuda de Deus para causar amor e ódio, fazer chover ou trovejar, confundir exércitos e descobrir ladrões. Porém, após alguns anos sem conseguir obter êxito em suas práticas, Agrippa escreveu em 1526 a “Proposição sobre a Incerteza e a Vaidade das Ciências e Artes”, onde afirmava não acreditar mais em magia, somente na Palavra de Deus.
O demônio continuou sendo “enganado” pela sagacidade humana, como nos antigos contos, mas agora em um arcabouço ritualístico auxiliado pelos poderes de Deus. Alguns soldados engoliam papéis onde tinham escrito “Diabo me ajude, a ti dou meu corpo e alma” para que pudessem ficar à prova de balas, e outras pessoas faziam oferendas a demônios em encruzilhadas. A realização de pactos só era frequente porque havia a crença popular de que, no momento em que o demônio viesse buscar sua parte, a alma poderia ser salva por Jesus ou Nossa Senhora, ou uma Remissão de Pecados feita por padres no leito de morte.
Além dos pactos realizados de propósito, que usavam o poder de Deus como forma de lhes conferir aceitação da igreja, outros pactos foram forjados pela própria igreja com o simples intuito de perseguir seus inimigos. Este é o caso de Urban Grandier, um padre acusado de molestar freiras em um convento projetando-se astralmente em seus aposentos nos anos 1600. No julgamento, foi apresentado um contrato supostamente escrito (de forma espelhada) por Grandier, assinado por seis demônios e autenticado por BaalBerith, secretário do inferno.
ARS GOETIA
É exatamente neste cenário com profusão de ideias e mescla de conceitos que nasce o Lemegeton. No que toca especificamente ao livro Ars Goetia (compilado com a forma e o nome atuais), este seria um grimório que ensina ao magista como usar a autoridade do Deus Cristão para comandar os deuses de outras culturas. Estes deuses, por sua vez, são chamados no livro de deuses menores, Daemons ou demônios.
As primeiras citações ao Ars Goetia e outros livros do Lemegeton de que se tem notícia são dos anos 1310 (por Pedro de Albano) e 1508 (por Trithemius), e mesmo que as invocações sejam antigas os demônios descritos podem ter sido alterados em anos posteriores. Outros traços da Goécia se encontram em manuscritos dos reinados de Eduardo IV (1461–1483), Henrique VII (1485–1509) e da Rainha Elizabeth I (1558–1603), auxiliada por John Dee. Os 72 demônios da Goécia em si começam a ser encontrados no Livro de Abramelin (1427) e no Libre des Espritz (1400), além do Codex Latinus Monacensis (1500). Versões completas do Lemegeton como o conhecemos hoje só começaram a ser encontradas nos anos 1500 nas bibliotecas de Trithemius, e contribuíram para sua obra Steganographia, de 1508. Outros livros que citam os espíritos e métodos da Goécia são, por exemplo, os Três Livros de Filosofia Oculta e o Quarto Livro de Filosofia Oculta, de Agrippa (1486–1533), além do Praestigiis Daemonum e Pseudomonarchia Daemonum de Weyer (1515–1588).
LIVROS E GRIMÓRIOS
Em 1597, Reginald Scot teve um de seus livros, A Descoberta da Magia, refutado pelo livro Daemonologie do Rei James I, sendo perseguido por tentar dar uma roupagem menos maléfica aos Daemons e à bruxaria.
Outro fato importante neste sentido foi que em 1818, na França, o demonologista Jacques Auguste Simon Collin de Plancy publicou o seu Dictionnaire Infernal, contendo a descrição de 69 entidades e outras informações sobre magia e ocultismo. O autor se converteu ao cristianismo, e em 1863 foi lançada a sexta edição do Dictionnaire, com descrições mais pejorativas sobre cada entidade, e denominando-as de demônios.
Este livro conta com diversas ilustrações, muitas delas com caráter vexatório, que acabaram se tornando as imagens pelas quais estas entidades são mais conhecidas atualmente. Estes fatos podem ter influenciado fortemente na transformação dos espíritos em demônios, além de conferirem a roupagem cristã encontrada hoje no Lemegeton como um todo.
ALEISTER CROWLEY E OUTROS
Ao longo dos tempos, Blaise de Vignère (1523–1596), Dr John Dee (1527–1608), Elias Ashmole (1617–1692), Ebenezer Sibley (1752–1799), Frederick Hockley (1808–1885), Henry Dawson Lea (1843), MacGregor Mathers (1854–1918) e Aleister Crowley (1875–1947) foram alguns dos ocultistas que fizeram cópias e traduções dos grimórios, permitindo que fossem conhecidos nos dias atuais.
Portanto, é de se esperar grande influência das noções religiosas e mágicas que prevaleciam na época sobre as práticas descritas nos livros. Dentre os conceitos importantes, destaca-se que a magia divina seria distinta da magia negra, pois os nomes de Deus supostamente conferem validação e ampliam o poder e a importância das práticas. Os demônios poderiam prover favores aos humanos, e a sagacidade humana seria capaz de minimizar o preço a ser pago. Entre estes favores, encontram-se alguns relacionados a forças da natureza, a aspectos psicológicos, a guerras, tentações e doenças. Os nomes de Deus também teriam um papel importante para prover os resultados, ou obrigar os demônios a cooperarem. Além disso, os simbolismos de escrita divina, entre eles formas geométricas, signos astrológicos e cruzes, têm importante papel no desenho dos selos, para canalização das energias.