segunda-feira, 7 de outubro de 2024

O Gnosticismo e seus duelos teológicos contra o Cristianismo


Nos últimos anos, o interesse pelo gnosticismo cresceu bastante no Esoterismo mundial (e consequentemente no Brasil). Muitas são as Ordens iniciáticas que carregam o termo “gnóstico” em seus nomes (para dar um “charme” a mais em seus títulos), assim como as “fraternidades” que afirmam celebrar “missas gnósticas” ou ter “ações gnósticas” em seu rol de atividades.


Nesse novo interesse do Esoterismo Moderno pelo Gnosticismo (iniciado no século 19), o próprio uso do termo “gnóstico” virou uma espécie de “título de nobreza espiritual”: algo semelhante ao que já é feito com o termo “rosacruz”. Nesse caso, ser “gnóstico” ou “rosacruz” se tornou sinônimo de “seriedade espiritual” ou de “confiabilidade” (quando se trata de Instituições Iniciáticas). Por isso, apesar de tantas Ordens esotéricas modernas ainda se classificarem como “gnósticas” ou “rosacruzes”, uma dúvida ainda persiste: vale a pena estudar o Gnosticismo? Em que consiste a filosofia gnóstica? Trata-se de alguma religião? Uma linhagem mágica? Uma vertente iniciática autônoma? Uma corrente espiritual cristã?


A resposta a todas essas perguntas é trabalhosa e confusa: o Gnosticismo é apresentado na espiritualidade moderna como uma mistura (muitas vezes sem critérios) de religião e filosofia. Porém, o fato de ser valorizado no Esoterismo Moderno, não o torna necessariamente algo “bom” ou “confiável” (ao menos não da forma como a modernidade o interpreta).


A definição de Gnosticismo é muito ampla (e às vezes confusa), pois abrange conceitos não apenas espirituais, mas também filosóficos, sociais e culturais. Por isso, antes de dizermos exatamente o que é o Gnosticismo, precisamos definir primeiro o que significa o termo “gnose”, para que possamos compreender em que se sustenta o Gnosticismo, como fenômeno cultural e espiritual.


O que é “gnose”?


A palavra “gnose” (ou gnosis, no idioma grego) é um tipo de saber muito difundido na antiguidade, que sustenta toda a estrutura espiritual e filosófica do Gnosticismo. Traduzido do grego, o termo “gnosis” significa simplesmente “conhecimento”. Esse conhecimento é diferente do conhecimento intelectual e acadêmico; trata-se aqui de um saber espiritual, intuitivo, adquirido de forma puramente espiritual através de “experiência direta”, e não através de meios mundanos (como a leitura, por exemplo).


Como se vê, apesar do significado do termo gnosis não se referir necessariamente a algo herético, a interpretação que o Esoterismo Moderno dá a esse termo ganha contornos heréticos quanto à forma com que o conhecimento espiritual é adquirido pelo Gnosticismo. Se analisarmos bem a etimologia da palavra “gnosis“, veremos que, de certa forma, a experiência espiritual de todo cristão o leva a buscar um conhecimento espiritual pessoal (gnose) que comprove a existência de Deus. Todavia, essa experiência pessoal cristã não é necessariamente obtida de maneira individual, visto que o Cristianismo não é uma religião exclusivista e nunca defendeu uma superioridade espiritual de seus adeptos, mas sim uma religião de caráter universalista, que apresenta a palavra de Cristo ao alcance de todos, independente de sua etnia, cultura ou mesmo história de vida (AQUINO, 2001).


Por outro lado, o gnóstico é alguém que procura sua salvação espiritual através de alguma experiência espiritual objetiva, direta, e se possível, sem a ação de intermediários. Isso dá ao Gnosticismo uma abordagem essencialmente egoísta da salvação, transformando a espiritualidade universalista do Cristianismo numa espécie de “espiritualidade elitista”. Como essa experiência espiritual gnóstica tem um caráter individual (e não coletivo, como no Cristianismo), e é também de natureza intransferível (não pode ser compartilhada com outras pessoas), o Gnosticismo entende que o ser humano não pode entender a divindade através de nenhuma intermediação.


Segundo Pagels (apud HOLLER, 2005) a gnosis “pode ser traduzida como insight, pois gnose envolve um processo intuitivo que abarca tanto o conhecimento de si próprio como o conhecimento das realidades últimas, divinas”. (PAGELS apud HOELLER, 2005, p.16). Isso faz com que o Gnosticismo simplesmente adquira um caráter confuso, uma vez que defende posturas espirituais individualistas e até certo ponto egoístas, justificando essas posturas na pretensa busca de uma revelação divina que não pode ser compartilhada e nem mesmo obtida de forma coletiva.


Para os adeptos do Gnosticismo, a gnose pessoal não pode ser simplesmente inventada: ela tem de ser uma experiência autêntica e descentralizada. Apesar de ser uma experiência individual e intransferível, o gnóstico não pode simplesmente inventar experiências místicas sem realmente as ter obtido, pois dessa forma ele não iria obter o conhecimento espiritual que deseja: o conhecimento sobre o “verdadeiro deus”. Do ponto de vista gnóstico, a “verdadeira divindade” não pertence a este mundo, e por isso o conhecimento sobre ela também não está presente aqui. Dessa forma, para os gnósticos a experiência espiritual não seria uma descoberta simplesmente religiosa, uma vez que para eles a Fé por si só não pode oferecer a “verdadeira gnose” (conhecimento) que o buscador procura, já que esse conhecimento não pode ser obtido nesse mundo. E é justamente aqui que Gnosticismo e Cristianismo começam a se chocar diretamente (do ponto de vista teológico).


O gnóstico defende uma ideia de “fé racionalizada”: para ele é preciso ter Fé no “verdadeiro deus”, sabendo que essa divindade e o conhecimento a respeito dela não estão presentes neste mundo. Diferentemente do cristão (que defende a ideia de que a Fé é um dos motores de toda ação espiritual, e de que Deus-Pai, que é Todo-Poderoso, compadece-se do sofrimento do ser humano), o Gnosticismo propõe a seus adeptos uma fé fria e insensível (tão insensível quanto seu conceito sobre a vida, a existência humana, e a natureza de sua própria divindade “verdadeira”). Para os gnósticos, ter “fé” é simplesmente tomar consciência de que nada neste mundo “salva”, e que tudo que provém dele (até as boas obras) são vãs e inúteis (o que faz com que os gnósticos, assim como os protestantes, recusem a prática da caridade).


De certa forma, o pensamento gnóstico não está de todo errado (não no que diz respeito à natureza do mundo físico): nada neste mundo é feito para durar ou permanecer. A existência no mundo físico é sempre sujeita a impermanência e imperfeição: tudo que se manifesta neste plano está sujeito ao ciclo de “nascer-crescer-definhar”. Esse é mais um dos motivos para que o ser humano se conscientize de que a estadia neste mundo deve ser orientada à busca por Deus e sua sabedoria. Por isso mesmo, Cristo disse em seu célebre sermão da montanha, que o homem não deveria “juntar tesouros nesse mundo, onde as traças o comem e a ferrugem tira seu brilho” (MT, 6, 19).


Porém, o que é um fato quase incontestável para a Teologia cristã, passa a ser visto pelo Gnosticismo como uma verdade “dúbia”: ainda que o mundo seja impermanente e imperfeito, ele é parte da Criação e seu estado decaído não provém da Vontade de Deus (que é Eterno e Onipotente), mas sim da queda primordial do homem celeste, que com a ferida do pecado corrompeu a Criação e a transformou na imperfeição que ela é agora. O que Gnosticismo faz é tentar justificar o erro do Homem invertendo toda a lógica da Metafísica cristã, e transferindo para Deus-Pai a responsabilidade pelo estado de miséria em que o mundo se encontra.


Se aproveitando da imperfeição do mundo e da Criação (mas ignorando o fato de que essa imperfeição provém da queda do ser humano de seu estado divino), o Gnosticismo vende uma visão fria do conceito de Fé, e um discurso de pessimismo e melancolia a respeito da vida. Isso faz da filosofia gnóstica uma heresia confusa, mas mascarada com ideais espirituais aparentemente “profundas” (cheios de conceitos que misturam verdades a deturpações e críticas pessimistas), meramente sincretizados. Por isso, o Gnosticismo é em si uma heresia (assim como Protestantismo), já que na prática as heresias são corruptelas da verdade tomadas como interpretações egoístas, e cuja conclusão não foi refletida coletivamente (AQUINO, 2001).


Para os gnósticos, por viverem em um mundo imperfeito e maléfico, sua “fé” deve se resumir a tomar consciência da imperfeição deste mundo e buscar se libertarem dele a todo custo (mesmo que renunciando a vida). Assim, a “fé gnóstica” não pode ser simplesmente passiva, pois não poderia nutrir esperanças por nada que fosse minimamente proveniente deste plano de existência. Assim, a busca pela gnosis envolveria ação (para se libertar do mundo) e uma busca egoísta de experiências espirituais, já que, segundo Hoeller (2005):


A fé é um caminho bem diferente do conhecimento. […] Um certo tipo de fé (pistis) é reconhecido como válido no Gnosticismo, mas a fé na própria experiência, uma lealdade duradoura sentida em relação à sua experiência de conhecimento interior e libertador. (HOELLER, 2005, p.20).


Agora que entendemos um pouco do que significa o termo “gnose” para o Gnosticismo, e como a interpretação deste termo faz o Gnosticismo se chocar diretamente contra o Cristianismo (uma vez que interpreta a Fé como algo egoísta e melancólico), podemos tentar entender o que é o Gnosticismo propriamente dito, como ele se manifestou no mundo antigo, que tipos de relações manteve com outras grandes religiões (especialmente o Cristianismo) e quais suas demais características.


O Gnosticismo como movimento espiritual e filosófico


“Gnosticismo” é o nome dado a um conjunto de filosofias, seitas, comunidades e grupos que adotaram a busca pela gnosis como base de suas práticas espirituais durante os séculos I, II e III. É preciso deixar claro (a partir da análise anterior que fizemos do termo “gnose”), que o Gnosticismo não é cristão (apesar de muitos gnósticos se autodenominarem estrategicamente ao longo da história, como “verdadeiros cristãos”).


É fato que historicamente, o Gnosticismo compartilhou ideais cristãos em seu sistema cosmológico. Isso aconteceu porque ele foi por si só, uma corrente filosófica/espiritual absolutamente sincrética, que misturou elementos de diversas religiões da antiguidade para conquistar uma popularidade maior e chamar a si um apelo social mais amplo. Porém, é preciso ressaltar que mesmo usando conceitos cristãos em sua cosmologia, a interpretação dada pelo Gnosticismo a esses conceitos era primordialmente diferente da interpretação dada pelo Cristianismo (incluindo a própria interpretação gnóstica das figuras de Cristo e da Virgem Maria).


A aproximação entre Gnosticismo e Cristianismo ocorreu após a abordagem gnóstica de correntes filosóficas da antiguidade que influenciaram diretamente a doutrina cristã (como o Neoplatonismo). Nesse sentido, podemos entender que as várias filosofias espirituais da antiguidade (e o Gnosticismo está incluso dentre elas) se influenciavam mutuamente, e emprestavam ou compartilhavam conceitos entre si (FRANGIOTTI, 1995). Todavia, nem sempre essas influências mútuas significavam necessariamente uma base comum dessas correntes espirituais; e é por isso que o Gnosticismo parece ter tantos “pontos em comum” com o Cristianismo.


As raízes conhecidas Do Gnosticismo vêm do Oriente Médio, mais precisamente da Pérsia, através dos ensinamentos do Zoroastrismo (seguidores de Zoroastro). O pensamento gnóstico persa originou duas escolas de pensamento: o Mandeísmo e o Maniqueísmo. Essas escolas gnósticas persas tinham pontos de vista separados da doutrina judaico-cristã, e por isso não acreditavam em nenhuma figura sagrada judaica, cristã ou muçulmana (Moisés, Jesus de Nazaré ou Maomé), apesar dos mandeístas guardarem admiração e respeito pela figura de João Batista. Para o Maniqueísmo, “Bem” e “Mal” eram conceitos que se equivaliam e estavam em eterna disputa pelo domínio da Criação, o que geraria uma dualidade extrema em praticamente todos os aspectos do plano físico. Por conta disso, o termo “maniqueísta” ainda é usado atualmente para descrever pessoas que tenham opiniões simples e divididas em polos opostos e antagônicos.


Com o intercâmbio cultural entre os povos da antiguidade nos séculos II e III, o pensamento gnóstico se espalhou por diversas culturas e chegou ao mundo grego, sírio e egípcio (sudeste europeu, região do Cáucaso e Palestina), onde diversas outras correntes filosóficas e espirituais já estavam presentes. Ali, o Gnosticismo encontrou terreno fértil para absorver todos os conceitos que julgasse propícios a sua “estabilização filosófica”, já que passou a tomar contato com religiões e correntes de pensamento já estabelecidas na região, o que influenciou diretamente seus próprios conceitos sobre o universo, a Criação e a própria divindade.


Se pararmos novamente para refletir sobre a interpretação etimológica do termo “gnosis”, veremos que a essência do Gnosticismo é justamente defender a experiência espiritual como algo necessariamente individual (egoísta). Para os gnósticos, o conhecimento da divindade só poderia ser obtido de forma direta, o que nos leva a concluir que todas as religiões estabelecidas (incluindo o Cristianismo) tem em si uma certa necessidade de promover uma gnose a seus adeptos (já que a Fé é usada como uma das chaves da salvação na maior parte das religiões formais). Todavia, apesar de ter esse “ponto em comum” com as demais religiões, o Gnosticismo é explicitamente elitista (mais elitista até que outras religiões já tidas como elitistas na antiguidade), por defender um conceito de salvação exclusivista que promove uma separação grotesca entre os adeptos da filosofia gnóstica (chamados de “perfeitos” em algumas comunidades) e os não-gnósticos.


Por ter essa característica comum às grandes religiões, o Gnosticismo rapidamente expandiu suas abordagens, encaixando interpretações de autores e características de outras correntes filosóficas e religiosas. Essa possibilidade de encaixe filosófico e espiritual fez com que o Gnosticismo rapidamente se misturasse com diversas religiões do Oriente Médio (guardando aspectos e crenças dessas religiões) ou variasse suas convicções filosóficas e espirituais de acordo com as interpretações dos autores que escreviam sobre a experiência pessoal do conhecimento espíritual. Isso tornou (e ainda torna) o estudo do Gnosticismo confuso, já que era comum durante os primeiros séculos da era Cristã, muitas comunidades judaicas, cristãs, gregas ou sírias manifestarem uma forma própria de pensamento gnóstico. Também era frequente que algumas comunidades possuíssem uma religião formal estabelecida, mas usassem o Gnosticismo como “filosofia de suporte” ou como uma “maneira mais filosófica” de aplicar os conceitos de sua própria religião.


Isso fez com que diversas formas de Gnosticismo surgissem entre os séculos I, II e III, todas seguindo características comuns à religião da qual extraiam seus conceitos (ou do autor gnóstico que mais respeitavam). Foi o caso do Gnosticismo Setiano (mais próximo ao Judaísmo), o Gnosticismo Valentiniano (que seguia uma visão cristianizada de Valentim), ou o Gnosticismo Basilidiano (que seguia uma visão cristianizada de Basilides). Esse foi o caso da relação entre Gnosticismo e Cristianismo: tratava-se na prática de uma miscigenação espiritual causada por diversos fatores na antiguidade (falta de um corpo doutrinário claro e coeso por parte do Cristianismo; ignorância filosófica/espiritual dos membros das comunidades nas quais o Gnosticismo se infiltrava; comodidade e aparente semelhança de “doutrinas”, etc.).


Com uma aparente facilidade de “adaptar” conceitos de outras religiões (na verdade “fagocitar” esses conceitos), e se assemelhando mais a uma filosofia que a uma religião estabelecida, foi fácil para o Gnosticismo absorver elementos de religiões distantes (e aparentemente pouco cogitadas para sofrer algum tipo de sincretismo). Foi o caso também do sincretismo entre Gnosticismo e Hinduísmo, religião que também é descentralizada do ponto de vista do culto (há cultos específicos de adoração para várias divindades).


Assim como o Protestantismo, o Gnosticismo é estrategicamente apresentado por seus seguidores como “o verdadeiro Cristianismo”, ou como o “Cristianismo primitivo”. Essa é uma falácia relativamente simples de ser desconstruída, pelo simples fato de que, como vimos até agora, Cristianismo e Gnosticismo possuírem bases doutrinais e teológicas essencialmente diferentes em relação a Deus, à Criação e à forma como enxergam a existência humana. Como já vimos, a origem do Gnosticismo nem sempre teve ligação com a cultura Judaico-Cristã, mas essa classificação atual feitas pelos gnósticos é uma presunção levantada a partir do fato de que ocorreu uma grande interação entre cristãos e gnósticos (especialmente nos primeiros séculos de expansão do Cristianismo). Porém, essa interação foi fruto da ausência de um corpo doutrinário estabelecido pelo Cristianismo (que ainda não estava estabelecido formalmente na Europa como instituição religiosa, até o século III).


Para os gnósticos da atualidade, essa interação ocorrida entre cristãos e gnósticos foi uma experiência “rica”, e que “fundiu” (em sua visão) o Gnosticismo com o Cristianismo, dando origem ao que conhecemos atualmente como “Gnosticismo Cristão” ou “Cristianismo Gnóstico”, difundido por professores gnósticos dos séculos I e II como Lêucio Carino, Valentim, Basilides e Marcião.


De fato, o nível de ignorância filosófica e religiosa das populações nas quais o Gnosticismo se infiltrava era tão grande, que isso facilitava a expansão da filosofia gnóstica no sudeste europeu: não havia um corpo dogmático cristão que diferenciasse a abordagem gnóstica do Cristianismo, e desmascarasse a estratégia de expansão e sincretismo da doutrina gnóstica. De acordo com Hoeller (2005), se algum habitante do sudeste asiático no século III fosse questionado se era gnóstico ou cristão, ele responderia “sou os dois”, ou simplesmente diria: “não sei o que é ser gnóstico, só pratico minha religião”.


O grau de confusão doutrinária foi tão grande entre Gnosticismo e Cristianismo nos século I e II, que até mesmo os sacramentos das iniciações gnósticas (nas comunidades onde o Gnosticismo era adotado como religião) eram próximos aos Sacramentos cristãos (alguns idênticos como Batismo, Crisma e Eucaristia). Essa similitude interessava ao Gnosticismo: para a filosofia gnóstica, era mais fácil expandir-se de forma “mutualista” (aproveitando a popularidade de religiões já estabelecidas) que propor um corpo novo de ensinamentos. Assim, até mesmo muitos dos livros sagrados gnósticos eram comumente chamados de “evangelhos”. Isto é comprovado nos próprios duelos teológicos que São Paulo teve no sudeste europeu, quando enfrentou mestres gnósticos nas comunidades que visitou durante a expansão da mensagem cristã fora da Palestina (que está registrado nas Cartas Paulinas do Novo Testamento): era comum que os apóstolos de Cristo como João, Tiago e até mesmo Paulo, se queixassem em seus livros bíblicos das estratégias de “camuflagem social” que os gnósticos promoviam nas comunidades indo-europeias do século I, promovendo-se como cristãos mas divulgando uma doutrina difusa que confundia a população dessas comunidades (FRANGIOTTI, 1995).


De acordo com Hoeller (2005) o objetivo dos sacramentos gnósticos era essencialmente diferente dos objetivos dos sacramentos cristãos (especialmente dos sacramentos Católicos). Isso deixa claro como o Gnosticismo interpretava de maneira diferente (e até distorcida) os Sacramentos cristãos, uma vez que:


O objetivo de um sacramento gnóstico não é uma mera santificação temporária, como na doutrina católica romana da graça sacramental, mas uma transformação total, uma mudança na essência da divindade. O gnóstico perfeito não é um seguidor de Cristo, mas um ser humano deificado (transformado em divindade); ele é um outro Cristo. (HOELLER, 2005, p. 93. Grifo nosso).


Vemos nas palavras de Hoeller, que os sacramentos gnósticos adotados pelas comunidades nas quais o Gnosticismo era trabalhado como religião, beiravam a mistura de presunção e soberba espiritual: para os gnósticos “perfeitos” (iniciados), não era Cristo quem deveria ser adorado ou buscado, mas sim a deificação do ser humano através da “libertação das amarras do mundo” (rejeição à natureza e a tudo que fosse relacionado à Criação, que também foi concebida com a participação do próprio Cristo!). Isso faz das ações espirituais do Gnosticismo, além de heréticas, também blasfemadoras, uma vez que contrariam a natureza de Cristo como co-criador do mundo, além de defenderem uma espiritualidade humanista, egoísta e centrada unicamente nos interesses do ser humano, e não na glorificação de Deus, que é Eterno e Onipotente (AGOSTINHO, 1996).


Apesar de ter um intercâmbio (apropriação de conceitos) com o Cristianismo, o Gnosticismo nunca teve uma teologia organizada e sistemática como a teologia cristã. Os próprios gnósticos da antiguidade não se preocupavam em organizar seus conhecimentos, leituras, práticas ou sacramentos de forma a estruturar uma Liturgia. Isso acontecia porque os gnósticos interpretavam a Liturgia cristã como “proveniente deste mundo”: um mero instrumento de adoração às imperfeições deste mundo… que utilizava ferramentas deste mundo, como instrumentos, parafernálias, etc, que prenderiam mais ainda o homem às “amarras” da Criação.


Os gnósticos pensavam que a organização teológica e litúrgica não conduziria à gnosis pessoal (já que seriam estudos apenas religiosos ligado ao mundo físico). Por isso, por mais que os gnósticos da atualidade considerem o Gnosticismo como “o verdadeiro Cristianismo” (ou como uma espécie de “Cristianismo primitivo”), suas semelhanças com o Cristianismo (como no caso dos Sacramentos cristãos) guardam também diferenças enormes, que desmascaram essa pretensa “base comum” que os gnósticos querem defender. A ritualística gnóstica era pobre liturgicamente, e estava sempre preocupada com a libertação do plano físico…ao passo que para o Cristianismo, a Liturgia é algo divino, transmitido pelo próprio Cristo em pessoa como forma de render adoração a Deus-Pai (AGOSTINHO, 1996).


O Gnosticismo como inimigo do Cristianismo e da Metafísica Católica


O Gnosticismo é essencialmente uma doutrina dualista, que defende a existência de 2 planos de existência diferenciados: um plano material, físico (onde o ser humano habita preso em sua ignorância), e um plano divino totalmente espiritual, que está além do universo e de tudo que se conhece na Criação (onde habita a “verdadeira divindade” gnóstica, que é benevolente e misericordiosa). Para os gnósticos, o mundo físico e a Criação são controlados por uma “divindade menor”, enganadora, maléfica e aprisionadora (chamada comumente de “Demiurgo”), que mantém o ser humano preso à sua Criação e à sua própria ignorância. Assim, para os gnósticos cabe ao Homem procurar obter o conhecimento direto do “verdadeiro deus” e se libertar de sua ignorância para quebrar as algemas espirituais do Demiurgo.


Quando se fala em Gnosticismo, é importante deixar claro a você leitor, que a palavra-chave dessa corrente espiritual é “desprendimento”: o gnóstico tem em mente que o “verdadeiro deus” não pertence a este mundo, e que nada que existe neste mundo tem ligação com a “verdade” gnóstica. Este mundo é obra de uma divindade menor, limitada e iludida. Essa divindade menor seria a responsável pela criação do mundo físico, pela manutenção desse mundo e pelo sofrimento que o Homem passa nesse plano de existência. Assim, a verdadeira missão do gnóstico é única e exclusivamente se libertar de seus sofrimentos físicos e retornar ao plano espiritual onde reside “o verdadeiro deus” gnóstico, conhecido por muitas comunidades gnósticas através da sigla IAO.


Sob o ponto de vista gnóstico, se o mundo físico é imperfeito, ele o é porque foi criado por uma entidade também imperfeita (motivo pelo qual é conhecida como “Demiurgo”, que significa “meio construtor”). No mundo físico nada é eterno, e tudo está sujeito a um ciclo de nascimento, crescimento, queda, morte e renascimento. Esse ciclo é controlado pelo Demiurgo e mantém o ser humano preso numa roda de sofrimento incessante. Por isso, a primeira grande missão gnóstica é tornar o homem consciente de seu estado de prisão, para que inicie sua jornada de libertação.


Esse raciocínio gnóstico é essencialmente herético, haja vista não encontrar eco em nenhum aspecto teológico do Cristianismo. Pior que isso: em suas próprias palavras, Cristo nos deixa claro que Ele e o Pai “são um só”, e que o Pai Eterno criou o mundo tal qual existe, já que nada ocorre na Criação sem que Deus assim o saiba, pois Ele dá conta “de qualquer fio de cabelo que nasce ou cai do homem” (LC, 12, 7).


O raciocínio gnóstico de que o “verdadeiro deus” está além desse mundo, e de que toda a Criação foi feita por uma divindade “menor, arrogante e iludida”, cria uma contradição para a própria filosofia gnóstica. Isso ocorre porque como o Gnosticismo não se apresentava como uma religião e sim como uma filosofia espiritual, que se expandia através do sincretismo com elementos de outras religiões e filosofias (de forma muitas vezes incoerente). Assim, defender a existência de duas divindades para justificar os problemas do mundo é simplesmente negar a Teologia Judaico-Cristã (ao mesmo tempo em que o Gnosticismo sincretizava elementos dessa mesma Teologia!), que tem por base a premissa única de que Deus-Pai é o criador do mundo e de tudo enquanto nele existe.


Essa visão de mundo e da divindade (cosmologia) frequentemente faz com que o pessimismo do Gnosticismo fique visível em seu discurso, e seja considerado uma de suas características principais. Para o gnóstico a visão cosmológica cristã (que culpa o ser humano por seu sofrimento) é uma “estratégia do Demiurgo” para prender ainda mais o ser humano ao plano físico, o “convencendo de seus erros”. Isso deixa ainda mais claro que o discurso gnóstico na verdade não tem nada de diferente do discurso das maiores heresias anti-cristãs já manifestadas no Ocidente: trata-se de um discurso imanente, com uma pseudo-preocupação transcendente que sustente suas justificativas ao Liberalismo e ao Relativismo promovidos em torno do comportamento humano (FRANGIOTTI, 1995).


Segundo Hoeller (2005), “a maioria dos seres humanos possui uma forte necessidade psicológica de perceber a vida como benigna em algum sentido e potencialmente feliz” (HOELLER, 2005, p. 29). E isso ocorre porque Deus colocou no homem parte de sua própria essência no ato da Criação (quando esta ainda tinha um estado de perfeição que não se comparar ao estado decaído em que o homem se encontra agora).


O que o Gnosticismo tenta é assustar o ser humano tornando a Criação algo também “assustador”, na tentativa de retirar toda a esperança dos homens em Deus e em sua Criação, que mesmo em estado decaído pode ser utilizada como primeiro estágio de retorno do ser humano a seu estado de condição divina (AQUINO,2001).


Aos olhos do cristão, este mundo não é sua casa; porém, por mais que não seja a morada eterna prometida por Cristo, o mundo é o local onde a transformação do ser humano deve ser iniciada. E essa transformação deve ser feita não negando-se a Criação e a vida, mas como disse São João, “estando-se no mundo, vivendo-se nele da melhor forma possível, mas não sendo deste mundo” (JO, 17, 1-11). Assim, o cristão sempre tende a querer enxergar algo de bom em tudo (mesmo que essa bondade seja apenas aparente).


Já para o gnóstico, a bondade desse mundo não tem valor algum porque é passageira, e sendo assim, não há sentido em se ter Fé e esperança em algo passageiro. Assim, o gnóstico até pode eventualmente praticar atos caridosos (como uma forma de demonstrar piedade), mas a forma como encara a prática da caridade é diferente: ele não se deixa guiar pelo sentimento de que sempre deve ajudar os mais necessitados. Para um gnóstico, a melhor ajuda que alguém pode dar à outra pessoa é mostrar-lhe a chave de sua própria “libertação do sofrimento” (ao invés de sempre ser caridoso ou bondoso, o que para o gnóstico equivaleria a manter o semelhante no sofrimento e na dependência de ajuda alheia).


A negação da Criação fazia com que algumas comunidades gnósticas da antiguidade rejeitassem até mesmo a vida (isso mesmo, a geração de vida!): algumas comunidades que adotavam o Gnosticismo como religião, proibiam seus iniciados (os “perfeitos”) de terem filhos, sob a alegação de que gerar filhos seria uma forma de “perpetuar a criação do Demiurgo” e de “manter o cativeiro espiritual do ser humano”. De acordo com Agostinho (1996) era comum até mesmo que a prática do aborto fosse realizada por mulheres adeptas da filosofia gnóstica, que acreditavam estar fazendo algo “benéfico” espiritualmente aos fetos (e a si mesmas!). Obviamente, muitas vezes esse tipo de prática terminava por causar também a morte das próprias mães (algo que aparentemente não incomodava os gnósticos, uma vez que a morte representava pra eles a possibilidade concreta de “libertação deste mundo”).


Todavia, apesar de ter uma visão herética e tenebrosa contra os preceitos cristãos, não é apenas o pessimismo em torno da Criação que faz do Gnosticismo um inimigo teológico do Cristianismo. Outros três fatores fazem com que o Catolicismo (Romano e Ortodoxo) considere o Gnosticismo como uma das maiores heresias à cristandade (ao lado do Protestantismo):


1º fator: A deturpação dos conceitos cristãos: a grande mistura filosófica que o Gnosticismo promoveu com o Cristianismo nos séculos I, II e III, fez com que muitos conceitos cristãos fossem deturpados pela visão gnóstica de mundo. Isso fez com que muitos cristãos cometessem erros doutrinários, confundindo o Gnosticismo com o Cristianismo (uma vez que a doutrina cristã dos primeiros séculos ainda não possuía um corpo teológico unificado e definido);


2º fator: A ausência de intermediários: o egoísmo gnóstico se expressa de forma mais visível em sua ansiedade por estimular experiências espirituais solitárias, sem que a coletivização dessa experiência gere um sentimento de piedade e caridade (como ocorre no Cristianismo). Assim, a ausência de intermediários pregada pelo Gnosticismo busca no fundo descentralizar a influência Judaico-Cristã dentro da Tradição Espiritual Ocidental, se opondo especialmente ao Catolicismo em prol de uma pretensa gnose pessoal que não teria influência “de nada deste mundo”;3º fator: A presença de uma divindade distante e fria: para o Catolicismo, Deus é uma divindade pessoal, que mantém contato com o ser humano e demonstra por ele piedade e compaixão (AGOSTINHO, 1996). Porém, para o Gnosticismo o “verdadeiro deus” é uma divindade impessoal, fria e distante, que não se mistura com os assuntos deste mundo.


Para o Cristianismo, o sofrimento do ser humano também faz Deus sofrer, pois não foi isso que Ele planejou ao Homem quando do momento de sua Criação. Deus não quer que seus filhos sofram e isso o transforma quase “em outra pessoa”. Assim, a ideia gnóstica de que Deus está “além deste mundo” e de que este mundo é governado por uma divindade “menor”, é um absurdo do ponto de vista teológico cristão.


Conclusão: vale a pena realmente estudar Gnosticismo?


Com base em tudo que analisamos neste artigo sob o Gnosticismo, a resposta a esse questionamento é simples: depende do objetivo que você tiver, ao estudar a filosofia gnóstica.


Mesmo com graves erros doutrinais, e com posicionamentos claramente heréticos, estudar o Gnosticismo pode ser uma oportunidade ímpar a todos aqueles que desejam se aprofundar nos estudos da Tradição Espiritual Ocidental…por um motivo simples: o Gnosticismo sincretizou (de maneira muitas vezes pouco ética) elementos de diversas religiões já consolidadas no Ocidente, nos séculos II e III da Era cristã. Por isso, estudar a filosofia gnóstica pode dar ao buscador, uma senso teológico apurado e fazê-lo entender como os adversários teológicos e filosóficos do Cristianismo utilizam suas estratégias de enfrentamento à doutrina de Cristo.


O Gnosticismo não pode ser considerado somente uma religião (porque conviveu abertamente com outras religiões) ou mesmo uma simples filosofia (porque em algumas comunidades da antiguidade ele desempenhava o próprio papel de religião, ou já haviam outras correntes filosóficas em ação). O Gnosticismo é ao mesmo tempo religião e filosofia, pois conviveu abertamente com outras religiões, se aproveitando da popularidade delas pra divulgar (de forma muitas vezes “secreta”) seus “ensinamentos”.


Todavia, se o objetivo do estudante for aderir religiosamente ao Gnosticismo (através de alguma instituição iniciática moderna), este estudo passa a não ser recomendável. Por mais que a Tradição Ocidental tenha inúmeros exemplos de ideias com clara influência gnóstica, isso não significa que os buscadores sinceros devam aderir a essa filosofia herética de forma religiosa (especialmente se o buscador for cristão, já que o Gnosticismo choca-se diametralmente à Teologia cristã).


Estudar um adversário teológico/filosófico vale a pena para se conhecer as estratégias deste importante adversário cristão. Este é sem dúvida um estudo árduo, muitas vezes confuso, e absolutamente necessário a todos aqueles que desejam se aprofundar na Tradição Ocidental. Todavia, estudar uma vertente como o Gnosticismo visando a adesão religiosa a ela, é uma decisão grave (mas que está à disposição de qualquer um, a partir da efetividade do conceito de livre-arbítrio tão defendido no Cristianismo).


O Gnosticismo é descentralizado (do ponto de vista religioso), e suas manifestações na antiguidade tomaram vários formatos diferentes (assim como o Hinduísmo toma na atualidade). O próprio termo “gnóstico” não tinha o caráter que tem atualmente, e o sincretismo que foi feito entre o Gnosticismo e as diversas correntes espirituais e filosóficas dos primeiros séculos, fez com que não se haja um conceito unificado do que significa ser “gnóstico”.


Outro ponto a se considerar é que como religião, o Gnosticismo é confuso e sem respaldo teológico e litúrgico a seus adeptos. Isso acontece por conta da desvalorização que os gnósticos faziam da Liturgia e da Teologia (enquanto áreas de aprofundamento cristão). Isso pode fazer com que nem todos os estudantes de Esoterismo Moderno que procuram o estudo do Gnosticismo realmente suportem as ideias relativizadas e pessimistas propagadas na filosofia gnóstica. Na verdade, pouquíssimos desses “curiosos” realmente as suportam: no Brasil, enquanto muitas Ordens iniciáticas se dizem “gnósticas”, muitos estudantes insistem em querer estudar Gnosticismo mas não toleram conceitos gnósticos como “desprendimento” e “recusa à vida”.


Assim, enquanto o Gnosticismo prega que o ser humano deve “se libertar das algemas desse mundo” e rejeitar tudo que estiver relacionado ao plano físico (inclusive o “ocultismo” dos séculos 19 e 20, típico do Esoterismo Moderno!), os estudantes brasileiros de esoterismo preferem “praticar de tudo um pouco”, e estudar Gnosticismo “aos poucos”, através de “pura curiosidade”, sem abrir mão do estudo de magia. Falando de forma simples: o Gnosticismo não é uma filosofia espiritual confiável; e soa como algo “rígido e pessimista demais” à grande parte dos buscadores da atualidade, que o buscam por mera curiosidade mas não querem seguir toda a filosofia gnóstica à risca.


O renascimento do interesse pelo Gnosticismo a partir do século 19, fez com que um grande número de “Ordens gnósticas” surgisse ao redor do mundo. Diversos movimentos esotéricos passaram a adotar o termo “gnóstico”, caracterizando o que pode ser classificado como o “Neo-Gnosticismo”. Nem sempre as Ordens Neo-Gnósticas parecem ter ligação aparente com a filosofia gnóstica dos séculos II ou III (ou com alguma corrente gnóstica clássica); outras vezes, a ligação é mais recente e já caracteriza outras reformulações filosóficas e espirituais. O Brasil possui representações conhecidas de instituições espiritualistas que se classificam como “gnósticas”, a exemplo do movimento gnóstico samaeliano (representado pelas diversas instituições que caracterizam essa vertente gnóstica), e a Escola Internacional da Rosacruz Áurea (ou Lectorium Rosicrucianum), a única instituição rosacruz da modernidade a adotar um sistema iniciático completamente gnóstico.


Ao estudante sincero da Tradição Espiritual Ocidental, que deseja fazer pesquisas sobre Gnosticismo, fica a dica: não se iluda. O Gnosticismo não é uma via espiritual recomendável a quem é cristão, ou mesmo a quem busca aprofundar estudos na Tradição do Ocidente. Trata-se de uma verdadeira “colcha de retalhos” filosófica, espiritualmente pessimista, com conceitos aparentemente “profundos” e rígidos, mas com pouca teologia própria e quase nenhuma Liturgia que ofereça a seus pesquisadores uma base de práticas coesa. Além disso, o Gnosticismo tem uma visão cosmológica que pode ser considerada dura, se comparada às visões otimistas dos movimentos espirituais da Nova Era.


Saiba bem o que você quer obter do Gnosticismo, caro leitor, e saiba também o que irá encontrar em sua busca. Não se estuda nada “por curiosidade”…e em se tratando de Gnosticismo, essa frase ganha ainda mais veracidade. Não perca o seu tempo estudando aquilo que não pretende aderir (ou que nem vale a pena ser aderido); da mesma forma, não faça instituições iniciáticas (por piores que sejam) perderem tempo com seu interesse passageiro ou superficial.


Se sua decisão for realmente estudar a filosofia gnóstica, estude o Gnosticismo pelo que ele é: uma heresia anti-cristã. A partir desta constatação, faça comparações constantes entre as interpretações gnósticas (confusas e relativizantes) e a Liturgia e a Teologia cristã. Faça deste estudo um fortalecimento de sua própria Apologética (capacidade de defender a Fé cristã através do uso da lógica).


Leia bastante; pesquise; se informe. Como diria um célebre ditado popular: “quem não sabe o que busca, não identifica o que acha”.


REFERÊNCIAS:


AGOSTINHO, Santo. Confissões. Editora Nova Cultural. São Paulo: 1996.

AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica: Vol. 1. Edições Loyola. Rio de Janeiro: 2001.

BÍBLIA SAGRADA. Evangelho de São João. Capítulo 17, versículos 1 à 11.

______ . Evangelho de São Lucas. Capítulo 12, versículo 7.

HOELLER, Stephan. Gnosticismo: uma nova interpretação da tradição oculta para os tempos modernos. Editora Record: Nova Era. Rio de Janeiro: 2005.

FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias. São Paulo: Paulus, 1995.

PAGELS, Elaine. The gnostic gospels. Random House. Nova York: 1978.


NOTAS


O Gnosticismo é uma vertente espiritual confusa, e não recomendada a cristãos, fazendo uso de uma cosmologia diferente, e podendo tornar-se até mesmo um “fardo” pra todos que o buscam sem saber o que estão abordando…


Para o Catolicismo Apostólico Romano (pertencente ao pilar judaico-cristão da Tradição Ocidental), o Gnosticismo é um inimigo doutrinal e teológico tão perigoso quanto o protestantismo, representando um perigo real a todos os cristãos verdadeiros, pois subverte os dogmas cristãos, confunde os estudantes sinceros e descentraliza as práticas espirituais dos buscadores em nome de um humanismo egoísta.


Para os gnósticos, o Demiurgo era uma semi-divindade iludida, responsável por toda a criação visível, procurando prender o ser humano no plano físico. Por conta disso, essa divindade é conhecida como “Demiurgo” (que significa “meio construtor”), simbolizando sua própria imperfeição.


O Cristianismo é a religião que mais foi sincretizada (de forma herética) com o Gnosticismo. Porém, apesar de terem laços de proximidade, cristãos e gnósticos encaram certos símbolos e figuras de forma diferente. A própria figura de Cristo é interpretada de maneira absolutamente diferente na filosofia gnóstica, que sempre atribui a Cristo uma imagem “feiticeira” ou excessivamente sobrenaturalizada.


O intercâmbio cultural entre os povos da antiguidade fez com a que a filosofia gnóstica chegasse à Grécia, Egito e Palestina. Nesses locais, o Gnosticismo sofreu influência de diversas religiões e correntes filosóficas predominantes, criando várias vertentes gnósticas de acordo com as características espirituais e culturais de cada região.


No Gnosticismo, a busca pelo conhecimento divino não pode ser feita sob uma ilusão, pois isso não conduz o homem ao contato com a divindade. A busca pela Gnose é algo totalmente pessoal, intransferível e direta (sem a ação de terceiros), já que não podem existir intermediários entre Deus e o homem.


O “Mentalismo” Moderno e Sua Visão Espiritual Deturpada


O estudo do Hermetismo se tornou algo comum na sociedade contemporânea, seja entre os estudantes curiosos e descompromissados, seja entre aqueles que preferem se arriscar na prática esotérica moderna. No cenário brasileiro, não é raro encontrarmos estudantes que se dizem “ocultistas” e que não tem nenhuma prática magística, mas leram obras como “O Caibalion” ou o “Corpus Hermeticum” e repetem seus trechos como verdadeiros “papagaios”. Porém, o que os “ocultistas” brasileiros estão esquecendo é de interpretar devidamente as obras herméticas que estão lendo, e situá-las em acordo com a Magia, enquanto ciência prática. Isso está fazendo com que a interpretação das leis herméticas fique estereotipada e rasteira, especialmente a interpretação que está sendo dada à 1ª e à 2ª lei hermética, as chamadas “lei do mentalismo” e “lei da correspondência”, respectivamente.


O Hermetismo é um corpo filosófico e doutrinário que ganhou espaço a partir da figura de Hermes Trismegistus, lendário sacerdote egípcio que popularizou ciências como a Alquimia, a Magia e a Astrologia.


Entre os ensinamentos herméticos, merecem destaque aqueles ligados às chamadas “leis herméticas”, que narram de que forma o mundo “funciona”, como seus fenômenos físicos podem ser justificados e como devemos nos portar espiritualmente diante deles.


A 1ª lei hermética é a chamada “lei do mentalismo”, e seu texto, descrito no Caibalion, nos diz o seguinte: “o Todo é Mente; o Universo é mental”.


Se analisarmos rapidamente este texto, veremos que ele é curto e que aparentemente seu significado é claro. Porém, analisando o conteúdo do texto em si, percebemos que sua interpretação não é tão simples como se imagina (ou como muitos “ocultistas” brasileiros imaginam), e abre margens para variações interpretativas que muitas vezes podem até distorcer o sentido original do texto. Talvez seja isso que esteja ocorrendo com o significado das leis herméticas e com a interpretação que está sendo feita sobre elas, no que diz respeito à magia.


Atualmente, vejo estudantes de esoterismo falarem abertamente verdadeiras “pérolas” a respeito da prática de magia, como por exemplo:


“Toda magia é mental”


“Todo efeito mágico é apenas uma ilusão, criada pela mente do mago”


Ou mesmo que


“O objetivo da magia é exteriorizar o que há no subconsciente do mago”.


Apesar de sabermos que a maioria dos estudantes que nos brindam com essas pérolas não tem prática mágica nenhuma, chegamos à conclusão de que essa interpretação deturpada da magia e seus efeitos não provém somente da falta de prática, mas do estudo incorreto que estão fazendo do Hermetismo. Geralmente, os estudantes que defendem esse ponto de vista psicológico da magia, usam o texto da lei do mentalismo como tentativa de sustentar seus argumentos. No raciocínio desses estudantes, se a lei do mentalismo diz que “o universo é mental”, então tudo mais que estiver contido no universo também será, e isso inclui a magia. Esse não é um raciocínio totalmente incorreto; porém…pra infelicidade dos “ocultistas” que defendem esse ponto de vista, nem todas as formas de magia são mentais, e em algumas delas a mente não desempenha sequer função primordial para a execução do ato mágico em si.


De uma forma simples, a interpretação moderna que está sendo dada à lei do mentalismo está se guiando pela ideia de que o homem é o centro do universo, e que o sucesso ou fracasso de suas ações depende apenas de seu querer e da força de sua Vontade. Assim, se o texto da lei do mentalismo nos diz que “o Todo é mente”, os ocultistas modernos interpretam esse “Todo” como “Tudo” e o relacionam ao homem; dessa forma, os estudantes modernos concluem que “Tudo é mente” (tudo é “mental”), e sendo assim o homem não precisa recorrer a nada fora de si, já que tem em si tudo de que precisa pra operar magia (sua mente). Só que o erro começa justamente nesse ponto: o “Todo” citado na lei do mentalismo, não significa o “Tudo” que os estudantes modernos interpretam incorretamente. Quando se diz que “o Universo é mental”, e que “o Todo é mente”, na verdade o Hermetismo está deixando claro que a criação do Universo foi um ato mental, pois foi um ato gerado da mente criadora universal (Deus). Porém, isso não quer dizer que o ser humano, mesmo sendo parte direta da criação, pode “criar” apenas a partir de sua mente. Por mais “poderosa” que seja a mente humana, ela não tem capacidade autônoma de criar algo no físico, estando fora da influência do Altíssimo se não fizer uso da Fé, da Técnica e de sua Vontade. Por isso, o fato do “universo ser mental” não faz da magia praticada pelo ser humano, algo meramente psicológico.


O motivo dessa interpretação distorcida da lei do mentalismo é muito claro: há uma diferença nítida entre a lei hermética do mentalismo e a interpretação psiquista que se tem feito dessa lei (o chamado “mentalismo moderno”). E essa interpretação equivocada não ocorre apenas com a 1ª lei hermética; a 2ª lei hermética (lei da correspondência) também sofre com essa mesma distorção na interpretação de seu texto. No Caibalion, o texto da lei da correspondência é claro: “O que está em cima é como o que está embaixo. E o que está embaixo é como o que está em cima”.


A 2ª lei hermética nos diz que, devido os limites do ser humano, ele não consegue enxergar a magnitude do cosmos infinito, e não consegue enxergar nem a si mesmo como representante do Macrocosmo. A lei da correspondência nos diz que as verdades do Macrocosmo também encontram eco no microcosmo, já que “o menor” (o microcosmo) é uma equivalência do maior (Macrocosmo).


Porém, o que o pensamento moderno prega (e os “ocultistas” brasileiros seguem…) é que o homem é “seu próprio deus”, e se ele tem em si tudo que precisa (sua mente, de acordo com a interpretação errada da lei do mentalismo), então ele tem totais capacidades de controlar seu universo do modo como quiser, sendo a única divindade de seu mundo.


Essa interpretação da lei hermética da correspondência não poderia estar mais equivocada. O ser humano é uma correspondência, e não algo igual a Deus. A similitude do homem em relação à divindade vai até o ponto da potência: o homem é um deus em potencial, mas não uma divindade realizada. Todavia, muitos estudantes de esoterismo preferem acreditar que a magia é fruto da “divindade do Homem”, e do fato dele já ter tudo de que precisa pra operar magicamente (sua mente). Talvez por conta disso, muitos estudantes “ocultistas” no Brasil tem sempre o texto da 2ª lei hermética “na ponta da língua”, e repetem exaustivamente a frase “como o é encima, o é embaixo”, como se fossem verdadeiros papagaios…na tentativa de justificar sua própria soberba através de um mentalismo apegado a uma suposta “independência espiritual”.


Vimos nesta 1ª parte do artigo, que a interpretação que está sendo dada às leis herméticas está sendo deturpada e baseada em um raciocínio mentalista rasteiro. Porém, essa distorção interpretativa não está sendo causada apenas por falta de estudo ou de prática mágica dos “ocultistas” brasileiros. Na 2ª parte do artigo, faremos uma revisão histórica para descobrir qual a origem desse pensamento psiquista que tem invadido a magia moderna nas últimas décadas.


Na 1ª parte deste artigo, vimos que o Hermetismo tem sido interpretado de maneira deturpada por parte de muitos estudantes de esoterismo da atualidade, e que as leis herméticas têm sido analisadas sob um viés extremamente psicologizado. A partir de agora, tentaremos entender quando e onde surgiu esse ponto de vista “mental” sobre o Hermetismo e a magia, e como essa visão mentalista influenciou e vem influenciando negativamente a prática mágica na atualidade.


A popularização da Psicologia no século 19 fez com que as abordagens psicológicas ficassem cada vez mais comuns nas Ordens Iniciáticas da Europa. Na foto acima, o famoso psicólogo Carl Jung, usado atualmente como “base científica” em muitas instituições esotéricas.


A origem da interpretação distorcida das leis herméticas tem início no século 18 com o advento do iluminismo (que pregou uma reorientação da visão de mundo dos séculos anteriores, dando mais foco ao homem na terra que a Deus no céu). Porém, essa visão moderna do mentalismo ganhou realmente corpo com a popularização da Psicologia no século 19. A Psicologia rapidamente se popularizou na Europa na metade do século 19, defendendo a ideia de que o homem tem dentro de si estruturas mentais que ele mesmo desconhece, e que influenciam seu comportamento e sua postura diante da vida e de seus problemas. Esse raciocínio psicológico rapidamente ganhou popularidade no meio esotérico e ocultista europeu, que estava ansioso por validar as práticas mágicas e os estudos metafísicos com alguma forma de raciocínio científico que pudesse comprovar a magia como “ciência hermética”. Assim, o raciocínio psicológico de que o homem não conhece sua estrutura mental, abriu margens para que várias Ordens Esotéricas europeias adotassem a Psicologia como “suporte científico” de seus sistemas iniciáticos. Psicólogos como Carl Gustav Jung passaram a ser figuras comuns nos ensinamentos de diversas Ordens, se tornando “base científica” de justificativa para a magia (mesmo que em seus estudos psicológicos, esses psicólogos nunca tivessem citado magia de forma direta). A astrologia tradicional também sofreu com esse sincretismo forçado com a Psicologia, especialmente o movimento de “reorientação astrológica” iniciado na Sociedade Teosófica por Alan Leo, considerado atualmente “o pai da astrologia moderna”.


O sincretismo iniciado no século 19 entre magia e Psicologia aprofundou-se de forma trágica no século 20, gerando a aberração que temos atualmente: a chamada “magia psicológica” (ou “psicologia mágica”), tão defendida entre os estudantes de esoterismo da atualidade, e entre os chamados “ocultistas de balcão” brasileiros. Todavia, será que podemos simplesmente culpar a Psicologia por esse sincretismo forçado? De forma alguma. Se há culpados nesse sincretismo, esses culpados são as Instituições Iniciáticas europeias do século 19, que procuraram misturar e encaixar erroneamente conceitos e filosofias que nem sempre são passíveis de serem encaixados. A Psicologia por si só pode ser útil (e até necessária) no estudo de magia; porém, daí a considerar que a magia e seus efeitos são “frutos psicológicos”, há uma grande diferença. Achar que qualquer efeito mágico é fruto somente do “subconsciente” do mago é desmerecer a magia enquanto Arte sagrada. Todo aquele que pensa dessa forma, esquece-se que um dos pilares do mago é justamente sua Fé naquilo que faz e na divindade. Se o mago não tem Fé naquilo que faz, não há sentido em continuar fazendo aquilo, já que em magia, a racionalidade nem sempre pode justificar todos os efeitos mágicos possíveis. A tentativa de se tentar analisar e justificar a magia sob o viés da razão e da mente, é apenas um reflexo tardio do iluminismo e de seus efeitos sobre a prática mágica ocidental, que tentou transformar a magia em uma ciência puramente verificável através de fatos e dados quantitativos.


Essa visão mágica psicologizada piorou quando famosas personalidades do meio mágico mundial, como Helena Blavatsky, Aleister Crowley, Franz Bardon e mais recentemente Lon Millo Duqette (dentre outros) procuraram respaldar seus sistemas e práticas nesse raciocínio tipicamente “mentalista moderno”, buscando técnicas orientais (yoga) como forma de trabalho mental “propício” a possibilitar o desenvolvimento mágico de alguém. Essa “magia psicológica”, pautada na interpretação errada da lei do mentalismo, mais parece alguma forma de “exibicionismo psíquico” que magia propriamente dita. Quase sempre, esse tipo de “magia” procura enaltecer as “capacidades latentes” do ser humano e seus “potenciais mentais”, se aproximando mais do chamado “Psiquismo”, responsável por popularizar fenômenos como “clarividência”, “premonição” e “telepatia”. Curiosamente, boa parte dos estudantes de esoterismo que defendem essa visão psicológica da magia, também se interessam por esses poderes psíquicos. Para essas pessoas, “tudo se conquista com a mente”, e o querer é a chave de todo sucesso mágico… afinal de contas, como diz o ditado popular, “querer é poder”. Porém, o que esses estudantes esquecem, é que nem sempre esse “querer” gera efetivamente “poder”, pois a mente por si só não é capaz de executar todos os efeitos mágicos que o operador almeja.


Segundo Hyatt (2008), fazer magia é estar disposto a extrair resultados claros e visíveis no plano físico, já que “Magic is the manipulation of hidden forces or intelligences to produce a desired result” (HYATT, 2008, p. 20). Não existem apenas magias cujos objetivos sejam conquistados através da mente; da mesma forma nem toda magia é apenas “astral”. Algumas modalidades de magia são materiais, e seus efeitos são visíveis no plano físico (e não apenas “projeções psicológicas”), mesmo que essas modalidades também façam uso da estrutura mental do operador em certo nível.


Não basta “querer”; é preciso “saber fazer”. A Tradição Espiritual Ocidental é pautada em 4 grandes princípios: Fé, Vontade; Técnica; e Paciência. Eliphas Levi, célebre teólogo do século 19, já expressava esses princípios em suas obras, através do famoso “saber-querer-ousar-calar”. Não basta ao mago ter vontade de fazer uma ação mágica, se não sabe efetivamente fazê-la; não adianta apenas crer que “tudo dará certo”. É o mago que tem de fazer as coisas “darem certo”, através dos quatro princípios mágicos.


Algumas especialidades mágicas não admitem o uso da mente como “centro operativo” do mago: é o caso, por exemplo, da magia cerimonial ou da Teurgia. Nessas modalidades mágicas, não adianta simplesmente “querer” ou “ter Fé”. Acima de tudo, é preciso saber seguir as exigências de cada operação, cada ritual, sendo fiel ao máximo às recomendações de cada sistema ou grimório trabalhado. E é aqui que o uso do mentalismo moderno se torna perigoso. Muitos são os casos de adolescentes ou praticantes desavisados que buscam experimentar operações de magia cerimonial usando o raciocínio tipicamente “mentalista” em ações mágicas tradicionais, como a evocação de espíritos e entidades astrológicas. Esse é um ato extremamente estúpido (além de imaturo), já que a magia cerimonial não segue esse raciocínio moderno e estereotipado de que “a mente contém tudo de que o mago precisa”. Entidades e espíritos evocados, ao contrário do que muitos “ocultistas” brasileiros pensam, não são arquétipos mentais do mago, e suas manifestações físicas não são apenas “efeitos do subconsciente do operador”. Tratam-se na verdade de entidades poderosas e autônomas, com uma existência além da compreensão humana, e com manifestação independente em relação ao mago. É por conta disso que aumentam os relatos de que muitos “mentalistas modernos” sofrem com a obsessão de entidades e a falta de controle emocional, após executarem rituais cerimoniais mal-sucedidos… fruto de suas visões deturpadas da magia e de seus efeitos.


A você leitor, que ainda não tem experiência prática em magia, mas está estudando a teoria e futuramente pretende realizar alguma operação específica, fica a dica: magia não é apenas algo mental; é algo mental também. A estrutura psicológica do mago é importante em certos aspectos, e sua capacidade de visualizar certas imagens astrais pode ajudá-lo m operações mágicas. Porém, nem toda forma de magia é apenas mental. Não caia no “conto popular” dos “ocultistas” brasileiros de que “basta acreditar para acontecer” e que “é preciso confiar na mente”; para que algo mágico aconteça, você mesmo tem de fazer esse algo se manifestar, através de sua Fé no Altíssimo (saber), sua Vontade em querer que aquilo aconteça (querer), sua Ação para que aquilo aconteça (ousar), e sua paciência para que aquilo se manifeste (calar).


Lembre-se: magia não é Psicologia, e da mesma forma, o estudo de Psicologia não é algo mágico. Nenhum efeito mágico justifica-se apenas através dos poderes da mente. A Psicologia ajuda o mago e pode tornar-se inclusive útil para a prevenção de problemas emocionais futuros, decorrentes da prática mágica (a famosa Psicoterapia). Mas isso não significa dizer que o mago pode fazer “o que lhe convir”, que as entidades evocadas num ritual “são aspectos profundos do subconsciente”, ou que “o mago é seu próprio deus”. Essas são lorotas divulgadas no meio esotérico brasileiro, que só levam à ruína do praticante de magia. Seguir ou não esse raciocínio mentalista moderno e deturpado, é um direito de cada um; porém, parafraseando Paulo (Cor, 6) em sua carta aos Coríntios: “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (1 Cor, 6).


REFERÊNCIAS:


HYATT, Christopher in LISIEWSKI, Joseph. Cerimonial magic and the power of evocation. New Falcon publications. Arizona: 2008.


NOTAS


Apesar de ser uma “analogia de Deus”, o homem não é igual a Deus, e portanto não é uma divindade autônoma como o pensamento moderno sugere.


“O Universo é mental”. Mas será que a magia também é apenas uma ilusão de nossa mente?


Nem todas as operações de Magia Cerimonial fazem uso de recursos necessariamente psicologizados. Na foto acima, exemplo de círculo mágico amplamente usado em operações de Magia Cerimonial Tradicional. Na prática de Teurgia, nem todos os efeitos mágicos são necessariamente oriundos da psique do operador.


Helena Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica. A Teosofia de Blavatsky foi a principal responsável por popularizar conceitos orientalistas na Europa no final do século 19, como a yoga. Ela também foi uma das responsáveis pela “psicologização” da magia e da astrologia ocidentais.


A popularização da Psicologia no século 19 fez com que as abordagens psicológicas ficassem cada vez mais comuns nas Ordens Iniciáticas da Europa. Na foto acima, o famoso psicólogo Carl Jung, usado atualmente como “base científica” em muitas instituições esotéricas.


Maçonaria e Igreja Católica: Inimigos Implacáveis


Quando falamos da natureza e dos fins da associação internacional semirreligiosa conhecida como Maçonaria, discordar é regra, não exceção. Para cada livro que enfatiza a obediência à lei, a filantropia e a tolerância universal das organizações maçônicas, outro as condena por seu papel oculto em reviravoltas políticas da guerra cultural contra a Igreja Católica, outros ainda lhe exaltam ou escarnecem a doutrina esotérica e os ritos elaborados.


Pesquisar sobre o tema é complicado porque a Maçonaria não é uma entidade única, mas um todo conceitual composto de redes regionais de lojas e organizações irmãs, cada uma com rituais, doutrinas e projetos mais ou menos semelhantes aos das outras. É um caso mais ou menos parecido com o do “protestantismo”, pois o que existe é uma multidão de seitas independentes com crenças e práticas mais ou menos aparentadas [i].


A Maçonaria pode ser definida como um “sistema de moralidade encoberto pela alegoria e ilustrado por símbolos” [ii], ou, como diz um manual alemão de 1822, 


a atividade de homens intimamente unidos que, empregando formas simbólicas tomadas de empréstimo sobretudo à profissão de pedreiro e de arquiteto, trabalham pelo bem-estar da humanidade, esforçando-se moralmente para enobrecer a si e a outros e, desta forma, fundar uma liga universal da humanidade, da qual tentam ser reflexo já agora em escala menor [iii].

 


“A origem da Maçonaria é um dos assuntos mais discutidos e discutíveis em todo o mundo da investigação histórica”, afirma Frances Yates.


Devemos separar com cuidado o que se pode comprovar pela investigação histórica séria dos relatos lendários e fantásticos consignados em textos tradicionais, tanto maçônicos como antimaçônicos. A Maçonaria moderna não surgiu na Inglaterra do século XVIII, como se costuma repetir, mas na Escócia do início do século XVII, quando “a contribuição medieval de organizações profissionais e das lendas” foi combinada com “aspectos do pensamento renascentista […] em conjunto com uma estrutura institucional baseada em lojas, rituais e procedimentos secretos conhecidos como a Palavra do Pedreiro” 


Originalmente, as lojas se preocupavam com a vida laboral dos pedreiros (neste aspecto, tal como em relação ao uso do simbolismo religioso e de rituais paralitúrgicos, davam continuidade às precedentes guildas medievais); mas na metade do século XVII um número significativo de membros já não tinha nenhum vínculo real com o ofício, e se reunia com propósitos sociais e rituais. No início do século XVIII, as lojas inglesas, compostas principalmente de cavalheiros, e não de pedreiros, ganharam certa preeminência e começaram a sintonizar sua orientação teórica com a vanguarda do pensamento iluminista. A meados do mesmo século, a vertente inglesa da Maçonaria já se espalhara por todos os cantos da Europa e do Novo Mundo, transformando-se rapidamente num agente de prática e ideologia revolucionárias.


Foi a esta maçonaria iluminista que os Papas se opuseram de forma veemente, tão-logo viram o perigo que ela representava para a integridade da fé e a tranquilidade da ordem [v].


Entre os maçons do século XVIII, os radicais apoiavam abertamente políticas secularizantes, como a dissolução de Ordens religiosas, a expropriação e a redistribuição de bens eclesiásticos, leis para regulamentar o casamento civil e o divórcio, tolerância política para religiões não católicas e educação escolar estatal e compulsória para crianças, pautas que se tornaram marca distintiva do liberalismo continental europeu no século XIX.


A Igreja começou a reagir com determinação durante o pontificado de Clemente XII (1730-1740), o primeiro Papa a condenar a Maçonaria (com a constituição In Eminenti, de 1738). (A título de comparação: a Grande Loja de Londres, símbolo mais notável da organização, foi fundada em 1717, e o primeiro Grão-Mestre Provincial na América do Norte foi nomeado em 1730.) As condenações se repetiram, com severidade crescente e com apelos para que as autoridades civis tomassem medidas concretas, pelos Papas Bento XIV em 1751, Pio VII em 1821, Leão XII em 1825, Pio VIII em 1829, Gregório XVI em 1832 e o Beato Pio IX em diversos documentos (da encíclica Qui pluribus em 1846 à Etsi multa em 1873). 


As objeções papais à Maçonaria podem ser reduzidas a quatro pontos: 


comprometimento com um naturalismo filosófico que resulta inevitavelmente em indiferentismo religioso; 

natureza secreta, que encobre projetos malignos; 

demanda por juramentos de absoluta fidelidade, ainda quando tais juramentos não se possam justificar moralmente; 

o perigo à segurança e à tranquilidade da ordem civil que a existência de sociedades secretas representa.

Das encíclicas papais consagradas ao tema, a mais longa e influente é a Humanum Genus, de Leão XIII (1884). Depois de recordar aos leitores o veredito imutável da Igreja, Leão XIII apresenta um resumo e uma crítica dos princípios filosófico-religiosos e das atividades revolucionárias da sociedade: 


Seu propósito último força-a a se tornar visível — especificamente, a completa derrubada de toda a ordem religiosa e política do mundo que o ensinamento cristão produziu, e a substituição por um novo estado de coisas de acordo com as suas ideias, segundo as quais as instituições e leis hão de fundar-se no mero naturalismo (§ 10). 

 

Como a “doutrina fundamental” desse sistema “é que a natureza humana e a razão humana deveriam ser, em todas as coisas, senhora e guia” (§ 12), “esforçam-se para alcançar este resultado — especificamente, que o ofício de ensinar e a autoridade da Igreja tornem-se sem valor no estado civil” — e “imaginam que os Estados devem ser constituídos sem qualquer consideração pelas leis e preceitos da Igreja” (§ 13). Também afirmam que “o poder é exercido por ordem ou permissão do povo”, de modo que “a fonte de todos os direitos e deveres civis está ou na multidão ou na autoridade governante quando esta é constituída conforme as últimas doutrinas” [isto é, as doutrinas iluministas] (§ 22). 


Leão XIII identifica uma série de doutrinas ou tendências características do pensamento maçônico: 


um humanismo que aspira à irmandade universal desvinculada da obediência a Cristo e à Igreja; 

um pelagianismo moral que nega o pecado de origem e situa a fonte da virtude e da felicidade sobretudo na autonomia da vontade humana; 

um deísmo que aceita a existência de Deus, concebido porém como arquiteto da natureza, com o que rejeita a Revelação, os milagres e a divindade de Cristo; 

um indiferentismo graças ao qual todas as religiões são consideradas de igual valor ou linguagens simbólicas análogas para expressar as coisas divinas. 

Essas opiniões são condenadas inequivocamente pelo Papa como contrárias à fé católica e, não raro, à razão mesma (§ 24) [vi].


Embora promulgada há mais de um século, a Encíclica Humanum Genus não perdeu relevância. Alguém poderia mencionar, por exemplo, sua penetrante análise das consequências dos princípios maçônicos. O que foi predito pelo Papa confirmou-se em todo o mundo ocidental justamente pelas razões por ele apontadas. A crítica é acompanhada pela contraproposta de encontrar no Evangelho o poder libertador da humanidade, procurado embalde nas ideologias. O Papa dá ao lema da Revolução Francesa, autêntico lema da Maçonaria, um sentido cristão:


A liberdade, nós queremos dizer, de filhos de Deus, através da qual podemos ser livres da escravidão a Satanás ou a nossas paixões, os dois mais perversos mestres; a fraternidade, cuja origem está em Deus, o Criador comum e Pai de todos; a igualdade, que, fundada na justiça e na caridade, não anula todas as diferenças entre os homens, mas, a partir das variedades da vida, dos deveres e das ocupações, dá forma àquela união e àquela harmonia que tende naturalmente ao benefício e à dignidade da sociedade (§ 34). 

 


Embora Humanum Genus tenha sido a mais importante, não foi a única manifestação de Leão XIII sobre a Maçonaria, censurada por ele em documentos de 1882, 1890, 1894 e 1902.


No século XX, foram escassos os pronunciamentos específicos contra a Maçonaria, não porque a Igreja tenha mudado de posição, mas porque já não fazia falta nenhum esclarecimento mais depois de Leão XIII. De Clemente XII a Leão XIII, uma única e gravíssima pena foi designada a qualquer católico que se associasse a uma loja: excomunhão latæ sententiæ [isto é, automática]. O Código de Direito Canônico promulgado por Bento XV em 1917 repetiu expressamente este alerta.


Após o Concílio Vaticano II, sugeriu-se a iminência de uma era de reconciliação entre católicos e maçons. A ideia foi levada a sério por bispos alemães que, entre 1974 e 1980, deram início ao diálogo com representantes de lojas maçônicas alemãs. O resultado da consulta foi o que já se previa: “Filiar-se simultaneamente à Igreja Católica e à Maçonaria é impossível” (Amtsblatt der Erbistums Köln, jun. 1980) [vii]. 


Quando o novo Código de Direito Canônico foi promulgado em 1983, houve quem interpretasse o silêncio [da lei] com respeito à Maçonaria como uma atenuação discreta das proibições da Igreja. Para afastar essa falsa interpretação, no mesmo ano a Congregação para a Doutrina da Fé, com aprovação de João Paulo II, publicou uma Declaração em que se afirma: 


Permanece imutável o parecer negativo da Igreja a respeito das associações maçônicas, pois os seus princípios foram sempre considerados inconciliáveis com a doutrina da Igreja e por isso permanece proibida a inscrição nelas. Os fiéis que pertencem às associações maçônicas estão em estado de pecado grave e não podem aproximar-se da Sagrada Comunhão. 

 

Dom Athanasius Schneider prestou outro notável serviço à Igreja ao pôr o tema em evidência em The True Face of Freemasonry [“A Verdadeira Face da Maçonaria”], palestra ministrada em 2017, tricentenário de fundação da Maçonaria moderna em Londres.


Não deveríamos nos iludir e pensar que a Igreja Católica é a única que tem suspeitas em relação à Loja. Deixemos de lado as condenações da Maçonaria por protestantes e cristãos ortodoxos orientais [viii]: monarcas e estadistas dos últimos dois séculos deram muita atenção às chamadas sociedades secretas, pois à primeira vista elas eram suspeitas de apoiar opiniões ou promover projetos de subversão da ordem estabelecida, operando muitas vezes como centros nevrálgicos de intrigas em escala global. As suspeitas confirmaram-se mais de uma vez.


Longe de ser uma vã conjectura, o envolvimento de maçons em empreendimentos revolucionários (particularmente anticlericais) desde o Iluminismo até o século XX pode contar-se entre os fatos fundamentais da história moderna, embora evidentemente não possamos supor que as lojas de cada país estivessem igualmente envolvidas em maquinações políticas (as lojas do Grande Oriente na Europa continental e na América Latina, consideradas “heréticas” pelos maçons ortodoxos de língua inglesa, têm o maior número de membros anticlericais e revolucionários), nem que os membros de graus inferiores soubessem do que faziam os superiores ou por que o faziam. É provável que maioria dos maçons só tenha um interesse superficial na doutrina religiosa e política da Loja. Dada a disciplina de sigilo que tem prevalecido entre os maçons por séculos, muitas linhas históricas de causalidade permanecem obscuras, na melhor das hipóteses, e impossíveis de conhecer, na pior delas.


Contudo, levando-se em conta o que sabemos, não há nenhuma razão para duvidar que os maçons colaboram de forma intencional ou involuntária com o enganador, o pai da mentira, o acusador, o “portador da luz” [Lúcifer]. Um Papa semelhante a Leão XIII será no futuro, mais uma vez, o antagonista implacável deles, e Estados futuros, reformulados sob inspiração cristã, buscarão devidamente a supressão da Maçonaria.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


William J. Whalen, Christianity and American Freemasonry, 3rd. rev. ed. (San Francisco: Ignatius Press, 1998), 169–86 et passim.

Ibid., 15.

Hermann Gruber, “Freemasonry”. In: The Catholic Encyclopedia (New York: Appleton, 1910).

David Stevenson, The Origins of Freemasonry. Scotland’s Century, 1590–1710 (Cambridge: Cambridge University Press, 1988), 6.

Cf. Whalen, op. cit., 136–49.

Cf. “Freemasonry and Allied Societies”. In: E. Cahill, The Framework of a Christian State [1932] (Harrison, NY: Roman Catholic Books / Catholic Media Apostolate, n.d.), 221–41.

Citado em Whalen, op. cit., 144. A obra de Whalen é o melhor livro em inglês sobre a mútua exclusão entre os princípios defendidos pela Maçonaria e os defendidos pela Igreja Católica (N.A.). Embora desatualizada, uma das obras mais bem documentadas sobre a atuação da Maçonaria no Brasil ainda é A maçonaria no Brasil, do Frei Boaventura Kloppenburg (N.T.).

Cf. Whalen, op. cit., 150–68.


Notas


O adepto da Sagrada Tradição Cristã não deve se iludir com a aparente “beleza” do discurso maçônico. Apesar de defender ideais aparentemente “nobres” e “justos”, o grande objetivo da Maçonaria Especulativa pós-século 16 sempre foi se opor à Tradição Apostólica Cristã, oferecendo resistência à Santa Doutrina Católica.


A Maçonaria Especulativa (ou “simbólica”) é a versão iluminista da Maçonaria Medieval, que funcionava como uma corporação de ofício. Na prática, a Maçonaria Especulativa que existe atualmente é uma Instituição esotérica recheada de ideais iluministas, tendo a satisfação do Ego de seus membros como o grande objetivo de seus trabalhos.

O que é a Sagrada Tradição?

Societas Hermetica Salomonica

O conceito de “Tradição” é parte integrante da espiritualidade do Ocidente,  e constitui-se em elemento primordial a todos aqueles que desejam se aprofundar no raciocínio filosófico ocidental. Todavia, também é inegável que esse conceito tem sido usado de maneira deturpada na sociedade moderna, sendo associado a ideais políticos e filosóficos que lhe são completamente alheios.


Segundo Aquino (2013), a Tradição é parte integrante do homem ocidental, e influencia não apenas sua vida espiritual mas também todas as demais facetas de sua existência. Para o doutor angélico a Tradição não depende do tempo, e por isso é chamada também de “Filosofia Perene“; assim, sob a ótica Cristã, a Tradição é sagrada, e sua transmissão  remonta aos tempos dos primeiros apóstolos de Cristo, que se encarregaram de manter os valores Cristãos resguardando-os de deturpações e os divulgando às gerações seguintes, não apenas de maneira escrita (através dos escritos bíblicos), mas essencialmente de maneira oral (através do magistério da Igreja Católica).


Quando falamos de “Sagrada Tradição”, não estamos nos referindo apenas a ideias políticas ou filosóficas; trata-se na verdade de algo mais amplo: a Sagrada Tradição Cristã é a base Moral em que a espiritualidade do Ocidente se sustenta, e sobre a qual o homem ocidental orienta suas ações. Nesse sentido, a Tradição Cristã é algo vivo, dinâmico e presente (e não algo atrelado apenas ao passado); é o conjunto das “verdades reveladas de Cristo, que são imutáveis” (GAUDRON, 2011, p.234).


Por ser algo perene (e transmitido de geração à geração), a Sagrada Tradição foi modulada ao longo da história humana, sendo divulgada inicialmente por Cristo em pessoa, através da divulgação de seus ensinamentos aos apóstolos. Isso faz da pessoa de Cristo, o verbo do Pai Eterno: a manifestação viva da mensagem de Deus-Pai aos Homens.


Antes da Sagrada Tradição ter se manifestado ao mundo, a mensagem divina foi divulgada de maneira antecipada a diversos povos pré-Cristãos, absorvendo posteriormente elementos dessas tradições não-Cristãs e as interpretando sob a ótica da doutrina de Cristo. Assim, a Sagrada Tradição Cristã absorveu também elementos das tradições pagã, egípcia, greco-romana e judaica.  


No caso do Judaísmo, a Santa Doutrina Cristã tem aspectos morais em comum com essa tradição não-Cristã (em virtude do povo judeu ter sido o escolhido para receber Cristo na Terra). Porém, a rejeição judaica à mensagem divina apresentada por Cristo, fez que com a Sagrada Tradição Cristã guardasse diferenças cruciais em relação à espiritualidade pré-Cristã manifestada pelos judeus, acarretando numa individualização egoísta do povo judeu e de sua espiritualidade (MULLER, 2014).


Diante do que foi exposto até agora, o que conhecemos atualmente como “Tradição Espiritual Ocidental” é pura e simplesmente a manifestação e transmissão da Sagrada Tradição Cristã, acrescida dos elementos pré-Cristãos manifestados nas tradições pagã, egípcia, greco-romana e judaica. Essas tradições precederam a Verdade revelada (Cristo), mas foram usadas por Deus Todo-Poderoso como ferramentas para dar vislumbres aos Homens da mensagem maior que ele enviaria ao mundo através da pessoa de Cristo.


Tradição vs Tradicionalismo

O estudante que deseja se aprofundar no estudo da espiritualidade ocidental precisa diferenciar bem o conceito de “Sagrada Tradição”, do movimento “tradicionalista” que se apoderou desse conceito e muitas vezes o deturpou.


A Sagrada Tradição Cristã é a base da Moral ocidental, e é representada essencialmente pelo Catolicismo (RIFFARD, 1990). É através dessa filosofia perene (transmitida ao Homem ocidental por séculos), que a espiritualidade do Ocidente sustenta toda sua Ética e organiza a busca do ser humano pelo sagrado.


Já o “Tradicionalismo” é um movimento filosófico recente (pós-século 19), que defende o resgate de valores tradicionais na vida ocidental através de uma crítica à modernidade e a seus ideais. O movimento tradicionalista sustenta grande parte de seu discurso nas ideias do filósofo francês René Guénon, e na corrente filosófica fundada por ele (o chamado “perenialismo guenoniano”).


Apesar das críticas guenonianas à modernidade terem certa coerência, não se deve confundir o estudo da Sagrada Tradição Cristã com a filosofia defendida pelo perenialismo guenoniano: o movimento tradicionalista de René Guénon defende um indiferentismo religioso influenciado em grande parte, pelo relativismo espiritual divulgado anos antes por Helena Blavatsky e sua “Teosofia” (que era em si mesma, essencialmente anti-Cristã).


O perenialismo guenoniano defende a ideia absolutamente equivocada (e esotérica!) de que a Tradição se manifesta em diversas religiões ao mesmo tempo, e que as religiões consideradas “tradicionais” seriam “equivalentes entre si”, possuindo “pesos espirituais iguais”, uma vez que possuiriam também uma mesma “base espiritual comum”. Por esse motivo, para Guénon, o verdadeiro buscador deveria estudar a fundo todas as religiões que o tradicionalismo guenoniano considerasse tradicionais (Cristianismo, Judaísmo, Islamismo, Budismo e Hinduísmo), já que essas religiões guardariam “aspectos comuns da Tradição”…e quem não aceitasse fazer esse estudo comparativo, estaria na agindo (na ótica de Guénon) de maneira “fanática” e “intolerante”.


Na prática, as ideias apresentadas por René Guénon a respeito de sua interpretação sobre o conceito de “Tradição” são completamente equivocadas, e se assemelham muito a falácias esotéricas. O conceito de “unidade das religiões” era uma ideia amplamente trabalhada nas Ordens Iniciáticas europeias durante o século 19, sendo amplamente defendido por Helena Blavatsky (uma dos pilares do Esoterismo Moderno) em suas críticas ao Catolicismo.


A filosofia perene trabalhada no Ocidente sustenta seus ensinamentos na Moral Cristã, acrescidos de interpretações Cristãs de elementos oriundos de outras tradições não-Cristãs ocidentais, como a tradição pagã, a tradição egípcia, a tradição greco-romana e a tradição judaica.


Diferente do que os tradicionalistas guenonianos defendem, a Tradição “não é a mesma”, e não se manifestou simultaneamente em vários povos. O que ocorreu ao longo da história Humana, é que Deus Todo-Poderoso usou as diversas tradições não-Cristãs para dar vislumbres à humanidade da mensagem que seria enviada ao mundo através da pessoa de Cristo. Esses vislumbres nem sempre foram aceitos pelos povos pré-Cristãos, como os judeus, que rejeitaram a mensagem de Cristo (TANQUEREY, 2018).


O maior erro do perenialismo guenoniano é tratar as diversas religiões ocidentais como “manifestações equivalentes” que podem ser vivenciadas de forma simultânea. Isso só deixa claro a indiferença religiosa que o tradicionalismo guenoniano alimenta em sua filosofia (fruto da influência que sofre da Teosofia de Blavatsky, apesar desta também ser criticada por Guénon), igualando as religiões ocidentais como se fossem fenômenos “semelhantes” ou passíveis de serem “igualados”.


Atualmente, o Tradicionalismo guenoniano vem sendo utilizado por grupos políticos extremistas que tem utilizado as ideias perenialistas de René Guénon para justificar comportamentos elitistas, exclusivistas e intolerantes. Alguns desses grupos sequer são formados por Católicos genuínos (apesar de se apresentarem publicamente como “católicos tradicionalistas”). Por conta disso, a Societas Hermetica Salomonica enfatiza aos buscadores a necessidade de saberem separar o estudo da Santa Tradição Cristã, das ideias de cunho político e filosófico que o movimento tradicionalista guenoniano impõe ao conceito de “filosofia perene”. A Sagrada Tradição não é algo relativo, elitista ou exclusivista: é algo disponível a todos os povos, divulgado a partir da vida e da obra de Cristo, e que encontra no Catolicismo o seu maior canal de divulgação no Ocidente (KREEFT, 2008).   


O que significa ser tradicionalista?


Nos últimos tempos, o termo “tradicionalista” parece ter ganho cada vez mais importância entre os buscadores: é cada vez mais comum encontrarmos relatos espirituais de praticantes que se dizem “tradicionalistas” ou “guardiões da tradição ocidental”, sem que pareçam sequer entender o que realmente significa o termo “Tradição”.


Falando especificamente do contexto brasileiro, vivemos uma onda de conservadorismo que vem se manifestando de forma intensa desde meados de 2016. Esse neo-conservadorismo nacional tem misturado elementos políticos e históricos através de uma espiritualidade que aparenta ser tradicionalista (mas que em sua essência não é), com forte apelo moralista e uma abordagem com ares cristãos (quase sempre de origem protestante).


A onda conservadora que se manifesta no Brasil atualmente não é exclusividade de nosso país: o cenário esotérico americano (tido como um dos maiores do mundo) também não difere muito do discurso neo-conservador brasileiro. E não são poucos os casos de autores  americanos que se apresentam publicamente como tradicionalistas ou adeptos de correntes espirituais “alinhadas à Tradição”, ao mesmo tempo em que misturam elementos de diversas filosofias (forçando um sincretismo espiritual absolutamente sem critérios), enquanto agem de forma arrogante e presunçosa perante o público.


Diante de todo esse cenário que descrevemos, fica-nos claro que o termo “tradicionalista” vem sendo usado de maneira deturpada e sem critérios, tanto no contexto brasileiro quanto no cenário americano. Dessa forma, o objetivo deste ensaio é apresentar a você leitor, uma interpretação sobre o tradicionalismo diferente do que você provavelmente tem lido no Brasil ou em fontes do exterior até este momento. Para isso, iremos analisar o que significa ser alguém tradicionalista, usando a chamada “análise negativa” (muito utilizada na Teologia Apofática): um método de estudo teológico cristão que analisa conceitos e definições não a partir do que esses conceitos representam (afirmações sobre o que são), mas a partir do que esses conceitos definitivamente não podem significar (através de negações). Assim, o objetivo da análise negativa é descrever fenômenos e conceitos através do uso da lógica, partindo-se do que esses conceitos não podem significar através do uso da razão (MONDIN, 1997).


Esperamos que este texto possa mostrar a você leitor, que nem tudo que se diz tradicional é realmente alinhado à Tradição Espiritual do Ocidente, e que nem todos aqueles que se auto intitulam tradicionalistas realmente agem de maneira tradicional. Assim, ficará mais fácil a você  se proteger de discursos pseudo-tradicionalistas, evitando se iludir com instituições ou personalidades aparentemente tradicionais, que na verdade manifestam em suas ações posturas e elementos completamente alheios ao conceito de “Tradição” utilizado no Ocidente.


1. Porque nem tudo que se diz “tradicional” é alinhado à Tradição


Analisar o que significa ser tradicionalista requer necessariamente analisar o que é a Tradição, e qual a importância desse conceito para a espiritualidade do homem ocidental.


Já explicamos aqui que o termo “Tradição” foi deturpado pela modernidade, transformando-se em sinônimo de algo “ultrapassado”, “obsoleto” ou mesmo “intolerante”. Esse discurso anti-tradicional ganhou corpo a partir da reforma protestante do século 16, que abriu precedentes históricos de contestação das religiões que formam a base do pilar judaico-cristão ocidental (Judaísmo e Catolicismo). Assim, foi a partir das ações de Lutero que as ideias do Iluminismo passaram a germinar, incentivando outras pessoas que também tinham um pensamento anti-tradicional a também se manifestarem, mesmo que ainda conservassem um discurso aparentemente moralista (MONDIN, 1982).


Não queremos aqui propor novamente um estudo histórico das influências perniciosas do Iluminismo sobre a espiritualidade do homem ocidental. O que nos interessa agora, é saber que o discurso neo-conservador que se manifesta atualmente no meio espiritual brasileiro (e até no meio espiritual americano), não é um discurso tradicionalista por um motivo muito simples: esse discurso é completamente alheio ao Judaico-Cristianismo, e contraria diretamente a Moral, a Filosofia e a Teologia judaico-cristãs.


No caso do cenário brasileiro, o neo-conservadorismo que presenciamos em nosso país tem ainda um grave fator a mais: trata-se de um discurso de base essencialmente protestante, manifestado por instituições pentecostais e neopentecostais presentes no Brasil, com grande enfoque em questões políticas e econômicas.


Todas essas constatações, por si só já deveriam ser mais que suficientes para demonstrar a você, leitor, que o neo-conservadorismo brasileiro é na verdade um movimento político e religioso de caráter protestante, alheio ao conceito de Tradição e que manifesta forte oposição ao Judaísmo e principalmente ao Catolicismo (Romano e Ortodoxo), que juntos formam o corpo moral e teológico do Judaico-Cristianismo.


Analisando-se o Protestantismo de maneira fria (enquanto movimento histórico e religioso), vemos que ele, por si só, nunca poderia ser considerado algo tradicional; longe disso: do alto de suas “95 teses reformistas”, Lutero sempre deixou claro sua intenção de se opor a qualquer conceito de Tradição, considerada por ele como uma invenção humana (NAVARRO, 2017). Para Lutero, o conceito de Tradição não merece respeito, pois tal conceito (em sua interpretação “reformista”) questionaria a glória de Deus.


Aparentemente, temos aqui uma supervalorização da divindade (o que seria algo louvável do ponto de vista teológico); porém, Lutero não tinha intenções tão nobres assim ao questionar o conceito de Tradição: na verdade, o que o monge alemão pretendia era unicamente questionar a unidade mundial do Cristianismo e dar margem a seus próprios instintos liberais, contrariando diretamente a noção de sucessão apostólica trabalhada dentro da doutrina cristã desde o século 1. Dessa forma, o raciocínio luterano propôs um Cristianismo simplificado através de uma teologia pobre e utilitária, que omitia tudo aquilo que fosse considerado por Lutero como “tradicional” (já que ele classificava esse conceito – de forma correta – como uma característica católica). Diante disso, o Protestantismo abriu mão de discutir questões metafísicas e sobrenaturais, concentrando sua atenção unicamente em assuntos concretos e palpáveis ao Homem, criando assim um pensamento pré-materialista, que se diferenciava dos materialismos posteriores (séculos 17 e 18) unicamente por ter um pano de fundo religioso. Isso aboliu o uso da razão e da filosofia no cenário protestante, já que a metafísica representaria um estudo “inútil”; assim:


A sua profunda desconfiança (protestante) na capacidade da razão para alcançar a verdade nas questões mais importantes, exerceu papel decisivo na evolução da filosofia moderna: contribuiu para fazê-la redimensionar as pretensões metafísicas da razão, levando-a a desembocar na posição kantiana de redução da área da razão ao campo dos fenômenos (MONDIM, 1982, p. 42. Grifo nosso).


Queremos aqui fazer um pequeno desafio a você, caro leitor: tente conversar com algum conhecido seu que seja protestante (evangélico pentecostal ou neopentecostal, luterano, ou de qualquer outra “denominação”). Tente perceber nesse seu amigo, algo de “tradicional” além de seu discurso conservador para questões morais. Mais que isso: pergunte a seu conhecido protestante o que ele acha do conceito de “Tradição”: provavelmente você perceberá que o moralismo de seu conhecido terá limites, e que apesar dele parecer ser “rígido” para assuntos do dia-dia, irá se mostrar muito “progressista” e “aberto” para questões que não envolvam diretamente convicções morais ou hábitos culturais. Assim, não será difícil para você enxergar seu conhecido protestante como alguém “moderno”, “pra frente”, “antenado” ou ávido por “novidades” (especialmente quando a conversa de vocês cair em temas como “Dinheiro” e “Religião”). É bem provável que seu conhecido protestante diga a você que o conceito de Tradição Ocidental “não existe” (ou mesmo que existe, mas que sua importância é “menor”, ou uma mera “formalidade acadêmica”); ou ainda poderá lhe afirmar que a Tradição simplesmente “é invenção dos homens”…


O motivo dos protestantes serem conservadores para algumas questões e “abertos” para outras pode parecer algo contraditório (e é!), mas não representa (do ponto de vista filosófico) nenhum mistério. Essa contradição protestante pode ser facilmente explicada através do uso da razão (tão desprezada por Lutero): o Protestantismo é um ferrenho defensor do Liberalismo, princípio filosófico que defende o pressuposto de que o Homem tem que ser livre para agir como quiser diante de qualquer assunto (inclusive na forma como interpreta Deus!). O Liberalismo protestante defende duas premissas básicas:


1º) O ser humano é imperfeito por conta do pecado original; por isso, nada que faça, materialmente ou espiritualmente (orações, ascese, purificações, etc.) poderá garantir sua salvação. Assim, rezar é algo quase inútil ao protestante (motivo pelo qual você dificilmente o verá orando fora dos cultos), já que somente a graça divina pode salvar o Homem;


e


2º) O ser humano não pode ser punido por nada que faça (nem mesmo pelos seus próprios erros!), exceto por Deus, que é Todo-Poderoso (e portanto, o Único a ter autoridade para punir o Homem).


Essa “defesa liberal” que os protestantes fazem às ações do ser humano, é estratégica: para Lutero, era conveniente defender sua própria liberdade de questionar o pilar judaico-cristão da Tradição Ocidental, propondo assim uma descentralização do Cristianismo e seu posterior enfraquecimento, ao mesmo tempo em que também usava um discurso intolerante e negacionista, rejeitando o livre-arbítrio do ser humano (quando isso era conveniente a seus propósitos) e naturalizando os erros do Homem a tal ponto, que somente sua fé (e não suas ações a partir dos preceitos da Tradição) seria suficiente para garantir sua salvação (NAVARRO, 2017).


Ao leitor, deixamos uma importante dica: não se iluda com o conservadorismo dos evangélicos brasileiros; tampouco tenha receio de se decepcionar com o Cristianismo por conta das atitudes tomadas pelos protestantes nacionais. O moralismo manifestado no discurso neo-conservador dos protestantes brasileiros não tem nada de “tradicional” (e muitas vezes, nem mesmo de “cristão”): trata-se pura e simplesmente de um discurso liberal, com forte viés econômico (outro grande interesse do Protestantismo, que é o “pai” do capitalismo moderno), e que busca pura e simplesmente defender interesses financeiros e religiosos de um grupo em expansão no país. Obviamente, esses interesses protestantes ficam camuflados em meio a um discurso de conservadorismo social e moralismo cristão, que muitas vezes se chocam diretamente aos preceitos teológicos e filosóficos da própria Tradição judaico-cristã ocidental.


Fenômeno curioso ocorre também com muitos adeptos do meio esotérico brasileiro, que atualmente se apresentam como exímios “tradicionalistas” em suas área de atuação. Muitos desses “neo-tradicionalistas” do esoterismo nacional, inclusive, possuem ampla experiência no campo do Esoterismo Moderno (através de passagens por Ordens Iniciáticas e filosofias espiritualistas pós-século 18), manifestando claro apreço por ideais iluministas em seus discursos. Assim, é comum vermos mestres  “neo-tradicionalistas” do esoterismo brasileiro ofertando cursos de Goetia Salomônica, magia Enochiana ou Astrologia Tradicional, ao mesmo tempo em que defendem ideias liberais e relativistas em suas aulas! (caindo em ampla contradição).


No caso do mercado esotérico americano , a situação também não é das melhores (apesar de lá, o mercado editorial ser bem mais intenso que no Brasil):  é comum percebermos no meio espiritualista dos EUA, autores que se apresentam como “neo-tradicionalistas” e que na verdade misturam aspectos de diversas correntes filosóficas e espirituais sem aparentemente terem nenhum propósito nesse sincretismo. Há ainda aqueles “neo-tradicionalistas” que lançam livros e coletâneas textuais como forma de atrair a si algum argumento de autoridade (ainda que acadêmica); e por último (mas não menos comum), há os “neo-tradicionalistas” que oferecem cursos de formação  em diversas áreas, mas que em sua própria vida pessoal manifestam opções religiosas e espirituais que contradizem diretamente os valores do próprio tradicionalismo que dizem seguir…


A essa altura, você leitor pode estar se perguntando: se a situação do cenário espiritual brasileiro e estrangeiro está tão confusa, o que significa realmente ser alguém “tradicionalista”? Quando podemos concluir que alguém é realmente um adepto da Tradição Espiritual Ocidental?


2. O que (não) é ser tradicionalista


Responder a essa pergunta não é algo simples. Para tanto, iremos recorrer ao método de “análise negativa” (Apofática), que consiste basicamente em se analisar um conceito não através do que ele significa, mas através do que ele não pode significar (usando-se a razão como critério lógico de análise). Essa análise será feita a partir de afirmações específicas que negam o tradicionalismo a partir da interpretação que comumente tem sido dada a ele no Brasil e nos EUA. Esperamos com isso, colaborar com o leitor para chegarmos a conclusão de que nem tudo (ou todos) que se dizem “tradicionalistas”, estão realmente alinhados à algum aspecto da Tradição Espiritual Ocidental.


1º Ponto: Ser tradicionalista não é ser elitista


O primeiro ponto a considerarmos é que ser adepto da Tradição Espiritual Ocidental não é ser membro de um “clube exclusivo de praticantes”: esse tipo de raciocínio é comum nas Ordens Iniciáticas do Esoterismo Moderno (como a maçonaria), que a partir do século 18 usaram (de forma presunçosa) o discurso de que o “verdadeiro conhecimento” só estaria disponível a quem fosse membro de alguma instituição iniciática moderna.


Esse tipo de exclusivismo é intensamente presente no meio esotérico americano, repleto de “igrejas iniciáticas” (quase sempre de caráter gnóstico), e de autores “tradicionalistas” que lançam livros e cursos anualmente (valendo-se do amplo mercado editorial dos EUA), e que transformam a espiritualidade num verdadeiro mercado onde cada estudante é disputado como clientela valiosa (e a própria espiritualidade é tratada como um produto a ser oferecido aos “clientes” certos).


É importante deixar claro que o significado do termo “tradicionalismo” é amplo: alguém pode apresentar-se como tradicionalista apenas sob um viés político; ou mesmo pode se classificar como um tradicionalista apenas sob um viés econômico (como os protestantes o fazem). Porém, independente do espectro que cada um desses supostos “tradicionalistas” defenda, ser um adepto da Tradição Espiritual Ocidental é ser um buscador como qualquer outro.


Ainda que o objeto de sua busca (a Tradição) seja infinitamente mais consistente que a espiritualidade moderna (superficial e iluminista), isso não faz de você alguém “melhor” que o próximo. Longe disso: infelizmente, há muitos “tradicionalistas” que agem de forma presunçosa, soberba e anti-ética; e o estudo da Tradição não fez deles pessoas melhores. Assim, o fato de estudar a Tradição Ocidental e suas culturas não torna alguém “melhor” ou “mais tradicional” que outra pessoa; ao contrário: aí é que se torna necessário compartilhar o conhecimento adquirido, pois “ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine” (1 COR, 13, 1).


2º Ponto: Ser tradicionalista não é ser apegado ao passado


O buscador tradicionalista tem um respeito considerável pelo conceito de Tradição e por tudo que ela representa à espiritualidade do homem ocidental. Isso faz com que todo adepto autêntico da Tradição Espiritual Ocidental (especialmente aqueles que trabalham com o Judaico-Cristianismo), recorram ao estudo de autores e obras clássicas como forma de obter acesso a conhecimentos ignorados pela espiritualidade moderna.


Todavia, o respeito ao passado não pode prender o tradicionalista a aspectos vivenciados em outros momentos da história humana. Dentro da própria Teologia Católica, o ex-papa (emérito) Bento XVI, afirmou em declaração pública, que a Tradição se manifesta como “atualização permanente, na Força do Espírito, e da comunhão eclesial original” (BENTO XVI, ORLF nº 18, 02/05/2006, p.12, Grifo nosso). Assim, pelas palavras do ex-sumo pontífice, percebemos que a Tradição é algo vivo e em constante transmissão.


Vivemos em um período pós-moderno, onde as próprias inovações da modernidade já estão sendo superadas por visões de mundo ainda mais materialistas e desumanas, e por filosofias espúrias que transformam o ser humano numa simples máquina reprodutora de vícios sociais. Dessa forma, o estudo da Tradição Espiritual Ocidental torna-se essencial não como um objetivo em si mesmo, mas como uma arma a ser usada pelo adepto contra os valores iluministas que insistem em se perpetuar na sociedade contemporânea. Por isso, os tradicionalistas autênticos compreendem que a efetividade de seu trabalho junto à Tradição Ocidental só se efetiva mediante uma aplicação útil dos ideais estudados à sociedade em que vive. Não basta estudar a Tradição: é preciso aplicá-la em nossa vida prática (caso contrário, ela torna-se um mero intelectualismo histórico e acadêmico). E prender-se a todas as características do passado não facilita a transmissão da Tradição a outros possíveis buscadores.


3º Ponto: Um tradicionalista não se apresenta publicamente como tal


Outra falha conceitual dos ditos neo-tradicionalistas é a aparente necessidade que tem de apresentarem-se publicamente (e a todo momento!) como “defensores da tradição”. Por isso, caro leitor, duvide essencialmente de alguém que tem um histórico galgado na espiritualidade moderna, mas se apresenta a você como um “guardião dos valores tradicionais”.


Não estamos com isso dizendo que ser tradicionalista é algo inato (que “vem de berço”), ou que certas pessoas simplesmente são tradicionais e outras nunca serão: isso seria recair no mesmo erro de nosso 1º Ponto de análise (defender uma elitização do conceito de tradicionalismo).


Pessoalmente, conheço muitos estudantes do esoterismo contemporâneo que mostraram interesse em se aprofundar na espiritualidade tradicional ocidental, se aproximaram da Tradição e chegaram à conclusão de que a espiritualidade moderna é superficial e falaciosa (abandonando assim, inclusive, seu contato com Ordens Iniciáticas modernas). Logo, chegamos à conclusão de que é possível sim tornar-se um tradicionalista (do ponto de vista espiritual), mesmo que o contato com o conceito de Tradição tenha sido feito de forma tardia.


A grande questão aqui é que “nem tudo que reluz é ouro”: esta máxima se aplica de forma digna aos inúmeros “mestres” do meio esotérico brasileiro, que se dizem ferrenhos “tradicionalistas”, mas que possuíram (e as vezes ainda possuem!) experiências com o Esoterismo Moderno, através de Ordens Iniciáticas ou sistemas filosóficos pós-século 18. Isso, por si só, já representa uma contradição explícita no discurso de alguém que afirma defender uma coisa mas que compactua também com valores que contradizem diretamente o primeiro objeto de sua defesa. E como disse Cristo, em seu sermão da montanha: “Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro” (MAT, 6, 24). Nesse caso, muitos “neo-tradicionalistas” brasileiros tentam a todo custo servir conscientemente “a dois senhores”, que nitidamente não compactuam entre si…


Uma pessoa tradicionalista simplesmente age de forma tradicional sem precisar recorrer a marketing pessoal em torno de suas ações. É comum que um tradicionalista não aja de forma tradicional apenas em seus estudos espirituais: ele tem também convicções tradicionais em outros campos de sua vida (política, economia, cultura, etc.).


Assim, uma pessoa tradicionalista não precisa anunciar a ninguém que o é; e mesmo assim você ainda o reconhecerá como tal. Isso praticamente exclui desse rol de possibilidades os protestantes, que apesar de parecerem ser tradicionalistas (usando uma roupagem moralista em seus discursos), são na verdade adeptos do Liberalismo, com discurso claramente iluminista.


Para não parecer injusto ou parcial, essa recomendação vale também para minha própria pessoa: por mais tradicionalista que eu possa parecer (e realmente sou), não acreditem em minha palavra simplesmente porque estou lhes dizendo isso neste artigo. Antes disso: investiguem meu histórico; entrem em contato com minha pessoa, e analisem minhas posturas, antes de concluir se minhas palavras podem ou não ser consideradas de alguém tradicionalista.


A Tradição está acima de vaidades humanas ou de interesses individuais: ela não perde sua essência, apesar de tomar roupagens diferenciadas em cada cultura e civilização. Assim, “[…] ainda que alguém – nós ou um anjo baixado do céu – vos anunciasse um evangelho diferente do que vos temos anunciado, que ele seja anátema” (GAL, 1, 8). Não acreditem em discursos tradicionalistas apenas porque alguém os proferiu: antes disso, “as ações falam mais que mil palavras”.


4º Ponto: Ser moralista nem sempre é sinônimo de ser tradicionalista


Aqui, grande parte dos neo-conservadores brasileiros perde sua aura de tradicionalismo (se é que realmente querem ser considerados tradicionalistas).


Conforme já conversamos ao longo deste artigo, ser moralista não é sinônimo de ser tradicionalista. Antes que perguntem: sim; um tradicionalista é, em muitos aspectos de sua vida, alguém moralista; mas nem todo moralista é necessariamente um adepto da Tradição Espiritual Ocidental. E os protestantes são exemplos claros disso, uma vez que se opõem a uma das bases da Tradição no Ocidente (o Catolicismo), manifestando total aversão ao conceito de Tradição e a tudo que seja considerado tradicional.


A Ética defendida pelos tradicionalistas segue os preceitos da Moral judaico-cristã presente nos ensinamentos do Judaísmo e do Cristianismo (em seus 15 primeiros séculos de existência). Já segundo Dawson (2014), o moralismo presente no protestantismo é a mesma Moral judaico-cristã, alterada por uma simplificação tendenciosa de natureza liberal: Lutero e os demais “reformadores” estrategicamente se apresentavam como cristãos, mas só seguiam a Moral judaico-cristã naquilo que lhes era conveniente. Assim, “a força de Lutero sempre repousa no subjetivismo: a afirmação dos direitos de consciência, a certeza da fé individual, e o direito de cada homem interpretar as Escrituras por si mesmo” (DAWSON, 2014, p. 115).


O conservadorismo que vemos atualmente no Brasil em nada tem a ver com o tradicionalismo (ainda que muitos neo-conservadores se apresentem estrategicamente como “tradicionalistas”). Ainda assim, a hipocrisia é uma marca registrada desse conservadorismo, que parece se guiar pela máxima do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.


Ao leitor, deixo uma última dica: não avalie o grau de tradicionalismo de uma pessoa (se é que isso tem alguma importância no caráter de alguém) pelo seu nível de conservadorismo, mas acima de tudo pelas suas atitudes, convicções pessoais e por seu respeito ao conceito de Tradição. Se alguém é adepto (ou se já tiver sido) de religiões ou filosofias que contrariem os princípios da Tradição, e se acima de tudo ainda se identificar com os ideais dessas correntes por onde passou, essa pessoa provavelmente não será alguém tradicionalista (e nem se enxergará como um tradicionalista). Essa dica vale também para quaisquer instituições iniciáticas ou filosóficas que se apresentem como “tradicionais”.


Considerações Finais


Não se iluda com aparências, caro leitor. A roupagem não faz de uma pessoa alguém necessariamente tradicionalista. E ainda que o seja, o fato de alguém se dizer tradicionalista (ou se apresentar como tal) não é suficiente, por si só, para se dar confiabilidade a seu caráter.


“De boas intenções, o inferno está cheio”.  Infelizmente é a partir desse pressuposto que devemos analisar a polêmica em torno do “ser” ou “não ser” tradicionalista. Ser tradicionalista não faz alguém ser melhor que os demais, e nem mesmo uma boa pessoa: ultimamente o adjetivo “tradicionalista” tem se referido, no meio espiritual brasileiro (e até mesmo no meio estrangeiro) a pessoas moralistas, conservadoras, e que disfarçam um discurso liberal em meio a interesses particulares. Ou seja: a ênfase nesse neo-tradicionalismo parece ter se perdido em meio a um jogo de marketing onde o “parecer ser algo” é mais importante do que o que realmente se é…


Ao leitor do blog, deixo uma convite à reflexão: não confiem em aparências ou em discursos pré-fabricados de tradicionalismo. O estudo da Tradição Ocidental é importante, mas só é válido enquanto ferramenta espiritual, e não enquanto suporte de engrandecimento do ser humano ou ferramenta de estímulo à ideais fúteis, pois “Maldito o homem que confia em outro homem, que da carne faz o seu apoio e cujo coração vive distante do Senhor!” (JER, 17, 5).


REFERÊNCIAS


BENTO XVI, Papa. Vaticano: ORLF nº 18, 02/05/2006.

BÍBLIA SAGRADA. 1ª Carta de São Paulo aos Coríntios, Capítulo 13, Versículo 1.

______ . Carta de São Paulo aos Gálatas. Capítulo 1, Versículo 8.

______ . Livro do Profeta Jeremias. Capítulo 17, Versículo 5.

______ . Evangelho de São Mateus. Capítulo 6, Versículo 24.

MONDIN, Battista. Quem é Deus? São Paulo: Paulus, 1997.

______ . Curso de Filosofia – Volume 2. 6ed. São Paulo: Paulus, 1982.

DAWSON, Christopher. A Divisão da Cristandade. São Paulo: É realizações Editora, 2014.

GAUDRON, Mathias. Catecismo católico da crise na Igreja. Niterói-RJ: Permanência, 2011.


Notas 

O neo-tradicionalismo brasileiro tem uma base essencialmente protestante, usando um discurso liberal e conservador que lhe dão um ar “tradicional”, mas que na prática o afasta completamente da Tradição Espiritual Ocidental, já que o Protestantismo de Lutero nunca admitiu o conceito de Tradição (essencial ao homem ocidental).


O neo-conservadorismo brasileiro tem um espírito exclusivista e elitista, mas esconde diversas contradições filosóficas e teológicas que o afasta do pilar judaico-cristão da Tradição Ocidental.


Um verdadeiro tradicionalista não se apresenta publicamente como tal, pois a auto-afirmação como “tradicionalista” é uma estratégia de marketing muito comum no meio espiritual brasileiro.

Taumaturgia

  Taumaturgia (do grego θαύμα, thaûma, "milagre" ou "maravilha" e έργον, érgon, "trabalho") é a suposta capaci...