terça-feira, 30 de outubro de 2018

Tradição Esotérica Ocidental


É comum na atualidade, vermos correntes filosóficas ou tendências espiritualistas que se dizem pertencentes “à Tradição Ocidental”, ou mantenedoras do “verdadeiro esoterismo do ocidente”. Nunca se falou tanto em “Tradição Ocidental” e “Esoterismo do Ocidente” como se tem falado no último século, após a expansão (e popularização) do Esoterismo Moderno ocasionada pela Ordem Hermética da Golden Dawn (GD).

          A expressão “Tradição Esotérica Ocidental” transformou-se, a partir do século 20, numa espécie de comprovação de seriedade espiritual: só as correntes espirituais e filosóficas que conseguem se alinhar ao que a modernidade classifica como “tradição ocidental”, é que merecem ser vistas com respeito. O problema é que a interpretação que a modernidade dá à expressão “tradição ocidental” não abrange os valores morais e espirituais pertencentes à espiritualidade do homem ocidental, e nem consegue abranger o que a Tradição espiritual do Ocidente realmente significa.

          O que as correntes esotéricas e Instituições Iniciáticas contemporâneas consideram como “pertencentes à Tradição Ocidental”, na verdade está distante da essência propagada na espiritualidade ocidental, pautada no trivium hermético (Astrologia, Alquimia e Teurgia) e em valores caros ao homem ocidental. Muitas vezes, o esoterismo ocidental divulgado por Ordens Iniciáticas e filosofias espirituais modernas nem mesmo é “ocidental”: trata-se de um mistura de conceitos filosóficos e espirituais orientais e ocidentais, mantidos unidos a partir de um sincretismo forçado e aparentemente sem critérios.

        Dessa forma, propomos uma reflexão ao leitor: o que significa realmente a expressão “Tradição Esotérica Ocidental”? Qual é a base filosófica e espiritual do chamado “Esoterismo Tradicional” praticado no Ocidente?

          Não queremos aqui dar uma resposta definitiva a esses questionamentos, e mesmo que o quiséssemos fazer, isso seria impossível: abranger a essência da Tradição Esotérica Ocidental é tarefa quase impossível, por conta dos longos períodos de tempo da história humana em que essa tradição está pautada. Porém, a Tradição Esotérica Ocidental é pautada em valores que lhe são comuns e que não dependem do tempo (valores “perenes”). Foram esses valores que sobreviveram ao longo dos séculos e que serviram de respaldo epistemológico à espiritualidade praticada pelo homem ocidental.

          Para entendermos que valores são esses e o que realmente significa a Tradição Esotérica Ocidental, estamos iniciando uma série de artigos que tentará elucidar ao leitor qual o real significado do termo “tradicional”, e o que realmente pode ser considerado como “pertencente à Tradição Ocidental”.  Primeiramente analisaremos o significado do termo “Tradição” à luz de autores ocidentais como Aquino (2001), Guénon (2017) e Dubuis (2000). A partir daí, mostraremos ao leitor que a essência e os valores da Tradição Esotérica Ocidental estão distantes do que o Esoterismo Moderno erroneamente considera como “tradicional” (e divulga através das inúmeras correntes espirituais e Instituições Iniciáticas contemporâneas).

           Esperamos com isso, conscientizar o leitor de que nem tudo que se vende na atualidade como “esoterismo tradicional” é realmente algo “tradicional”, ou mesmo alinhado aos valores da Tradição esotérica do Ocidente.

“Tradição”: que palavra é essa?

          A modernidade transformou a palavra “tradição” numa espécie de “símbolo de defasagem”. O termo “tradicional” virou sinônimo de tudo que é ultrapassado, arcaico ou obsoleto. Mais do que isso: a visão moderna (pautada nos ideias do Iluminismo), de uma forma geral propagou a ideia (deturpada) de que tudo que é tradicional também é atrelado a valores indesejáveis ao “homem moderno”, como “grosseria”, “intolerância”, “saudosismo”, “teimosia” ou mesmo “implicância” contra valores modernos.

          Essa visão estereotipada do que significa o termo “tradicional”, passa por uma completa ignorância da modernidade a respeito do significado do termo “Tradição”, além da influência prejudicial do Iluminismo sobre o pensamento do homem ocidental contemporâneo (conforme iremos abordar ao longo deste artigo). Entender o que significa o termo “Tradição” é um passo necessário para se compreender o que significa a Tradição Esotérica Ocidental, e como ela é estruturada.

          Para René Guénon, a oposição moderna à Tradição é antes de tudo fruto da oposição iluminista a tudo que possa ser considerado “tradicional”. Para o autor, essa ignorância moderna a respeito do que significa a Tradição fica ainda mais clara através das ideias (deturpadas) modernas de que a Idade Média foi um “período de trevas” e de que o Renascimento foi um “retorno à glória da antiguidade”. O autor enfatiza que o crescimento da modernidade não foi necessariamente algo apenas positivo, mas também prejudicial (do ponto de vista filosófico), já que a modernidade não “corrigiu” nada que estava errado na Idade Média, e sim

“[…] marcou uma queda muito mais profunda, pois consumou o rompimento definitivo com o espírito tradicional, quer no campo das ciências e das artes, quer até mesmo no campo religioso, no qual tal ruptura teria sido dificilmente concebível” (GUÉNON, 2017, p.18).

A Tradição é antes de qualquer coisa, algo vivo, perene: ela não se diluiu ao longo do tempo. Seus valores foram moldados de acordo com cada cultura na qual ela se estabeleceu; mas sua essência é uma só, e por isso mesmo, a Tradição manteve-se viva ao longo dos séculos.

          A transmissão da Tradição se dá de forma oral e escrita, e está ligada à cultura e aos hábitos de cada sociedade, manifestando-se de acordo com os recursos tecnológicos de cada período da história humana. Há sociedades em que a Tradição se manifesta de forma essencialmente oral (como nos casos das culturas xamânicas ou aborígenes); em outras, a Tradição encontra também formas de manifestação escrita, através de obras religiosas, culturais ou mesmo políticas. Isso não impede que a Tradição manifeste-se também na própria modernidade; porém, o que é mais comum (conforme veremos ao longo do texto) é que a espiritualidade moderna aproprie-se da Tradição (e de seus valores) através de uma deturpação sistematizada. Seja como for, o termo “Tradição” refere-se essencialmente a tudo que é transmitido (seja entre seres humanos, ou entre os homens e entidades espirituais), seja de forma oral, seja de forma escrita (GUÉNON, 2017).

          Tomás de Aquino classifica a Tradição como algo equilibrado e pautado na oferta de justiça ao ser humano. O conceito de “Tradição” trabalhado por Aquino estende-se tanto ao campo da religião, quanto à política, à cultura e a todas as formas de conhecimento manifestadas pelo ser humano. Assim, o homem depende da Tradição como uma forma de obter nela a justiça e a dignidade providas por Deus, para manter sua vida em equilíbrio (AQUINO, 2001).

          Uma das características da Tradição é justamente sua capacidade de não se deixar atingir pelas inconstâncias do tempo. Isso significa dizer que os valores considerados “tradicionais” sempre manterão uma mesma base comum (por mais que se moldem a cada cultura e a cada período em que se manifestarem). A “moldagem” que a Tradição faz em torno de seus valores é uma moldagem que visa mais sua permanência (perenidade) que sua transformação, pois de uma forma geral, a Tradição não se transforma: ela simplesmente se perpetua, adquirindo roupagens diferentes e guardando a mesma essência. Assim, é comum que muitas culturas diferentes (e aparentemente inconciliáveis) valorizem aspectos comuns tidos como “tradicionais”, como a valorização da família, a importância dada à espiritualidade, o respeito à vida, etc.

          É inegável que no Ocidente, a Tradição anda “de mãos dadas” (ou quase dadas) com o judaico-cristianismo, apesar de também se manifestar de forma perene em outras religiões do Ocidente e até mesmo no Oriente (que não tem a mesma influência judaico-cristã em suas sociedades). A influência da religião sobre o conceito ocidental de “Tradição” é clara (ou no mínimo bastante acentuada). Isso incomodou o Iluminismo (conforme veremos ao longo desta série de artigos), pois a filosofia iluminista, de certa maneira se opunha à religião por acreditar que ela (religião) era uma expressão social do tradicionalismo, e mantinha a sociedade em estado de “aprisionamento intelectual”. Segundo Coomaraswamy (2017) esse tipo de pensamento iluminista é facilmente constatado na estrutura de produção econômica da sociedade moderna, em que

[…] as atividades básicas do homem moderno são destituídas de qualquer senso do sagrado, como ignorantes dos princípios metafísicos. Ao passo que o ponto de vista tradicional, ao contrário, se baseia na doutrina de uma queda a partir de um estado de graça e na necessidade da Revelação e da graça divinas para que o homem possa retornar à sua condição primordial e sagrada, a seu Centro mesmo, provendo-o também de uma metafísica, que explica a essência e razão de ser da própria natureza humana”. (COOMARASWAMY, 2017, p. 15).

Como se vê, a palavra “Tradição” não se refere somente a aspectos políticos, culturais ou econômicos do ser humano: refere-se também a aspectos espirituais. Tradição e espiritualidade são coisas que andam quase juntas (às vezes até unidas), e tentar descaracterizar essa união (ou mesmo caracterizá-la como algo “prejudicial” ao ser humano) foi uma tentativa inútil (e bastante maléfica à sociedade ocidental) que o Iluminismo fez, a partir do século 18.

          O ser humano é religioso por natureza, e sua essência lhe diz que ele deve procurar a Deus, seja por inspiração, seja por esforço próprio (AQUINO, 2001). A forma mais segura de se empreender essa busca é através da Tradição: é ela que fornece meios adequados ao homem de realizar sua busca pelo divino, livre dos vícios, sincretismos e deturpações tão frequentes nos ideais modernos.

          Como a modernidade não conseguiu derrubar a essência unificada do significado da Tradição, ela passou a recorrer a estratégias que tentassem fragmentar esse conceito. Essa tentativa de fragmentação da Tradição foi respaldada a partir de uma das fortes características do Iluminismo: o relativismo. Para o homem moderno (e naturalmente iluminista) tudo parece ser relativo: não se pode concluir nada sobre assunto nenhum, e muito menos generalizar conclusões sobre questões de interesse humano, sob risco de se desconsiderar os detalhes que cercam essas questões (generalização). Assim, o Iluminismo passou a defender a ideia (relativista) de que a Tradição, por mais forte que seja, não pode ser considerada uma coisa só, e depende do local, da cultura e da época em que está inserida. Dessa forma, para o Iluminismo, haveriam várias “tradições” no Ocidente (e não simplesmente “a Tradição”).

          Gaudron (2011) contradiz essa ideia moderna (e relativista) sobre a existência de “várias tradições”. Para o autor, o fato de existirem tradições ou diferentes manifestações dos valores tradicionais (que dependem de circunstâncias culturais e sociais de cada época da história humana) não invalidade a existência de uma Tradição unificada. Essa Tradição não depende das diferenças que os homens guardam entre si, ao contrário: é algo divino, independente, autônomo.

          Assim, a Tradição “é o depósito da Fé, que foi confiado de uma vez por todas, e que o magistério deve transmitir e proteger até o fim do mundo” (GAUDRON, 2011, p. 232). O autor alemão vai ainda mais além, e confirma a teoria de René Guénon de que a Tradição é uma só: imutável, unificada e perene, independente das diferenças culturais, políticas e sociais que adote em sua manifestação em cada cultura e período da história humana:

“O depósito revelado é absolutamente imutável. Mas esse depósito imutável é expresso de modo cada vez mais preciso pelo Magistério, que o inventaria e o classifica, ao mesmo tempo em que o transmite e o defende. […] A Tradição é viva no sentido em que o depósito revelado não é transmitido somente de modo morto, em escritos, mas também o é por pessoas vivas que tem autoridade para defendê-lo, dar-lhe o devido valor e fazer que seja vivido” (GAUDRON, op.cit, p. 232).


          Apesar de possuírem características culturais essencialmente diferentes, Oriente e Ocidente possuem traços da Tradição em comum, e esses traços deixavam orientais e ocidentais ainda mais próximos no passado (GUÉNON, 2017). Isso é algo curioso (em se tratando de analisarmos o que significa a Tradição), já que é comum na modernidade pregar-se a ideia de uma “diversidade cultural” que tornaria impossível aproximar culturas opostas (ou distantes) entre si.

          Conforme vimos, ser “tradicional” é ser fiel a valores e a formas de manifestação que transcendem o tempo e as diferenças do ser humano. O que é considerado uma “generalização” pela modernidade, é para os tradicionalistas uma simples constatação: não existem “várias tradições”; existem sim, várias manifestações culturais da mesma Tradição, perpetuada ao longo dos séculos. E é sobre esse conceito de “Tradição” que se apoia a essência da Tradição Esotérica Ocidental, conforme veremos nos próximos artigos desta série.

 Na 1ª parte desta série de artigos, analisamos o significado do termo “Tradição” e vimos como a interpretação dada a este termo influencia diretamente a espiritualidade do homem ocidental. Agora, na 2ª parte desta série, iremos analisar a Tradição Esotérica Ocidental a partir das culturas que lhe servem de base, mostrando que a mistura que é feita na espiritualidade moderna entre Oriente e Ocidente foge completamente da essência do Esoterismo Ocidental (além de se caracterizar como algo prejudicial ao pensamento do próprio homem ocidental).



Entendendo a Tradição Esotérica Ocidental: suas bases epistemológicas, influências culturais e espirituais e valores inegociáveis.

          Vimos no artigo anterior que ao contrário do que a modernidade comumente prega, não existem “várias tradições”: existem sim manifestações culturais, políticas e sociais diferentes, que guardam entre si uma base comum de uma só Tradição. A Tradição é perene (eterna) e não está sujeita às impermanências do tempo. Assim, a ideia relativizada de que a Tradição depende das características políticas, filosóficas e culturais do ser humano não serve de base para entendermos a essência do Esoterismo Tradicional do Ocidente. A Tradição Esotérica Ocidental tem um corpo-base de valores que não dependem das diferenças das culturas ocidentais em que ela vem se manifestando há séculos.

          De uma forma geral, podemos conceituar a Tradição Esotérica Ocidental como um corpo de conhecimentos manifestado e transmitido por meio das filosofias de quatro grandes centros espirituais do Ocidente. A Tradição Esotérica Ocidental é a manifestação espiritual da própria Tradição perene, através da roupagem adquirida por quatro substratos culturais (por meio de seus valores espirituais e filosóficos). Essas quatro grandes culturas do Ocidente são as seguintes:

a) A cultura pagã e o xamanismo, representadas especialmente através da cultura céltica e das religiões de matriz afrodescendente, por meio da divulgação de um estilo de espiritualidade que comunga diretamente com a natureza;

b) A cultura egípcia, responsável direta pela difusão de valores espirituais relacionados à vida pós-morte, à prática de magia, astrologia e ao culto religioso socialmente organizado;

c) A cultura greco-romana, responsável pela propagação (ou inspiração) no Ocidente de várias correntes filosóficas que serviram de base para o pensamento esotérico ocidental, como o Platonismo, Hermetismo, Estoicismo, e Neoplatonismo;

d) A cultura judaico-cristã, responsável pela estruturação da sociedade ocidental como um todo, além da divulgação de valores espirituais e morais caros à formação do caráter do ser humano no ocidente, e à sua visão de mundo.

       É a partir desses quatro centros de manifestação cultural (Cultura Céltica/Xamanismo, Egito, Grécia/Roma e Oriente Médio) e das manifestações da Tradição diretamente derivadas desses centros, que repousam as bases da Tradição Esotérica Ocidental. Qualquer coisa que saia desse escopo não pertence à essência da espiritualidade do Ocidente (mesmo que sejam também formas válidas e ricas de manifestação espiritual). Não se trata aqui de pregarmos um “exclusivismo”: trata-se simplesmente de constatarmos que a espiritualidade do Ocidente repousa sob os alicerces dessas quatro roupagens adquiridas pela Tradição para manifestar-se ao homem ocidental (RIFFARD, 1990).

           Obviamente, o leitor pode questionar-se se essa análise que estamos fazendo acerca dos alicerces da Tradição Esotérica Ocidental não soa “eurocêntrica” demais. De certa forma, ela realmente pode soar como uma espécie de “eurocentrismo” (apesar de não ser essa nossa intenção), ao sermos taxativos em estabelecer os centros de manifestação cultural da Tradição Esotérica Ocidental (mesmo porque o ser humano da antiguidade ou do período medieval desconheciam os conceitos de “Ocidente” e “Oriente”, e muito menos a dualidade que se estabeleceu entre esses conceitos na modernidade). Mas de uma forma geral, para fazermos um estudo embasado do significado da Tradição Esotérica Ocidental, precisamos primeiramente nos livrar de quaisquer relativismos que dificultem a análise das bases epistemológicas da espiritualidade no Ocidente (GUÉNON, 2017); e isso passa necessariamente por deixarmos claro o que é “ocidental” (espiritualmente falando) e o que simplesmente não é.

          Falar abertamente de cada um desses quatro centros culturais demandaria muito tempo (o que não é o objetivo deste artigo). Futuramente tentaremos abordar a importância de cada um desses centros culturais do ser humano para a formação da Tradição Esotérica Ocidental; porém, o que nos interessa aqui, é saber que o Esoterismo Ocidental se pauta, a partir de tudo, numa busca pela explicação das coisas materiais. O Esoterismo Tradicional no Ocidente procura uma justificativa para a existência humana, seus problemas e suas soluções. Ele quer explicações concretas para assuntos muitas vezes sutis; busca justificativas para questões aparentemente sem solução. Por isso, falar de uma “Tradição Esotérica Ocidental” é antes de tudo “[…] ir ao fundo de seu pensamento, e de lá lançar-se para as extremidades, porque esse centro abriga todo o conjunto” (RIFFARD, 1990, p. 9).

             Falar de Esoterismo Tradicional no Ocidente é falar de algo que é completamente alheio ao pensamento científico moderno. A Tradição Esotérica Ocidental não se respalda e nem busca se aproximar da ciência moderna por um motivo muito simples: a busca esotérica é a busca por respostas de assuntos que não são objeto de estudo da ciência materialista (vida pós-morte, contato com espíritos e entidades, consulta a oráculos, existência de Deus, etc.). A ciência moderna até admite seus limites e reconhece que não é capaz (e nem tem intenções) de trabalhar sobre esses assuntos. Porém, mesmo quando reconhece sua impossibilidade de atuação nos assuntos comumente abordados pelo Esoterismo, a ciência moderna o faz de forma pejorativa; assim, é comum que a ciência materialista, ao se referir ao Esoterismo, o faça de maneira vexatória, humilhante, escandalosa (RIFFARD, 1990).

              Ainda assim, a Tradição Esotérica Ocidental não deve nada à ciência moderna. Ao contrário do Esoterismo Moderno (que é uma derivação da Tradição Esotérica Ocidental), que tentou e ainda tenta (de maneira inadequada) se alinhar ao pensamento científico moderno (conforme veremos ao longo desta série), o Esoterismo Tradicional não guarda e nunca guardou nenhuma intenção de se aproximar, compactuar ou dialogar com os valores iluministas que predominam no método científico moderno. Isso porém, não significa que a Tradição Esotérica Ocidental seja “rival” da ciência materialista (ou negue seus avanços e descobertas no Ocidente): são dois campos de conhecimento distintos, que não precisam (e não tem a mínima necessidade) de serem unificados ou “aproximados à força”. De certa forma, “o Esoterismo se revela por si mesmo. Não precisa de um psicanalista ou de um crítico. Possui sua própria linguagem” (RIFFARD, 1990, p. 28).



           A essa altura, já deve ter ficado claro ao leitor qual o campo de atuação da Tradição Esotérica Ocidental: a busca por respostas a questões que incomodam o homem do Ocidente (questões essas que não podem ser respondidas pelo método científico moderno). A partir disso, podemos também evidenciar outra coisa: a espiritualidade oriental (representada especialmente por elementos do hinduísmo e do budismo) não faz parte do corpo de conhecimentos trabalhados na Tradição Esotérica Ocidental. Essa, por si só é uma constatação que parece contradizer (e irritar) profundamente os espiritualistas modernos, entusiastas que defendem a existência de uma espiritualidade sincrética que misture “o melhor de cada corrente espiritual”.

            Não estamos dizendo que a espiritualidade do Oriente não tem seu valor: a questão não é essa. Ela tem seu valor e sua beleza, e certamente possui resultados comprováveis entre os seus adeptos orientais (e às vezes até ocidentais). Porém, o que está em jogo aqui é outra coisa: a construção da identidade da Tradição Esotérica Ocidental faz uso de valores que não são abordados (ou mesmo compreendidos) pela espiritualidade do Oriente.

       Argumentos do tipo “Yoga funciona”, “meditação budista é ótima” ou “a espiritualidade oriental é mais honesta que a ocidental” não justificam ou explicam a aproximação de conceitos orientais à espiritualidade do homem ocidental. Esses são argumentos comumente usados pela modernidade para justificar sua busca por algo que contradiga aquilo que lhe desagrada no Ocidente, fazendo-a correr atrás de um “conhecimento secreto” ou de uma “verdade inédita no Ocidente” por meio de elementos espirituais orientais. Essa aproximação, na verdade, foi feita no século 19, através da expansão do Esoterismo Moderno (que iremos ver com detalhes no decorrer desta série de artigos).

        Na verdade, a espiritualidade oriental (que nem sequer é conhecida como “esotérica” pelos adeptos de suas culturas) não compactua dos valores do homem ocidental, ao contrário: o raciocínio do homem oriental é pautado em preocupações absolutamente distintas daquelas demonstradas pelo homem ocidental. Enquanto o oriental tende a ter uma forma de raciocínio mais psiquista (preocupada com sua própria mente) e ao mesmo tempo preocupada com o bem estar de sua sociedade, o homem ocidental tende a se preocupar com o externo a si (exterior à sua mente) e buscar melhorias e avanços para si mesmo.

          Nem um nem o outro estão errados: tratam-se de pontos de vista essencialmente distintos. Isso se expressa de forma ainda mais nítida na espiritualidade: o oriental procura meditar, “esvaziar sua mente”; o ocidental anseia por resultados visíveis, através de evocações, invocações e orações. Assim,

“O Oriente se baseia na realidade psíquica, isto é, na psique, enquanto condição única e fundamental da existência. […] Trata-se de um ponto de vista tipicamente introvertido, ao contrário do ponto de vista ocidental que é tipicamente extrovertido. […] A introversão é, se assim podemos nos exprimir, o estilo do Oriente, ou seja, uma atitude habitual e coletiva, ao passo que a extroversão é o estilo do Ocidente” (JUNG, 2011, p. 17-18).


          Mesclar aspectos espirituais do Oriente à espiritualidade do Ocidente é algo absolutamente alheio à essência da Tradição Esotérica Ocidental. A própria Psicologia (tão admirada e utilizada no Esoterismo Moderno) faz questão de enfatizar as diferenças de interesses e de raciocínio entre orientais e ocidentais, e por esse motivo fizemos questão de citar Jung (2011), uma vez que ele é um dos baluartes da espiritualidade moderna.

          Apesar disso, ainda podemos afirmar com clareza que a espiritualidade oriental guarda em si uma base dos valores da Tradição, que também são abordados no Esoterismo Tradicional do Ocidente. É essa base que faz com que, em certos momentos, certos elementos e símbolos espirituais (como a cruz, por exemplo) sejam comuns em culturas aparentemente inconciliáveis (GUÉNON, 2017).

       Há também três características comuns na Tradição Esotérica Ocidental, que merecem ser citadas como marcas registradas da espiritualidade no Ocidente:

A importância do “segredo” na prática espiritual;
A crença na existência de seres espirituais (e no contato com eles);
A diferenciação entre indivíduos “iniciados” (praticantes do Esoterismo), e “não-iniciados” (praticantes de uma espiritualidade mais básica e externa, comumente denominada “Exotérica”).


          O “segredo” é uma das características primordiais da Tradição Esotérica Ocidental: não se pode nem se deve falar abertamente das práticas espirituais que se faz.

          No pensamento ocidental, cada ser humano deve ser capaz de descobrir a verdade a partir de sua própria experiência (mesmo que essa verdade seja comum a todos que a busquem). Assim, revelar segredos de práticas espirituais torna-se prejudicial não pela revelação em si, mas pelo fato de prejudicar a busca dos outros pela verdade, conforme relata Dubuis:

“Do not hide the processes which lead to Knowledge, but keep very quiet about the nature of the experiements and experiences which result from the acess to this Knowledge[1]”. (DUBUIS, 2000, p. 6)


          A crença na existência de seres espirituais (e no contato com eles) também é uma característica básica da Tradição Esotérica Ocidental. Essa característica é fruto da influência direta do xamanismo, onde o operador frequentemente tem contato com entidades das mais diversas espécies (anjos, demônios, elementais, desencarnados, etc.), gerando uma espécie de trabalho espiritual específico conhecido no Ocidente como “Teurgia” (que abordaremos a seguir).

          Finalmente, a diferenciação entre indivíduos “iniciados” e “não-iniciados” é outra característica comum na Tradição Esotérica Ocidental, que foi ainda mais aprofundada no Esoterismo Moderno. No Ocidente, a história nos mostra que é comum separar-se indivíduos por sua classe social, ou por suas “qualidades”. No caso da espiritualidade, essa separação é feita da seguinte forma: os indivíduos devidamente preparados eram introduzidos aos mistérios sagrados de uma religião através de cerimônias específicas (as chamadas “iniciações”). Eram esses indivíduos que tinham acesso ao conhecimento “interno” ou reservado de certas religiões (chamado de “Esotérico”, com a letra “S”).

        Já ao resto da população, era comumente destinado um tipo de conhecimento básico, comum a todos que não fossem iniciados nos mistérios de determinada religião. Esse é o chamado conhecimento “Exotérico” (com “X”), um corpo externo de saberes que era transmitido a todos os que se mostravam incapazes de aprofundar-se nos mistérios de determinado corrente filosófica ou religiosa.

          No próximo artigo da série, discutiremos como a Tradição Esotérica Ocidental manifesta-se de maneira prática nas correntes espirituais do Ocidente, através de suas três artes espirituais (o chamado “trivium hermético”).

 No artigo anterior, vimos que a Tradição Esotérica Ocidental é a manifestação espiritual da própria Tradição, por meio do substrato de quatro grandes culturas do Ocidente (Cultura Céltica & Pagã e Xamanismo Afro, Cultura Egípcia, Cultura Greco-Romana e Cultura Judaico-Cristã).

          Na 3ª parte desta série, iremos analisar de que forma o Esoterismo Tradicional do Ocidente se manifestou (e ainda se manifesta) em termos práticos, através de seu “tripé espiritual” (ou “trivium hermético”).


O trivium hermético: a base metodológica da Tradição Esotérica Ocidental

          Vimos que a Tradição Esotérica Ocidental é pautada nas culturas celta, egípcia, greco-romana e judaico-cristã, e como o Esoterismo Tradicional praticado no Ocidente afasta-se de conceitos iluministas e modernos (além de afastar-se também de conceitos orientais). A partir de agora, tentaremos entender como a Tradição Esotérica Ocidental manifesta-se de forma prática, através das suas três artes herméticas.

          O trivium hermético é a base de toda a Tradição Esotérica Ocidental. É sobre essas três artes (Astrologia, Alquimia e Teurgia) que o Esoterismo Tradicional do Ocidente repousa suas práticas. Assim, qualquer sistema filosófico ou espiritual que não faça uso dessas três artes herméticas, em maior ou menor grau (ou faça uso de apenas algumas delas), não pode ser considerado “tradicional”, ou mesmo “pertencente” à Tradição Ocidental. Aqui, grande parte das Ordens Iniciáticas modernas e correntes filosóficas pós-século 19 já perdem sua “aura” (muitas vezes presunçosa e desonesta) de tradicionalismo.

          É preciso destacar que quando se fala do trivium hermético, estamos nos referindo à três artes específicas: a Astrologia Tradicional (e não a Astrologia Moderna); a Alquimia Laboratorial (e não a Alquimia psicológica comumente abordada a partir do século 19); e a Teurgia (e não a prática de magia psiquista ou psicologizada, ou mesmo os exercícios orientalistas amplamente divulgados a partir do século 19).

          A modernidade adaptou ou criou variações das três artes do trivium hermético. Essa foi uma estratégia utilizada pelo Esoterismo Moderno como tentativa de puxar para si alguma forma de “validação histórica” que lhe possibilitasse obter a mesma credibilidade da Tradição Esotérica Ocidental. Para isso, a modernidade apropriou-se das artes herméticas e as transformou em “ciências ocultas” (RIFFARD, 1990), dando a elas um ar de “cientificidade” e as tentando aproximar do método científico moderno.

        É desnecessário dizer que tanto a Astrologia Tradicional, quanto a Alquimia Laboratorial e a Teurgia não são ciências (no sentido materialista do termo “ciência”). As três são artes espirituais, porque demandam de seus operadores habilidade de manuseio e sensibilidade para se interpretar os resultados obtidos (sensibilidade essa que simplesmente não existe no método científico moderno, pautado na frieza e na busca por resultados imediatos). É por essa razão que não nos referimos nunca à Astrologia, Alquimia ou Teurgia como “ciências espirituais” (mesmo que muitos estudantes da modernidade prefiram se referir a elas dessa forma), visto que tratá-las como ciências (mesmo que espirituais) já é um grande passo para se analisá-las sob um viés materialista moderno.


          De acordo com o alquimista Jean Dubuis, o estudo do trivium hermético é amplo, e exige do praticante muita dedicação e seriedade de intenções. O autor chama o trivium hermético de “retrato tríplice” (em alusão a alguma estrutura de altar que faça uso de três imagens religiosas simultaneamente), e deixa claro que o estudo das três artes é costumeiramente mais profundo do que se imagina, envolvendo também o estudo de simbolismo, numerologia e mitologia (DUBUIS, 2000).

         Eliphas Levi, tido como um dos baluartes da espiritualidade moderna, também dividiu a Tradição Esotérica Ocidental em Astrologia, Alquimia e Teurgia. Porém, ele usou nomenclaturas diferentes para se referir ao trivium hermético: o autor separou a Cabala da prática de Magia, e incluiu o estudo de Astrologia no que ele denominou simplesmente de “Hermetismo” (LEVI, 2009). Seja como for, mesmo que diferentes autores tenham adotados nomenclaturas distintas (ou feito divisões diferentes), a base de prática espiritual da Tradição Esotérica Ocidental reside sempre nas três artes do trivium hermético.

         A primeira arte do trivium hermético é a Astrologia Tradicional. Ela é a arte responsável pelo estudo dos astros, e por sua influência nas ações dos seres humanos. É também a base do trivium hermético, e o trabalho com as outras duas artes (Alquimia Laboratorial e Teurgia) exige necessariamente conhecimentos astrológicos (especialmente para a escolha do melhor momento para se efetuar trabalhos espirituais, a chamada “Astrologia Eletiva”).

         Diferente da Astrologia Moderna (pautada no bem estar do ser humano e na explicação da personalidade do homem ocidental), a Astrologia Tradicional tem como principal foco a predição de acontecimentos na vida do homem. Sua base epistemológica é essencialmente pautada na ideia de “destino” trabalhada no Estoicismo, e também bastante influenciada pelo ideário espiritual judaico-cristão, responsável pela divulgação da ideia dos astros como “representantes do criador”.

          A segunda arte hermética é a Alquimia Laboratorial. Ela é o trabalho de evolução espiritual que é feito através do auxílio à evolução da própria natureza, por meio da manipulação direta da matéria. Apesar de o nome sugerir algo meramente experimental e feito em laboratório, a Alquimia Laboratorial tem também um aspecto espiritual: a prática do oratório. É daí que surge a expressão latina “Ora et Labora” (reza e trabalha).

         A Alquimia Laboratorial se divide de acordo com o “reino” no qual o trabalho alquímico é realizado: Animal, Vegetal ou Metálico. Todavia, na prática, o trabalho alquímico é comumente dividido em duas categorias: Espagiria (trabalho com os vegetais) e Alquimia propriamente dita (trabalho com os metais).

A Alquimia Laboratorial (ou Operativa) consiste no trabalho com a natureza, através da manipulação direta da matéria. O alquimista busca aperfeiçoar os processos realizados pela natureza, produzindo tinturas, elixires e medicamentos capazes de manter a essência da matéria trabalhada e curar o ser humano.

Já a Teurgia é o trabalho de evolução espiritual através do contato direto com o Todo-Poderoso, por meio das entidades que compõem as diversas hierarquias espirituais presentes na criação. Também conhecida no Ocidente (nem sempre de maneira correta) como Magia Cerimonial, a prática de Teurgia consiste essencialmente no trabalho de Invocação e Evocação de anjos, arcanjos, demônios, elementais, desencarnados ou mesmo dos nomes divinos de Deus, como forma de se obter conhecimento direto das entidades que compõem a criação.

        Constantemente pautada na prática de orações, a Teurgia tornou-se também popular no Esoterismo Moderno, através da popularização simplificada (e estereotipada) da Goetia (sistema mágico cerimonial pertencente à Tradição teúrgica Salomônica). É necessário também dizer que a Teurgia não faz levantamentos morais em torno de seu trabalho, e por mais clichê que possa parecer, é necessário ressaltar que a divisão entre “magia branca” e “magia negra” (muito difundida no Esoterismo Moderno) diz mais respeito às intenções do operador que à prática de Teurgia em si.

          Para Jean Dubuis, o trivium hermético é um estudo que vai “além da vida”: assim,

As a summary, Alchemy would be the study of chemistry plus Life; Magic the study of physics plus Life; and Astrology the study of Astronomy plus Life. (DUBUIS, 2000, p. 121).[1]


          Conforme o leitor deve ter percebido, a Cabala não está inclusa como uma das três artes herméticas. Por isso, é preciso deixar claro qual a posição da Cabala na Tradição Esotérica Ocidental (uma vez que ela guarda muita popularidade entre os sistemas filosóficos e espirituais da modernidade).

         A Cabala não foi citada no trivium hermético por uma razão muito simples: uma parte dela já está contida na Teurgia, como parte integrante desta última (no que muitos autores medievais denominavam de “Cabala Prática”, ou simplesmente “Cabala Cristã”).

         A Cabala é parte essencial do misticismo judaico, e por isso mesmo, fator primordial na formação da identidade da Tradição Esotérica Ocidental (como parte da cultura judaico-cristã). Sua atuação na espiritualidade do Ocidente ganhou grande destaque a partir do século 13, por meio da divulgação feita por Moisés de Leon. A partir daí, a Cabala foi fortemente utilizada na prática de magia cerimonial tradicional nos séculos que seguiram, fosse através do uso do alfabeto hebraico, fosse através da utilização de chaves de invocação de anjos, arcanjos ou dos nomes divinos do criador. Toda essa utilização ficou popularmente conhecida entre os autores ocidentais como “Cabala Prática”, ou mais precisamente “Cabala Cristã”, parte integral da Teurgia.

        Obviamente, a Cabala tem um corpo de conhecimentos bem mais vasto que seu aspecto prático (que foi incorporado à Teurgia Ocidental). Porém, o aspecto cabalístico comumente adotado na prática teúrgica ocidental diz respeito ao auxílio que a Cabala (enquanto arte espiritual judaico-cristã) pode oferecer ao trabalho mágico do Ocidente. Isso inclui diretamente a abordagem prática do alfabeto hebraico e as maneiras corretas de se invocar nomes divinos comumente presentes em círculos mágicos e inscrições contidas na parafernália mágica. Esse tipo de trabalho espiritual foi intensamente feito no período medieval, onde os cabalistas cristãos que trabalhavam com a Teurgia, “[…] se interrogavam sobre os nomes dos anjos, sobre a significação dos textos bíblicos à força de anagramas” (RIFFARD, 1990, p. 581).

          A essa altura, já deve ter ficado claro ao leitor que a Tradição Esotérica Ocidental sustenta sua metodologia prática em três artes distintas (com a Cabala estando inclusa em uma delas, por meio de um sincretismo). Astrologia, Alquimia e Teurgia formam a base de toda a prática espiritual do Esoterismo no Ocidente, e as três sempre estiveram presentes na espiritualidade ocidental, fosse na cultura celta e xamânica, na egípcia, na cultura greco-romana ou mesmo no panorama judaico-cristão.

         Como dissemos anteriormente, o trabalho com o trivium hermético é condição sine qua non para que qualquer corrente filosófica ou espiritual seja considera “tradicional” ou mesmo pertencente à Tradição Esotérica Ocidental: trabalhar com as três artes simultaneamente é algo absolutamente necessário (apesar de aparentemente “impossível” na atualidade, por conta da falta de praticantes genuínos da Tradição Esotérica Ocidental).

Para a Teurgia Ocidental, a prática mágica consiste justamente de se trabalhar em conjunto com espíritos, anjos e demais entidades como forma de se obter resultados concretos e manifestações no plano físico. Para isso, a linguagem cabalística é utilizada como ferramenta de enriquecimento das operações teúrgicas, fazendo com que a Cabala seja parte integrante da Teurgia (mas não uma arte hermética independente, no trivium hermético).

 O trabalho com apenas duas dessas artes, ou mesmo com apenas uma, já são suficientes para se caracterizar qualquer Ordem Iniciática ou corrente filosófica como “não-tradicional” ou não pertencente à Tradição Ocidental (conforme já explicitado pelos autores citados ao longo do artigo). Assim, as correntes filosóficas e espirituais, e as Ordens Iniciáticas que não se enquadram como “tradicionais”, encaixam-se quase que automaticamente como pertencentes ao Esoterismo Moderno.

          No próximo artigo desta série, iremos analisar as origens do Esoterismo Moderno, a grande influência que essa forma de espiritualidade sofreu do Iluminismo, e os problemas epistemológicos que ele enfrenta para se respaldar enquanto corrente espiritual no ocidente.

  Na 5ª parte desta série de artigos, vimos como o Esoterismo Moderno tomou forma a partir do século 19, e se consolidou como uma tradição espiritual independente, delimitando um corpo teórico a partir de autores considerados “mestres espirituais” na modernidade (Eliphas Levi, Papus, Helena Blavatsky e Crowley).

        A partir de agora, encerraremos esta série de artigos sobre a Tradição Esotérica Ocidental analisando de maneira profunda como o Esoterismo Moderno ratificou de maneira definitiva seus pressupostos filosóficos a partir do século 20, e como ele tem sido vítima dos próprios valores iluministas que abraça, sofrendo de um relativismo conceitual que o impede de chegar a qualquer conclusão sobre a Verdade (e o afastando da essência da Tradição Esotérica Ocidental).


O Esoterismo Moderno e suas infinitas correntes espirituais: para onde caminha a espiritualidade do homem contemporâneo?

          O Esoterismo Moderno estimula a mistura, o sincretismo, a absorção desenfreada (e sem critérios) de conhecimentos muitas vezes incompatíveis, através da lógica moderna de que “de tudo se deve extrair um pouco”. Só que essa lógica cria estudantes incompletos e medíocres, que dominam superficialmente aspectos de muitas correntes e doutrinas diferentes, mas que não conseguem desempenhar um papel satisfatório em nenhuma delas.

     Curiosamente, o Esoterismo Moderno parece ser vítima dos próprios ideais iluministas que abraçou (e dos quais construiu sua identidade). Assim, ao mesmo tempo em que prega uma releitura da Tradição, a espiritualidade moderna vê-se perdida em meio a uma diversidade quase infinita de tendências espirituais,filosofias e correntes religiosas, sem que nenhuma delas possa ser classificada como “autêntica” ou “verdadeira”. Como o Esoterismo Moderno abraça “várias verdades”, a autenticidade de cada corrente filosófica que compõe a espiritualidade contemporânea vai depender sempre da interpretação pessoal de cada buscador (Subjetivismo). E é justamente aí que os estudantes de esoterismo da modernidade caem num verdadeiro “labirinto”.

O Esoterismo Moderno abraçou os ideais iluministas (especialmente o Relativismo) a tal ponto, que encontra-se praticamente num “beco sem saída”: há caminhos espirituais demais, e verdades de menos. Assim, o homem contemporâneo se vê numa verdadeira “selva de conceitos”, sem que nenhum lhe pareça confiável ou definitivo.

Diferente da Tradição Esotérica Ocidental, que é respaldada em critérios definidos e possui uma base epistemológica sólida e comum em todas as culturas ocidentais nas quais se manifesta, o Esoterismo Moderno tem uma dificuldade enorme em estabelecer critérios práticos de análise da espiritualidade. Isso ocorre porque a modernidade parece caminhar sob um ideal fantasioso de “democracia” (outro fruto da influência iluminista), que quer dar a todos “vez e voz” na construção de identidade de qualquer coisa (incluindo a espiritualidade). Assim, o Esoterismo Moderno, amarrado aos ideais iluministas do Relativismo e do Subjetivismo, deixa à cargo de cada buscador interpretar como quiser os resultados que obtém de suas práticas espirituais, gerando uma verdadeiro festival de achismos e análises distorcidas de coisas que poderiam ser classificadas de maneira objetiva e concreta.

         Ao leitor, deixo um pequeno “desafio”: pergunte a algum estudante de esoterismo da atualidade quais resultados ele obteve de suas práticas espirituais (sejam elas quais forem). É bem provável que você receba respostas do tipo “tive resultados extraordinários”; “senti energias positivas a meu redor, durante minhas práticas”, ou mesmo respostas relativistas do tipo “o que são resultados pra você? Tudo pode ser considerado resultado”. Os estudantes de Esoterismo Moderno tem enorme dificuldade para sistematizar os resultados que obtém de suas práticas, justamente porque o próprio Esoterismo Moderno (através de grande parte de suas correntes filosóficas e espirituais) não estabelece critérios claros de análise de resultados, ou de interpretação de práticas espirituais.

         É importante ressaltar que nesse “samba do crioulo doido”, alguns valores da Tradição Esotérica Ocidental foram mantidos (e até fortalecidos!) no Esoterismo Moderno. Não porque esses valores são importantes para a modernidade, mas porque seu uso é estratégico aos objetivos da espiritualidade moderna. Estamos falando do “segredo” e da separação dos indivíduos entre “iniciados” e “não-iniciados”.

          A importância do segredo e da separação da sociedade entre “iniciados” e “não-iniciados” (chamados na modernidade de “profanos”) está intimamente ligada ao nascimento e expansão das Ordens Iniciáticas modernas no século 19. Muitas dessas instituições espiritualistas se apresentaram como detentoras de algum tipo de “sucessão espiritual” (obviamente remontando aos primórdios da Tradição Esotérica Ocidental). Assim, no Esoterismo Moderno nascido no século 19, apenas as Ordens Iniciáticas eram capazes de manter segredo sobre os conhecimentos “milenares” que possuíam, e seus membros (iniciados) eram constantemente aconselhados a não se misturar com os “profanos” (não-iniciados). Isso criava uma sensação (presunçosa) de “superioridade espiritual” dos membros dessas Ordens, que se achavam “mais gabaritados” que os indivíduos que não fossem “iniciados” (o que obviamente, forçava os não-iniciados a procurarem a iniciação dentro das Ordens). É justo ressaltarmos, no entanto, que esse tipo de raciocínio tem sido duramente combatido no seio da própria modernidade através do discurso conciliatório do movimento “New Age” (Nova Era) e da suposta “Era de Aquário” (que traria a verdade de qualquer assunto à tona).

          Seja como for, é por essa razão que as Ordens Iniciáticas modernas fizeram uso desses aspectos (segredo e valorização da iniciação) tão caros à Tradição Esotérica Ocidental (e não por simplesmente considera-los “importantes” ou “autênticos”).

          É necessário destacar também, que o conceito da espiritualidade moderna sobre o termo “iniciação” difere e muito da interpretação dada pelo Esoterismo Tradicional a esse termo. De uma forma geral, o Esoterismo Moderno parte da ideia de que seres humanos (iniciados) podem iniciar outros seres humanos em alguma vertente espiritual, e as Ordens Iniciáticas do século 19 se valeram desse raciocínio para divulgar fortemente o raciocínio de que a “Iniciação” só poderia ser obtida dentro de suas estruturas, por membros devidamente iniciados. Porém, essa interpretação dada pelas Ordens Iniciáticas modernas, considerava a iniciação como sinônimo de cerimônias que deviam ser realizadas na estrutura das Ordens, exclusivamente por seus membros ou aspirantes a membros (GUÉNON, 2017).

A filosofia “New Age” (Nova Era) é uma forma de espiritualidade muito ativa no Esoterismo Moderno, pautada numa visão espiritual eclética, descentralizada, focada no bem estar (Holismo) e no “progresso espiritual” do homem contemporâneo. Para os adeptos do pensamento “Nova Era”, nada pode permanecer oculto ou inacessível ao ser humano, pois a humanidade está vivendo um período de “renascimento espiritual” (a chamada “Era de Aquário”) onde todos os segredos serão abolidos.

O pensamento da Tradição Esotérica Ocidental a respeito do conceito de iniciação é diferente: na verdade, a “Iniciação” (sob um ponto de vista tradicional) é um processo espiritual acarretado por meio da experiência direta (prática) do buscador, através do trabalho com o trivium hermético. Assim, a iniciação não depende de outro ser humano (mesmo que ele seja iniciado em Ordens Iniciáticas), mas sim do trabalho espiritual feito pelo buscador. De forma simplificada, dum ponto de vista tradicional, apenas Deus pode conceder uma “iniciação espiritual a alguém”, seja por meio de sua graça direta, seja através das hierarquias da criação e dos seres que a compõem (anjos, arcanjos, demônios, elementais, espíritos desencarnados, etc.). Logo, o conceito tradicional de “Iniciação” não gira necessariamente em torno de um “iniciador humano”.


Considerações Finais

          A Tradição Esotérica Ocidental é um corpo de conhecimentos transmitido de geração á geração através dos séculos, pautado nas manifestações culturais de quatro grandes civilizações ocidentais: a civilização celta, a civilização egípcia, a civilização greco-romana, e a civilização judaico-cristã. É dessas quatro culturas (e das culturas diretamente influenciadas por elas) que se sustenta toda a base sócio-histórica da Tradição Esotérica Ocidental.

         A Tradição manifesta-se de formas diferentes em cada uma dessas culturas, mantendo a mesma essência em cada um delas (e usando roupagens diferentes de acordo com a carga histórica e cultural de cada um dos pólos nos quais se manifesta). Assim, não existem “várias tradições” no Ocidente: existe somente uma Tradição, que é perene (não dependente do tempo) e que se manifesta de formas aparentemente diferentes, mas essencialmente similares em sua essência (através dos valores tradicionais).

           Quanto à sua forma de manifestação, a Tradição Esotérica Ocidental manifestou-se nas quatro culturas (céltica, egípcia, greco-romana e judaico-cristã) através do chamado “trivium hermético”: a Astrologia, a Alquimia e a Teurgia. Foi através dessas três artes herméticas (sempre presentes em maior ou menor grau), que a Tradição Esotérica Ocidental manifestou sua base prática ao longo dos séculos.

          Por outro lado, o Iluminismo (a partir do século 17) veio à tona na cultura ocidental como um rival da Tradição, e procurou (e ainda procura) enfraquecer a essência da Tradição através das correntes de pensamento que formam o pensamento iluminista (Relativismo, Humanismo, Empirismo, Subjetivismo, Ceticismo, Materialismo e Progressismo, Pragmatismo, etc.). O Iluminismo atingiu diretamente a Tradição Esotérica Ocidental a partir do século 19, gerando o que conhecemos atualmente como o Esoterismo Moderno: uma tradição autônoma, gerada a partir da Tradição Esotérica Ocidental, mas compactuando de valores e ideias alheios à sua origem.

          O pensamento iluminista está “entranhado” no Esoterismo Moderno “até os dentes”, e nada que seja considerado tradicional ou pertencente à Tradição Esotérica Ocidental escapa incólume à abordagem da espiritualidade contemporânea: “adaptar” é sua palavra de ordem, e “deturpar” é seu sobrenome (RIFFARD, 1990).

          Com isso, não queremos dizer que o Esoterismo Moderno não tem um valor; ele certamente o tem, e não é nossa intenção “exterminá-lo” ou mesmo deturpá-lo (como o Iluminismo procurou fazer com a essência da Tradição, em seu surgimento). O problema aqui não é simplesmente o fato de o Esoterismo Moderno existir: é comprovarmos o que ele faz (em relação à Tradição) ao longo de sua existência. E o que ele tem feito não é algo que possamos considerar “benéfico” ou “positivo” ao pensamento da espiritualidade tradicional ocidental: o Esoterismo Moderno simplesmente tem seguido à risca a cartilha iluminista de combate aos valores tradicionais e à essência da Tradição Esotérica Ocidental (sua própria fonte de origem), porque sua própria essência é procurar modificar tudo que toca.

          O fato de que o Esoterismo Moderno trabalha através de adaptações de conceitos considerados tradicionais, é comumente justificado pela modernidade com o argumento de que “o homem moderno não pode usar os mesmos métodos espirituais que os homens de outras eras usaram”.

       Outro argumento comumente usado pelos sistemas esotéricos modernos para justificar a utilização (e mudança) de conceitos tradicionais, seria o de que “a modernidade é a evolução da Tradição”, e, portanto, “o Esoterismo Moderno corrige os erros cometidos pelo esoterismo Tradicional”. Esses argumentos são absolutamente incoerentes e não explicam ou justificam o empobrecimento que a espiritualidade moderna ocasiona nos conceitos tradicionais de que se apropria. O problema aqui não são as adaptações feitas pela modernidade sobre os conceitos da Tradição Esotérica Ocidental: é a falta de coerência dessas adaptações, que terminam por gerar aberrações filosóficas e espirituais sem nenhuma consistência, no seio da espiritualidade moderna.

          Da mesma forma, fica-nos claro que a modernidade nunca “corrigiu” nenhum dos “erros” que alega haver na manifestação da Tradição ao longo dos séculos…. pois se o tivesse feito, ela mesma não teria gerado falhas na espiritualidade do homem contemporâneo. Não estamos dizendo que a Tradição Esotérica Ocidental não tenha falhas; certamente ela o tem (visto que o conceito pleno de “perfeição” jamais pode ser manifestado neste mundo); porém, não foi o Esoterismo Moderno que “corrigiu” essas falhas. Assim, a modernidade não consertou nada do que classifica como “errado” na Tradição; ao contrário: acrescentou novas falhas à espiritualidade ocidental, ao mesmo tempo em que alega estar tentando “corrigir” os erros do passado, para desviar a atenção de suas próprias imperfeições (COOMARASWAMY, 2017).

          Esperamos que tenha ficado claro ao leitor o que significa a Tradição Esotérica Ocidental, qual o conceito de “Tradição”, e quais as diferenças (abissais) entre o Esoterismo Tradicional do Ocidente e o Esoterismo Moderno.

          Aos caros leitores, fica a dica: nem tudo que se diz ser “tradicional”, bebe realmente dos valores da Tradição Ocidental. Não se deve comprar “gato por lebre”, nem “bananas por maçãs”: são duas frutas diferentes, com sabores diferentes (embora gostosas), mas que nem sempre devem (ou podem) ser consumidas juntas.

         Cada ser humano tem liberdade para escolher o que quer seguir, e com qual vertente filosófica ou espiritual quer se alinhar. Todavia, é preciso se ter consciência do que se está seguindo, para se evitar decepções futuras. Não se pode usar o discurso de eterno buscador (“estou experimentando para saber o que escolho”), pois esse é um dos mantras modernos que tentam justificar a incapacidade dos buscadores espirituais da atualidade em fazer escolhas (mesmo as mais simples).

          Escolher o Esoterismo Moderno como caminho espiritual é um direito que cabe a qualquer ser humano, e é algo comum na atualidade (muitos estudantes que optam por trilhar a Tradição Esotérica Ocidental e seus valores, inclusive iniciam suas jornadas espirituais na espiritualidade moderna). Todavia, só não se pode escolher a modernidade, achando que se está optando por algo “tradicional”.

          A vida é feita de escolhas, e cada escolha deve ser feita com carinho, cuidado e atenção. Não se pode ter tudo na vida, ao mesmo tempo em que se deve ter noção mínima do que se quer obter numa senda espiritual. Como diriam certos “ditados populares”: “quem tudo quer, termina sem nada”; ou mesmo: “quem não sabe o que quer, não reconhece o que encontra”.



REFERÊNCIAS

COOMARASWAMY, Rama. Ensaios sobre a destruição da tradição cristã. Instituto René Guénon de estudos Tradicionais – IRGET. São Paulo: 2017.

GUÉNON, René. A crise do mundo moderno. Instituto René Guénon de estudos Tradicionais – IRGET. São Paulo: 2017.

RIFFARD, Pierre. O Esoterismo: antologia do esoterismo ocidental. Ed. Mandarim. São Paulo: 1996.
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica: Vol. 1. Edições Loyola. Rio de Janeiro: 2001.

COOMARASWAMY, Rama. Ensaios sobre a destruição da tradição cristã. Instituto René Guénon de estudos Tradicionais – IRGET. São Paulo: 2017.

GUÉNON, René. A crise do mundo moderno. Instituto René Guénon de estudos Tradicionais – IRGET. São Paulo: 2017.

GAUDRON, Matthias. Catecismo católico da crise na igreja. Ed. Permanência. Niterói-RJ: 2011.
DUBUIS, Jean. The Fundamentals of esoteric Knowledge. Triad Publishing, Gainesville-EUA, 2000.

GUÉNON, René. A crise do mundo moderno. Instituto René Guénon de estudos Tradicionais – IRGET. São Paulo: 2017.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião oriental. Vozes. Petrópolis-RJ: 2011.

RIFFARD, Pierre. O Esoterismo: antologia do esoterismo ocidental. Ed. Mandarim. São Paulo: 1996.

DUBUIS, Jean. The Fundamentals of esoteric Knowledge. Triad Publishing, Gainesville-EUA, 2000.

RIFFARD, Pierre. O Esoterismo: antologia do esoterismo ocidental. Ed. Mandarim. São Paulo: 1996.

[1] “De forma resumida, a Alquimia seria o estudo da Química aplicado à vida; a Magia, o estudo da Física aplicado à vida; e a Astrologia, o estudo da Astronomia aplicado à vida”. Tradução livre.

Site consultado: https://artemagnablog.wordpress.com/2018/02/09/entendendo-a-tradicao-esoterica-ocidental-parte-3/?fbclid=IwAR3PjelD4E5K4RyKmgl_n1bJiUuPZiGrpqM3abKYgH0srWk_UMlnVaivpGs

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