segunda-feira, 7 de outubro de 2024

A Tradição Espiritual do Ocidente Parte 1


E comum na atualidade vermos correntes filosóficas ou espirituais que se dizem “tradicionais” ou “pertencentes à tradição ocidental”. Há ainda instituições esotéricas que se dizem “mantenedoras da verdadeira tradição” (seja lá o que isso significa!) ou defensoras da “verdadeira espiritualidade ocidental”. Nunca se falou tanto em “tradição ocidental”, “ecumenismo” e “sincretismo”, como se tem falado no último século, após a expansão (e popularização) do Esoterismo Moderno em nossa sociedade.


A expressão “Tradição Ocidental” transformou-se a partir do século 20, numa espécie de comprovação de “seriedade espiritual”: só as correntes espirituais que conseguissem se alinhar ao que a modernidade classifica como “tradicional”, é que merecem ser vistas com respeito. O problema é que a interpretação que a modernidade dá à expressão “tradição” abrange valores morais que por si só não são tradicionais, por um motivo bastante simples: são valores que se afastam da Metafísica Cristã. Isso significa que o que a modernidade classifica como “tradicional” se afasta da Ética e da Moral Cristãs, com as quais o Ocidente moldou historicamente seu modo de vida.


O que o Esoterismo Moderno (e suas Ordens Iniciáticas) consideram como “pertencentes à Tradição Ocidental”, na verdade está distante da essência da espiritualidade tradicional, pautada na Sagrada Tradição Cristã e em valores morais caros ao homem ocidental. Muitas vezes, o Esoterismo divulgado nas Ordens Iniciáticas e filosofias modernas nem mesmo é “ocidental”: trata-se de um mistura de conceitos filosóficos orientais e ocidentais, mantidos unidos a partir de um sincretismo mecânico e sem critérios.


Dessa forma, propomos uma reflexão ao leitor: o que você acha que significa realmente a expressão “Tradição Espiritual Ocidental”? Como você interpreta a Sagrada Tradição Cristã? Que tipo de importância você acha que o Catolicismo tem para o Ocidente, além da influência religiosa?


Não queremos aqui dar respostas imediatas a esses questionamentos. O que nos interessa neste momento, é mostrar a você leitor que a espiritualidade do Ocidente é Cristã, e é pautada em valores morais trabalhados pelo Catolicismo ao longo de mais de vinte séculos. Esses valores não dependem do tempo (motivo pelo qual são considerados “valores perenes”), e encontraram no Catolicismo o berço fértil para sua divulgação ao Homem ocidental. E foram justamente esses valores que sobreviveram ao longo da história humana e que serviram de base à espiritualidade do Ocidente.


Para entendermos que valores são esses e o que realmente significa a expressão “Tradição Espiritual Ocidental”, estamos iniciando uma série de artigos que tentará elucidar a você leitor, qual o real significado do termo “Tradição”, a partir da Santa Doutrina transmitida através do Cristianismo…e o que realmente pode ser considerado como “tradicional”. Primeiramente analisaremos o significado da Tradição à luz de autores ocidentais como Aquino (2001), Agostinho (1996) e Tanquerey (2018). A partir daí, mostraremos ao leitor que a essência e os valores da Tradição Espiritual do Ocidente estão distantes do que o Esoterismo Moderno erroneamente considera como “tradicional” (e divulga através das inúmeras Ordens Iniciáticas pós-século 18).


Esperamos com isso, conscientizar o leitor de que nem tudo que se vende atualmente como “tradicional” é realmente algo alinhado à Sagrada Tradição, ou aos valores morais trabalhados no Ocidente (que são valores cristãos!).


“Tradição”: que palavra é essa?


Antes de iniciarmos a análise do que significa o termo “Tradição”, é preciso fazer uma constatação inicial que ajudará todo o nosso estudo: A Tradição Espiritual Ocidental é cristã, porque o Ocidente é cristão.


À primeira vista, essa afirmação pode parecer “soberba” ou “intolerante” a alguns leitores, mas o que estamos fazendo aqui é simplesmente constatar algo muito claro a qualquer um que se propuser a estudar a história da civilização ocidental: foi o Catolicismo que moldou a sociedade ocidental, ao longo de 20 séculos.


De acordo com Woods (2017), foi a visão de mundo católica que salvou o Homem ocidental de regredir à barbárie e à selvageria da antiguidade (tão idolatrada pelo Iluminismo). Todavia, a modernidade transformou a palavra “Tradição” numa espécie de símbolo de defasagem: o termo “tradicional” virou sinônimo de tudo que é ultrapassado, arcaico ou obsoleto. Mais do que isso: a visão moderna (pautada no Iluminismo), propagou a ideia (deturpada!) de que tudo que é tradicional também é atrelado a valores indesejáveis ao homem moderno, como ignorância intelectual, grosseria, intolerância, saudosismo, teimosia ou mesmo implicância contra valores “progressistas”.


Essa visão estereotipada sobre o que significa o termo “tradicional”, passa por uma completa ignorância da filosofia moderna a respeito do que significa a Tradição Cristã (base da espiritualidade e da cultura ocidentais), além da influência prejudicial do Iluminismo sobre o pensamento do homem contemporâneo (conforme iremos abordar ao longo deste artigo). Assim, entender o que significa o termo “Tradição” na ótica cristã é um passo necessário para se compreender o é a Tradição Espiritual do Ocidente, e como ela se manifesta no dia-dia do Homem.


René Guénon é um filósofo muito utilizado por perenialistas (seguidores de sua filosofia), historiadores e católicos radicais (que também se autodenominam “tradicionalistas”). Guénon moldou toda sua obra filosófica na tentativa de defender uma ideia ecumênica, indiferentista e relativizada de “tradição”, partindo da ideia de que todas as grandes religiões mundiais possuiriam em si aspectos da “verdadeira tradição”.


Apesar dos inúmeros erros conceituais de Guénon para o conceito de “tradição” (e acima de tudo com a Sagrada Tradição Cristã), o filósofo francês fez críticas veementes à filosofia moderna, enfatizando as fraquezas do pensamento moderno em comparação com os ideais tradicionais que ele idealizava. Para Guénon, a oposição da modernidade à Tradição é antes de tudo fruto da oposição iluminista a tudo que possa ser considerado tradicional. O autor ressalta o fato de que essa ignorância moderna a respeito do que significa o conceito de “tradição” é fruto direto das ideias iluministas que classificavam a Idade Média como “período de trevas”, “escuridão intelectual”, “fanatismo”, e “ignorância”…assim como considerava o Renascimento como um “retorno à glória da antiguidade greco-romana”. Guénon enfatiza que o crescimento da modernidade não foi necessariamente algo apenas positivo, mas também prejudicial (do ponto de vista filosófico), já que a modernidade não corrigiu nada que afirmava estar errado na Idade Média, mas sim


“[…] marcou uma queda muito mais profunda, pois consumou o rompimento definitivo com o espírito tradicional, quer no campo das ciências e das artes, quer até mesmo no campo religioso, no qual tal ruptura teria sido dificilmente concebível” (GUÉNON, 2017, p.18).


Segundo Agostinho (1996), a Tradição Cristã é a única e verdadeira tradição transmitida ininterruptamente no Ocidente através da sucessão apostólica. O Cristianismo foi assim o veículo utilizado por Deus Todo-Poderoso para transmitir sua mensagem mais direta à humanidade: o envio de seu filho, Jesus Cristo, para se manifestar na história humana.


A Moral do Ocidente deve sua sustentação à Religião, em especial à manifestação religiosa mais cara ao homem ocidental: o Cristianismo (representado pelo Catolicismo). É sobre a Moral Cristã que o Ocidente sustenta suas ações há quase dois milênios (D’SOUZA, 2008).


A principal contribuição do Cristianismo para a vida do Homem ocidental, se deu justamente na atribuição de uma sobrenaturalidade à existência humana: foi a partir do Catolicismo que o homem do Ocidente passou a se enxergar como parte de um plano metafísico maior, que estava além de si mesmo (TORRES, 2014). Isso fez com que o Homem ocidental parasse de enxergar a vida de forma apenas imanente (centrada nas necessidades físicas), e começasse a atribuir uma lógica sobrenatural à ações costumeiramente corriqueiras. Essa sobrenaturalidade atribuída à vida humana, só foi possível a partir da Teologia e da Filosofia Católicas.


Ao contrário do que a modernidade divulga, não existem “várias tradições”. A Verdade revelada manifestou-se diretamente na história humana na pessoa de Jesus Cristo; por isso, a mensagem do Pai Eterno pôde ser melhor compreendida através da Santa Doutrina transmitida por Cristo a seus Apóstolos, e dos Apóstolos a seus sucessores. É isso que a Igreja Católica chama de “sucessão apostólica” (tão rejeitada pelos inimigos do Catolicismo, como o Protestantismo e o Gnosticismo). E são os os ensinamentos transmitidos na sucessão apostólica, que constituem a Sagrada Tradição Cristã, a base da espiritualidade ocidental.


O Iluminismo tentou (de maneira desonesta), anular a importância da Religião na vida do Homem ocidental a partir do século 17. Sendo um “filho” da Reforma Protestante, o Iluminismo fez oposição ao conceito de “Tradição” e a tudo que fosse considerado tradicional, fosse no campo da Religião, das Artes, da Política ou em qualquer outra área de atuação do ser humano (MONDIM, 1982). Porém, a Sagrada Tradição opôs resistência ao imanentismo iluminista, mostrando que a Verdade revelada (Cristo) estava além de qualquer especulação filosófica que os iluministas dos séculos 17 e 18 pudessem propor ao Ocidente.


Quando falamos de “Moral Ocidental”, estamos falando especificamente das relações filosóficas mantidas entre o Catolicismo (enquanto principal representante Cristão) e o Judaísmo (tradição religiosa pré-Cristã na qual o Verbo Divino veio ao mundo). Enquanto revelação divina ao povo escolhido, o Judaísmo ainda tem uma importância à Teologia Cristã (ainda que reduzida ao longo da História), pois foi através do povo judeu que Deus-Pai preparou o ser humano para a vinda do salvador (o Messias). Por isso, a Tradição Espiritual Ocidental é, na prática, o conjunto da Doutrina teológica e filosófica produzida pelo Catolicismo Romano ao longo de mais de 2 milênios, a partir dos relatos dos primeiros apóstolos de Cristo…adicionada a elementos das tradições pagã, egípcia, greco-romana e judaica, interpretados sob um viés Cristão (TANQUEREY, 2018).


É preciso deixar claro que a Tradição Cristã não é algo estático: é antes de qualquer coisa, algo vivo, transmissível, perene. Ela não se diluiu ao longo do tempo: seus valores foram moldados de acordo com cada povo ou cultura na qual ela foi transmitida; mas sua essência manteve intacta as bases primordiais da mensagem divina que Deus Todo-Poderoso transmitiu aos homens ao longo da história humana. Por isso mesmo, a Tradição manteve-se viva ao longo dos séculos.


A transmissão da Tradição se dá de forma oral e escrita, de acordo com os hábitos de cada sociedade, manifestando-se a partir dos recursos tecnológicos de cada período da história humana. Há sociedades em que a mensagem de Deus se manifestou de forma essencialmente oral (como nos casos das culturas xamânicas ou aborígenes); em outras, ela encontra também formas de manifestação escrita, através de obras religiosas, culturais ou mesmo políticas. Isso não a impede também de manifestar-se na própria modernidade; porém, o que é mais comum (conforme veremos ao longo desta série de artigos) é que a Sagrada Tradição Cristã é negada (ou deturpada) na espiritualidade moderna, através de uma estereotipação sistematizada de conceitos. Seja como for, o termo “Tradição” no Ocidente refere-se essencialmente a tudo que foi transmitido da Doutrina de Cristo aos Homens ao longo da história humana (MULLER, 2014).


São Tomás de Aquino classifica a Tradição como algo equilibrado e pautado na oferta de justiça ao ser humano. O conceito de “Tradição” trabalhado por Aquino estende-se tanto ao campo da religião, quanto à política, à cultura e a todas as formas de conhecimento manifestadas pelo ser humano. Assim, o homem depende da Tradição como uma forma de obter nela a justiça e a dignidade providas por Deus, para manter sua vida em equilíbrio (AQUINO, 2001).


Uma das características da Tradição Cristã é sua capacidade de perpetuar-se na história da humanidade. Isso fez com que o depósito da mensagem transmitido por Nosso Senhor Jesus Cristo fosse realizado não só de forma documental, mas acima de tudo de forma prática, nos ensinamentos orais do dia-dia, de boca a ouvidos.


É importante destacar também o fato de que, por mais que a mensagem divina aparentemente adote características distintas em cada povo no qual se manifestou, nem todos os povos e culturas aceitaram de forma pronta a Verdade revelada por Deus. Assim, ainda que a Verdade revelada (Cristo) tenha sido divulgada a vários povos e nações, foi na cultura Cristã que essa Verdade ganhou corpo e passou a se manifestar ao Homem como a mensagem divina enviada pelo Todo-Poderoso à humanidade.


É inegável que no Ocidente, a Tradição anda de mãos dadas com o Cristianismo. A influência da religião cristã sobre o conceito de “Tradição” é clara (sendo o Catolicismo o principal representante do Cristianismo no Ocidente). Isso incomodou o Iluminismo, que se opunha ferrenhamente à Religião por acreditar que a prática religiosa era uma expressão social de um “conservadorismo ultrapassado”, que mantinha a sociedade ocidental em estado de “aprisionamento intelectual”. Segundo outro filósofo adepto do pensamento guenoniano (Coomaraswamy) esse tipo de pensamento iluminista é facilmente constatado na estrutura de produção econômica da sociedade moderna, em que:


[…] as atividades básicas do homem são destituídas de qualquer senso do sagrado, como ignorantes dos princípios metafísicos. Ao passo que o ponto de vista tradicional, ao contrário, se baseia na doutrina de uma queda a partir de um estado de graça e na necessidade da Revelação e da graça divinas para que o homem possa retornar à sua condição primordial e sagrada, a seu Centro mesmo, provendo-o também de uma metafísica, que explica a essência e razão de ser da própria natureza humana”. (COOMARASWAMY, 2017, p. 15).


Como se vê, a palavra “Tradição” não se refere somente a aspectos políticos, culturais ou econômicos do ser humano: refere-se essencialmente a valores morais e espirituais transmitidos ao Homem Ocidental ao longo dos séculos… valores esses guardados pelo Cristianismo através do Magistério Católico. Tradição e espiritualidade são coisas que andam quase juntas (às vezes até unidas), e tentar descaracterizar essa união (ou mesmo caracterizá-la como algo “prejudicial” ao ser humano) foi uma tentativa inútil e bastante maléfica à sociedade ocidental que o Iluminismo fez, a partir do século 18.


O ser humano é religioso por natureza, e sua essência lhe diz que ele deve procurar a Deus, seja por inspiração divina, seja por esforço próprio (AQUINO, 2001). A forma mais segura de se empreender essa tarefa é através da Tradição Cristã: é ela que fornece meios adequados ao homem de realizar sua busca pelo divino, livre dos vícios, sincretismos e deturpações tão frequentes nos ideais modernos.


Como a modernidade não conseguiu derrubar a essência cristã da Espiritualidade Ocidental, ela passou a recorrer a estratégias que tentassem fragmentar o conceito de “tradição” utilizado no Ocidente. Essa tentativa de fragmentação da Tradição Cristã foi respaldada a partir de uma das correntes de pensamento mais fortes do Iluminismo: o relativismo. Para o homem moderno (e naturalmente iluminista) tudo parece ser relativo: não se pode concluir nada sobre assunto nenhum, e muito menos tirar conclusões sobre questões de interesse humano, sob risco de se desconsiderar os detalhes que cercam essas questões (cometendo assim uma generalização). Assim, o Iluminismo passou a defender a ideia relativista de que o conceito de “tradição”, por mais forte que seja, não pode ser considerado uma coisa só, e depende do local, da cultura e da época em que está inserido. Dessa forma, para o Iluminismo, haveriam várias “tradições” no Ocidente (e não simplesmente a Tradição Cristã).


Gaudron (2011) contradiz essa ideia moderna e relativista sobre a existência de “várias tradições”. Para o autor, o fato de existirem diferentes manifestações dos valores tradicionais (que dependem de circunstâncias culturais e sociais de cada época da história humana) não invalida o fato de que é na Tradição Cristã, que a mensagem divina pode ser acessada de modo mais perfeito. Assim, a Sagrada Tradição Cristã não depende das diferenças que os homens guardam entre si; ao contrário: é algo divino, independente, autônomo. Assim, a Tradição “é o depósito da Fé, que foi confiado de uma vez por todas, e que o magistério deve transmitir e proteger até o fim do mundo” (GAUDRON, 2011, p. 232).


O autor alemão vai ainda mais além, e confirma a ideia de que a Tradição Cristã é divina em sua natureza, perene e imutável, sendo o grande depósito da mensagem divina revelada à humanidade:


“O depósito revelado é absolutamente imutável. Mas esse depósito imutável é expresso de modo cada vez mais preciso pelo Magistério, que o inventaria e o classifica, ao mesmo tempo em que o transmite e o defende. […] A Tradição é viva no sentido em que o depósito revelado não é transmitido somente de modo morto, em escritos, mas também o é por pessoas vivas que tem autoridade para defendê-lo, dar-lhe o devido valor e fazer que seja vivido” (GAUDRON, 2011, p. 232).


Como vimos neste artigo, ser tradicional é ser fiel à Santa Doutrina transmitida por Deus-Pai à humanidade através da pessoa de Jesus Cristo. Essa Doutrina  transcendeu o tempo, e não está sujeita a relativizações e nem mesmo às diferenças culturais dos povos.


O que é considerado uma “generalização” pela modernidade, é para os adeptos da Espiritualidade Ocidental uma simples constatação (dedução): não existem “várias tradições distintas”; existem sim, várias manifestações culturais que receberam luzes da divulgação da Verdade revelada. Porém, foi no Cristianismo que a mensagem de Deus ganhou corpo (literalmente!) na pessoa de Jesus Cristo, sendo por isso a Tradição Cristã o verdadeiro critério para se considerar qualquer filosofia ou corrente espiritual como algo “tradicional” no Ocidente.


Assim, é sobre esse conceito de “Tradição” que a espiritualidade Ocidental se apoia, conforme veremos nos próximos artigos desta série.


REFERÊNCIAS


AGOSTINHO, Santo. Confissões. Editora Nova Cultural: São Paulo, 1996.

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica: Vol. 1. Edições Loyola. Rio de Janeiro: 2001.

COOMARASWAMY, Rama. Ensaios sobre a destruição da tradição cristã. Instituto René Guénon de estudos Tradicionais – IRGET. São Paulo: 2017.

GUÉNON, René. A crise do mundo moderno. Instituto René Guénon de estudos Tradicionais – IRGET. São Paulo: 2017.

GAUDRON, Matthias. Catecismo católico da crise na igreja. Ed. Permanência. Niterói-RJ: 2011.

MONDIM, Battista. Curso de Filosofia – Volume 2. Paulus: São Paulo, 1982.

MULLER, Gerhard Ludwig. Dogmática Católica. Vozes: Rio de Janeiro, 2014.

TANQUEREY, Adolphe. Compêndio de Teologia Ascética e Mística. Ecclesiae: Campinas-SP, 2018.


NOTAS


A modernidade empreendeu uma verdadeira guerra contra tudo que é considerado “tradicional” (a partir dos ideais do Iluminismo), na tentativa de fragmentar a essência da Tradição no Ocidente.


O fato da Tradição ter revelado a mensagem de deus a vários povos e culturas, não implica necessariamente na compreensão (ou mesmo aceitação) da Verdade revelada. Por isso, as diversas roupagens que a Tradição adotou em suas manifestações nos diferentes povos ao longo da história, não implica necessariamente numa “igualdade” ou “equivalência” das religiões (como a espiritualidade moderna erroneamente prega).



O Gnosticismo e seus duelos teológicos contra o Cristianismo


Nos últimos anos, o interesse pelo gnosticismo cresceu bastante no Esoterismo mundial (e consequentemente no Brasil). Muitas são as Ordens iniciáticas que carregam o termo “gnóstico” em seus nomes (para dar um “charme” a mais em seus títulos), assim como as “fraternidades” que afirmam celebrar “missas gnósticas” ou ter “ações gnósticas” em seu rol de atividades.


Nesse novo interesse do Esoterismo Moderno pelo Gnosticismo (iniciado no século 19), o próprio uso do termo “gnóstico” virou uma espécie de “título de nobreza espiritual”: algo semelhante ao que já é feito com o termo “rosacruz”. Nesse caso, ser “gnóstico” ou “rosacruz” se tornou sinônimo de “seriedade espiritual” ou de “confiabilidade” (quando se trata de Instituições Iniciáticas). Por isso, apesar de tantas Ordens esotéricas modernas ainda se classificarem como “gnósticas” ou “rosacruzes”, uma dúvida ainda persiste: vale a pena estudar o Gnosticismo? Em que consiste a filosofia gnóstica? Trata-se de alguma religião? Uma linhagem mágica? Uma vertente iniciática autônoma? Uma corrente espiritual cristã?


A resposta a todas essas perguntas é trabalhosa e confusa: o Gnosticismo é apresentado na espiritualidade moderna como uma mistura (muitas vezes sem critérios) de religião e filosofia. Porém, o fato de ser valorizado no Esoterismo Moderno, não o torna necessariamente algo “bom” ou “confiável” (ao menos não da forma como a modernidade o interpreta).


A definição de Gnosticismo é muito ampla (e às vezes confusa), pois abrange conceitos não apenas espirituais, mas também filosóficos, sociais e culturais. Por isso, antes de dizermos exatamente o que é o Gnosticismo, precisamos definir primeiro o que significa o termo “gnose”, para que possamos compreender em que se sustenta o Gnosticismo, como fenômeno cultural e espiritual.


O que é “gnose”?


A palavra “gnose” (ou gnosis, no idioma grego) é um tipo de saber muito difundido na antiguidade, que sustenta toda a estrutura espiritual e filosófica do Gnosticismo. Traduzido do grego, o termo “gnosis” significa simplesmente “conhecimento”. Esse conhecimento é diferente do conhecimento intelectual e acadêmico; trata-se aqui de um saber espiritual, intuitivo, adquirido de forma puramente espiritual através de “experiência direta”, e não através de meios mundanos (como a leitura, por exemplo).


Como se vê, apesar do significado do termo gnosis não se referir necessariamente a algo herético, a interpretação que o Esoterismo Moderno dá a esse termo ganha contornos heréticos quanto à forma com que o conhecimento espiritual é adquirido pelo Gnosticismo. Se analisarmos bem a etimologia da palavra “gnosis“, veremos que, de certa forma, a experiência espiritual de todo cristão o leva a buscar um conhecimento espiritual pessoal (gnose) que comprove a existência de Deus. Todavia, essa experiência pessoal cristã não é necessariamente obtida de maneira individual, visto que o Cristianismo não é uma religião exclusivista e nunca defendeu uma superioridade espiritual de seus adeptos, mas sim uma religião de caráter universalista, que apresenta a palavra de Cristo ao alcance de todos, independente de sua etnia, cultura ou mesmo história de vida (AQUINO, 2001).


Por outro lado, o gnóstico é alguém que procura sua salvação espiritual através de alguma experiência espiritual objetiva, direta, e se possível, sem a ação de intermediários. Isso dá ao Gnosticismo uma abordagem essencialmente egoísta da salvação, transformando a espiritualidade universalista do Cristianismo numa espécie de “espiritualidade elitista”. Como essa experiência espiritual gnóstica tem um caráter individual (e não coletivo, como no Cristianismo), e é também de natureza intransferível (não pode ser compartilhada com outras pessoas), o Gnosticismo entende que o ser humano não pode entender a divindade através de nenhuma intermediação.


Segundo Pagels (apud HOLLER, 2005) a gnosis “pode ser traduzida como insight, pois gnose envolve um processo intuitivo que abarca tanto o conhecimento de si próprio como o conhecimento das realidades últimas, divinas”. (PAGELS apud HOELLER, 2005, p.16). Isso faz com que o Gnosticismo simplesmente adquira um caráter confuso, uma vez que defende posturas espirituais individualistas e até certo ponto egoístas, justificando essas posturas na pretensa busca de uma revelação divina que não pode ser compartilhada e nem mesmo obtida de forma coletiva.


Para os adeptos do Gnosticismo, a gnose pessoal não pode ser simplesmente inventada: ela tem de ser uma experiência autêntica e descentralizada. Apesar de ser uma experiência individual e intransferível, o gnóstico não pode simplesmente inventar experiências místicas sem realmente as ter obtido, pois dessa forma ele não iria obter o conhecimento espiritual que deseja: o conhecimento sobre o “verdadeiro deus”. Do ponto de vista gnóstico, a “verdadeira divindade” não pertence a este mundo, e por isso o conhecimento sobre ela também não está presente aqui. Dessa forma, para os gnósticos a experiência espiritual não seria uma descoberta simplesmente religiosa, uma vez que para eles a Fé por si só não pode oferecer a “verdadeira gnose” (conhecimento) que o buscador procura, já que esse conhecimento não pode ser obtido nesse mundo. E é justamente aqui que Gnosticismo e Cristianismo começam a se chocar diretamente (do ponto de vista teológico).


O gnóstico defende uma ideia de “fé racionalizada”: para ele é preciso ter Fé no “verdadeiro deus”, sabendo que essa divindade e o conhecimento a respeito dela não estão presentes neste mundo. Diferentemente do cristão (que defende a ideia de que a Fé é um dos motores de toda ação espiritual, e de que Deus-Pai, que é Todo-Poderoso, compadece-se do sofrimento do ser humano), o Gnosticismo propõe a seus adeptos uma fé fria e insensível (tão insensível quanto seu conceito sobre a vida, a existência humana, e a natureza de sua própria divindade “verdadeira”). Para os gnósticos, ter “fé” é simplesmente tomar consciência de que nada neste mundo “salva”, e que tudo que provém dele (até as boas obras) são vãs e inúteis (o que faz com que os gnósticos, assim como os protestantes, recusem a prática da caridade).


De certa forma, o pensamento gnóstico não está de todo errado (não no que diz respeito à natureza do mundo físico): nada neste mundo é feito para durar ou permanecer. A existência no mundo físico é sempre sujeita a impermanência e imperfeição: tudo que se manifesta neste plano está sujeito ao ciclo de “nascer-crescer-definhar”. Esse é mais um dos motivos para que o ser humano se conscientize de que a estadia neste mundo deve ser orientada à busca por Deus e sua sabedoria. Por isso mesmo, Cristo disse em seu célebre sermão da montanha, que o homem não deveria “juntar tesouros nesse mundo, onde as traças o comem e a ferrugem tira seu brilho” (MT, 6, 19).


Porém, o que é um fato quase incontestável para a Teologia cristã, passa a ser visto pelo Gnosticismo como uma verdade “dúbia”: ainda que o mundo seja impermanente e imperfeito, ele é parte da Criação e seu estado decaído não provém da Vontade de Deus (que é Eterno e Onipotente), mas sim da queda primordial do homem celeste, que com a ferida do pecado corrompeu a Criação e a transformou na imperfeição que ela é agora. O que Gnosticismo faz é tentar justificar o erro do Homem invertendo toda a lógica da Metafísica cristã, e transferindo para Deus-Pai a responsabilidade pelo estado de miséria em que o mundo se encontra.


Se aproveitando da imperfeição do mundo e da Criação (mas ignorando o fato de que essa imperfeição provém da queda do ser humano de seu estado divino), o Gnosticismo vende uma visão fria do conceito de Fé, e um discurso de pessimismo e melancolia a respeito da vida. Isso faz da filosofia gnóstica uma heresia confusa, mas mascarada com ideais espirituais aparentemente “profundas” (cheios de conceitos que misturam verdades a deturpações e críticas pessimistas), meramente sincretizados. Por isso, o Gnosticismo é em si uma heresia (assim como Protestantismo), já que na prática as heresias são corruptelas da verdade tomadas como interpretações egoístas, e cuja conclusão não foi refletida coletivamente (AQUINO, 2001).


Para os gnósticos, por viverem em um mundo imperfeito e maléfico, sua “fé” deve se resumir a tomar consciência da imperfeição deste mundo e buscar se libertarem dele a todo custo (mesmo que renunciando a vida). Assim, a “fé gnóstica” não pode ser simplesmente passiva, pois não poderia nutrir esperanças por nada que fosse minimamente proveniente deste plano de existência. Assim, a busca pela gnosis envolveria ação (para se libertar do mundo) e uma busca egoísta de experiências espirituais, já que, segundo Hoeller (2005):


A fé é um caminho bem diferente do conhecimento. […] Um certo tipo de fé (pistis) é reconhecido como válido no Gnosticismo, mas a fé na própria experiência, uma lealdade duradoura sentida em relação à sua experiência de conhecimento interior e libertador. (HOELLER, 2005, p.20).


Agora que entendemos um pouco do que significa o termo “gnose” para o Gnosticismo, e como a interpretação deste termo faz o Gnosticismo se chocar diretamente contra o Cristianismo (uma vez que interpreta a Fé como algo egoísta e melancólico), podemos tentar entender o que é o Gnosticismo propriamente dito, como ele se manifestou no mundo antigo, que tipos de relações manteve com outras grandes religiões (especialmente o Cristianismo) e quais suas demais características.


O Gnosticismo como movimento espiritual e filosófico


“Gnosticismo” é o nome dado a um conjunto de filosofias, seitas, comunidades e grupos que adotaram a busca pela gnosis como base de suas práticas espirituais durante os séculos I, II e III. É preciso deixar claro (a partir da análise anterior que fizemos do termo “gnose”), que o Gnosticismo não é cristão (apesar de muitos gnósticos se autodenominarem estrategicamente ao longo da história, como “verdadeiros cristãos”).


É fato que historicamente, o Gnosticismo compartilhou ideais cristãos em seu sistema cosmológico. Isso aconteceu porque ele foi por si só, uma corrente filosófica/espiritual absolutamente sincrética, que misturou elementos de diversas religiões da antiguidade para conquistar uma popularidade maior e chamar a si um apelo social mais amplo. Porém, é preciso ressaltar que mesmo usando conceitos cristãos em sua cosmologia, a interpretação dada pelo Gnosticismo a esses conceitos era primordialmente diferente da interpretação dada pelo Cristianismo (incluindo a própria interpretação gnóstica das figuras de Cristo e da Virgem Maria).


A aproximação entre Gnosticismo e Cristianismo ocorreu após a abordagem gnóstica de correntes filosóficas da antiguidade que influenciaram diretamente a doutrina cristã (como o Neoplatonismo). Nesse sentido, podemos entender que as várias filosofias espirituais da antiguidade (e o Gnosticismo está incluso dentre elas) se influenciavam mutuamente, e emprestavam ou compartilhavam conceitos entre si (FRANGIOTTI, 1995). Todavia, nem sempre essas influências mútuas significavam necessariamente uma base comum dessas correntes espirituais; e é por isso que o Gnosticismo parece ter tantos “pontos em comum” com o Cristianismo.


As raízes conhecidas Do Gnosticismo vêm do Oriente Médio, mais precisamente da Pérsia, através dos ensinamentos do Zoroastrismo (seguidores de Zoroastro). O pensamento gnóstico persa originou duas escolas de pensamento: o Mandeísmo e o Maniqueísmo. Essas escolas gnósticas persas tinham pontos de vista separados da doutrina judaico-cristã, e por isso não acreditavam em nenhuma figura sagrada judaica, cristã ou muçulmana (Moisés, Jesus de Nazaré ou Maomé), apesar dos mandeístas guardarem admiração e respeito pela figura de João Batista. Para o Maniqueísmo, “Bem” e “Mal” eram conceitos que se equivaliam e estavam em eterna disputa pelo domínio da Criação, o que geraria uma dualidade extrema em praticamente todos os aspectos do plano físico. Por conta disso, o termo “maniqueísta” ainda é usado atualmente para descrever pessoas que tenham opiniões simples e divididas em polos opostos e antagônicos.


Com o intercâmbio cultural entre os povos da antiguidade nos séculos II e III, o pensamento gnóstico se espalhou por diversas culturas e chegou ao mundo grego, sírio e egípcio (sudeste europeu, região do Cáucaso e Palestina), onde diversas outras correntes filosóficas e espirituais já estavam presentes. Ali, o Gnosticismo encontrou terreno fértil para absorver todos os conceitos que julgasse propícios a sua “estabilização filosófica”, já que passou a tomar contato com religiões e correntes de pensamento já estabelecidas na região, o que influenciou diretamente seus próprios conceitos sobre o universo, a Criação e a própria divindade.


Se pararmos novamente para refletir sobre a interpretação etimológica do termo “gnosis”, veremos que a essência do Gnosticismo é justamente defender a experiência espiritual como algo necessariamente individual (egoísta). Para os gnósticos, o conhecimento da divindade só poderia ser obtido de forma direta, o que nos leva a concluir que todas as religiões estabelecidas (incluindo o Cristianismo) tem em si uma certa necessidade de promover uma gnose a seus adeptos (já que a Fé é usada como uma das chaves da salvação na maior parte das religiões formais). Todavia, apesar de ter esse “ponto em comum” com as demais religiões, o Gnosticismo é explicitamente elitista (mais elitista até que outras religiões já tidas como elitistas na antiguidade), por defender um conceito de salvação exclusivista que promove uma separação grotesca entre os adeptos da filosofia gnóstica (chamados de “perfeitos” em algumas comunidades) e os não-gnósticos.


Por ter essa característica comum às grandes religiões, o Gnosticismo rapidamente expandiu suas abordagens, encaixando interpretações de autores e características de outras correntes filosóficas e religiosas. Essa possibilidade de encaixe filosófico e espiritual fez com que o Gnosticismo rapidamente se misturasse com diversas religiões do Oriente Médio (guardando aspectos e crenças dessas religiões) ou variasse suas convicções filosóficas e espirituais de acordo com as interpretações dos autores que escreviam sobre a experiência pessoal do conhecimento espíritual. Isso tornou (e ainda torna) o estudo do Gnosticismo confuso, já que era comum durante os primeiros séculos da era Cristã, muitas comunidades judaicas, cristãs, gregas ou sírias manifestarem uma forma própria de pensamento gnóstico. Também era frequente que algumas comunidades possuíssem uma religião formal estabelecida, mas usassem o Gnosticismo como “filosofia de suporte” ou como uma “maneira mais filosófica” de aplicar os conceitos de sua própria religião.


Isso fez com que diversas formas de Gnosticismo surgissem entre os séculos I, II e III, todas seguindo características comuns à religião da qual extraiam seus conceitos (ou do autor gnóstico que mais respeitavam). Foi o caso do Gnosticismo Setiano (mais próximo ao Judaísmo), o Gnosticismo Valentiniano (que seguia uma visão cristianizada de Valentim), ou o Gnosticismo Basilidiano (que seguia uma visão cristianizada de Basilides). Esse foi o caso da relação entre Gnosticismo e Cristianismo: tratava-se na prática de uma miscigenação espiritual causada por diversos fatores na antiguidade (falta de um corpo doutrinário claro e coeso por parte do Cristianismo; ignorância filosófica/espiritual dos membros das comunidades nas quais o Gnosticismo se infiltrava; comodidade e aparente semelhança de “doutrinas”, etc.).


Com uma aparente facilidade de “adaptar” conceitos de outras religiões (na verdade “fagocitar” esses conceitos), e se assemelhando mais a uma filosofia que a uma religião estabelecida, foi fácil para o Gnosticismo absorver elementos de religiões distantes (e aparentemente pouco cogitadas para sofrer algum tipo de sincretismo). Foi o caso também do sincretismo entre Gnosticismo e Hinduísmo, religião que também é descentralizada do ponto de vista do culto (há cultos específicos de adoração para várias divindades).


Assim como o Protestantismo, o Gnosticismo é estrategicamente apresentado por seus seguidores como “o verdadeiro Cristianismo”, ou como o “Cristianismo primitivo”. Essa é uma falácia relativamente simples de ser desconstruída, pelo simples fato de que, como vimos até agora, Cristianismo e Gnosticismo possuírem bases doutrinais e teológicas essencialmente diferentes em relação a Deus, à Criação e à forma como enxergam a existência humana. Como já vimos, a origem do Gnosticismo nem sempre teve ligação com a cultura Judaico-Cristã, mas essa classificação atual feitas pelos gnósticos é uma presunção levantada a partir do fato de que ocorreu uma grande interação entre cristãos e gnósticos (especialmente nos primeiros séculos de expansão do Cristianismo). Porém, essa interação foi fruto da ausência de um corpo doutrinário estabelecido pelo Cristianismo (que ainda não estava estabelecido formalmente na Europa como instituição religiosa, até o século III).


Para os gnósticos da atualidade, essa interação ocorrida entre cristãos e gnósticos foi uma experiência “rica”, e que “fundiu” (em sua visão) o Gnosticismo com o Cristianismo, dando origem ao que conhecemos atualmente como “Gnosticismo Cristão” ou “Cristianismo Gnóstico”, difundido por professores gnósticos dos séculos I e II como Lêucio Carino, Valentim, Basilides e Marcião.


De fato, o nível de ignorância filosófica e religiosa das populações nas quais o Gnosticismo se infiltrava era tão grande, que isso facilitava a expansão da filosofia gnóstica no sudeste europeu: não havia um corpo dogmático cristão que diferenciasse a abordagem gnóstica do Cristianismo, e desmascarasse a estratégia de expansão e sincretismo da doutrina gnóstica. De acordo com Hoeller (2005), se algum habitante do sudeste asiático no século III fosse questionado se era gnóstico ou cristão, ele responderia “sou os dois”, ou simplesmente diria: “não sei o que é ser gnóstico, só pratico minha religião”.


O grau de confusão doutrinária foi tão grande entre Gnosticismo e Cristianismo nos século I e II, que até mesmo os sacramentos das iniciações gnósticas (nas comunidades onde o Gnosticismo era adotado como religião) eram próximos aos Sacramentos cristãos (alguns idênticos como Batismo, Crisma e Eucaristia). Essa similitude interessava ao Gnosticismo: para a filosofia gnóstica, era mais fácil expandir-se de forma “mutualista” (aproveitando a popularidade de religiões já estabelecidas) que propor um corpo novo de ensinamentos. Assim, até mesmo muitos dos livros sagrados gnósticos eram comumente chamados de “evangelhos”. Isto é comprovado nos próprios duelos teológicos que São Paulo teve no sudeste europeu, quando enfrentou mestres gnósticos nas comunidades que visitou durante a expansão da mensagem cristã fora da Palestina (que está registrado nas Cartas Paulinas do Novo Testamento): era comum que os apóstolos de Cristo como João, Tiago e até mesmo Paulo, se queixassem em seus livros bíblicos das estratégias de “camuflagem social” que os gnósticos promoviam nas comunidades indo-europeias do século I, promovendo-se como cristãos mas divulgando uma doutrina difusa que confundia a população dessas comunidades (FRANGIOTTI, 1995).


De acordo com Hoeller (2005) o objetivo dos sacramentos gnósticos era essencialmente diferente dos objetivos dos sacramentos cristãos (especialmente dos sacramentos Católicos). Isso deixa claro como o Gnosticismo interpretava de maneira diferente (e até distorcida) os Sacramentos cristãos, uma vez que:


O objetivo de um sacramento gnóstico não é uma mera santificação temporária, como na doutrina católica romana da graça sacramental, mas uma transformação total, uma mudança na essência da divindade. O gnóstico perfeito não é um seguidor de Cristo, mas um ser humano deificado (transformado em divindade); ele é um outro Cristo. (HOELLER, 2005, p. 93. Grifo nosso).


Vemos nas palavras de Hoeller, que os sacramentos gnósticos adotados pelas comunidades nas quais o Gnosticismo era trabalhado como religião, beiravam a mistura de presunção e soberba espiritual: para os gnósticos “perfeitos” (iniciados), não era Cristo quem deveria ser adorado ou buscado, mas sim a deificação do ser humano através da “libertação das amarras do mundo” (rejeição à natureza e a tudo que fosse relacionado à Criação, que também foi concebida com a participação do próprio Cristo!). Isso faz das ações espirituais do Gnosticismo, além de heréticas, também blasfemadoras, uma vez que contrariam a natureza de Cristo como co-criador do mundo, além de defenderem uma espiritualidade humanista, egoísta e centrada unicamente nos interesses do ser humano, e não na glorificação de Deus, que é Eterno e Onipotente (AGOSTINHO, 1996).


Apesar de ter um intercâmbio (apropriação de conceitos) com o Cristianismo, o Gnosticismo nunca teve uma teologia organizada e sistemática como a teologia cristã. Os próprios gnósticos da antiguidade não se preocupavam em organizar seus conhecimentos, leituras, práticas ou sacramentos de forma a estruturar uma Liturgia. Isso acontecia porque os gnósticos interpretavam a Liturgia cristã como “proveniente deste mundo”: um mero instrumento de adoração às imperfeições deste mundo… que utilizava ferramentas deste mundo, como instrumentos, parafernálias, etc, que prenderiam mais ainda o homem às “amarras” da Criação.


Os gnósticos pensavam que a organização teológica e litúrgica não conduziria à gnosis pessoal (já que seriam estudos apenas religiosos ligado ao mundo físico). Por isso, por mais que os gnósticos da atualidade considerem o Gnosticismo como “o verdadeiro Cristianismo” (ou como uma espécie de “Cristianismo primitivo”), suas semelhanças com o Cristianismo (como no caso dos Sacramentos cristãos) guardam também diferenças enormes, que desmascaram essa pretensa “base comum” que os gnósticos querem defender. A ritualística gnóstica era pobre liturgicamente, e estava sempre preocupada com a libertação do plano físico…ao passo que para o Cristianismo, a Liturgia é algo divino, transmitido pelo próprio Cristo em pessoa como forma de render adoração a Deus-Pai (AGOSTINHO, 1996).


O Gnosticismo como inimigo do Cristianismo e da Metafísica Católica


O Gnosticismo é essencialmente uma doutrina dualista, que defende a existência de 2 planos de existência diferenciados: um plano material, físico (onde o ser humano habita preso em sua ignorância), e um plano divino totalmente espiritual, que está além do universo e de tudo que se conhece na Criação (onde habita a “verdadeira divindade” gnóstica, que é benevolente e misericordiosa). Para os gnósticos, o mundo físico e a Criação são controlados por uma “divindade menor”, enganadora, maléfica e aprisionadora (chamada comumente de “Demiurgo”), que mantém o ser humano preso à sua Criação e à sua própria ignorância. Assim, para os gnósticos cabe ao Homem procurar obter o conhecimento direto do “verdadeiro deus” e se libertar de sua ignorância para quebrar as algemas espirituais do Demiurgo.


Quando se fala em Gnosticismo, é importante deixar claro a você leitor, que a palavra-chave dessa corrente espiritual é “desprendimento”: o gnóstico tem em mente que o “verdadeiro deus” não pertence a este mundo, e que nada que existe neste mundo tem ligação com a “verdade” gnóstica. Este mundo é obra de uma divindade menor, limitada e iludida. Essa divindade menor seria a responsável pela criação do mundo físico, pela manutenção desse mundo e pelo sofrimento que o Homem passa nesse plano de existência. Assim, a verdadeira missão do gnóstico é única e exclusivamente se libertar de seus sofrimentos físicos e retornar ao plano espiritual onde reside “o verdadeiro deus” gnóstico, conhecido por muitas comunidades gnósticas através da sigla IAO.


Sob o ponto de vista gnóstico, se o mundo físico é imperfeito, ele o é porque foi criado por uma entidade também imperfeita (motivo pelo qual é conhecida como “Demiurgo”, que significa “meio construtor”). No mundo físico nada é eterno, e tudo está sujeito a um ciclo de nascimento, crescimento, queda, morte e renascimento. Esse ciclo é controlado pelo Demiurgo e mantém o ser humano preso numa roda de sofrimento incessante. Por isso, a primeira grande missão gnóstica é tornar o homem consciente de seu estado de prisão, para que inicie sua jornada de libertação.


Esse raciocínio gnóstico é essencialmente herético, haja vista não encontrar eco em nenhum aspecto teológico do Cristianismo. Pior que isso: em suas próprias palavras, Cristo nos deixa claro que Ele e o Pai “são um só”, e que o Pai Eterno criou o mundo tal qual existe, já que nada ocorre na Criação sem que Deus assim o saiba, pois Ele dá conta “de qualquer fio de cabelo que nasce ou cai do homem” (LC, 12, 7).


O raciocínio gnóstico de que o “verdadeiro deus” está além desse mundo, e de que toda a Criação foi feita por uma divindade “menor, arrogante e iludida”, cria uma contradição para a própria filosofia gnóstica. Isso ocorre porque como o Gnosticismo não se apresentava como uma religião e sim como uma filosofia espiritual, que se expandia através do sincretismo com elementos de outras religiões e filosofias (de forma muitas vezes incoerente). Assim, defender a existência de duas divindades para justificar os problemas do mundo é simplesmente negar a Teologia Judaico-Cristã (ao mesmo tempo em que o Gnosticismo sincretizava elementos dessa mesma Teologia!), que tem por base a premissa única de que Deus-Pai é o criador do mundo e de tudo enquanto nele existe.


Essa visão de mundo e da divindade (cosmologia) frequentemente faz com que o pessimismo do Gnosticismo fique visível em seu discurso, e seja considerado uma de suas características principais. Para o gnóstico a visão cosmológica cristã (que culpa o ser humano por seu sofrimento) é uma “estratégia do Demiurgo” para prender ainda mais o ser humano ao plano físico, o “convencendo de seus erros”. Isso deixa ainda mais claro que o discurso gnóstico na verdade não tem nada de diferente do discurso das maiores heresias anti-cristãs já manifestadas no Ocidente: trata-se de um discurso imanente, com uma pseudo-preocupação transcendente que sustente suas justificativas ao Liberalismo e ao Relativismo promovidos em torno do comportamento humano (FRANGIOTTI, 1995).


Segundo Hoeller (2005), “a maioria dos seres humanos possui uma forte necessidade psicológica de perceber a vida como benigna em algum sentido e potencialmente feliz” (HOELLER, 2005, p. 29). E isso ocorre porque Deus colocou no homem parte de sua própria essência no ato da Criação (quando esta ainda tinha um estado de perfeição que não se comparar ao estado decaído em que o homem se encontra agora).


O que o Gnosticismo tenta é assustar o ser humano tornando a Criação algo também “assustador”, na tentativa de retirar toda a esperança dos homens em Deus e em sua Criação, que mesmo em estado decaído pode ser utilizada como primeiro estágio de retorno do ser humano a seu estado de condição divina (AQUINO,2001).


Aos olhos do cristão, este mundo não é sua casa; porém, por mais que não seja a morada eterna prometida por Cristo, o mundo é o local onde a transformação do ser humano deve ser iniciada. E essa transformação deve ser feita não negando-se a Criação e a vida, mas como disse São João, “estando-se no mundo, vivendo-se nele da melhor forma possível, mas não sendo deste mundo” (JO, 17, 1-11). Assim, o cristão sempre tende a querer enxergar algo de bom em tudo (mesmo que essa bondade seja apenas aparente).


Já para o gnóstico, a bondade desse mundo não tem valor algum porque é passageira, e sendo assim, não há sentido em se ter Fé e esperança em algo passageiro. Assim, o gnóstico até pode eventualmente praticar atos caridosos (como uma forma de demonstrar piedade), mas a forma como encara a prática da caridade é diferente: ele não se deixa guiar pelo sentimento de que sempre deve ajudar os mais necessitados. Para um gnóstico, a melhor ajuda que alguém pode dar à outra pessoa é mostrar-lhe a chave de sua própria “libertação do sofrimento” (ao invés de sempre ser caridoso ou bondoso, o que para o gnóstico equivaleria a manter o semelhante no sofrimento e na dependência de ajuda alheia).


A negação da Criação fazia com que algumas comunidades gnósticas da antiguidade rejeitassem até mesmo a vida (isso mesmo, a geração de vida!): algumas comunidades que adotavam o Gnosticismo como religião, proibiam seus iniciados (os “perfeitos”) de terem filhos, sob a alegação de que gerar filhos seria uma forma de “perpetuar a criação do Demiurgo” e de “manter o cativeiro espiritual do ser humano”. De acordo com Agostinho (1996) era comum até mesmo que a prática do aborto fosse realizada por mulheres adeptas da filosofia gnóstica, que acreditavam estar fazendo algo “benéfico” espiritualmente aos fetos (e a si mesmas!). Obviamente, muitas vezes esse tipo de prática terminava por causar também a morte das próprias mães (algo que aparentemente não incomodava os gnósticos, uma vez que a morte representava pra eles a possibilidade concreta de “libertação deste mundo”).


Todavia, apesar de ter uma visão herética e tenebrosa contra os preceitos cristãos, não é apenas o pessimismo em torno da Criação que faz do Gnosticismo um inimigo teológico do Cristianismo. Outros três fatores fazem com que o Catolicismo (Romano e Ortodoxo) considere o Gnosticismo como uma das maiores heresias à cristandade (ao lado do Protestantismo):


1º fator: A deturpação dos conceitos cristãos: a grande mistura filosófica que o Gnosticismo promoveu com o Cristianismo nos séculos I, II e III, fez com que muitos conceitos cristãos fossem deturpados pela visão gnóstica de mundo. Isso fez com que muitos cristãos cometessem erros doutrinários, confundindo o Gnosticismo com o Cristianismo (uma vez que a doutrina cristã dos primeiros séculos ainda não possuía um corpo teológico unificado e definido);


2º fator: A ausência de intermediários: o egoísmo gnóstico se expressa de forma mais visível em sua ansiedade por estimular experiências espirituais solitárias, sem que a coletivização dessa experiência gere um sentimento de piedade e caridade (como ocorre no Cristianismo). Assim, a ausência de intermediários pregada pelo Gnosticismo busca no fundo descentralizar a influência Judaico-Cristã dentro da Tradição Espiritual Ocidental, se opondo especialmente ao Catolicismo em prol de uma pretensa gnose pessoal que não teria influência “de nada deste mundo”;3º fator: A presença de uma divindade distante e fria: para o Catolicismo, Deus é uma divindade pessoal, que mantém contato com o ser humano e demonstra por ele piedade e compaixão (AGOSTINHO, 1996). Porém, para o Gnosticismo o “verdadeiro deus” é uma divindade impessoal, fria e distante, que não se mistura com os assuntos deste mundo.


Para o Cristianismo, o sofrimento do ser humano também faz Deus sofrer, pois não foi isso que Ele planejou ao Homem quando do momento de sua Criação. Deus não quer que seus filhos sofram e isso o transforma quase “em outra pessoa”. Assim, a ideia gnóstica de que Deus está “além deste mundo” e de que este mundo é governado por uma divindade “menor”, é um absurdo do ponto de vista teológico cristão.


Conclusão: vale a pena realmente estudar Gnosticismo?


Com base em tudo que analisamos neste artigo sob o Gnosticismo, a resposta a esse questionamento é simples: depende do objetivo que você tiver, ao estudar a filosofia gnóstica.


Mesmo com graves erros doutrinais, e com posicionamentos claramente heréticos, estudar o Gnosticismo pode ser uma oportunidade ímpar a todos aqueles que desejam se aprofundar nos estudos da Tradição Espiritual Ocidental…por um motivo simples: o Gnosticismo sincretizou (de maneira muitas vezes pouco ética) elementos de diversas religiões já consolidadas no Ocidente, nos séculos II e III da Era cristã. Por isso, estudar a filosofia gnóstica pode dar ao buscador, uma senso teológico apurado e fazê-lo entender como os adversários teológicos e filosóficos do Cristianismo utilizam suas estratégias de enfrentamento à doutrina de Cristo.


O Gnosticismo não pode ser considerado somente uma religião (porque conviveu abertamente com outras religiões) ou mesmo uma simples filosofia (porque em algumas comunidades da antiguidade ele desempenhava o próprio papel de religião, ou já haviam outras correntes filosóficas em ação). O Gnosticismo é ao mesmo tempo religião e filosofia, pois conviveu abertamente com outras religiões, se aproveitando da popularidade delas pra divulgar (de forma muitas vezes “secreta”) seus “ensinamentos”.


Todavia, se o objetivo do estudante for aderir religiosamente ao Gnosticismo (através de alguma instituição iniciática moderna), este estudo passa a não ser recomendável. Por mais que a Tradição Ocidental tenha inúmeros exemplos de ideias com clara influência gnóstica, isso não significa que os buscadores sinceros devam aderir a essa filosofia herética de forma religiosa (especialmente se o buscador for cristão, já que o Gnosticismo choca-se diametralmente à Teologia cristã).


Estudar um adversário teológico/filosófico vale a pena para se conhecer as estratégias deste importante adversário cristão. Este é sem dúvida um estudo árduo, muitas vezes confuso, e absolutamente necessário a todos aqueles que desejam se aprofundar na Tradição Ocidental. Todavia, estudar uma vertente como o Gnosticismo visando a adesão religiosa a ela, é uma decisão grave (mas que está à disposição de qualquer um, a partir da efetividade do conceito de livre-arbítrio tão defendido no Cristianismo).


O Gnosticismo é descentralizado (do ponto de vista religioso), e suas manifestações na antiguidade tomaram vários formatos diferentes (assim como o Hinduísmo toma na atualidade). O próprio termo “gnóstico” não tinha o caráter que tem atualmente, e o sincretismo que foi feito entre o Gnosticismo e as diversas correntes espirituais e filosóficas dos primeiros séculos, fez com que não se haja um conceito unificado do que significa ser “gnóstico”.


Outro ponto a se considerar é que como religião, o Gnosticismo é confuso e sem respaldo teológico e litúrgico a seus adeptos. Isso acontece por conta da desvalorização que os gnósticos faziam da Liturgia e da Teologia (enquanto áreas de aprofundamento cristão). Isso pode fazer com que nem todos os estudantes de Esoterismo Moderno que procuram o estudo do Gnosticismo realmente suportem as ideias relativizadas e pessimistas propagadas na filosofia gnóstica. Na verdade, pouquíssimos desses “curiosos” realmente as suportam: no Brasil, enquanto muitas Ordens iniciáticas se dizem “gnósticas”, muitos estudantes insistem em querer estudar Gnosticismo mas não toleram conceitos gnósticos como “desprendimento” e “recusa à vida”.


Assim, enquanto o Gnosticismo prega que o ser humano deve “se libertar das algemas desse mundo” e rejeitar tudo que estiver relacionado ao plano físico (inclusive o “ocultismo” dos séculos 19 e 20, típico do Esoterismo Moderno!), os estudantes brasileiros de esoterismo preferem “praticar de tudo um pouco”, e estudar Gnosticismo “aos poucos”, através de “pura curiosidade”, sem abrir mão do estudo de magia. Falando de forma simples: o Gnosticismo não é uma filosofia espiritual confiável; e soa como algo “rígido e pessimista demais” à grande parte dos buscadores da atualidade, que o buscam por mera curiosidade mas não querem seguir toda a filosofia gnóstica à risca.


O renascimento do interesse pelo Gnosticismo a partir do século 19, fez com que um grande número de “Ordens gnósticas” surgisse ao redor do mundo. Diversos movimentos esotéricos passaram a adotar o termo “gnóstico”, caracterizando o que pode ser classificado como o “Neo-Gnosticismo”. Nem sempre as Ordens Neo-Gnósticas parecem ter ligação aparente com a filosofia gnóstica dos séculos II ou III (ou com alguma corrente gnóstica clássica); outras vezes, a ligação é mais recente e já caracteriza outras reformulações filosóficas e espirituais. O Brasil possui representações conhecidas de instituições espiritualistas que se classificam como “gnósticas”, a exemplo do movimento gnóstico samaeliano (representado pelas diversas instituições que caracterizam essa vertente gnóstica), e a Escola Internacional da Rosacruz Áurea (ou Lectorium Rosicrucianum), a única instituição rosacruz da modernidade a adotar um sistema iniciático completamente gnóstico.


Ao estudante sincero da Tradição Espiritual Ocidental, que deseja fazer pesquisas sobre Gnosticismo, fica a dica: não se iluda. O Gnosticismo não é uma via espiritual recomendável a quem é cristão, ou mesmo a quem busca aprofundar estudos na Tradição do Ocidente. Trata-se de uma verdadeira “colcha de retalhos” filosófica, espiritualmente pessimista, com conceitos aparentemente “profundos” e rígidos, mas com pouca teologia própria e quase nenhuma Liturgia que ofereça a seus pesquisadores uma base de práticas coesa. Além disso, o Gnosticismo tem uma visão cosmológica que pode ser considerada dura, se comparada às visões otimistas dos movimentos espirituais da Nova Era.


Saiba bem o que você quer obter do Gnosticismo, caro leitor, e saiba também o que irá encontrar em sua busca. Não se estuda nada “por curiosidade”…e em se tratando de Gnosticismo, essa frase ganha ainda mais veracidade. Não perca o seu tempo estudando aquilo que não pretende aderir (ou que nem vale a pena ser aderido); da mesma forma, não faça instituições iniciáticas (por piores que sejam) perderem tempo com seu interesse passageiro ou superficial.


Se sua decisão for realmente estudar a filosofia gnóstica, estude o Gnosticismo pelo que ele é: uma heresia anti-cristã. A partir desta constatação, faça comparações constantes entre as interpretações gnósticas (confusas e relativizantes) e a Liturgia e a Teologia cristã. Faça deste estudo um fortalecimento de sua própria Apologética (capacidade de defender a Fé cristã através do uso da lógica).


Leia bastante; pesquise; se informe. Como diria um célebre ditado popular: “quem não sabe o que busca, não identifica o que acha”.


REFERÊNCIAS:


AGOSTINHO, Santo. Confissões. Editora Nova Cultural. São Paulo: 1996.

AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica: Vol. 1. Edições Loyola. Rio de Janeiro: 2001.

BÍBLIA SAGRADA. Evangelho de São João. Capítulo 17, versículos 1 à 11.

______ . Evangelho de São Lucas. Capítulo 12, versículo 7.

HOELLER, Stephan. Gnosticismo: uma nova interpretação da tradição oculta para os tempos modernos. Editora Record: Nova Era. Rio de Janeiro: 2005.

FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias. São Paulo: Paulus, 1995.

PAGELS, Elaine. The gnostic gospels. Random House. Nova York: 1978.


NOTAS


O Gnosticismo é uma vertente espiritual confusa, e não recomendada a cristãos, fazendo uso de uma cosmologia diferente, e podendo tornar-se até mesmo um “fardo” pra todos que o buscam sem saber o que estão abordando…


Para o Catolicismo Apostólico Romano (pertencente ao pilar judaico-cristão da Tradição Ocidental), o Gnosticismo é um inimigo doutrinal e teológico tão perigoso quanto o protestantismo, representando um perigo real a todos os cristãos verdadeiros, pois subverte os dogmas cristãos, confunde os estudantes sinceros e descentraliza as práticas espirituais dos buscadores em nome de um humanismo egoísta.


Para os gnósticos, o Demiurgo era uma semi-divindade iludida, responsável por toda a criação visível, procurando prender o ser humano no plano físico. Por conta disso, essa divindade é conhecida como “Demiurgo” (que significa “meio construtor”), simbolizando sua própria imperfeição.


O Cristianismo é a religião que mais foi sincretizada (de forma herética) com o Gnosticismo. Porém, apesar de terem laços de proximidade, cristãos e gnósticos encaram certos símbolos e figuras de forma diferente. A própria figura de Cristo é interpretada de maneira absolutamente diferente na filosofia gnóstica, que sempre atribui a Cristo uma imagem “feiticeira” ou excessivamente sobrenaturalizada.


O intercâmbio cultural entre os povos da antiguidade fez com a que a filosofia gnóstica chegasse à Grécia, Egito e Palestina. Nesses locais, o Gnosticismo sofreu influência de diversas religiões e correntes filosóficas predominantes, criando várias vertentes gnósticas de acordo com as características espirituais e culturais de cada região.


No Gnosticismo, a busca pelo conhecimento divino não pode ser feita sob uma ilusão, pois isso não conduz o homem ao contato com a divindade. A busca pela Gnose é algo totalmente pessoal, intransferível e direta (sem a ação de terceiros), já que não podem existir intermediários entre Deus e o homem.


O “Mentalismo” Moderno e Sua Visão Espiritual Deturpada


O estudo do Hermetismo se tornou algo comum na sociedade contemporânea, seja entre os estudantes curiosos e descompromissados, seja entre aqueles que preferem se arriscar na prática esotérica moderna. No cenário brasileiro, não é raro encontrarmos estudantes que se dizem “ocultistas” e que não tem nenhuma prática magística, mas leram obras como “O Caibalion” ou o “Corpus Hermeticum” e repetem seus trechos como verdadeiros “papagaios”. Porém, o que os “ocultistas” brasileiros estão esquecendo é de interpretar devidamente as obras herméticas que estão lendo, e situá-las em acordo com a Magia, enquanto ciência prática. Isso está fazendo com que a interpretação das leis herméticas fique estereotipada e rasteira, especialmente a interpretação que está sendo dada à 1ª e à 2ª lei hermética, as chamadas “lei do mentalismo” e “lei da correspondência”, respectivamente.


O Hermetismo é um corpo filosófico e doutrinário que ganhou espaço a partir da figura de Hermes Trismegistus, lendário sacerdote egípcio que popularizou ciências como a Alquimia, a Magia e a Astrologia.


Entre os ensinamentos herméticos, merecem destaque aqueles ligados às chamadas “leis herméticas”, que narram de que forma o mundo “funciona”, como seus fenômenos físicos podem ser justificados e como devemos nos portar espiritualmente diante deles.


A 1ª lei hermética é a chamada “lei do mentalismo”, e seu texto, descrito no Caibalion, nos diz o seguinte: “o Todo é Mente; o Universo é mental”.


Se analisarmos rapidamente este texto, veremos que ele é curto e que aparentemente seu significado é claro. Porém, analisando o conteúdo do texto em si, percebemos que sua interpretação não é tão simples como se imagina (ou como muitos “ocultistas” brasileiros imaginam), e abre margens para variações interpretativas que muitas vezes podem até distorcer o sentido original do texto. Talvez seja isso que esteja ocorrendo com o significado das leis herméticas e com a interpretação que está sendo feita sobre elas, no que diz respeito à magia.


Atualmente, vejo estudantes de esoterismo falarem abertamente verdadeiras “pérolas” a respeito da prática de magia, como por exemplo:


“Toda magia é mental”


“Todo efeito mágico é apenas uma ilusão, criada pela mente do mago”


Ou mesmo que


“O objetivo da magia é exteriorizar o que há no subconsciente do mago”.


Apesar de sabermos que a maioria dos estudantes que nos brindam com essas pérolas não tem prática mágica nenhuma, chegamos à conclusão de que essa interpretação deturpada da magia e seus efeitos não provém somente da falta de prática, mas do estudo incorreto que estão fazendo do Hermetismo. Geralmente, os estudantes que defendem esse ponto de vista psicológico da magia, usam o texto da lei do mentalismo como tentativa de sustentar seus argumentos. No raciocínio desses estudantes, se a lei do mentalismo diz que “o universo é mental”, então tudo mais que estiver contido no universo também será, e isso inclui a magia. Esse não é um raciocínio totalmente incorreto; porém…pra infelicidade dos “ocultistas” que defendem esse ponto de vista, nem todas as formas de magia são mentais, e em algumas delas a mente não desempenha sequer função primordial para a execução do ato mágico em si.


De uma forma simples, a interpretação moderna que está sendo dada à lei do mentalismo está se guiando pela ideia de que o homem é o centro do universo, e que o sucesso ou fracasso de suas ações depende apenas de seu querer e da força de sua Vontade. Assim, se o texto da lei do mentalismo nos diz que “o Todo é mente”, os ocultistas modernos interpretam esse “Todo” como “Tudo” e o relacionam ao homem; dessa forma, os estudantes modernos concluem que “Tudo é mente” (tudo é “mental”), e sendo assim o homem não precisa recorrer a nada fora de si, já que tem em si tudo de que precisa pra operar magia (sua mente). Só que o erro começa justamente nesse ponto: o “Todo” citado na lei do mentalismo, não significa o “Tudo” que os estudantes modernos interpretam incorretamente. Quando se diz que “o Universo é mental”, e que “o Todo é mente”, na verdade o Hermetismo está deixando claro que a criação do Universo foi um ato mental, pois foi um ato gerado da mente criadora universal (Deus). Porém, isso não quer dizer que o ser humano, mesmo sendo parte direta da criação, pode “criar” apenas a partir de sua mente. Por mais “poderosa” que seja a mente humana, ela não tem capacidade autônoma de criar algo no físico, estando fora da influência do Altíssimo se não fizer uso da Fé, da Técnica e de sua Vontade. Por isso, o fato do “universo ser mental” não faz da magia praticada pelo ser humano, algo meramente psicológico.


O motivo dessa interpretação distorcida da lei do mentalismo é muito claro: há uma diferença nítida entre a lei hermética do mentalismo e a interpretação psiquista que se tem feito dessa lei (o chamado “mentalismo moderno”). E essa interpretação equivocada não ocorre apenas com a 1ª lei hermética; a 2ª lei hermética (lei da correspondência) também sofre com essa mesma distorção na interpretação de seu texto. No Caibalion, o texto da lei da correspondência é claro: “O que está em cima é como o que está embaixo. E o que está embaixo é como o que está em cima”.


A 2ª lei hermética nos diz que, devido os limites do ser humano, ele não consegue enxergar a magnitude do cosmos infinito, e não consegue enxergar nem a si mesmo como representante do Macrocosmo. A lei da correspondência nos diz que as verdades do Macrocosmo também encontram eco no microcosmo, já que “o menor” (o microcosmo) é uma equivalência do maior (Macrocosmo).


Porém, o que o pensamento moderno prega (e os “ocultistas” brasileiros seguem…) é que o homem é “seu próprio deus”, e se ele tem em si tudo que precisa (sua mente, de acordo com a interpretação errada da lei do mentalismo), então ele tem totais capacidades de controlar seu universo do modo como quiser, sendo a única divindade de seu mundo.


Essa interpretação da lei hermética da correspondência não poderia estar mais equivocada. O ser humano é uma correspondência, e não algo igual a Deus. A similitude do homem em relação à divindade vai até o ponto da potência: o homem é um deus em potencial, mas não uma divindade realizada. Todavia, muitos estudantes de esoterismo preferem acreditar que a magia é fruto da “divindade do Homem”, e do fato dele já ter tudo de que precisa pra operar magicamente (sua mente). Talvez por conta disso, muitos estudantes “ocultistas” no Brasil tem sempre o texto da 2ª lei hermética “na ponta da língua”, e repetem exaustivamente a frase “como o é encima, o é embaixo”, como se fossem verdadeiros papagaios…na tentativa de justificar sua própria soberba através de um mentalismo apegado a uma suposta “independência espiritual”.


Vimos nesta 1ª parte do artigo, que a interpretação que está sendo dada às leis herméticas está sendo deturpada e baseada em um raciocínio mentalista rasteiro. Porém, essa distorção interpretativa não está sendo causada apenas por falta de estudo ou de prática mágica dos “ocultistas” brasileiros. Na 2ª parte do artigo, faremos uma revisão histórica para descobrir qual a origem desse pensamento psiquista que tem invadido a magia moderna nas últimas décadas.


Na 1ª parte deste artigo, vimos que o Hermetismo tem sido interpretado de maneira deturpada por parte de muitos estudantes de esoterismo da atualidade, e que as leis herméticas têm sido analisadas sob um viés extremamente psicologizado. A partir de agora, tentaremos entender quando e onde surgiu esse ponto de vista “mental” sobre o Hermetismo e a magia, e como essa visão mentalista influenciou e vem influenciando negativamente a prática mágica na atualidade.


A popularização da Psicologia no século 19 fez com que as abordagens psicológicas ficassem cada vez mais comuns nas Ordens Iniciáticas da Europa. Na foto acima, o famoso psicólogo Carl Jung, usado atualmente como “base científica” em muitas instituições esotéricas.


A origem da interpretação distorcida das leis herméticas tem início no século 18 com o advento do iluminismo (que pregou uma reorientação da visão de mundo dos séculos anteriores, dando mais foco ao homem na terra que a Deus no céu). Porém, essa visão moderna do mentalismo ganhou realmente corpo com a popularização da Psicologia no século 19. A Psicologia rapidamente se popularizou na Europa na metade do século 19, defendendo a ideia de que o homem tem dentro de si estruturas mentais que ele mesmo desconhece, e que influenciam seu comportamento e sua postura diante da vida e de seus problemas. Esse raciocínio psicológico rapidamente ganhou popularidade no meio esotérico e ocultista europeu, que estava ansioso por validar as práticas mágicas e os estudos metafísicos com alguma forma de raciocínio científico que pudesse comprovar a magia como “ciência hermética”. Assim, o raciocínio psicológico de que o homem não conhece sua estrutura mental, abriu margens para que várias Ordens Esotéricas europeias adotassem a Psicologia como “suporte científico” de seus sistemas iniciáticos. Psicólogos como Carl Gustav Jung passaram a ser figuras comuns nos ensinamentos de diversas Ordens, se tornando “base científica” de justificativa para a magia (mesmo que em seus estudos psicológicos, esses psicólogos nunca tivessem citado magia de forma direta). A astrologia tradicional também sofreu com esse sincretismo forçado com a Psicologia, especialmente o movimento de “reorientação astrológica” iniciado na Sociedade Teosófica por Alan Leo, considerado atualmente “o pai da astrologia moderna”.


O sincretismo iniciado no século 19 entre magia e Psicologia aprofundou-se de forma trágica no século 20, gerando a aberração que temos atualmente: a chamada “magia psicológica” (ou “psicologia mágica”), tão defendida entre os estudantes de esoterismo da atualidade, e entre os chamados “ocultistas de balcão” brasileiros. Todavia, será que podemos simplesmente culpar a Psicologia por esse sincretismo forçado? De forma alguma. Se há culpados nesse sincretismo, esses culpados são as Instituições Iniciáticas europeias do século 19, que procuraram misturar e encaixar erroneamente conceitos e filosofias que nem sempre são passíveis de serem encaixados. A Psicologia por si só pode ser útil (e até necessária) no estudo de magia; porém, daí a considerar que a magia e seus efeitos são “frutos psicológicos”, há uma grande diferença. Achar que qualquer efeito mágico é fruto somente do “subconsciente” do mago é desmerecer a magia enquanto Arte sagrada. Todo aquele que pensa dessa forma, esquece-se que um dos pilares do mago é justamente sua Fé naquilo que faz e na divindade. Se o mago não tem Fé naquilo que faz, não há sentido em continuar fazendo aquilo, já que em magia, a racionalidade nem sempre pode justificar todos os efeitos mágicos possíveis. A tentativa de se tentar analisar e justificar a magia sob o viés da razão e da mente, é apenas um reflexo tardio do iluminismo e de seus efeitos sobre a prática mágica ocidental, que tentou transformar a magia em uma ciência puramente verificável através de fatos e dados quantitativos.


Essa visão mágica psicologizada piorou quando famosas personalidades do meio mágico mundial, como Helena Blavatsky, Aleister Crowley, Franz Bardon e mais recentemente Lon Millo Duqette (dentre outros) procuraram respaldar seus sistemas e práticas nesse raciocínio tipicamente “mentalista moderno”, buscando técnicas orientais (yoga) como forma de trabalho mental “propício” a possibilitar o desenvolvimento mágico de alguém. Essa “magia psicológica”, pautada na interpretação errada da lei do mentalismo, mais parece alguma forma de “exibicionismo psíquico” que magia propriamente dita. Quase sempre, esse tipo de “magia” procura enaltecer as “capacidades latentes” do ser humano e seus “potenciais mentais”, se aproximando mais do chamado “Psiquismo”, responsável por popularizar fenômenos como “clarividência”, “premonição” e “telepatia”. Curiosamente, boa parte dos estudantes de esoterismo que defendem essa visão psicológica da magia, também se interessam por esses poderes psíquicos. Para essas pessoas, “tudo se conquista com a mente”, e o querer é a chave de todo sucesso mágico… afinal de contas, como diz o ditado popular, “querer é poder”. Porém, o que esses estudantes esquecem, é que nem sempre esse “querer” gera efetivamente “poder”, pois a mente por si só não é capaz de executar todos os efeitos mágicos que o operador almeja.


Segundo Hyatt (2008), fazer magia é estar disposto a extrair resultados claros e visíveis no plano físico, já que “Magic is the manipulation of hidden forces or intelligences to produce a desired result” (HYATT, 2008, p. 20). Não existem apenas magias cujos objetivos sejam conquistados através da mente; da mesma forma nem toda magia é apenas “astral”. Algumas modalidades de magia são materiais, e seus efeitos são visíveis no plano físico (e não apenas “projeções psicológicas”), mesmo que essas modalidades também façam uso da estrutura mental do operador em certo nível.


Não basta “querer”; é preciso “saber fazer”. A Tradição Espiritual Ocidental é pautada em 4 grandes princípios: Fé, Vontade; Técnica; e Paciência. Eliphas Levi, célebre teólogo do século 19, já expressava esses princípios em suas obras, através do famoso “saber-querer-ousar-calar”. Não basta ao mago ter vontade de fazer uma ação mágica, se não sabe efetivamente fazê-la; não adianta apenas crer que “tudo dará certo”. É o mago que tem de fazer as coisas “darem certo”, através dos quatro princípios mágicos.


Algumas especialidades mágicas não admitem o uso da mente como “centro operativo” do mago: é o caso, por exemplo, da magia cerimonial ou da Teurgia. Nessas modalidades mágicas, não adianta simplesmente “querer” ou “ter Fé”. Acima de tudo, é preciso saber seguir as exigências de cada operação, cada ritual, sendo fiel ao máximo às recomendações de cada sistema ou grimório trabalhado. E é aqui que o uso do mentalismo moderno se torna perigoso. Muitos são os casos de adolescentes ou praticantes desavisados que buscam experimentar operações de magia cerimonial usando o raciocínio tipicamente “mentalista” em ações mágicas tradicionais, como a evocação de espíritos e entidades astrológicas. Esse é um ato extremamente estúpido (além de imaturo), já que a magia cerimonial não segue esse raciocínio moderno e estereotipado de que “a mente contém tudo de que o mago precisa”. Entidades e espíritos evocados, ao contrário do que muitos “ocultistas” brasileiros pensam, não são arquétipos mentais do mago, e suas manifestações físicas não são apenas “efeitos do subconsciente do operador”. Tratam-se na verdade de entidades poderosas e autônomas, com uma existência além da compreensão humana, e com manifestação independente em relação ao mago. É por conta disso que aumentam os relatos de que muitos “mentalistas modernos” sofrem com a obsessão de entidades e a falta de controle emocional, após executarem rituais cerimoniais mal-sucedidos… fruto de suas visões deturpadas da magia e de seus efeitos.


A você leitor, que ainda não tem experiência prática em magia, mas está estudando a teoria e futuramente pretende realizar alguma operação específica, fica a dica: magia não é apenas algo mental; é algo mental também. A estrutura psicológica do mago é importante em certos aspectos, e sua capacidade de visualizar certas imagens astrais pode ajudá-lo m operações mágicas. Porém, nem toda forma de magia é apenas mental. Não caia no “conto popular” dos “ocultistas” brasileiros de que “basta acreditar para acontecer” e que “é preciso confiar na mente”; para que algo mágico aconteça, você mesmo tem de fazer esse algo se manifestar, através de sua Fé no Altíssimo (saber), sua Vontade em querer que aquilo aconteça (querer), sua Ação para que aquilo aconteça (ousar), e sua paciência para que aquilo se manifeste (calar).


Lembre-se: magia não é Psicologia, e da mesma forma, o estudo de Psicologia não é algo mágico. Nenhum efeito mágico justifica-se apenas através dos poderes da mente. A Psicologia ajuda o mago e pode tornar-se inclusive útil para a prevenção de problemas emocionais futuros, decorrentes da prática mágica (a famosa Psicoterapia). Mas isso não significa dizer que o mago pode fazer “o que lhe convir”, que as entidades evocadas num ritual “são aspectos profundos do subconsciente”, ou que “o mago é seu próprio deus”. Essas são lorotas divulgadas no meio esotérico brasileiro, que só levam à ruína do praticante de magia. Seguir ou não esse raciocínio mentalista moderno e deturpado, é um direito de cada um; porém, parafraseando Paulo (Cor, 6) em sua carta aos Coríntios: “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (1 Cor, 6).


REFERÊNCIAS:


HYATT, Christopher in LISIEWSKI, Joseph. Cerimonial magic and the power of evocation. New Falcon publications. Arizona: 2008.


NOTAS


Apesar de ser uma “analogia de Deus”, o homem não é igual a Deus, e portanto não é uma divindade autônoma como o pensamento moderno sugere.


“O Universo é mental”. Mas será que a magia também é apenas uma ilusão de nossa mente?


Nem todas as operações de Magia Cerimonial fazem uso de recursos necessariamente psicologizados. Na foto acima, exemplo de círculo mágico amplamente usado em operações de Magia Cerimonial Tradicional. Na prática de Teurgia, nem todos os efeitos mágicos são necessariamente oriundos da psique do operador.


Helena Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica. A Teosofia de Blavatsky foi a principal responsável por popularizar conceitos orientalistas na Europa no final do século 19, como a yoga. Ela também foi uma das responsáveis pela “psicologização” da magia e da astrologia ocidentais.


A popularização da Psicologia no século 19 fez com que as abordagens psicológicas ficassem cada vez mais comuns nas Ordens Iniciáticas da Europa. Na foto acima, o famoso psicólogo Carl Jung, usado atualmente como “base científica” em muitas instituições esotéricas.


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