segunda-feira, 29 de junho de 2020

Ciências Ocultas em Bizâncio


Poucos campos da história intelectual européia são tão ricamente documentados, ainda que pouco conhecidos, como a história da ciência e da filosofia bizantina. Esta coleção pioneira de ensaios, baseada em um simpósio organizado em Dumbarton Oaks, em Washington, D.C., em novembro de 2003, busca reduzir essa lacuna em nosso conhecimento, examinando a ‘ciência oculta como uma categoria distinta da cultura intelectual bizantina’. Na categoria das “ciências ocultas”, ambos os editores, consagrados historiadores bizantinos, incluem astrologia, alquimia, interpretação dos sonhos e uma variedade de outras tradições divinatórias que vagueiam em algum lugar entre os pólos de ‘ciência’ e ‘magia’. O problema com o rótulo ‘magia’, como eles argumentam, é que ele diminui qualquer distinção entre, por um lado, os praticantes de magia muito difamados nos níveis mais pobres e menos instruídos da sociedade e, por outro lado, aqueles ‘sofisticados mestres do conhecimento oculto’, que às vezes ocupavam em Bizâncio, os postos mais altos da igreja e do estado. Como um exemplo principal deste último grupo, os editores apontam para a carreira de Michael Psellus, o polímata do século XI e filósofo da corte, que compôs, entre outras coisas, um tratado sobre alquimia a pedido do patriarca Michael Cerularius (1043-1058).Os escritos de Psellus até fornecem, na visão dos editores, uma definição bizantina coerente da ciência oculta como uma categoria epistemológica discreta.

A categoria “ciência oculta” merece uma mais robusta e sistemática explicação do que recebe na introdução do livro. Magdalino e Mavroudi sustentam que os bizantinos possuíam um noção clara das ciências ocultas de forma distinta, mas consistentemente associada a outros tipos de aprendizado, práticos e teóricos. Mas a afirmação dessa distinção por Michael Psellus e outros escritores bizantinos apenas ressalta o quão fluidas essas definições podem ser na prática. O próprio editor enfatiza a variabilidade da tradição manuscrita, na qual se encontra uma desconcertante mistura de tratados sobre alquimia, astronomia e astrologia, botânica, interpretação dos sonhos, geomancia, medicina, magia, numerologia e apócrifos cristãos. Felizmente, o valor do livro não depende de sua capacidade de demonstrar uma definição bizantina unificada das ‘ciências ocultas’. O que ele oferece é uma introdução ao conhecimento de um conjunto de temas intimamente relacionados na história da ciência bizantina, filosofia e magia.

O primeiro ensaio da coleção, a ciência oculta de Maria Mavroudi e sociedade em Bizâncio: ‘Considerações para Pesquisas Futuras‘, analisa a historiografia moderna da ciência grega subjacente em toda a coleção. Esta historiografia inclui marcos de realizações, como os 12 volumes do Catalus Codicum Astrologorum Graecorum, e os nove volumes do Catalogue des manuscrits alchimiques grecs. No entanto, não menos digno de nota são seus buracos. A despeito da criação da competente coleção no início dos anos 80, menos de uma dúzia de textos astrológicos bizantinos e alquímicos foram publicados até agora em edições pertinentes. Mavroudi contrasta essa negligência comparando a evidência abundante de práticas divinatórias no mundo da história bizantina, não apenas na corte, mas mesmo entre as fileiras da clero. O prestígio da “ciência oculta” bizantina também atravessa fronteiras linguísticas e políticas. Poucos leitores discutem Mavroudi quanto aos novos estudos sobre circulação e recepção da ciência bizantina no Mundo Islâmico e no Oeste Latino. Eu gostaria de aditar apenas os estudiosos da literatura Siríaca e Armênia, notadamente ausentes neste volume, podendo contribuir muito para esse diálogo.

Em sua contribuição, ‘O Conceito Grego de Sympatheia e suas Apropriações Bizantinas em Michael Psellos’, Katerina Ierodiakonou explora como um intelectual bizantino (reconhecidamente idiossincrático) remodela o conceito filosófico antigo da simpatia cósmica (συμπάθεια) de acordo com a doutrina Cristã. Psellus convenciona o neoplatonismo em que todas as partes do mundo estavam unidas por um ‘ineffable’ (ἄρρητος) simpathy’ análoga a vida de qualquer organismo, mas rejeitou a crença dos neoplatonistas na capacidade dos seres humanos para manipular esses vínculos. A dúvida estava no modo como observar e estudar os signos embutidos no mundo. Para Psellus, os mistérios da criação de Deus podiam ser discernidos em sinais tão íntimos quanto os movimentos de um ícone ou as letras do grego alfabeto. Psellus apoia a observação de que a viabilidade estratégia intelectual para investigar diretamente o conhecimento Divino é impossível. Como Psellus rememora ao seu público comentando seus estudos do alfabeto grego, já que, ‘não podemos ter a experiência da luz de Deus em todas as suas glória, ainda é menos possível ver seu reflexo na água’.

O ensaio de Paul Magdalino, “Ciência Oculta e Poder Imperial na História da Historiografia Bizantina (séculos IX a XII)” explora a ‘relação tensa e estreita’ entre os especialistas da adivinhação e os governantes bizantinos. Os principais historiadores bizantinos relatam inúmeras histórias que atestam a prevalência da astrologia, estátua mágica entre as outras formas de adivinhação na corte de Constantinopla. De acordo com essas narrativas, as práticas divinatórias atingiram o pico durante os reinados dos imperadores e patriarcas iconoclasta. Na história de meados do século X o conhecido Theophanes Continuatus, por exemplo, apresenta um selvagem invectivo contra o patriarca iconoclasta John the Grammarian (ca 837-843), que alega manter um distinto estabelecimento para freiras apenas para assistir às artes obscuras da adivinhação. Os historiadores bizantinos geralmente pintam uma imagem ambivalente aceitando a ‘interpretação dos fenômenos celestes como uma legítima téchne (arte), em princípio, mas condenando seu uso na prática. Magdalino documenta essa linha de ambivalência entre quase todos os principais historiadores do período bizantino médio. Teófanes Continuatus, na mesma crônica que espeta John Grammarian, por seu vício em adivinhação, preserva um retrato admirador de a experiência astrológica do primo de John, Leo, o matemático ‘levando em consideração sua enorme influência na moderna percepção de um “primeiro humanista bizantino”’. O estudo de Magdalino, ressaltará o registro de episódios individuais das histórias sem atenção suficiente aos contextos narrativos mais amplos em que esses episódios são implícitos.

A dificuldade de segregar as “ciências ocultas” de outras formas do discurso filosófico são bem ilustradas no ensaio de Maria Papathanasiou, ‘Stephanos of Alexandria:A Famous Byzantine Scholar, Alchemist, and Astrologer’. Com base no trabalho do polonista bizantino, Wanda Wolska-Conus, Papathanasiou diz: Stephanos, um ilustre professor de medicina e filosofia em Alexandria do início do século VII, também estava profundamente envolvido em astrologia e alquimia. Além disso, Stephanos combinou essa experiência explicitamente com a piedade cristã; seu trabalho On the Great and Sacred Art of Making Gold começa ‘com orações grandemente influenciadas pelas obras dos primeiros pais cristãos’. A tardia tradição grega e árabe atribuí a ‘Stephanos o Astrólogo’ o tratado astrológico conhecido como Apotelesmatike Pragmateia, que inclui um famoso horóscopo do Islã. Papathanassiou apoia essa atribuição identificando o conteúdo astrológico das aulas de Stephanos e suas escritos alquímicos onde ela encontra evidências de observações astrais feita em 1 de setembro de 621 d.C. Se ela estiver certa, os acadêmicos precisarão dar mais credibilidade aos relatórios do século X que vinculam Stephanos a corte do imperador Heráclio.

A maior história sobre a alquimia em Bizâncio é abordada em uma contribuição de Michèle Mertens ‘Greco-Egyptian Alchemy in Byzantium’. Mertens considera, em particular, a formação do corpus alquímico bizantino. Referências à alquimia, esparsas em Bizâncio, antes de cerca de 500 d.C., surge durante o reinado de Heráclio; mas a situação nos séculos subsequentes permanece obscura. A sobrevivência deste corpus, argumenta Mertens, provavelmente se deu até o nono ou no décimo século em paralelo com a formação de outros compêndios enciclopédicos como o Geoponica, o corpus hipocrático e o Palatine Anthology. Passando por referências de escritores como Photius, George o Monk e o Suda aponta seu interesse para Zósimo de Panopolis (cerca de 300 d.C.) e outros escritores esotéricos estendidos ‘amplamente além dos círculos estritamente alquímicos’ durante o período bizantino médio. Tais questões fundamentais de datação e citação deverão ser esclarecidas após uma história intelectual da alquimia bizantina ser escrita.

Outros ensaios no volume abordam a circulação e tradução de textos entre Bizâncio e seus vizinhos. Em sua contribuição, ‘Late Antique and Medieval Latin Translations of Greek Texts on Astrology and Magic’, Charles Burnett fornece um breve introdução bibliográfica a um conjunto intrigante de informações anônimas e textos latinos pseudônimos. A influência dessas traduções, ele sustenta, tem sido frequentemente subestimada pelos estudiosos que se concentram nas fontes árabes da astrologia e magia latinas. Como exemplo, Burnett escolhe dois textos deste ‘grande campo sombrio’ dos textos prognósticos. Padrões de dicção, vocalização e sintaxe sugerem que esses textos, incluindo, por exemplo, o De luna secundam Aristotilem, derivam de protótipos gregos. Um apêndice ao artigo apresenta uma nova edição do De luna e dois outros textos curtos com base em manuscritos que eram anteriormente desconhecidos ou indisponíveis para Burnett.

Nas mãos de um mestre como David Pingree, para quem em memória os editores dedicam esse volume, padrões na circulação textos podem revelar padrões mais amplos de interação cultural no mundo medieval. Em seu artigo, ‘The Byzantine Translations of Masha’allah on Interrogational Astrology’, Pingree explica por que as obras deste astrólogo da corte abássida (um judeu persa de Basra) era altamente influentes no Ocidente, mas amplamente ignorado em Bizâncio. Tratados de Māshāʾallāh, compostos entre os anos 760 e 810, contêm uma fusão sofisticada da astrologia indiana, persa e grega; mas seu trabalho tornou-se ‘antiquado’ no século IX, os astrólogos islâmicos ‘revisaram e sistematizaram o inapto de Māshāʾallāh e empréstimos não integrados, tanto do grego como do indo-persa tradições’. Tradutores no Oeste Latino, que herdaram apenas um dos principais trabalhos da astrologia científica, como o de Firmicus Maternus, consideraram os tratados de Māshāʾallāh acessíveis e emocionantes. Tradutores bizantinos, ao contrário, voltaram-se diretamente para os recursos avançados dos astrólogos do século IX  Sahlibn Bishr e Abū Ma’shar.

Os debates sobre a legitimidade da astrologia em Bizâncio intensificaram-se durante o reino de Manuel Comnenus (reg.1143-1180), o ousado, a influência ocidental do Imperador e sua devoção à astrologia é bem documentada. Em seu ensaio, ‘Did the Biblical Patriarchs Practice Astrology? Michael Glycas and Manuel Comnenus I on Seth and Abraham’, William Adler disseca cuidadosamente o debate do século XII sobre a legitimidade da astrologia, em que ambos os lados apelaram à autoridade da tradição patriarcal. O imperador Manuel e outros proponentes da astrologia alegaram que o irmão de Adão e filho de Set aprendeu a prática da astrologia de um anjo, e que o patriarca Abraão, um caldeu de nascimento, praticou a astrologia numa forma sancionada de observação astral. Contemporâneo de Manuel, o monge Michael Glycas, contrariou com sua própria literatura os modelos patriarcais. Como prova de que Abraão havia rejeitado a astrologia na sua juventude, Michael apontou para a vitória de Abraão sobre os mágicos do Egito, como descrito no século IX na Chronicle de George, o Monge. Adler enfatiza corretamente o delicado ponto crucial do argumento de Michael, que exigia separar a astrologia de sua prima legítima, a astronomia. Como cronista, Michael era sensível ao poder de pequenos detalhes. Partindo da tradição anterior, Michael Glycas afirma que Deus enviou o anjo Ouriel para revelar a Seth a ciência da astronomia.

Os intelectuais bizantinos do período Paleólogo continuaram a debater a adequação das previsões com base na observação astral. No seu ensaio, ‘Astrological Promenade in Byzantium in the Early Palaiologan Period’, Anne Tihon examina os extensos dados sobre astronomia e astrologia nas obras de seis grandes estudiosos bizantinos dos séculos XIII e XIV. Oponentes declarados da astrologia, como George Pachymeres (1242-1307), rejeitou a legitimidade da confecção do horóscopo de qualquer indivíduo, uma vez que esses horóscopos negam o significado do livre arbítrio. Essa objeção cristã padrão à astrologia, articulada já no século IV pelos pais da Capadócia, ainda teinha peso no século XIII. No fim do século, porém, os imperadores patronos de Trebizond incentivaram a importação de novos dados e métodos astronômicos do Irã. Este material persa logo foi completamente misturado com outras formas da ciência bizantina. Um manuscrito grego do Vaticano, copiado durante o reinado de Andronicus II (reg.1282–1328), justapõe tratados de Euclides, Aristarco, Ptolomeu e João Filopono (entre outros) com textos astrológicos e tabelas da astronomia persa. Como observa Tihon, um ‘inventário mais preciso’ desses manuscritos poderiam esclarecer o volume e a natureza do intercâmbio dessa ciência entre Bizâncio e Pérsia.

Intelectuais judeus no sul da Itália bizantina também se envolveram em debates sobre a legitimidade da astrologia. Em seu ensaio, ‘Hebrew Astrology in Byzantine Southern Italy’, Joshua Holo examina de perto a apresentação da astrologia em dois textos hebraicos da região: a Chronicle of Ahimaaz composta em Cápua em 1054 d.C. e Sefer hakhmoni de Shabbetai Donnolo, um tratado do final do século 10 que comentam uma antiga cosmogonia mística tardia. Ambos os trabalhos ‘abraçam inequivocamente’ o uso da astrologia, mas adotam estratégias muito diferentes para fazê-lo. A Chronicle, por exemplo, distingue assiduamente astrologia de astronomia, apresentando a última como mais neutra e, portanto, menos consequencial. Num episódio revelador, um desconhecido arcebispo cristão do sul da Itália prova ser mais hábil em calcular a aparição da nova lua do que seu rival, Rabi Hananel. O erro astronômico do rabino, no entanto, não causa dano, pois Deus intervém para corresponder à posição de as estrelas para a previsão de Hananel. O autor da mesma Chronicle, separa a questão da precisão astronômica da questão da justiça do praticante. A mesma Chronicle enfatiza os benefícios acumulados pelos astrólogos piedosos: em uma seção posterior, o bisneto de Hananel, Paltiel, ganha o favor do futuro Califa Fatímida al-Mu‘izz pela precisão de suas previsões astrológicas. Holo argumenta que o endosso da astrologia neste e em outros textos hebraicos do sul da Itália bizantina pertence à tradição de aggadah, em que a ‘ambivalência e a ousadia teológica podem florescer sem invadir os fundamentos judaicos da doutrina e da lei’. Essa abertura à astrologia entre importantes intelectuais judeus de Bizâncio contrasta com a forte oposição à astrologia articulada no século seguinte por Maimonides (1135-1204).

No ensaio final do volume, ‘Revisiting the Astronomical Contacts Between the World of Islam and the Renaissance Europe: The Byzantine Connection’, George Saliba examina uma problema conhecido no estudo de Copérnico (d.1543), a saber, quanto o conceito de movimento linear de Copérnico como produto de dois movimentos circulares combinados devem-se aos avanços de muito antes dos astrônomos muçulmanos? Como, em particular, ele poderia ter se tornado familiarizado com o teorema crucial do grande astrônomo muçulmano, Naṣīr al-Dīn al-Ṭūsī, diretor do observatório de Marāḡha no noroeste do Irã fundado em 1259? Astrônomos bizantinos de todo o mundo do século 14 foram bem versados ​​nos últimos desenvolvimentos da astronomia islâmica, mas não há evidência direta de que algum deles tenha copiado teorema de al-Ṭūsī. Com base em uma visão do historiador da ciência Willy Hartner, Saliba argumenta que Copérnico aprendeu o teorema diretamente de um manuscrito árabe. Saliba identifica as cidades de Pádua, Bolonha ou Ferrara, no norte da Itália, como o cenário mais plausível em que Copérnico poderia ter colaborado com um tradutor que possuía a fluência necessária na escrita árabe.

O livro termina com uma bibliografia de 60 páginas e um índice que poderia ter sido mais útil com a adição de subtítulos para temas centrais (por exemplo, planetas, previsões e estrelas). Um índice de 2 páginas separado de manuscritos se destaca com muito material para esses estudos que permanecem não publicados. Em suma, os ensaios neste volume fornecem idéias estimulantes sobre a evolução da astrologia, alquimia e outras “ciências ocultas” que floresceram no mundo medieval. Embora partes de alguns ensaios sejam densas e com vários detalhes  que poderiam ter se beneficiado com uma organização mais rígida, a coleção como um todo atinge admiravelmente seu objetivo. Reuniu em um único volume aceitável, os ensaios que marcam um avanço no estudo de um componente vital, mas muitas vezes negligenciado, na cultura e sociedade bizantina.



Os Anjos Ensinaram Segredos aos Homens


Gerações de exegetas, desde os primeiros escritores cristãos, perderam sono com apenas quatro versículos da Bíblia, registrados em Gên. 6:1-4. Ainda hoje o desconforto é geral entre os autores religiosos: “difícil passagem” (Ballarini), “episódio difícil” (Bíblia de Jerusalém: nota aos versículos), “um dos trechos mais difíceis da Bíblia” (Cimosa). Afinal, por que esses poucos versículos são tidos como tão espinhosos? Entenda-se: espinhosos de interpretar, visto que em brevíssimas linhas compilou-se e consignou-se no texto canônico, definitivo, uma velha tradição iaveísta (partidária do tetragrama hebraico Iavé) referente à união sexual dos ‘filhos de Deus’ com as ‘filhas dos homens’: os primeiros desceram à terra para copular com belas mulheres, daí resultando o nascimento de uma geração ímpia. Então Deus tinha filhos? O texto bíblico é inequívoco ao falar dos bene ha’elohim e a única tradução possível é mesmo ‘filhos de Deus’. Mas como é possível seres divinos unirem-se carnalmente a seres humanos, no caso as tais belas mulheres? Vejamos o trecho que há milênios tanto tem escandalizado pios leitores da Bíblia:

Quando os homens começaram a multiplicar-se na superfície do solo e lhes nasceram filhas, sucedeu que os filhos de Elohim1 se aperceberam de que as filhas dos homens eram belas. Tomaram, portanto, para si mulheres entre todas que tinham escolhido. Então Iahvé disse: “Meu espírito não ficará para sempre no homem, pois ele ainda é carne. Seus dias serão de cento e vinte anos”. Naquele tempo havia gigantes sobre a terra, e também depois: quando os filhos de Elohim se uniam às filhas dos homens e estas lhes davam filhos, estes eram os heróis que foram outrora homens de renome.2

1. Uma das diversas designações da divindade israelita, normalmente traduzida por ‘Deus’; o nome Iahvé, que aparece logo a seguir neste relato, é com frequência traduzido por ‘Senhor’. No primeiro relato da Criação (Gên. 1-2: 14a), por exemplo, a divindade é Elohim, no segundo (que começa em Gên 2: 4b) é Iahvé Elohim.

2. A tradução aqui usada é a de Dhorme (1956).
A história, na verdade, por mais bizarra que pareça, insere-se no preâmbulo do Dilúvio, pois na sequência (versículos 5-7 do mesmo capítulo 6) sugere-se que daquela união espúria nasceu uma geração perversa que só pensava no mal, e assim Iahvé, irritado e arrependido de haver criado a humanidade, decidiu suprimi-la por afogamento. O resto constitui a história de Noé. De qualquer modo, embora inserido na narrativa do Dilúvio, o trecho sobre os filhos de Deus contraria o entendimento corrente da religião bíblica.

Antes de tudo há o problema do antropomorfismo, implícito nos fatos de que (a) Deus tinha filhos e, portanto, (b) não estava sozinho no céu. Com efeito, acostumamo-nos à ideia de que essa divindade sequer tinha forma e, como na criação do mundo, era o espírito solitário por excelência. No entanto, fala-se de seu braço (Is 52: 10), rosto (Ex 33: 23), olhos (1 Sam 15: 19), boca (Deut 8: 3), ouvido (1 Sam 8: 21), lábios (Jó 11: 5) etc. Ademais, acorda como um guerreiro dominado pelo vinho (Sal 78: 65), passeia em seu jardim e conversa com os homens (Gên 3), fecha a porta da arca de Noé (Gên 7: 16), inspeciona a cidade e a torre em construção (Gên 11: 5), aspira odor e resmunga (Gên 8: 21), visita Abraão (Gên 18). O antropopatismo também é evidente quando a divindade, por exemplo, sente alegria (Deut 28: 63), arrepende-se (Gên 6: 6), sente ira (Gên 6: 6 e Êx 4: 14), perdoa (Jer 5: 1, 31: 34, 33: 8) e tem compaixão (Deut 32: 36), vinga-se (Ez 25: 17). Assim, a exemplo de tantas outras religiões do Oriente Próximo, o deus hebraico foi concebido em forma humana, e só uma teologia posterior inverteria tal noção, afirmando que o homem teria sido criado à imagem de Deus (Gên 1: 26-27).

A grande divindade bíblica tampouco estava sozinha no céu. Ao contrário, compartia sua morada com um panteão numeroso, deuses que lhe eram subordinados e que lhe prestavam homenagem como verdadeiro rei celestial. Afora os bene ha’elohim (filhos de Deus), havia os mal’akim (mensageiros, enviados, os ággeloi, anjos, na tradução grega da Bíblia). Em grupos formavam os dat’el (conselho divino), a qahal (assembléia) e o sod (círculo íntimo) dos qedoshim (santos, os que têm assento em volta de Deus). Constituíam, na prática, a corte celeste tal como descrita na visão de Miquéias: “Eu vi Iahvé sentado no trono com todo o exército do céu diante dele, à sua direita e à sua esquerda”(l Rs 22: 19). Ademais, ajudavam Deus a julgar os homens com base nos livros onde se inscreviam seus atos: “Mil milhares o serviam e miríades de miríades se mantinham diante dele. O tribunal tomou assento e os livros foram abertos” (Dan 7: 10). Podiam proteger os homens (Sal 34: 8, 91: 11-12), mas também causavam destruição e morte (Êx 12: 23, 2 Sam 24: 16, Sal 78: 49). No caso dos querubins e serafins, sua imagem é fortemente influenciada por representações correntes no Oriente Próximo, aparecendo como seres híbridos com traços humanos e animais.
Além dos demônios que povoavam e aterrorizavam a terra, alguns personalizados, como Azazel (Lev 16: 9 segs.), Lilit (por exemplo Is 34: 14), Asmodeu (Tob 3:8), entre outros, o deus hebraico tinha oponentes em sua própria corte, dos quais o mais célebre é Satã. Mas acima de tudo Elohim/Iahvé enfrentava continuamente as potências do caos que ameaçavam a sua criação. Tais potências, também elas divinizadas, personificavam-se no Tehom (águas primordiais), palco da criação do mundo (Gên 1: 2), como o monstro marinho Rahab (o nome significa ‘agitação, impetuosidade’) e a serpente ou dragão Leviatã: para criar e manter sua criação,

Deus tem de combatê-los e eliminá-los, e aqui o relato imprime uma dimensão cósmica ao trabalho da divindade. Assim, Deus não hesita em cortar Rahab em pedaços para o aniquilar (Is 51: 9, Sal 89: 10-11, Jó 26: 12) e em esmagar as cabeças de Leviatã (Sal 74: 14, Is 27: 1).

De novo os hebreus inserem-se nas tradições mitológicas do Oriente Próximo. Um primeiro paralelo estabelece-se com o poema acadiano da criação, em que o deus Marduk corta o monstro Tiamat em duas partes, faz de uma destas o oceano celeste e fecha sua água com ferrolhos, assim como Iahvé derrota os monstros das águas primordiais, fende o mar (Sal 74: 13) e impõe seus limites, fechando sua água com ferrolhos (Jó 38: 10). O segundo paralelo vem do ciclo épico de Baal em Ugarit, em que esse deus “esmaga Lotan, a serpente escorregadia, destrói a serpente tortuosa, Shalyat de sete cabeças”, em termos idênticos aos que se encontram em Sal 74: 14 e Is 27: 1,51:9. Por fim, um terceiro paralelo vem do Egito, onde, no âmbito da teologia solar, a serpente Apep (Apófis) ameaça diariamente a criação, na tentativa de fazer o mundo retornar às águas primordiais (Nun), e por isso tem de ser também diariamente derrotada e exterminada.

Removida a dificuldade inicial sobre a visão de um Elohim/Iahvé ‘humano’ que domina, afinal, um extenso panteão, voltemo-nos ao significado dos tais filhos de Deus. Quem eram eles? Os primeiros escritores cristãos preocuparam-se com o problema de sua identificação: como assinalam Comente e Pinero, “é a origem do mal com a história dos anjos caídos, junto com a procedência dos demônios, o que parece interessar mais a esses escritores” ao discorrerem sobre essa passagem. Autores dos séculos II e III, como Justino, Taciano, Irineu, Clemente de Alexandria, Tertuliano, Cipriano, Atenágoras, e no século IV Ambrósio, não só admitiram a história como sustentaram que os filhos de Deus eram anjos. No correr dos séculos IV e V, com João Crisóstomo, Agostinho, Cirilo de Alexandria e Teodoreto, predominou a interpretação de que os ‘filhos de Deus’ eram os descendentes de Set e as ‘filhas dos homens’ descendentes de Caim. Assim não se comprometia a transcendência divina, argumentando-se que os ‘casamentos’ foram legais e que não faria sentido seres divinos se preocuparem com legitimações de origem humana. Outra interpretação é a de que os ‘filhos de Deus’ representam o povo eleito e as ‘filhas dos homens’ “são simplesmente as mulheres jovens”.

Piruetas e contorções exegéticas à parte, não é difícil estabelecer a identidade dos filhos de Deus. Antes de mais nada, como todos os outros seres divinos do panteão celeste, faziam parte da corte de Iahvé, e assim o primeiro grupo de autores cristãos dos séculos II e III, influenciado pelos textos apócrifos e pela Septuaginta (tradução grega da Bíblia feita no século III a.C. para os judeus de Alexandria, que não sabiam ler hebraico), estava certo ao identificá-los como anjos. Em outras passagens do Antigo Testamento, vemos que se apresentam diante de Iahvé (Jó 1: 6 e 2: 1), tributam glória a este (Sal 29: 1) e compartilham de sua essência (Sal 89: 7), mas acima de tudo participaram da Criação ao lado de Iahvé, que mereceu seu aplauso ao concluir a obra (Jó 38: 7), e “quando o Altíssimo repartia as nações, quando separava os homens uns dos outros, fixou as fronteiras dos povos segundo o número dos filhos de Deus”(Deut 32: 8).15

15. Na Bíblia hebraica a alusão é aos ‘filhos de Israel’, mas se trata de um equívoco: discussão em Hedel (1993: 180).
Fora do horizonte estritamente bíblico, é possível detectar a tradição que ‘contaminou’ a história narrada no texto sagrado. Com efeito, é frequente a expressão ‘filhos de deus’ ou ‘descendentes de deus’ (banu ili ou banu ili-mi) nos textos religiosos de Ugarit, na Síria, dos séculos XV a XIII a.C, onde o venerando El — cujo nome significa literalmente ‘deus’ — é o pai dos deuses e dos homens. Tampouco era incomum no Oriente Próximo a ideia de uma divindade unir-se sexualmente a mortais. O próprio El de Ugarit gerou de duas mulheres Shahar (deus da manhã) e Shalim (deus do poente). Na Mesopotâmia a deusa Ishtar corteja abertamente Gilgamesh, rei de Uruk: “Vem, Gilgamesh, sê meu amante, dá-me o presente do teu fruto, serás meu marido e eu tua mulher”.17 No Egito o deus Amon toma a aparência do faraó para ter relações sexuais com a rainha, tornando-se assim o pai de Hatshepsut (c. 1475-1458 a.C.) e de Amenófis III (1390-1353 a.C): Amon foi ao quarto da rainha quando esta dormia, e então “ela acordou com a fragrância do deus. (…) Ele chegou-se logo e com ela copulou; ardendo de desejo, deu-lhe seu coração, de modo que ela pudesse vê-lo em sua forma de deus. Ao aparecer diante dela, ela regozijou-se com a visão de sua beleza e seu amor passou por dentro de seus membros, que a fragrância do deus inundava”.

17. Ver a fala completa da deusa, na sexta tabula da Epopéia de Gilgamesh, em Heidel (1967: 49-50), Speiser (1969: 83b-84a) e Bottéro (1992: 123-124).
Mas a melhor fonte no âmbito judaico — aliás utilizada pelos autores cristãos dos séculos II e III —, que recolhe a mesma tradição dos livros canônicos, porém consigna muito mais do que estes, são os chamados textos apócrifos, em particular o livro dos Jubileus (Jub), escrito no século II a.C. e conservado numa versão etíope de cerca de 500 d.C, feita a partir de uma tradução grega do original hebraico, e os livros de Enoque (En), escritos entre os séculos III e I a.C. e conservados em versão completa etíope composta entre 350 e 600 d.C, feita a partir de tradução grega do original hebraico. Em ambos os livros se conta a mesma história de Gên 6: 1-4, mas ali não só os filhos de Deus são chamados de anjos, como se explicita claramente que os gigantes nasceram da união destes com as mulheres. No relato de Jub 5: 1 é dito que “quando os filhos dos homens começaram a multiplicar-se sobre a face da terra e tiveram filhas, viram os anjos do Senhor, em um ano deste jubileu, que eram formosas de aspecto. Tomaram por mulheres as que elegeram entre eles e lhes pariram filhos, que foram os gigantes”. A narrativa de En 6-7: 1-2 é mais rica em informações:

Naqueles dias, quando se multiplicaram os filhos dos homens, sucedeu que lhes nasceram filhas belas e formosas. Viram-nas os anjos, os filhos do céu, desejaram-nas e disseram entre si: “Eia, escolhamos dentre os humanos e engendremos filhos”. Semyaza, seu chefe, disse-lhes: “Temo que não queirais que tal ação chegue a executar-se e seja eu sozinho a pagar por tamanho pecado”. Responderam-lhe todos: “Juremos e comprometamo-nos sob anátema entre nós a não mudar esta decisão e a executá-la certamente”.

Então juraram todos juntos e se comprometeram a isso sob anátema. Eram duzentos os que desceram a Ardis, que é o cume do monte Hermon, ao qual chamaram assim porque nele juraram e se comprometeram sob anátema. Estes eram os nomes de seus chefes: Semyaza, que era seu chefe supremo, Urakiva, Rameel, Kokabiel, Tamiel, Ramiel, Daniel, Ezequiel, Baraquiel, Asael, Armaros, Batriel, Ananel, Zaquiel, Samsiel, Sartael, Turiel, Yomiel e Araziel. Estes eram seus decuriões.

E tomaram mulheres. Cada um escolheu a sua e começaram a conviver e a unir-se com elas, ensinando-lhes feitiços e conjuros e adestrando-as em recolher raízes e plantas. Ficaram grávidas e engendraram enormes gigantes de três mil cevados de estatura cada um.

Ora, em Gên 6: 1-4 o relato parece truncado, não ficando clara a relação entre a união sexual de seres divinos com mulheres e o nascimento de uma raça de gigantes, o que se esclarece em Jub e En nos trechos anteriormente transcritos.

De qualquer modo, a história só se aclara por inteiro com a continuação da narrativa, que em Gên 6: 5-8 permanece parcial, no sentido de que nem tudo é dito:

Iahvé viu que a maldade do homem era grande sobre a terra e que todo objeto dos pensamentos de seu coração era sempre o mal. Iahvé arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra e irritou-se em seu coração. Iahvé disse: “Farei desaparecer da superfície do solo os homens que criei, e com os homens os animais, os répteis e os pássaros do céu, porque me arrependo de os ter feito”. Mas Noé encontrou graça aos olhos de Iahvé.

Mais uma vez, dessa exposição extremamente concisa, apenas se infere que a maldade podia provir dos gigantes, e tampouco nada se esclarece sobre a natureza de sua iniquidade. Mas por enquanto importa reter que o arrependimento do deus criador em relação à sua criação não é novidade em mitologias do Oriente Próximo. No Egito tratava-se do deus Ra, que, ao ficar velho, percebe que a humanidade tramava contra ele e por isso decide exterminá-la. Na Mesopotâmia, o deus Enlil pretende destruir os homens por meio de pestes e dilúvio, porque estes haviam se multiplicado tanto que seu vozerio chegava ao céu e perturbava os deuses: “A terra ficou muito grande, o povo tornou-se numeroso, a terra bramia como gado selvagem. O deus (Enlil) incomodou-se com sua gritaria. Enlil ouviu seu alarido e disse aos grandes deuses: — Opressivo tornou-se o alarido da humanidade, seu alarido impede meu sono”. Como os homens viviam eternamente, Enlil provocou uma série de catástrofes para diminuir seu número, até decidir-se pelo dilúvio, mas o deus Enki escolheu um homem chamado Atramhasis (também Atrahasis, Atráxis) para salvar-se da inundação, ensinando-lhe a construir uma grande barca que abrigaria sua família e certo número de animais. Uma vez salva a humanidade, Enki sugeriu que a população diminuiria com a criação da morte natural. Também da Mesopotâmia nos chegou a longa Epopeia de Gilgamesh, modelo inequívoco da história bíblica do Dilúvio, tantas e tamanhas são as semelhanças em ambos os relatos.

É igualmente fora do texto canônico da Bíblia, mas ancorada nas próprias tradições hebraicas mais antigas, que encontramos a explicação da ira de Iahvé em relação à humanidade. Hendel sustenta que o castigo divino aos humanos resultou do surgimento de um desequilíbrio cósmico representado pelo acasalamento dos filhos de Deus com as filhas dos homens, e a primeira resposta de Iahvé foi a limitação da vida em 120 anos, e em seguida o Dilúvio, quando pereceram os gigantes.25 O desequilíbrio cósmico ocorreu, mas não devido simplesmente (ou somente) à união sexual de anjos com mulheres, e sim ao desvendamento de segredos ou de conhecimentos até então vedados aos homens, tal como expresso em En 8, em cuja versão etíope se afirma que:

Azazel ensinou os homens a fabricar espadas, facas, escudos, machados, os metais e suas técnicas, braceletes e adornos; como enegrecer os olhos e embelezar as sobrancelhas, e dentre as pedras as que são preciosas e seletas, todos os corantes e a metalurgia. Houve grande impiedade e muita fornicação, erraram e corromperam-se seus costumes. Amezarak adestrou os encantadores e os que arrancam raízes; Armaros, como anular os encantamentos; Baraquiel, os astrólogos; Kokabiel, os signos; Tamiel ensinou astrologia; Asradel, o ciclo lunar. Mas os homens clamaram em sua ruína e chegou sua voz ao céu.

25. Em muitas inscrições funerárias egípcias, onde se consigna a autobiografia do morto, não é raro encontrar o registro de idade muito avançada para este, mas como observa Hornung, “permanece questão aberta se tal asserção contém um algarismo exato, um conveniente número redondo ou uma vontade idealizada”, porquanto “para os egípcios, ‘110 anos’ significa o limite ideal da existência terrestre. E a idade que ocorre repetidamente em inscrições, expressa na forma de um desejo. O Antigo Testamento, do mesmo modo, adota essa idade perfeita para José e Josué”.
Uma das versões gregas conservada em fragmentos por Sincelo (cerca de 800) é mais detalhada (En 8: 1-3):

Azazel, o décimo dos chefes, foi o primeiro a ensinar-lhes a fabricar espadas, escudos e toda espécie de instrumentos bélicos; também os metais da terra e o ouro (como trabalhá-los e fazer com eles adornos para as mulheres) e a prata. Ensinou-lhes também a fazer brilhantes os olhos, a embelezar-se, as pedras preciosas e as tintas. Os homens fizeram tais coisas para si e para suas filhas; pecaram e fizeram errar aos santos. Houve então uma grande impiedade sobre a terra e corromperam-se seus costumes. Logo o grande chefe Semyaza ensinou-lhes os encantamentos da mente e as raízes das plantas da terra. Farmarós ensinou-lhes feitiçarias, encantos, truques e antídotos contra os encantos. O nono ensinou-lhes a observação dos astros. O quarto, a astrologia; o oitavo, a observação do ar; o terceiro ensinou-lhes os signos da terra; o sétimo, os do sol; o vigésimo, os da lua. Todos eles começaram a descobrir os mistérios para suas mulheres e filhos.

Eis a intolerável transgressão: “descobrir os mistérios”, revelar o conhecimento divino, compartilhar e ensinar o que até então era insondável. E o rompimento do limite humano que provoca o desequilíbrio cósmico, e no próprio livro canônico do Gênese temos mais duas transgressões desse tipo que suscitaram o castigo de Deus. A primeira é a história da expulsão de Adão e Eva do Paraíso em virtude de comerem o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal; como declara a serpente a Eva (Gên 3: 5), “Elohim sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal”. A segunda história é a da torre de Babel (Gên 11: 1-9), em que os homens desejam construir “uma cidade e uma torre cujo topo penetre nos céus”, ultrapassando assim a medida humana.

Nos relatos apócrifos, caudatários da mesma tradição que o canônico, torna-se explícito que a ira divina antes do Dilúvio recaiu sobre os gigantes (nefilim), filhos da união espúria dos anjos com as mulheres. Em Jub 5: 2 diz-se que “todos corromperam sua conduta e norma, começaram a devorar-se mutuamente, cresceu a iniquidade sobre a terra”, e na versão etíope de En 7: 3-6 afirma-se que os gigantes “consumiam todo o produto dos homens, até que foi impossível a estes alimentá-los. Então os gigantes se voltaram contra eles e comiam os homens. Começaram a pecar com aves, bestas, répteis e peixes, consumindo sua própria carne e bebendo seu sangue”. Na versão grega conservada por Sincelo de En 6: 2 e 8: 3-4 registra-se que “aumentaram em número, mantendo o mesmo tamanho, e aprenderam eles mesmos e ensinaram a suas mulheres feitiços e encantamentos”, e que “depois disto começaram os gigantes a comer a carne dos homens e estes começaram a diminuir em número sobre a terra”.

Ora, esses gigantes não só foram iniciados nos mistérios divinos, como espalharam o terror na terra e transgrediram normas de conduta. Sua simples existência, aliás, é associada a degradação, “pois os homens selvagens arquetípicos do Antigo Testamento são os grandes rebeldes contra o Senhor, os que desafiaram a Deus, os antiprofetas, os gigantes e os nômades. (…) Como os anjos que se rebelaram contra o Senhor e foram arremessados do céu, estes homens rebeldes continuam – compulsivamente, diríamos nós – a cometer o pecado de Adão”. Por isso são punidos continuamente. A própria palavra que designa ‘gigante’, nefil ou nefiyl, liga-se à raiz do verbo nafal, que significa ‘cair’, mas que se associa também às noções de morte, imperfeição, corrupção e julgamento. Assim, os gigantes são reiteradamente ‘exterminados’ da terra, seja por Moisés (Jos 12:4-6), por Josué (Jos 11: 21-22), por Caleb (Jos 15: 14 e Ju 1: 20), ou até na dupla morte de um mesmo personagem, Golias, que é abatido por Davi (1 Sam 17) e por Elanã (2 Sam 21). A recorrência não é contraditória, pois no pensamento do homem antigo no Oriente Próximo:

os deuses são potências animadoras da natureza. Esta situa-se no plano da realidade. Apesar de sua infinita diversidade, o real é factualmente único. Um objeto possui apenas uma realidade palpável e quantificável. Todavia, para além do real único da experiência humana, reinam forças ordenadoras do mundo, as quais suscitam o plano da verdade. Esta verdade contém todas as potencialidades do imaginário. Para a física moderna, o real e o verdadeiro devem superpor-se. O antigo egípcio via isso de outro modo: se o real era único, o verdadeiro era múltiplo, consequência de sua inacessibilidade imediata. A multiplicidade dos verdadeiros e, portanto, das descrições míticas do mundo, autorizava a diversidade de respostas às questões levantadas pelos homens observadores da natureza. Tal multiplicidade de abordagens permitia a justaposição de imagens míticas aparentemente contraditórias.

A história que começa com os filhos de Deus unindo-se a mulheres e termina com o Dilúvio insere-se, portanto, no ciclo de relatos em que a humanidade é várias vezes punida e ‘exterminada’ por transcender sua própria condição e aproximar-se do divino. Nesse caso específico a narrativa canônica acentua o cunho moral, mas a tradição conservada nos apócrifos revela a causa primeira do castigo: o conhecimento interdito dos mistérios divinos que leva ao desequilíbrio cósmico como ameaça à Criação.

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Sebastianismo e o Esoterismo


Sebastianismo e Esoterismo na Arte do Prognóstico em Portugal (Sécs. XVII e XVIII)
Rui Grilo Capelo
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
O presente trabalho integra-se e completa-se na Tese de Mestrado em História Cultural e Política na Época Moderna, “Profetismo e Prognósticos Políticos nos sécs. XVII e XVIII” (Coimbra, 1990).

“Ah quando quererás, voltando,
Fazer minha esperança amor?
Da névoa e da saudade quando?
Quando, meu sonho e meu Senhor?”
“Grandes mistérios habitam
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.”
“Que símbolo final
Mostra o sol já desperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.”

Fernando Pessoa


1. No âmbito da investigação conducente a uma compreensão mais fundamentada dos prognósticos de carácter mágico-científico, ao longo da nossa Idade Moderna, tivemos forçosamente de fazer a sua integração numa ambiência profética mais lata, de características e origens diversas, mas com um sentido convergente de previsão do futuro mais ou menos longínquo. Se é sabido que a estrutura básica, da cultura europeia é profética e messiânica porque judaico-cristã, também é um dado adquirido, o enorme vinco traçado nessa cultura pelas doutrinas chamadas esotéricas.

Pensamos que em Portugal, tal como na Europa, a “arte” ou “ciência” de fazer previsões para o futuro tem origem na tradição hermética greco-latina e no neo-platonismo, bem como na tradição grega (por via pitagórica) com ligações ao cabalismo hebraico. Hoje, como ontem, misturam-se os conceitos de hermetismo, magia, esoterismo e ocultismo, havendo no entanto, um certo consenso, na sua ligação às histórias das religiões e do pensamento científico.

Por outro lado, o Apocaliptismo e o Milenarismo (já na versão joaquimita, proveniente de Espanha) encontraram no Portugal quinhentista terreno fértil à sua germinação e expansão. Afinal, o prosseguimento de uma onda profética que era Ibérica e Europeia.

Os prognósticos contemplam diversas áreas, procurando, provavelmente, dar resposta à multiplicidade de anseios de uma população diferenciada que os consumia — previsão de aspectos meteorológicos-práticos relacionados com a agricultura, previsão de catástrofes naturais, previsão de acontecimentos vários ligados ao destino individual e ao destino coletivo (saúde, doença, religião, conflitos sociais, guerra, alterações políticas, etc.).

Uma abordagem atenta da documentação, no período maneirista-barroco, permite pôr em evidência prognósticos de temática sebastianista (milenarista-joaquimita), prognósticos de carácter patriótico, prognósticos de tipo mágico-científico (ligações à alquimia, à cabala, à quiromancia, nigromancia, e a outras maneias, sobretudo à Astrologia).

A profusão de documentação astrológica durante o séc. XVII e, principalmente, ao longo de todo o séc. XVIII, afigura-se-nos algo surpreendente, se atendermos quer aos novos desenvolvimentos da ciência astronômica quer ao racionalismo crescente, mas encontramos uma forte correlação com o fenômeno sebastianista que, no mesmo período, se manifesta intensamente através de numerosos testemunhos e de uma prodigiosa produção de manuscritos.
2. Não pretendemos fazer uma análise profunda do fenômeno sebastianista, percorrer todos os seus possíveis enquadramentos e complexidades, mas apenas salientar o seu sentido de previsão do futuro e procurar constatar as suas correspondências com outras formas de elaboração de prognósticos.

O mito sebástico, apesar de muito estudado, explorado e especulado, está longe de se poder considerar esgotado em todas as suas implicações. Provou-o recentemente José Veiga Torres, ao refutar primeiro as ideias românticas do séc. XIX, que consideravam o sebastianismo como um instrumento simbólico de uma Pátria frustrada nas suas ambições imperiais; depois, a leitura comprometida a partir dos finais do segundo decênio do séc. XX, no qual o messianismo nacional constituía uma reserva de virtudes coletivas ancestrais e continha um glorioso desígnio providencial impondo a regeneração da Nação, a reconstrução do império colonial e o cumprimento de uma missão ecumênica que daria a Portugal uma dimensão política privilegiada; finalmente, a visão mais generalizada do fenômeno como expressão da “alma de um povo que sublimava no irreal da esperança as suas decepções de vencido no real da existência”.

Para este autor, o sebastianismo, integrado na corrente joaquimita ibérica e europeia, “foi sempre uma resistência alarmada à transformação cultural e social do país. Resistência que foi eficaz. Funcionou como instrumento de integração social (cristãos-novos) numa zona da geografia social que era crítica sob as pressões econômicas, políticas e culturais sobre ela exercidas. Funcionou como instrumento cultural autônomo de um clero sem fácil acesso a uma cultura racionalista de nível superior e como mecanismo de intervenção (contestação e resistência) na vida social e política. Significa a permanência de esquemas mentais arcaicos numa zona da população portuguesa que julgamos ser a das camadas médias, com influência nas camadas baixas, através do clero. Testemunha finalmente uma coesão e solidariedade de tipo nacionalista, por parte dessas camadas da população, que ajudou a reforçar”.

O conteúdo dos vaticínios de carácter joaquimita-sebastianista apresenta-se bastante constante em relação ao reino messiânico desejado — uma sociedade de paz, amor e justiça, um reino universal de mil anos com a derrota definitiva da potência demoníaca. Entretanto, as variações são já significativas quando analisamos a personagem catalizadora da mudança, o contexto social, político e cultural que determina circunstancialmente a evolução da crença e a fundamentação teórica em que se apoiam os prognósticos.

Os primeiros reveses no Oriente e em África encontram eco nas trovas de Bandarra que profetiza a conquista de Marrocos, o Turco derrotado e o Império Universal. D. Sebastião é considerado o predestinado para a consecução dessas tarefas através, por exemplo, de Diogo de Teive, Frei Miguel dos Santos, Freire de Andrade e por Camões. “As circunstâncias estranhas e trágicas do seu desaparecimento favorecem a mitificação dessa personalidade e também porque as consequências políticas do seu desaparecimento sobressaltaram o nacionalismo das camadas sociais que esperavam o Encuberto“.

Ainda que esta personagem-chave se tenha mantido nas expectativas dos sebastianistas mais tradicionalistas, a Restauração dividiu a corrente profética, com o sentido do seu aproveitamento para atenuar as divisões sociais e “para cerrar fileiras de todo o povo à volta da nova dinastia dos Braganças“.

Manuel Bocarro Francês, alquimista e médico, astrólogo e matemático, “dá o exemplo deste oportunismo patriótico no poema Anacefaleosis da Monarquia Lusitana (1624)* onde prediz o Império Universal sob égide portuguesa”. Na IV Anacefaleosis os prognósticos referem-se “ao duque D. Teodósio de Bragança, em que, sem grande esforço de imaginação, os leitores veriam apontado este príncipe como o esperado encoberto, o rei futuro e salvador do reino lusitano”.
* Como disse, Bocarro publicou em 1624, em Lisboa, um longo poema em 131 oitavas, intitulado Anacefaleoses da Monarquia Lusitana, que dedicou a Filipe III de Portugal. Mas o carácter sebastianista da obra tornou o autor suspeito aos olhos de Espanha, que então dominava em Portugal; dividida em quatro partes ou estados, cantava no Estado Astrológico esperanças de glória e de império universal. A obra publicada acabou por ser apreendida, juntamente com o manuscrito da Anacefaleose IV, dedicada a D. Teodósio, duque de Bragança, pai do futuro D. João IV. Bocarro via em D. Teodósio o Encoberto:

“…………………………………………..

Obrigação te nasce de amparares

Sereníssimo Duque, o Império Triste

…………………………………………….

Eu o uy, Luzitanos, não me engano

Já temos ao Monarcha descoberto

Alviçaras me dai do soberano.”

Apreendida a obra, Manuel Bocarro foi preso, mas libertado pouco tempo depois. Retirou-se para Itália, onde fez publicar a Anacefaleose IV, com o título de Luz Pequena Lunar e estelifera da Monarquia Lusitana. Aí explica os prognósticos feitos anteriormente, e garante a vinda do Príncipe Encoberto em menos de um século após o nascimento de D. Sebastião (Paço da Ribeira de Lisboa, 20 de Janeiro de 1554), portanto, até 1654.
Sob o patrocínio de Bandarra e com o impulso dos jesuítas, principalmente do Padre Antonio Vieira, o sebastianismo é defendido com ductilidade suficiente para identificar o Encoberto com as figuras de D. João IV, D. Afonso VI, D. Pedro II e D. João V. Surge uma literatura político-messiânica em que espíritos esclarecidos forcejaram para fazer crer que a Restauração era a realidade das profecias.

Vieira, para se defender do Tribunal da Inquisição, argumentou com este fato, que conduziu o sebastianismo a sair da clandestinidade e permitiu a livre circulação das trovas do Bandarra.

Embora com efeito mais transitório, os prognósticos sobre o Encoberto caíram sobre personagens menos marcantes do pós-Restauração quando já era patente que as esperanças da primeira hora se não realizavam. Aconteceu com o infante D. Duarte em 1648, com um herói desconhecido das guerras da Itália em 1659, e, finalmente, com D. João de Áustria em 1661. Paralelamente com as trovas, verdadeiro catecismo da crença, surgiram toda uma série de especulações que os sebastianistas atribuíam a individualidades de tempos remotos, algumas criadas só na imaginação — santos, religiosos, visionários, profetas e astrólogos, além de numerosos anônimos. Teixeira de Aragão, como curiosidade, refere que “até a filha de Príamo, morto na destruição de Troia, não deixou de profetizar a vinda de el-rei D. Sebastião“.

António de Sousa Macedo, culto diplomata habituado a viver nas cortes, para legitimar a nova monarquia perante a opinião europeia, não hesita em recorrer a todo um conjunto de vaticínios tradicionais, a previsões suspeitas, de numerosos videntes, casos maravilhosos e prodígios vários.

Lúcio de Azevedo refere que “no séc. XVII a credulidade vestia as roupagens da ciência — teologia, cabala, astronomia (astrologia?) (…) O que depois se agregou ao primitivo cabedal das profecias é o máximo a que poderia rastejar a bronca ignorância dos crentes e a boçalidade dos inventores. Depois de 1820 há ainda quem se ocupe de derrotar o sebastianismo fazendo aparecer o Egrégio Encoberto na pessoa de D. João VI, ao regressar do Brasil”.

A presença das chamadas “ciências esotéricas” em numerosas fontes sebastianistas dos séculos XVII e XVIII está perfeitamente detectada e pensamos que este facto se deve à necessidade de uma fundamentação teórica, um apoio sedutor e rigoroso para uma crença que os espíritos mais ilustrados consideravam perfeitamente irracional.
Uma substancial parte dos prognósticos era retirado do Antigo Testamento e Bandarra afirma-o nas suas trovas. Os elementos bíblicos, no sentido e na linguagem, das trovas, proporcionaram a sua aceitação por parte dos cristãos-novos e até mesmo uma certa identificação do Encoberto com o Messias. Se a tradição milenarista-joaquimita do Encoberto veio de Espanha, também não nos parece demasiadamente arriscado afirmar que já incorporava a esperança judaica. Nas revoltas de Valência, em 1532, o líder da sublevação, judeu, e seus sucessores, intitulavam-se o Encoberto redivivo; por outro lado, a cabala, doutrina mística e esotérica hebraica, está bem presente em Espanha desde a escola de Abraão ben Samuel Abulafia, cujo cabalismo profético teve continuadores ao longo do séc. XIV (Abraão Gikatila) e exerceu influência no pensamento filosófico renascentista.

O crescimento e difusão do Messianismo judaico iria ter grandes repercussões como Teófilo Braga salienta “o gosto e a forma das prophecias Portuguesas do século XVI deve considerar-se como uma influência da cabala conservada entre os cristãos-novos: a Gematria, quarto ramo da Kabala era a mais empregada, considerando-se as letras como números. Nas profecias de Bandarra há esse systema”.

Os prognósticos com fundamento na Cabala e sobre a vinda do Messias, eram frequentes e contemporâneos de Bandarra. São os casos de Isaac Abravanel que anunciava para 1503 a chegada do redentor prometido, Diogo Pires ou Salomão Molco, discípulo do célebre David Rubeni que, por cálculos cabalísticos, interpretava o apocalipse no sentido da chegada do quinto e último império, bem como do próprio Messias para 1540.

As trovas, que se tornaram numa verdadeira Bíblia sebastianista, foram reproduzidas parcialmente e mencionadas em muitos manuscritos dos sécs. XVII e XVIII e também impressas várias vezes até ao século XX. Esta enorme expansão e importância veio inevitavelmente a influenciar outros vaticínios da crença, que não hesitavam em assumir características herméticas, perscrutando o sentido cabalístico da Sagrada Escritura de modo a atingir uma revelação superior, reservada aos iniciados.

Procurava-se, por exemplo, o sentido cabalístico do nome Sebastianus — “é também o nome Sebastianus em si perfeito e completo por toda a regra da arismética a que os Hebreus chamam Cabala (…) Por este modo que as primeiras dez letras contém por unidade, outras dez por dezenas, e as outras que sobejam no abecedário contam por centenas (…) vamos agora ao nome Sebastianus que tomado por cabala faz o número de 628, tirando-lhe os noves, ficam sete número mais perfeito e completo de todos os números em cuja perfeição gastam os Autores muitas páginas (…) Deus depois de seis dias descansou. Os homens depois de seis miliários ou idades do mundo descansaram na sétima idade se é que se pode chamar idade aquilo que é eternidade (…) contudo este tal número (sete) é mais próprio do nome Sebastianus que de nenhum outro; basta por prova sua mesma etimologia; no lexicon do Prapias Litera ‘S’se acham estas palavras ‘Sebá id est septem quod fixum est’, diz que a palavra Sebá sete na língua latina, donde vimos a concluir que sendo o número sete o mais perfeito de todos, sendo Sebá a raiz do nome Sebastianus conserva este vocábulo em si toda a perfeição. Em Sebastião se cumprirão as profecias”.

Também se tomam evidentes, no contexto da crença sebástica, certas coincidências entre as datas prognosticadas pela cabala, para a vinda do Messias judaico e as datas vaticinadas pelos cristãos, para a chegada do Encoberto. No período que se seguiu ao golpe de estado de D. Afonso VI, à crise nacional, correspondia novo surto de messianismo judaico, que esperava o Messias, pela interpretação cabalística do Apocalipse, para o ano de 1666 — “que aquele que tem inteligência conte o número da besta, porque é um número de homem, e é o número 666”.

O padre António Vieira confirma o prognóstico para 1666 — “Aqui chegam agora uns padres de Itália, e dizem que para o ano que vem (1666) se esperam lá grandes mudanças no mundo (…) o céu e a terra parece começam a solenizar as vésperas e expectação do ano de 66 (…) Chama Bandarra a esta era a era dos seis por entrarem nela duas vezes seis, 660, e na era de 666 por entrarem nela três vezes seis, número muito notável e mui notado no Apocalipse”.

Vieira cita Bandarra, pois, efetivamente, encontram-se nas trovas referências ao seis da interpretação cabalística do Apocalipse:

“O Rei novo é escolhido
e elegido…
e nestes seis
vereis coisas de espantar”.
“E depois de eles entrarem
Tudo será já sabido,
Aqueles que aos seis chegarem,
Terão quanto desejarem
E um só Deus será conhecido”.

No entanto, Vieira considera impostoras e fingidas as esperanças judaicas na chegada do Messias para 1666 e refere que “neste mesmo ano é que os sebastianistas com todas as forças dos seus desejos esperavam pelo seu Encoberto”.

Durante grande parte da Idade Moderna, o conhecimento dos princípios básicos de astrologia, fazia parte do universo cultural de todo o homem civilizado. A “ciência” ou arte astrológica, enquanto capacidade de previsão ou adivinhação do futuro, serviu de suporte erudito quer ao sebastianismo tradicional, quer ao sebastianismo aristocrata da Restauração.

Lúcio de Azevedo, interpretando a intervenção de Bocarro Francez na renovação da crença, refere — “aqui a ciência punha-se de acordo com o prodígio, mas, porque falava em nome da razão iluminada, cumpria-lhe corrigir os erros em que laborava a simples fé. Dizia ele que, como sebastianista, acreditava não ter o soberano perecido na batalha.

Rei temos nele, assegurava, não porém em pessoa, mas no sangue da sua raça”.

Para aqueles que adivinhavam o futuro do mundo pelas regras complexas da astrologia, as suas predições não se afastavam das profecias de Bandarra e encontravam nas suas conclusões a confirmação de um futuro de Portugal tal como os sebastianistas esperavam.

O teólogo, filósofo e astrólogo, António Paes Ferraz no Discurso astrológico das influências da maior conjunção de Júpiter e Marte que sucederá neste ano de 1660, observada e calculada para o meridiano desta corte, cabeça de Portugal, previa, através da astrologia judiciária, que o Rei D. Afonso VI cumpriria as promessas concebidas pelos sebastianistas — “A segunda razão é tratar das glórias, felicidades e exaltação do Império Lusitano não só prometido por Cristo ao primeiro ascendente de V. Majestade (…) e por profecias de varões santos e virtuosos, mas ainda conjecturado das influências das conjunções dos Planetas Superiores (…) favoreça V. Majestade com a sua real grandeza estes felizes anúncios aplicados com a pena e o estudo deste seu vassalo”.
Multiplicam-se as referências à utilização da astrologia nos prognósticos sebastianistas. No Jardim Ameno, compilação manuscrita do séc. XVII, pode ler-se “Profecias, revelações e muitos santos e santos religiosos e servas de Deus, varões ilustres e Astrólogos eminentíssimos, que iluminados pelo espírito Santo, escrevem sobre a duração do reino de Portugal a Deo Dato, com sublimação à Dignidade Imperial no Encoberto das Espanhas e Monarquia Universal e última do mundo” e ainda, “sinais que apareceram desde o ano de 1558 até ao ano de 1640 em diversas partes do mundo, no céu e cidades dele”, onde cometas, eclipses e conjunções de planetas prognosticam a próxima chegada do Encoberto.

Verdadeiras listagens de vaticínios atribuídos a “santos, profetas e astrólogos” aparecem em manuscritos dos séculos XVII e XVIII, tendo, grande parte deles, sido interpretados num sentido favorável e adaptado à crença. A previsão de acontecimentos celestes, como eclipses, conjunções de planetas, questões meteorológicas, determinavam, por associação, momentos precisos para a concretização das profecias — “por juízo e prognóstico dos efeitos naturais (…) se faça extensão dos sucessos futuros das monarquias, podendo falar-se de horóscopo e ponto fixo do seu princípio e acertar o auge a que pode chegar a sua grandeza (…) assim se prognostica o fim da intrusão de Filipe II Rei de Castela neste de Portugal (…) e ficar sujeitos à Monarquia Portuguesa que há-de ser a última”.

Se as infiltrações da astrologia nos prognósticos sebastianistas são por demais evidentes, outros fragmentos herméticos onde se manifestam outras disciplinas filosófico-teosóficas, são escassos e de difícil penetração. A alquimia, talvez por necessitar de um mapa do céu favorável às suas realizações, é utilizada nos Anacephaleoses de Bocarro — “é no primeiro anacephaleoses (que intitulo estado astrológico e dedico a Sua Majestade, como o senhor desta Monarquia) mostro astrológicamente como em Portugal há-de ser a última e mais poderosa monarquia do mundo (…) e toco na Pedra Filosofal pela qual se convertem todos os metais em ouro (…) A pedra é medicina tal que as perigosas enfermidades cura os relutantes por oculta virtude em tudo plena, melhor do que Galeno e que Avicena, a gente que perdeu fatal sebasto, (…) cometas pelo Olimpo coruscantes, prognosticaram a fatal ruína”.

Anselmo Caetano Munhoz de Abreu Gusmão e Castelo Branco, a propósito das Conferências Discretas e Eruditas, promovidas pelo 4º conde da Ericeira, refere que este, D. Francisco Xavier de Menezes, afirmou na sua presença, ser a Pedra Filosofal o sebastianismo da Filosofia, “porque todos os homens de grande juízo são crisopeios, assim como os heróis de grande entendimento são sebastianistas (…) estão discretamente comparados os Sebastianistas, com os Herméticos”.

Quer nas Trovas de Bandarra, quer em muitas profecias (sobretudo de anônimos) ligadas à crença sebástica, nota-se um hermetismo que encontra paralelo em Nostradamus (afinal, contemporâneo do Bandarra), médico, alquimista e astrólogo que continua ainda hoje a ser comentado e decifrado.

Estamos convictos que a análise cuidada de obras como A Pheniz de Portugal Prodigiosa…, de Luis Nunes Tinoco, Número Vocal, Exemplar, Catholico e Político…, de Sebastião Pacheco Varela, o conjunto de trabalhos de Anselmo Caetano Munhoz de A. G. e Castelo Branco, trará novos desenvolvimentos à interpenetração do milenarismo sebastianista com fragmentos herméticos, no período maneirista-barroco.
3. Referimos a doutrina profética milenarista-joaquimita e a sua difusão em Portugal através do sebastianismo, corrente que levou à produção de prognósticos durante toda a Idade Moderna.

Procuramos mostrar, nessas previsões, uma frequente interligação entre o sebastianismo e as “ciências” ditas esotéricas; essa associação verifica-se muito íntima desde os inícios do século XVII, como prolongamento dos acontecimentos dramáticos vividos nos finais do século anterior, e estende-se em decrescendo até quase finais do século XVIII, primeiro numa simbiose perfeita entre “ciência e superstição”, depois por caminhos cada vez mais diferenciados devido, principalmente, aos imperativos da razão.

Com efeito, a perda da independência, os movimentos que levaram à Restauração, as mutações econômico-sociais, a intranquilidade da guerra com a Espanha, foram acontecimentos que levaram a um recrudescimento das profecias joaquimitas, que, elaboradas nos conventos, serviam para excitar o povo como uma técnica de captação e propaganda. Esse dinamismo messiânico foi aproveitado por parte do novo poder estabelecido para justificar e reforçar esse mesmo poder, evitar o perigo divisionista e promover a submissão. Com excepção do momento da Restauração, em 1640, não se pode colocar o problema do sebastianismo ao nível dos aparelhos do estado, do poder político, pois “o fenômeno profético e messiânico existe com anterioridade, denunciando um estado de espírito, uma mentalidade, uma representação crítica da vida coletiva que não se pode ligar de imediato a qualquer objetivo político, seja revolucionário seja reacionário”. Sobre as referências ao “sobrenatural” nas sociedades culturalmente religiosas e a impossibilidade de construírem uma consciência coletiva fora da religião, Veiga Torres refere que “este fenômeno pode ser constatado na coletividade nacional portuguesa ao longo do seu tempo histórico, e o sebastianismo mostra-nos que a sociedade portuguesa, ao nível social onde o sebastianismo se produziu e sobreviveu, era uma sociedade que não se compreendia coletivamente senão como uma sociedade religiosa, onde a consciência política era essencialmente uma consciência exigindo um certo comportamento religioso”.

Francisco Manuel de Melo assegura-nos com o seu testemunho que, antes da Restauração, o número de sebastianistas aumentava em proporção do descontentamento geral e, que, em 1637, o profetismo sebastianista teve um papel relevante pela palavra ardorosa dos oradores jesuítas, sustentada pelas “sentenças dos santos, os oráculos dos profetas e o juízo dos Astrólogos”.

Circulava, assim, em Portugal uma vastíssima quantidade de prognósticos sebastianistas que, visando uma esperança no futuro, viviam a expectativa de acontecimentos decisivos, quer com o sonho de reforma do mundo através de D. Sebastião, quer com a sede de independência e de autonomia política. Tanto na corrente sebastianista pura, ou seja, joaquimita, como na versão aristocrática da Restauração, encontramos prognósticos profundamente enredados com a teoria astrológica das grandes conjunções. Esta constatação afigura-se-nos importante, porque outros autores apenas apresentaram hipóteses pouco conclusivas, acerca de uma possível ligação entre o profetismo joaquimita e a teoria das conjunções. Eugênio Garin diz que “as influências recíprocas precisas devem ainda ser examinadas a fundo”, e Patrick Curry refere que na Inglaterra “os almanaques dos finais do século XVIII certamente discutiram e disseminaram as ideias milenaristas”. Situa-se aqui o fulcro do nosso interesse.

Esta teoria espalhada no Ocidente pelas obras dos astrólogos árabes, Alkindi e Albumasar, pretende uma ligação estreita entre alguns fenómenos celestes, como as recíprocas posições de planetas, e as grandes mutações na história da humanidade. “Crises históricas decisivas, tais como mudanças de hegemonia de povos e civilizações, o advento ou o declínio de religiões, a afirmação e a derrocada de reinos e impérios: tudo isto seria medido segundo os movimentos do relógio celeste. Nos céus, nas ‘danças’ dos astros, nos seus encontros, seriam descritas as épocas da história dos homens”.

Genericamente, Bocarro Francez refere que “cinco coisas extrínsecas são as que trazem os astrólogos sobre a mudança dos impérios (…) a primeira é as conjunções dos planetas superiores Saturno e Júpiter, as mudanças dos auges dos planetas e principalmente do Sol, a obliquidade do Zodíaco, o orbe magno (…) As conjunções máximas se fazem em signo de fogo (…) e estas causam na forma declarada as maiores mudanças do mundo, conforme a calculação astrológica que mostra, que todas as grandes mudanças que nele move foram nestas conjunções”.

No Discurso que o doutor Manuel Bocarro Médico, Filózofo e Mathematico Lusitano, fez sobre a conjunção máxima, que se celebrou no anno de 1603, 31 de Dezembro, o autor elabora a sua interpretação sobre a conjunção máxima de Saturno e Júpiter “em 10 graus e 26 minutos de Sagitário, signo que domina em Castela, e se faz na 10 casa, que é de Reis, e Reinos, estando precisamente em rigor geométrico perpendicular a Lisboa, por onde lhe denota exaltação” e concretiza o prognóstico “assim ao Império Romano seguiu-se a Monarquia Maometana e se pode conjecturar que se há-de levantar a última e mais poderosa Monarquia que provarei ser Lusitana (…) Além das razões astrológicas por donde se conjectura que o Império Lusitano se há-de levantar com Suprema Monarquia (…) acho alguns vaticínios proféticos que varões santos e pios deixaram escrito sobre este particular”. Esta previsão pré-restauracionista, joaquimita e conjuncionista visava, como atrás foi dito, o derrube do domínio filipino e a ascensão de D. Teodósio, duque de Bragança.
A mesma conjunção máxima de 1603, serviu para um autor anônimo do século XVII formular um prognóstico, em 1654, de carácter joaquimita-sebastianista puro, onde antevia “que sairia das partes mais ocidentais um príncipe que se intitularia Rei dos Cristãos, de um reino o mais pequeno e menos poderoso do mundo que Deus escolheria para destruição do Turco. O qual Rei, Deus escolheria para esta empresa sendo o menos poderoso para mostrar que obrava nele o poder divino, não o braço humano; Ele faria liga com os príncipes católicos e destruiria o Turco. Nele principiaria novo Império e o do Turco acabaria. Pergunta-se logo em que tempo tinham complemento estas profecias. Responde a profecia que da era de 1645 até à de 1660 se veriam cumpridas, porque durante estes quinze anos continuarão os efeitos da conjunção máxima”.

Outra previsão de tipologia similar mas referente a uma conjunção máxima do ano de 1623, afirma que “estiveram juntos nos seis graus e trinta e cinco minutos de Leão os dois superiores — Saturno e Júpiter (…) dizem os autores que têm experimentado o que por estas referem, nova gente e um grande nome se fortificará sobre a gente (…) um novo Rei e uma nova gente irão dominar o Mediterrâneo dos tártaros no ano de 1625”. O autor, anónimo, tece considerações de natureza astrológica, para justificar as alterações políticas que se irão produzir, apoiando-se em autoridades consagradas como Ptolomeu e Albumasar.

Para além do seu carácter político-religioso tradicional, estes prognósticos assimilam também, dentro da teoria das conjunções, o chamado horóscopo das religiões que lhe é intrínseco — “querem os filósofos que Júpiter na sua conjugação com os outros planetas signifique religiões e fé. E dado que são seis os planetas com que pode conjugar-se, sustém que seis devem ser no mundo as religiões principais (…) Se se conjuga com Saturno, significa os livros sagrados, isto é, o Judaísmo, que é a mais antiga que as outras seitas, como Saturno é o pai dos planetas (…) Se Júpiter se conjuga com Marte, dizem que significa a ‘lei’ caldaica, que ensina a adorar o fogo (…) Se for com o Sol, significa a ‘lei’ egípcia, que quer que se adore a milícia celeste, de que o Sol é o senhor. Se for com Vénus, dizem que significa a ‘lei’ dos Sarracenos, que é completamente voluptuosa e venérea (…) Se for com Mercúrio, a lei mercurial que é a cristã (…) até que venha perturbá-la, última, a ‘lei’ da Lua, que é a seita do Anticristo”.

Assim, depois da ascensão e domínio da religião islâmica, deverá sobrepor-se-lhe a cristã, na qual um guerreiro santo, depois de esmagar as forças maléficas e demoníacas, deverá liderar o seu povo na direção do Reino dos Santos, do Evangelho Eterno.

Já na segunda metade do século XVII, o filósofo e matemático António Paes Ferraz, escreve um prognóstico, que ele próprio intitulou de discurso astrológico, em que, visando fins políticos imediatos — apresentar D. Afonso VI como a concretização das esperanças sebastianistas, num período de instabilidade em que o Conde de Castelo Melhor ultimava o “golpe de palácio” que terminou com a regência de D. Luisa de Gusmão — mostra a força e a implantação da doutrina astrológica judiciária em meios eruditos, constituindo a mais fecunda utilização e profundo conhecimento da teoria das conjunções, face à corrente profética nacional. O autor tem a preocupação de vincar o estatuto de “ciência”, relativamente à astrologia, “ciência que só compete aos grandes príncipes, pois é a mais nobre de todas as que têm por objeto o Material”. Retira-lhe conotações religiosas, defendendo-se, ao mesmo tempo, com a nomeação de figuras da Igreja que a utilizaram com “tanta estima”. Refere que “o senhor D. Manuel Rei de Portugal que por esta ciência senhoreou as partes do Oriente e Ocidente” e que “nesta altura prosseguia o mais sábio por estrela, o sereníssimo príncipe D. Teodósio que Deus tem em glória, irmão de vossa majestade”. Desenvolve, de seguida, o corpo teórico da teoria das conjunções — “Os planetas errantes são sete, convém a saber, começando de cima para baixo Saturno, Júpiter, Marte, Sol, Vénus, Mercúrio e a Lua. Destes sete, os três, a que chamamos superiores, são Saturno, Júpiter e Marte porque estão acima do Sol. Destes planetas se formam certos congressos ou conjunções, cujos nomes são conjunção Máxima, Maior e Magna. Alguns dão quatro conjunções a saber, Máxima, Maior, Média ou Magna (…) A máxima é a que se faz de dois planetas, qualquer dos Superiores em algum dos 4 signos cardeais, como sucedeu no ano de 1453 em que o Turco alcançou o Império de Constantinopla, que se faz de Júpiter e Marte em Capricórnio. A maior é a que sucede de dois destes planetas em qualquer signos fixos e sucedentes aos cardeais; e este influi sobre monarquias, que dominam reinos, que lograram Reis naturais. A conjunção magna é a que se faz dos ditos planetas em qualquer dos signos cadentes, e a sua influência é sobre reinados e potentados”. Pela sucessão de conjunções que implicam mudança, são justificados alguns acontecimentos políticos, como a morte do Cardeal D. Henrique em 1580, a subida ao trono de Filipe I, a aclamação de D. João IV e, especificamente, pela conjunção de 1660, o autor concretiza a sua previsão — “Assim como Marte influiu guerras no espaço dos 20 anos passados, também Júpiter nos influi daqui por diante não só sossego nas armas, mas ainda pazes com os maiores inimigos nossos (…) todas estas boas influências logrará este Reino de Portugal por espaço de 30 anos; será abundante, feliz, rico e pomposo; seus naturais bem afortunados, descansados gozarão felicidades, haverá boas navegações (…) as terras serão férteis e abundantes em seus frutos (…) os comércios felizes (…) o princípio das abundâncias será o ano de 1663 em que os mais dos príncipes da Europa estarão em paz com este Reino e ainda o maior inimigo nosso (…) estes finais e conjecturas são indícios e prognósticos de grandes felicidades, aumentos e exaltação deste Reino de Cristo, no domínio da Real pessoa de S. Majestade e da Rainha Nossa Senhora que veja e logre todas estas felicidades na vida do seu muito amado filho, Rei e Senhor nosso”.
As conjunções planetárias continuaram a influenciar os prognósticos astrológicos, embora em decrescendo a partir dos finais do século XVII; julgamos, também, que o seu estreito relacionamento com a doutrina joaquimita-sebastianista se desvaneceu completamente ao longo do século XVIII, na medida em que os novos parâmetros de racionalidade se impunham.

No exterior desta fecunda relação, outras previsões de raiz astrológica circulavam no conturbado Portugal de seiscentos. Fenômenos celestes, os chamados “sinais do céu” eram utilizados pelos astrólogos em contextos políticos fundamentais: — a perda da independência, o domínio estrangeiro, a Restauração, a consolidação da nova dinastia.

Novamente, Bocarro, adverte para o reconhecimento dos sinais astrológicos: “Eminente perigo seguido de si mesmo atente-se o naufrágio próximo passado. Aí Lusitania não fizeste caso do aviso, que talvez fala o céu por línguas de meteoros, por boca de pecadores: escolher os tempos e temer a Deus, fugir do que ameaçavam os astros, conhecer a sua causa”.

O desastre de Alcácer-Quibir é justificado, posteriormente, pelo aparecimento de estrelas, cometas, eclipses, surgindo, depois, novos sinais que vão prognosticar o derrube do domínio Castelhano e justificar o movimento restaurador. Ainda depois de 1669 se afirmava “apareceu na praia junto ao forte poucos dias antes a infeliz jornada de Africa, um grande peixe espada que do mar lançou a terra como aviso: numa parte tinha esculpido um azorrague e açoite, na outra muito ao claro a era de 1578 tempo em que deu princípio a satisfação das nossas culpas” e o aparecimento de uma estrela extraordinária em 6 de Outubro de 1604 “começou a aparecer uma estrela nova, nunca vista, que durou até ao 29 de Novembro que foi coisa de que se admirarem mais os matemáticos do que quantos sinais até então tinham visto, e começou a desaparecer pelo poente de fronte da barra de Lisboa”. Aqui aparece um elemento novo — o prodígio que, juntamente com o milagrismo, vão ser frequentemente utilizados nos sécs. XVII e XVIII, se bem que com fins políticos e religiosos, também com sentido de previsão do futuro. O milagre de Ourique e a sua consagração oficial nas Actas das Cortes de Lamego, revela uma história nacional próximo da epopeia e do providencialismo miraculoso, exemplo maior de uma verdadeira onda de milagres e prodígios, cuja receptividade, neste período, é sintoma de subsistência de “formas de mentalidade mágica que não se podem confundir, de qualquer maneira, com o misticismo e que se podem encontrar por toda a Europa”.

A observação periódica de cometas, o mistério da sua origem e constituição, cedo levou os homens ao receio e à atribuição de estranhas significações. Em 1615, é bem revelador o tratado de Frei Martinho de S. Paulo, organizado pelo seu sobrinho, João de Araújo Sardinha, em que o autor integra as influências nefastas dos cometas, quer na astrologia natural, quer na judiciária. Depois da referência ao cometa do ano de 1577 “o qual se fez junto do pé direito do Setentrião e feneceu na constelação de Pegazo, a quem se seguiu logo a morte de El-Rei D. Sebastião (…) em África, com destruição do seu exército, e cativeiro do Reino Português na Coroa de Castela”, Frei Martinho mostra, de um modo completo, muito do que o aparecimento dum cometa pode prognosticar — “grandes mudanças e alvoroços, discensões e calamidades (…) causas mortes de Reis, principes e sábios (…) motins, alvoroços, levantamentos, feitos horrendos e espantosos (…) no Verão — esterilidade (…) no Inverno — leis e costumes novos (…) cometa e m tempo de eclipse — destruição de algum reino, impérioou província (…) cometa em tempo das conjunções de Saturno, Júpiter e Marte — males duráveis, dissídios e devastações (…) cometa de tarde — enfermidades, esterilidades, terramotos e inundações (…) a natureza dos efeitos se pode conhecer pelos planetas, signos e estrelas com quem se junta o cometa (…) poucas vezes se viu que depois se não seguisse morte de príncipes e outras muitas mortes, pestes, guerras, ruínas de cidades e reinos”.

Dos inúmeros prognósticos seiscentistas sobre cometas que observamos, vamos apenas mencionar três, quer pelo seu discurso menos repetitivo, quer pelo facto de, dois deles, no mesmo ano, utilizarem as mesmas premissas, isto é, os dois cometas observados no mês de Novembro de 1618. O terceiro reporta-se já aos finais do século.

Pedro Mexia, matemático residente em Lisboa, explica que os cometas procedem de exalações da Terra e que os seus efeitos são da vontade de Deus — “Deus Nosso Senhor é tão misericordioso para o gênero humano que sempre que nos quer enviar algumas aflições e trabalhos devido aos nossos pecados, previne-nos com sinais”. Depois de exemplificar o poder dos cometas com a queda do Império Grego, com a infeliz jornada de Africa e a morte de D. Sebastião “e como veio depois o catarro que tanta gente enviou para o outro mundo”, Mexia, apoiando-se nas autoridades do venerável Beda, de Santo Isidoro de Sevilha, de S. João Damasceno, dos árabes Albumasar e Haly, constrói um prognóstico de “muitas guerras e divisões entre soldados para pedir aos seus superiores coisas impossíveis, muitas inflamações no ar, graves pleitos e contendas entre grandes príncipes e senhores (…) muitos danos à gente rústica”. Finalmente, apresenta uma série grande de países e regiões que sofrerão danos e prognostica o fim do Império Otomano — “poderão os turcos com razão dizer que chegou o tempo de cumprir-se aquela profecia que eles têm e tanto temem, de perder-se o Império Otomano”.

Bocarro Francez, no seu tratado sobre os mesmos cometas de 1618, reconhece o livre arbítrio do homem, mas afirma “que também há nele potências naturais, órgãos corporais e sentidos, no qual não difere dos outros animais e quanto a isto está sujeito ao Sol, à Lua, às estrelas e planetas que tem próximo poder no ar e causam as mudanças deles”. O astrólogo socorre-se de nomes famosos para concretizar as suas previsões (prática muito utilizada, provavelmente uma forma de iludir os inquisidores) — “Por ocupar este cometa o signo da Libra e ser gerado do malévolo Saturno, inimigo do género humano e proceder no nascimento ao Sol, denota (seg. Ptolomeu) a morte de um grande monarca das partes ocidentais, mortes extraordinárias e arrebatadas de senhores príncipes e nobres: inquietação de Reinos, mudança deles e de muitos estados (e em Espanha particularmente) como também queda de muitos poderosos e suas desprivanças, e exaltações de outros e grande confusão destas e outras novidades; e por derradeiro a espiga da Virgem que é estrela benévola junto de Libra, denotaram estas calamidades fim e ver-se Espanha em sua antiga quietação e ócio. Em Itália, terra de Romanos, denota muitas guerras e civis conflitos a acabarem-se uns com os outros (…) nas partes orientais se levantarão os servos contra os seus senhores. E segundo Albumasar assina-la guerras latrocínios gravíssimos e atrozes nas partes sujeitas a Libra e Virgo e a seu triângulo (…) porque não se fará justiça em nenhum caso grave nem a Haverá com poderosos, e assim roubarão publicamente, prevalecendo os maus, que sem vergonha nenhuma cometerão insultos e roubos nunca vistos e se levantarão com as fazendas dos pobres, viúvas e órfãos (…) incitará e provocará a todos, a todo o gênero de fornicação e pecados abomináveis e nefandos, torpezas diabólicas e bestiais e nos ameaça com elas na nossa Europa porque publicamente nas cidades mais populosas e onde houver comércio de diferentes nações, se verão. Denota traidores e amigos fingidos, quebra de mercadores e por padecer Virgo, denota que as senhoras donzelas serão enganadas e desfloradas, pelo que nenhuma se fie em amores se não quiser ficar sem honra porque todos serão enganos (…) grandes águas e tempestades e enchentes no Tejo, nos quais se afogarão muito gado e muitas pessoas”. Procurando evitar o risco do descrédito, Bocarro adverte que “isto é o que acho escrito nos autores graves, aos quais se não há-de dar fé, nem crédito, cuidando que há-de ser assim, mas muitas vezes hão acertado em seus prognósticos, por tanto não se há-de menosprezar o que eles escreveram”.

Apesar do tom impreciso e calamitoso, tão característico deste tipo de prognósticos, é perfeitamente visível uma intenção milenarista, traduzida pelo descontentamento popular, face à situação político-social vigente.

4. Pensamos que o cruzamento do milenarismo joaquimita com as “ciências” divinatórias se toma um fenômeno natural e é bem patente nos documentos sebastianistas dos séculos XVII e XVIII. Ambas as correntes visavam uma incursão no futuro e, se os ideais do “Encoberto” e do V Império eram uma finalidade bem definida, necessitavam, por outro lado, da credibilidade e da força que, por exemplo, a astrologia detinha na época.

A associação da teoria das conjunções astrológicas com o sebastianismo, durante o séc. XVII e princípios do séc. XVIII, bem como as inúmeras referências sebásticas em textos herméticos (cabalistas, alquimistas), constituem prova inequívoca da permanência do fenômeno profético e da longevidade das práticas esotéricas.

O dealbar do séc. XVIII trouxe, contudo, alterações que convém sublinhar. Nos textos sebastianistas verifica-se a preocupação de uma organização lógica do conjunto de profecias, que traduz uma atitude de defesa, face à agressividade de uma sociedade que racionaliza. Essas profecias são já normalmente inseridas num discurso, ou num pretenso diálogo, que procura, através do silogismo escolástico, provar que o “Encoberto” deve ser esperado. As paráfrases, as exegeses, os cálculos, continuam, mas inseridos numa falsa polêmica que denuncia um certo afrontamento com uma sociedade que começa a opor a razão ao imaginário, na concepção da sua organização.

Os avanços de uma nova mentalidade, que pretendia ser científica, técnica, pedagógica, uma nova maneira de conduzir a política, um maior empenhamento na economia, uma maior aproximação do racionalismo europeu, são premissas que permitem concluir que a sociedade se afasta cada vez mais da sacralização tradicional do poder, que o absolutismo real chega ao auge e, com ele, a afirmação de que o poder político é sagrado por si e não por instâncias religiosas. Pombal vai tentar aniquilar definitivamente a “desrazão” sebastianista, associando-a aos jesuítas, como mentores de todas as superstições. Os resultados pretendidos não são alcançados — os sebastianistas verão em Pombal a confirmação das infelicidades que precedem a chegada do salvador, continuarão a resistir às ideias novas (para eles abomináveis) dos racionalistas, liberais, franco-mações e dos jacobinos, e continuarão a desejar sempre uma ordem social e política plenamente sacralizada e tradicionalmente arcaica.

A relação do sebastianismo com o hermetismo desvanece-se completamente, durante a segunda metade do séc. XVIII e, contrariamente à corrente milenarista de cunho nacional, que apenas se calou definitivamente, na sua forma tradicional, com a expulsão das ordens religiosas, a secularização progressiva do clero diocesano e a consolidação das instituições liberais, as “ciências” divinatórias entraram em franca decadência nas últimas décadas do séc. XVIII, através das inovações culturais que, a partir do reinado de D. João V, tiveram um efeito progressivo e, fundamentalmente, pela ação das medidas reformistas de Pombal, as quais correspondiam às exigências culturais e científicas que atravessavam a Europa e que chegavam a Portugal (ainda que com um certo atraso).

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