Capítulo 5
A Mística Judaica na Literatura
Estabelecida a natureza críptica da literatura que os sefarditas produziram no exílio é importante esclarecermos alguns pontos de interseção entre a prática da Cabala peninsular e a sua influência no pensamento de intelectuais de origem judaica que se destacaram no contexto da diáspora Atlântica. Essa relação pode ser percebida no romance de Bernardim Ribeiro cujos aspectos literários analisamos no capítulo anterior.
A Cabala é caracterizada por ser uma interpretação mística da halakhah (lei rabínica). Esse esoterismo47 de influência gnóstica surgiu da interpretação místico-simbólica dos textos da Torah, da tradição e de tudo mais que diz respeito à lei rabínica (GOETSCHEL, 2009). Contudo, na visão de Gershom Scholem, “o misticismo judaico é a soma das tentativas feitas para introduzir uma interpretação mística no conteúdo do judaísmo rabínico, tal como este se cristalizou na época do Segundo Templo e posteriormente”. (SCHOLEM, 2002, p. 43).
Na tradição judaica os livros básicos da Cabala são: o Séfer Yestziráh (Livro da Criação, compilado entre os séculos III e VI d.C.), Séfer há-Bahir (Livro Bahi48, séc. XII) e o Séfer há Zohar (Livro do Esplendor, Séc. XIII).
Para nós o importante é salientar como a Cabala foi bastante difundida na Espanha das três religiões e como a sua proliferação nos demais círculos judaicos foi preponderante nesse contexto . Contudo, Leon Poliakov defendeu que, Enquanto as classes superiores permaneciam abertas à influência do racionalismo greco-árabe, as classes inferiores desenvolviam suas próprias formas de misticismo popular, paralelamente à difusão do misticismo cristão (...) daí o impulso tomado pela Cabala e o êxito do livro do Zohar. A eterna necessidade humana de elucidar as causas das misérias e das injustiças nesse mundo terreno, de conciliá-las com a sabedoria divina, estimulava as especulações e os cálculos cabalísticos. (POLIAKOV, 1996, p.115). O edito de expulsão dos judeus da Espanha, em 1492, marcou uma nova fase no desenvolvimento da Cabala peninsular. Nesse período, os judeus se viram em mais um momento de exílio e, consequentemente, de autoanálise. Os novos cabalistas, como demonstrado anteriormente, representados especialmente por Isaac Luria (1534-1572) e Moisés Cordovero (1522-1570), abandonaram os textos da escritura e dedicaram-se à interpretação do Zohar, tornando-se assim, responsáveis pela renovação do misticismo judaico. (OLIVEIRA, 2003).
É extremamente significativo perceber que a expulsão dos judeus da Espanha e concomitantemente o surgimento do criptojudaísmo provocou várias transformações na Cabala peninsular51. Uma das principais modificações é que sua doutrina, a partir de então, será difundida para um público mais abrangente. Dessa forma, na concepção de Gershom Scholem é a partir da expulsão dos judeus do solo espanhol que... (...) o cabalismo sofreu completa transformação. Uma catástrofe de tal dimensão, que desarraigou um dos principais ramos do povo judeu, não podia deixar de afetar quase toda esfera de vida e sentimentos judaicos. Na grande reviravolta material e espiritual daquela crise, o cabalismo estabeleceu sua pretensão de domínio espiritual no judaísmo. Este fato se tornou óbvio imediatamente quando o cabalismo se transformou de uma doutrina esotérica numa doutrina popular. (SCHOLEM, 1995, p. 273). Já em Portugal e na Itália, diferente da Espanha, a Cabala irá ser disseminada internacionalmente entre os grandes intelectuais renascentistas. Na explicação de Jean Delumeau, essa difusão do pensamento cabalístico ocorreu assim:
(...) Foi a Itália humanista que deu a cultura hebraica esplendor internacional. A meio do século XV, graças a Nicolau V e ao erudito Gianozzo Manetti, que estava ao seu serviço e procurava os manuscritos hebraicos, a Biblioteca Vaticana era a mais rica do Ocidente não só em manuscritos gregos, mas também em obras judaicas. Alguns anos mais tarde, Pico della Mirandola (1463-1494), que israelitas de Pádua e de Perugia tinham iniciado na Cabala, conseguiu reunir em sua casa uma centena de obras judaicas. Foi, no seu tempo, o grande promotor dos estudos hebraicos e teve influência decisiva sobre Rcuchlin (1455-1522), que a visitou em Florença. Rcuchlin, autor da primeira gramática hebraica escrita por um cristão (1506) e de duas obras sobre a Cabala – O De arte kabbalislica e o De verbo mirifico –, foi, no início do século XVI, a principal autoridade europeia em matéria de literatura judaica. Assim, a mística proveniente da Cabala passou a ser uma das componentes da cultura religiosa e filosófica do Renascimento. Sem ela não se pode compreender o pensamento visionário e sincrético de um Gilles de Viterbo e de um Guillaume Postel. (DELUMEAU, 1994, p. 97). Percebemos nas palavras de Jean Delumeau como a Cabala adquiriu aceitação generalizada dos intelectuais renascentistas em vários países da Europa Ocidental. Dessa forma, a partir da disseminação da Cabala, grosso modo, aspectos essenciais da cultura e identidade sefarditas se preservaram, mesmo que de forma difusa. Especificamente no Judaísmo, o impacto da presença sefardita na Itália, depois da expulsão dos judeus espanhóis, provocou uma revisão no significado da Cabala, que até fins do século XV mantinha uma tendência esotérica. Aliás, a Itália teve um papel preponderante na difusão, e mais que isso, na revisão e no revigoramento da Cabala. O uso da imprensa52 multiplicou os estudos cabalísticos, podendo expandir e adquirir um caráter popular, messiânico e mágico-esotérico. (BONFIL, 1996).
A forte influência da tradição cabalista sobre a cosmovisão sefardita, especificamente dos judaizantes na diáspora Atlântica dos tempos modernos, vai moldar a religião dos criptojodeus. No entendimento de Scholem (2002), a Cabala exerceu durante séculos uma grande influência sobre a comunidade judaica. E não é improvável que a obra Menina e Moça tenha sido influenciada por elementos cabalísticos, já que Bernardim Ribeiro viveu numa época em que este movimento esotérico do Judaísmo atingiu seu apogeu na cultura sefardita.
Entretanto, os sefarditas apelavam aos conhecimentos cabalísticos para compreender as origens das aflições do seu povo (desterrado) e instigados por uma explicação mística das desgraças e injustiças à que a comunidade hebraica era submetida. Também é importante ressaltarmos que, como resultado da expulsão dos judeus da Península Ibérica, a mística cabalista seria não só um elemento importante da cultura sefardita. Mais do que isso, a Cabala se tornou a legítima voz dos sefarditas conversos judaizantes na crise desencadeada pelo desterro.
Comentando também sobre o caráter criptojudaico no texto bernardiniano António Cândido Franco vai enfatizar que, Atendendo o quadro cultural contemporâneo de Bernardim, com um escol atento à reflexão cabalística peninsular e um problema social, o dos cristãos-novos, que dava visibilidade a essa cultura, faz sentido encarar as histórias saudosas de Bernardim como uma mitização poética do tema exílio da Chéquina em relação ao criador. (FRANCO, 2007, p. 82).
E, apesar de o Judaísmo rabínico ser essencialmente patriarcal, a Cabala pela qual possivelmente Bernardim Ribeiro teria sido influenciado, era uma mística na qual a mulher é a personificação da divindade, representada pela Shekinah. Ela era agora identificada com a ‘Comunidade de Israel’, uma espécie de comunidade invisível, que representa a ideia mística de Israel em seu vínculo com Deus em sua bem-aventurança, mas também em seu sofrimento e exílio. Não é só uma Rainha, filha e noiva de Deus, mas também a mãe de todo indivíduo em Israel. (SCHOLEM, 1995, p. 256).
Referindo-se à Shekinah, o Zohar informa:
Ela é o mediador perfeito entre o Céu e a Terra. E ainda que não pareça compatível com a Glória do Grande Rei que Ele confie tudo à Senhora, inclusive a condução de suas guerras, podemos contudo compará-lo em nosso próprio mundo a um rei que se uniu a uma mulher de alto grau, dotada de qualidades notáveis. E como o rei quer que todo o povo conheça e aprecie as qualidades de sua rainha, ele confia todas as grandes obras do reinado a ela e pede a seu povo que a obedeça e a respeite (BENSION, 2006, p. 100). Na explicação de Scholem (2002), as representações simbólicas deste mito da Shechinah e seu exílio, que é tão significativa para a história da Cabala, foram encontradas em vários ritos antigos e em número maior nos ritos novos. Do início ao fim, o ritual do cabalista é influenciado por esta ideia profundamente mítica. O próprio Bernardim no caput de sua novela vai transfigurar as questões do exílio na fala de sua personagem, dizendo o seguinte:
“Menina e Moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube.” (RIBEIRO, 1554, p. III). Essa fala representa em sua totalidade a condição de exílio do povo de Israel, sobretudo se considerarmos que os tormentos do desterro ainda estavam frescos na mentalidade popular. Como descrito por Franco (2007), todas as histórias contadas no romance de Bernardim são narrativas de desencontros, separações, exílios e solidões, temas esses que estão sob o signo das qualidades da Shechinah no seu exílio. Revelando, assim, as questões mais íntimas do seu autor e veiculando o clima de perseguições às quais os sefarditas eram submetidos na sociedade portuguesa dos tempos modernos. Conforme diz Roth (2001) “a literatura dos marranos traz a marca dos seus sofrimentos”. E, para os que contestam que Bernardim foi realmente um sefardita converso judaizante, perguntamos; como explicar que na sua obra as temáticas descritas acima reincidem no texto por vezes de maneira obsessiva, adquirindo assim contornos visivelmente ideológicos e mantendo diálogos profundos com os outros livros editados por judeus à mesma época? (NEPOMUCENO, 2011).
A explicação mais plausível é entender esse fascínio por temas como o exílio, o misticismo, o pessimismo e a expressão esotérica, como refletindo os temas corriqueiros ao contexto sefardita do período. Assim, a aparentemente ingênua novela sentimental de Bernardim Ribeiro guardava uma mensagem criptografada. (FRANCO, 2007). É uma obra que carrega um significado doutrinário além das linhas que se podem ler. Só um público iniciado poderia realmente compreender esse saber por trás dos jogos de dissimulações simbólicas ocultos nas entrelinhas. Além disso, pensando nesse contexto histórico de perseguições e intolerância religiosa, Menina e Moça é, por influência do seu espaço e tempo, uma representação figurativa das perseguições dos sefarditas conversos. Para Macedo (1996) esta obra-prima da literatura renascentista encerra um sentido político a que podemos correlacionar com a situação dos cripto judaizantes da Península Ibérica. Uma forma de manter viva a sua identidade ancestral, da qual foram privados por consequência de inúmeras perseguições, usando para isso signos e mecanismos de dissimulação do seu verdadeiro sentido para a preservação de sua identidade. Entender esses símbolos e mecanismos tão caros para a Cabala peninsular nos ajuda a identificar alguns elementos essenciais que caracterizarão a cosmovisão do sefardita nesse período. Além disso, esses mecanismos simbólicos utilizados por Bernardim Ribeiro reafirmam a preocupação e o cuidado que os criptojudeus tinham de não deixar sua cultura e identidade ser esquecida.
No entanto, privilegiando as temáticas do sofrimento e da tristeza53 Bernardim Ribeiro penetrou de maneira sutil na alma criptojudaica. A estrutura de sua obra se encontra norteada pela nostalgia do exílio, tendo como base as desventuras amorosas de seus personagens. Com destaque para a figura feminina representada pela menina e moça, que são submetidas às desventuras das separações e das mudanças para terras longínquas.
Capítulo 6
A Dimensão Olvidada do Criptojudaísmo
Neste capítulo pretendemos demonstrar como um aspecto tão importante para a cultura dos sefarditas conversos e judaizantes, como o seu cabalismo, foi esquecido no relato historiográfico hegemônico. O primeiro exemplo que mencionamos é o de um historiador norte-americano, David M. Gitlitz. Ele é professor na Universidade de Rhode Sland, nos Estados Unidos, e notabilizou-se por escrever um livro com quase setecentas páginas, fruto de uma pesquisa que durou quinze anos, intitulado “Segredo e Engano: A Religião dos Criptojudeus”. Merecidamente a obra ganhou um prêmio em 1996, nos Estados Unidos, como o melhor livro do ano sobre estudos sefarditas. Ele pesquisou sobre a religião dos criptojudeus da Espanha, Portugal, México, Peru e Brasil, caracterizou o sistema de crenças criptojudaicas e detalhou aspectos fundamentais de sua religiosidade, tais como superstições, costumes no nascimento, rituais de purificação e higiene, costumes funerários, guarda do Sábado, dias santos, orações e leis alimentares. A perspectiva geral que ele traça parte da consideração de que quando os descendentes dos judeus conversos da Península Ibérica viram-se isolados do judaísmo tradicional e imersos em um mundo de fé cristã, os princípios centrais de sua crença sofreram profundas transformações.
Os criptojudeus não possuíam livros judaicos para instruir suas crianças em hebraico, nem escolas talmúdicas para refinar o entendimento dos adultos e nem sessões de estudo no Sábado à tarde em que debatessem sutilezas da lei. Embora alguns agrupamentos de criptojudeus continuassem a praticar a sua religião durante gerações após a expulsão, especialmente os mais antigos, os dados que temos sobre suas conversas religiosas sugerem que o Judaísmo que estas pessoas discutiam com os seus amigos não era profundo nem muito ortodoxo. Elas perderam rapidamente a familiaridade com as delicadas questões da teologia e as complexidades da observância judaicas. Para essas pessoas, que, sem dúvida, constituíam a maioria dos criptojudeus, o Judaísmo deixou de ser um sistema autônomo e autorreferencial. Em vez disso, o cristianismo se tornou seu ponto comum de referência, o modelo contra o qual as suas crenças e práticas criptojudaicas foram medidas. Portanto, cada vez mais eles não eram judaizantes por que eram diferentes dos cristãos, mas eles eram judaizantes na medida em que divergiam dos cristãos. (GITLITZ, 2002, pp. 99-100). Seguindo essa linha geral de interpretação da cultura criptojudaica na diáspora atlântica, no capítulo que dedica a “superstições” praticadas comumente pelos sefarditas, David M. Gitlitz defende que havia entre os moradores da Península Ibérica, quer fossem judeus ou cristãos, uma predileção por certas práticas supersticiosas comuns na cultura Mediterrânea. Segundo ele, depois de 1480, a Inquisição tomou a tarefa de desenraizar as práticas mágicas e os processos contra as superstições abundam, muitas vezes sem a identificação dos antecedentes familiares do acusado. Porém, alguns registros mostram que algumas práticas específicas eram consideradas indicativas de que a pessoa era judaizante (GITLITZ, 2002, pp. 183-184). Em seguida, Gitlitz passa a descrever práticas de adivinhação por vários métodos, como por meio da raiz de mandrágora, pelos astros, por meio de grãos de trigo, carvão ou sal, também a utilização de amuletos, de nóminas e do selo de Salomão para evitar infortúnios, a celebração de cerimônias de exorcismos, a produção de porções do amor e a utilização de ervas para curas.
O que chama a atenção é que nesse capítulo específico sobre práticas e rituais mágicos não se faz referência a possível origem cabalística destas práticas e não é abordada a influência da Cabala sobre a religião dos criptojudeus.
No entanto, o interesse dos judeus por práticas mágicas pode ser historicamente datado, pelo menos, desde o final da antiguidade. Comentando a respeito do Sefer há-Razim, Livro dos Mistérios, redigido provavelmente entre os séculos IV ou VII, Roland Goetschel, afirma que “ele contém uma quantidade de fórmulas mágicas para todos os momentos da vida: amor, medicina, meios de vencer os inimigos, conjurações das potências naturais.” (GOETSCHEL, 2009, p. 23). O mesmo Roland Goetschel analisa ainda um grupo de místicos primitivos que se esforçavam para permanecer nos quadros do judaísmo rabínico e ao mesmo tempo utilizavam práticas de “fisiognomonia” e “quiromancia” para selecionar os candidatos a iniciados. (GOETSCHEL, 2009, p. 26).
Gershom Scholem, que anteriormente foi apresentado aqui como demonstrando a expansão da Cabala entre as comunidades sefarditas da diáspora a partir das primeiras décadas do século XVI, também informa sobre a constituição da “Cabala Prática”, da magia de motivação pura ou branca. Na sua explicação, “frequentemente as práticas de magia de amuletos e fórmulas protetoras podem ser encontradas lado a lado com invocações de demônios, encantações e fórmulas de ganhos pessoais.” (SCHOLEM, 1989, p. 166). A estas práticas ele acrescenta “medicina popular”, “alfabeto arcangélico especial”, “mágica astrológica”, “quiromancia”, “nomes mágicos”, ou shemot, prescritos para determinadas atividades. (SCHOLEM, 1989, pp. 164-170).
Reconhecendo a divisão entre uma Cabala teórica e outra prática e revelando o conhecimento do contexto cultural dos sefarditas na diáspora atlântica, Janet Liebman Jacobs assim se refere à difusão das práticas mágicas entre essas comunidades:
Depois da expulsão dos Judeus, a escola de Cabala mágica tornou-se especialmente prevalecente nas comunidades de sefarditas exilados onde encantações e fórmulas herbais foram usadas para proteção, nascimento, amor e prosperidade. Fragmentos dessas fórmulas foram registrados em escritos cabalistas do século dezesseis e tem sobrevivido nos séculos dezenove e vinte na Grécia e em Jerusalém. (JACOBS, 2002, p. 74).
Um trabalho que pode lançar luz sobre esta relação entre a Cabala e a cultura dos sefarditas na diáspora é “Inquisición, Brujería y criptojudaísmo”, de Julio Caro Baroja, cuja primeira edição foi lançada em 1970 na Espanha.
Na América portuguesa, além do exemplo de Bento Teixeira, acima mencionado, a possível influência da Cabala sobre as práticas de magia e feitiçaria no período colonial tem sido percebida apenas de forma implícita, como pode ser exemplificado pela obra seminal de Laura de Mello e Souza: “O Diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial.”
Apesar de reconhecer que “traços católicos, negros, indígenas e judaicos misturaram-se pois na colônia, tecendo uma religião sincrética e especificamente colonial” (MELLO E SOUZA, 1995, p. 97), e analisar casos de “cristãos-novos” pegos em práticas de feitiçaria, a explicação geral do fenômeno na colônia que a escritora faz é a seguinte: Como o imaginário do descobridor europeu, como a religiosidade popular, da qual fazia parte, a feitiçaria colonial era multiforme e heterogênea, constituída basicamente por duas partes que integravam um mesmo todo: um fundo de práticas mágicas características de culturas primitivas (africana e indígena) e um fundo de práticas mágicas características das populações europeias, fortemente impregnadas de um paganismo secular que pulsava sob a cristianização recente e ‘imperfeita’. (MELLO E SOUZA, 1995, p. 375). Porém, casos como o de Isabel Mendes, presa no Rio de Janeiro em 10 de Janeiro de 1628, como feiticeira e judaizante, enviada para julgamento em Lisboa, onde permaneceu por sete longos anos no cárcere até enlouquecer, foi provavelmente um exemplo de exercício do criptojudaísmo aliado à Cabala prática. (MELLO E SOUZA, 1995; WIZNITZER, 1966).
Outra possibilidade semelhante pode ser divisada no fato que veio à luz por meio da confissão de Paula de Siqueira, em 20 de Agosto de 1591, na Primeira Visitação do Santo Ofício à Bahia. Ela denunciou Beatriz de Sampaio, moradora de Matoim, principal reduto de sefarditas conversos e judaizantes na região, por lhe ensinar práticas mágicas para assegurar a amizade de seu marido. (CONFISSÕES DA BAHIA, 1997, p.111). O próprio David M. Gitlitz também menciona a sefardita conversa Violante Carneira, denunciada na Bahia em 1591 por recitar um feitiço para fazer um homem amar uma mulher. (GITLITZ, 2002, p. 191).
Nas Confissões da Bahia também aparece o uso de nóminas, orações impressas, geralmente escritas em papel e costuradas no vestuário. Isabel Rodrigues, de alcunha “boca-torta”, deu uma “carta de tocar” a Paula de Siqueira que possuía tanta virtude que faria com que “em quantas coisas tocasse se iriam após ela.” Pelo exposto na confissão de Paula Siqueira provavelmente as palavras escritas na carta eram: “hoc est enim corpus meum”54. Essa nómina deveria ser usada no toucado da mulher. (CONFISSÕES DA BAHIA, 1997, p.110).
Segundo Nelson Omegna, no imaginário popular da América portuguesa, “o bruxo ou bruxa era sempre ‘gente da Nação’, de vez que o Diabo para fazer e distribuir malefícios, tinha de contar mesmo era com seus asseclas, os inimigos do Senhor.” (OMEGNA, 1969, p. 51).
Em que pese os preconceitos disseminados, o cabalismo possuía realmente seguidores dissimulados entre a população colonial, existindo até mesmo a prática do proselitismo. É o que demonstra o caso de Pedro de Rates Henequim (1689-1744) que, mesmo não sendo comprovadamente de origem sefardita, provavelmente foi iniciado nos mistérios da Cabala durante sua estadia na Colônia. Assim, a disseminação da Cabala entre os criptojudeus da diáspora sefardita pode ser comprovada por esses casos emblemáticos. Outro indício dessa propagação, até entre o próprio clero católico, é mencionado por João Lucio D’Azevedo. Trata-se do Padre Jesuíta Antônio Vieira (1608-1697), defensor dos sefarditas portugueses. Segundo o historiador português do início do século XX, Antônio Vieira seria o “único” cultor da Cabala em Portugal. A Cabala não era de todo desconhecida pela Inquisição portuguesa, mas quando o jesuíta foi submetido a um processo no Santo Ofício por causa de seu messianismo, seus inquisidores não foram capazes de perceber esta faceta em seu pensamento. (D’AZEVEDO, 1922).
Um episódio, aparentemente sem importância, ocorrido na comunidade judaica portuguesa de Amsterdã no ano de 1706 demonstra a importância que a Cabala assumiu entre os sefarditas na Diáspora. Esse estudo de caso foi realizado pelo Prof. Dr. Matt Goldish, diretor do Melton Center for Jewish Studies, conforme descrito a seguir. No inverno daquele ano ocorreu uma controvérsia entre dois membros, Nathan Curiel e David Mendes da Silva, em torno da sequência correta a ser observada na liturgia das orações no serviço matutino da Sinagoga para aqueles que chegam atrasados.
Ora, após se atrasar para o serviço da manhã, David Mendes da Silva adotou um procedimento diferente da previsão ortodoxa halachica para tais incidentes. Advertido por Nathan Curiel sobre seu erro na sequência da liturgia, David Mendes da Silva lhe respondeu afirmando que seguira uma postura litúrgica superior, posto que baseada no Zohar. Esse incidente gerou uma polêmica que durou quatorze anos, em que responsas foram emitidas por vários rabinos condenando a solução cabalística para a questão da sequência das orações em caso de atraso do adorador. (GOLDISH, 2011)
Além de revelar que a vida das comunidades sefarditas na diáspora transcorreu em torno de uma dialética entre a ortodoxia da lei e as prescrições da Cabala, nem sempre concordantes entre si, o episódio demonstra como o cabalismo se espalhara entre os sefarditas da diáspora. Também, através da leitura dos textos das responsas sobre esse caso, se fica sabendo que a disseminação do cabalismo entre os da dispersão era uma preocupação dos mais ortodoxos tendo em vista o perigo, segundo eles, de que o estudo da Cabala e suas práticas esotéricas fossem fonte de heresias. No caso específico de alterações nas orações tradicionais judaicas no seio das comunidades de judeus novos da diáspora, no início do século XVIII, também se deve buscar sua origem na Cabala luriânica, uma vez que a mesma introduziu uma nova filosofia de oração, encarando-a como um exercício teúrgico, estático. (GOLDISH, 2001).
Nessa época, a Cabala estava amplamente difundida em Amsterdã, uma vez que a imprensa judaica instalada na cidade chegou a publicar uma versão do Zohar em 1715, dentre outros tratados cabalísticos. Esse episódio e seu desenvolvimento servem para demonstrar que a religiosidade das comunidades atlânticas sefarditas era vista, pelo próprio status quo do judaísmo dominante, como heterodoxa, principalmente devido à influência predominante da Cabala. Essa adesão ao simbolismo hermético da Cabala, como forma de se comunicarem em uma linguagem conhecida apenas aos iniciados, resultou na disseminação de uma grande quantidade de sortilégios e superstições entre as populações do interior no mundo sob domínio lusitano.
Tratava-se, portanto, de uma religiosidade duplamente herética.
Existem dois casos de praticantes da Cabala bastante mencionados na historiografia. São indivíduos que foram julgados e condenados pelo Tribunal do Santo Ofício pelo crime de práticas judaizantes. O cabalismo de um deles, porém, passou despercebido. Isso porque essa forma de vivência profundamente carregada de símbolos confundiu em muitos momentos os sensores da Inquisição católica, não iniciados no hermetismo da Cabala, embora esta não tenha sido a sorte de uma boa parcela deles. O primeiro caso é o de Pedro de Rates Henequim, acima mencionado. A cosmovisão de Henequim foi tema de um livro instigante:
“Um Herege vai ao Paraíso: Cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição (1680-1744)”, de Plínio Freire Gomes. Nascido em Lisboa em 1689 e educado pelos jesuítas, em 1702 foi atraído pela “febre do ouro” para as Minas Gerais. Retornando a Portugal em 1722, imbuído da “visão do paraíso” de que tratou Sérgio Buarque de Holanda, tornou-se defensor de um projeto mirabolante para tornar o infante D. Manuel, irmão de D. João V (1689-1750), Imperador do Brasil. Foi denunciado à Inquisição em 1741 e tido como ‘cristão-novo’ judaizante. Após ser preso e acusado no Tribunal do Santo Ofício declarou-se versado na “sciencia caballa”.
Foi condenado e queimado pela Inquisição portuguesa em 1744. Segundo Gomes (1997, p. 93), Pedro de Rates Henequim conviveu com o circuito cultural dos criptojudeus na América portuguesa. Em função disso, passou a defender uma cosmogonia com elementos cabalísticos inegáveis aliados à “cerimonialística da Igreja”, rompendo assim “as barreiras que separam a lei de Cristo da de Moisés”. Que elementos da Cabala foram encontrados na cosmogonia de Henequim? A crença de que as línguas em geral e o Hebraico, particularmente, seriam uma extensão das Sefirots (as forças que emanam do Ein Sof, a Divindade absolutamente transcendente). Esse princípio se deve a Abrahão Abulafia (c.1240-1292), que criou o “método dos nomes”, uma técnica mística específica de experiências extáticas. Essa influência Plínio Freire Gomes conseguiu identificar com precisão.
O que Gomes (1997: 96) não conseguiu identificar na Cosmovisão de Henequim foi o fato de que aquilo que ele classificou como “a figura mística que mais o fascinava (e que constitui a própria razão de ser da sua cosmologia)”, a Virgem Maria, também se devia à influência da Cabala. Ou seja, tal como Caesar Sobreira afirmou, o culto mariano foi, em muitos momentos, um artifício dos criptojudeus para burlar a perseguição dos familiares do Santo Ofício, “que não desconfiavam ao ver um cristão-novo rezando com o rosto voltado para a imagem de Maria coroada como ‘rainha dos céus’.” (SOBREIRA, 2010, p. 109).
A identificação de Sobreira (2010, p. 109) do artifício criptojudaico para manter suas crenças mesmo diante da observação sistemática do aparato de vigilância inquisitorial é correta. Porém, a explicação na qual “o judeu converso estava devotamente ajoelhado perante uma imagem que na sua simbologia secreta evocava a figura da rainha Ester”, pode ser aprofundada na medida em que se admite que a cultura sefardita fosse essencialmente uma cultura de inspiração cabalística.
Na explicação de Helder Macedo, conforme visto anteriormente, dentro do Cabalismo hispânico a Shekinah, o elemento feminino de Deus, tem “extraordinárias semelhanças” com a função da virgem Maria dentro do cristianismo hispânico. Existiu, pois, uma “aproximação” “entre o culto mariológico e a gnose judaica de carácter feminista.” (MACEDO, 1977, p. 78).
Assim, na cosmologia de Pedro de Rates Henequim, em alguns momentos, Maria aparecia acima de Jeová, como legítima deusa e responsável pela existência do inferno e pelo destino espiritual do Universo. (GOMES, 1997). Se o estudioso do caso de Henequim tivesse conhecimento da função metafísica da mulher dentro da Cabala hispânica teria compreendido melhor as implicações das teses defendidas pelo réu durante seu interrogatório no Tribunal do Santo Ofício. Estavam envolvidas questões de consciência histórico religiosa para os criptojudeus. Foram as mulheres, na cultura sefardita de segredo, as responsáveis pela transmissão da religiosidade judaica. Roth (2001, p. 123) assim explicou a participação das mulheres na religião criptojudaica:
O sexo fraco era tanto ou mais firme na observância do que os homens. No primeiro período inquisitorial na Espanha, somos informados como as mulheres eram a maioria dos poucos que mantinham o judaísmo até ao fim, e assim morriam como verdadeiras mártires. É significativo que as mulheres tivessem parte decisiva na iniciação ao judaísmo em vários casos conhecidos, mostrassem familiaridade especial com as orações, e fossem, em vários casos, particularmente meticulosas na observância. Foi pelas mães e pelas esposas que foi presidido e inspirado o círculo marrano do México, na primeira metade do século XVII. Por fim tornou-se costume que a mulher actuasse como a guia espiritual dos grupos marranos. É uma manifestação notável da posição vital ocupada pela mulher na vida judaica. A importância das mulheres no desenvolvimento do criptojudaísmo foi tal que os inquisidores identificaram nas mulheres um dos alvos principais de suas perseguições. Em última instância, a perspectiva feminista do cabalismo sefardita, tem implicações políticas.
Para entender esse enredo político-social pode-se recorrer à Sociologia do Segredo, de Georg Simmel, um sociólogo judeu do século XIX. Em geral, a pessoa que se oculta age assim por causa de coações fortes, condicionadas pela classe social, a profissão, os negócios ou as crenças. As sociedades crípticas ou as sociedades secretas existem em função de “um poder político subordinado a uma crença ou programa rígido, oficial, único admitido, e a uma fé religiosa também única, quer dizer, o poder absoluto, com pretensões teocráticas”. (BAROJA, 1972, p. 25).
O desafio para as famílias que pretendiam manter práticas culturais clandestinas, consideradas criminosas e passíveis de punição legal, era manter uma associação familiar baseada na confiança recíproca, mantida a custo de um delicado equilíbrio entre os iniciados no segredo. Na explicação de Julio Caro Baroja:
A confiança mútua tinha raízes muito amplas e devia estender-se a mulheres, velhos, crianças e adolescentes. Assim, em primeiro lugar era confiança familiar, confiança econômica também, às vezes, e com um fundamento religioso sempre. Em contrapartida o perigo era constante e as indiscrições e debilidades possíveis em qualquer momento. (BAROJA, 1972, pp. 25 e 26).
Apesar disso, a teoria de Simmel ajuda a esclarecer que, para o sefardita, criptojudeu, seu estilo de vida, apesar de lhe produzir uma cisão psicológica profunda, posto que em público tivesse que professar uma identidade que não correspondia à que vivia na intimidade de seu ser e na privacidade de seu lar, não era de todo desprovido de vantagem. Havia um valor social e político no segredo. Na verdade, o criptojudeu era portador de uma das maiores conquistas do homem. Um imenso alargamento da vida: um segundo mundo, a par do mundo manifesto. Assim, não foi à toa que os sefarditas estiveram na vanguarda da modernidade através de figuras do quilate de Baruch Espinosa, dentre outros.
Além disso, a ideia do segredo contribuiu para a difusão entre os sefarditas conversos e judaizantes desse elemento ainda pouco identificado em sua religiosidade, qual seja; o cabalismo. A partir de meados do século XVI, o cabalismo espalhou-se entre as comunidades de criptojudeus servindo como principal instrumento de acobertamento simbólico de suas reais intenções religiosas, ficando demonstrado pelas histórias dos personagens que aqui estão sendo analisados. Dois anos antes da data da denúncia de Pedro de Rates Henequim ao Tribunal do Santo Ofício, havia perecido na fogueira outro importante personagem da resistência à tentativa do etnocídio sefardita perpetrada pela Inquisição nos tempos modernos. Trata-se da figura de Antônio José da Silva (1705–1739), maior dramaturgo português do século XVIII. A alcunha de O Judeu já proclamava sua origem sefardita. Os estudos biográficos sobre o mesmo são abundantes e significativos. Pouco, porém, se escreveu sobre os elementos da Cabala que estão dissimulados em suas peças teatrais cômicas. Algumas, das que chegaram até nós, foram reunidas anonimamente (obviamente por medo da Inquisição) e publicadas pelo impressor Francisco Luiz Ameno, em 1744, sob o título de Theatro Comico Portuguez, ou Collecção Das Operas portuguezas que se representarão na Casa do Theatro publico do Bairro Alto de Lisboa. São quatro peças teatrais, a saber: Vida de D. Quixote de la Mancha, Esopaida, ou Vida de Esopo, Os Encantos de Medéa e Amphitryaõ, ou Jupiter, e Alcmena. Ao todo, são atribuídas a Antônio José da Silva oito “óperas joco-sérias”, comédias musicadas que eram apresentadas por meio de marionetes. Kênia Maria de Almeida Pereira, professora na Universidade Federal de Uberlândia, defendeu em sua tese de Doutorado que tanto Bento Teixeira, conforme analisamos anteriormente, quanto Antônio José da Silva recorreram a uma “rica simbologia mística”, de origem judaica, e a elementos da mitologia greco-romana para enviarem mensagens criptografadas aos de origem sefardita e para denunciarem o esquema de opressão contra eles imperante. Como Antônio José da Silva escamoteou em sua obra uma mensagem aos iniciados na cultura criptojudaica? Isso pode ser demonstrado de forma primorosa na “ópera joco-séria” Os Encantos de Medéa. Alguns intérpretes da obra de Antônio José afirmam que a sua versão do mito de Medeia, que conta a viagem do argonauta Jasão à região da Cólquida (atual República da Geórgia) em busca do velocino de ouro, tinha o objetivo de criticar a expansão marítima portuguesa que ambicionava as riquezas das Índias. Porém, a flexão que Antônio José faz no mito de Medeia em relação à tragédia mais conhecida, a de Eurípedes, por si só já evidencia um objetivo além desse. No texto do autor grego Jasão, após receber a ajuda da princesa Medeia, da Cólquida, para conquistar o velocino de ouro, parte com a mesma para sua terra natal em uma viagem cheia de desafios, se casam, geram dois filhos e depois vão viver em Corinto, local do ápice da tragédia, porque Jasão abandona Medeia para casar-se com a princesa local, Creusa.
Muito diferente disso, na história escrita por Antônio José da Silva, não ocorre o casamento de Jasão com Medeia, eles não geram filhos e nem têm uma vida em comum por anos. Na ópera do “cristão-novo”, desde o momento em que Jasão chegou à Cólquida, se viu dividido entre os amores de Medeia e Creusa. Encantado pela beleza das duas, que são primas, mas decididamente apaixonado por Creusa. Considerando que na simbologia religiosa tanto a assembleia cristã quanto a judaica são representadas por mulheres, a metáfora de Jasão dividido entre o interesse da Igreja Católica, representada por Medeia, e o amor pela Sinagoga judaica, simbolizada por Creuza, representou perfeitamente a condição existencial do sefardita converso e judaizante durante os tempos modernos. Além de caracterizar a situação existencial de cisão psicológica do sefardita converso e judaizante a ópera de Antônio José da Silva revela as estratégias do mesmo na administração do “segredo” que caracterizava seu comportamento social.
Mesmo não se podendo definir um padrão único de táticas familiares entre os descendentes de sefarditas face às injunções do Tribunal do Santo Ofício e das sociedades de Antigo Regime ibéricas, é possível perceber como eles utilizaram sua condição de marginalizados para “cimentar sua identidade”, definindo alguns estratagemas familiares específicos. (CONTRERAS, 1991, p. 132). Assim, desde o início a mentira sobre suas reais intenções caracteriza Jasão. Apoiando o recurso ao subterfúgio utilizado por ele, Teseu, companheiro de viagem, lhe dirige essas palavras: “Sempre, Senhor; fizestes bem em encobrir-lhe o motivo da nossa vida!”. Em resposta Jasão afirma: “Teseu, enquanto descansam as armas, é preciso que peleje com astúcias o entendimento”. Essa astúcia é explicada logo em seguida. O servo, Sacatrapo, afirma: “Senhor, em duas palavras: amar a Medeia por cerimônia, até lhe gadanhar o Velocino, e ir conquistando em todo o caso o Velocino de Creuza.” Noutro lugar, dirigindo-se a Teseu “Jasão” explica melhor a que tipo de “astúcia” recorria: “Assim é, Teseu: mas as cousas não se fazem como se dizem.” “... Uma mulher escandalizada e poderosa (A Medeia/Igreja Católica) é muito para temer. Assim, pretendo encobrir, que por Creuza é que me detenho”. Um dos ingredientes principais da religiosidade dos judaizantes também foi revelado na ópera, qual seja, os costumes místicos de origem cabalística. Nesse particular, a contínua referência à feitiçaria é um forte indício de que o autor fazia menção cifrada da Cabala prática. Na ópera, além de Medeia, a sua criada, Arpia e o “carneiro” são praticantes de feitiçaria. Além disso, o criado Sacatrapo afirma sobre o “reino da Cólquida”: “... Sei que nesta terra há muita feiticeira”. As referências a “costumes místicos” proliferam no texto abrangendo desde os “contrafeitiços”, as mandingas, os encantamentos e desencantes, passando pela “ciência mágica”, a busca de informações através da consulta aos raios da lua, a quiromancia, chegando a astrologia.
Os Motivos da Compreensão Parcial da Cultura Sefardita pela Historiografia
Como demonstramos acima, existem fortes evidências de que a cultura dos criptojudeus sefarditas na diáspora atlântica incorporava tanto elementos da Cabala especulativa, quanto da Cabala prática, porém, os trabalhos acadêmicos que abordam a presença do cabalismo nessa cultura perseguida são muito escassos. Ao procurarmos explicação para a quantidade reduzida de estudos sobre o relacionamento entre a Cabala e o criptojudaísmo, fomos levados a considerar os estudos de Carlo Ginzburg sobre feitiçaria. Teria ocorrido no caso da perseguição inquisitorial contra os criptojudeus cabalistas o mesmo que o historiador italiano identificou na história do tratamento que a Inquisição dispensou à feitiçaria? Carlo Ginzburg trabalhou no entendimento do fenômeno dos benandanti com o pressuposto da existência de “um núcleo de crenças populares que, pouco a pouco, em decorrência de pressões bastante precisas, foram assimiladas à feitiçaria.” (GINZBURG, 1988, p. 7). Ele utilizou a hipótese de que houve uma “superposição do esquema inquisitorial” a um “estrato preexistente de superstições genéricas”, “modelando as confissões dos acusados graças a dois instrumentos: a tortura e os interrogatórios ‘sugestivos.’” (GINZBURG, 1988, p. 8).
Construindo seu argumento, Carlo Ginzburg lembra como no interior da cristandade, entre meados do século XIII e meados do século XV, foi sendo elaborada “a imagem da feitiçaria diabólica, com todos os seus acessórios” e que no decorrer de um século um culto da fertilidade, oriundo de tradições germânicas e eslavas, que sobrevivia na região do Friuli, de defensores das colheitas e da fertilidade dos campos, transformou-se em feitiçaria. Ou seja, em função das “pressões” dos inquisidores ocorreu a “assimilação dos benandanti aos feiticeiros.” (GINZBURG, 1988, p. 37). Da mesma forma que a Inquisição lutou contra essas culturas e deformou a compreensão das mesmas, ela também combateu a cultura sefardita oriunda da Península Ibérica e possivelmente contribuiu para um entendimento errôneo da identidade dos sefarditas judaizantes. Assim, existe a possibilidade de que o estudo da cultura sefardita no contexto da diáspora atlântica tenha alguns elementos negligenciados ou distorcidos, especialmente a forte influência da Cabala sobre a sua cosmovisão. Outra linha de explicação possível pode ser encontrada no fato de que a partir da ocidentalização da cultura judaica por meio do movimento chamado de Haskalah, o Iluminismo judaico, a partir do século XIX, as comunidades judaicas, sob forte influência racionalista e humanista, abandonaram o misticismo, tratando a Cabala com relativo desprezo. Por outro lado, pensamos que não se deve excluir da explicação para essa ausência no relato hegemônico o papel exercido, nesse processo histórico e até hoje, pela dialética entre a ortodoxia judaica e a tendência liberalizante da Cabala. Para demonstrarmos essa realidade, vejamos o excerto (uma frase) do parecer de um(a) consultor(a) ad hoc (especialista no tema) sobre um artigo de nossa autoria enviado para uma revista acadêmica. O artigo abordava a temática do cabalismo na cultura criptojudaica e aqui será citada apenas a parte que demonstra nosso raciocínio, omitindo o juízo final e demais considerações do mesmo para preservar os princípios éticos da academia. Leiam, pois, o que um(a) especialista, que desconhecemos totalmente quem poderá ser, escreveu há poucos anos: “O artigo trata da cabala hebraica, e por si poderia encontrar resistência de parte da ortodoxia judaica”. Ele(a) está certo(a)! As lutas pela memória são realmente tremendas! Para vocês compreenderem um pouco o que pode significar essa brecha na interpretação da história para os descendentes de sefarditas conversos e judaizantes lembramos um pensamento de Milan Kundera em seu livro que trata da invasão da República Theca pelos russos em 1968: Para liquidar os povos – dizia Hübl — começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá uma outra cultura e lhes inventa uma outra História. Em seguida, o povo começa lentamente a esquecer o que é e o que era. O mundo à sua volta o esquece ainda mais depressa. (KUNDERA, 1987, p. 179). Por outro lado, seja qual for o motivo, ou mesmo uma junção de motivos para escamotear-se o cabalismo da cultura dos sefarditas na diáspora atlântica dos tempos modernos, estudos sobre esse aspecto ainda demandam pesquisas e aprofundamentos.
Capítulo 7
Criptojudaísmo e Magia cerimonial
Como demonstramos no capítulo anterior, a propagação da Cabala no seio da comunidade judaica e, em especial das comunidades de criptojudeus sefarditas na diáspora, infundiu não apenas especulação teosófica, neoplatonismo, messianismo, oração teúrgica, liberalização de práticas e antinomismo.
Uma influência mais temerária, sob o ponto de vista da ortodoxia, que se alastrou foi a prática da magia. Segundo Moshe Idel, operou-se uma síntese entre a magia e a Cabala num período histórico bastante significativo para os criptojudeus, qual seja, o século compreendido entre 1470 e 1570. (TRACHTENBERG, 2004, p. xvi). Ou seja, o desenvolvimento da chamada Cabala Prática, já havia se iniciado na Península Ibérica no quarto de século que antecedeu à expulsão e continuou a se processar dentro da reforma religiosa que se operou em Safed.
A magia não era apenas proibida na cultura judaica como era considerada um tabu. Porém, apesar de vedada à grande maioria, sempre foi praticada por um grupo particular, sobretudo de rabinos considerados santos. Isso porque sempre houve, em relação à magia, um movimento ambivalente, de repulsão e atração. Para uns, a magia seria a degradação do espírito humano enquanto, para outros, a mais elevada atualização do potencial humana. De tal forma que, durante o renascimento na Itália, alguns rabinos consideravam o assunto da magia o ponto mais alto de seu currículo de estudos. De modo geral, a tradição fazia uma distinção entre práticas de magia ilegais e puníveis, as práticas apenas proibidas, mas não passíveis de punição e as permitidas. (CHAJES, 2012). Emblemático dessa dimensão da espiritualidade sefardita nesse período foi o caso do Rabino espanhol José de La Reina (c. 1470) que se tornou lendário pela sua tentativa de “suscitar a redenção final por meio da Cabala prática”. (SCHOLEM, 1989, p. 64). Ele teria invocado os líderes do mundo demoníaco a fim de superá-los e permitir, assim, o advento do ungido. A partir de então seu fracasso que, aparentemente lhe custou a sanidade mental, ficou sendo mencionado nos círculos cabalísticos como a prova do perigo que correm aqueles que se envolvem com essas atividades. (IDEL, 1989). De modo geral, a Cabala pressupõe um entendimento mágico do universo. Porém, a partir da obra de alguns rabinos espanhóis como o Sefer há-mesib, ou “Livro do Anjo que Responde”, de fins do século XV e início do século XVI, as práticas mágicas foram incorporadas ao mundo cabalístico, incluindo ritos de encantamento para invocar anjos e demônios, amuletos para vários fins, fórmulas de ganhos pessoais e protetoras, magias sexuais e procedimentos de alquimia. Alguns princípios que fundamentavam essas práticas são centrais na compreensão cabalística da realidade. Primeiro, o conhecimento das correspondências entre a estrutura do universo superior (o das Sefirot) com a do universo inferior (o mundo material em que vivemos) permite ao ser humano atrair os influxos sobrenaturais. Segundo, o princípio da eficácia mística dos nomes hebraicos divinos, e mesmo das letras do alfabeto hebraico. (PATAI, 2009, p. 40).
Para os cabalistas, “letras e nomes não são apenas meios convencionais de comunicação. São muito mais. Cada um deles representa uma concentração de energia e exprime uma riqueza de significados que não pode ser traduzida, não plenamente, pelo menos, em linguagem humana.” (SCHOLEM, 2009, p. 48). A aplicação prática desse segundo princípio começou com o Rabino espanhol Abraham Abulafia na segunda metade do século XIII, com a introdução de uma meditação que tem por objeto o nome divino, que consiste em uma disciplina da combinação de letras com o objetivo de atingir o êxtase, dando início a uma “espiritualidade das letras”. O efeito desses princípios no cotidiano deu origem a uma série de costumes chamados de “magia de motivação pura ou ‘branca’”, praticada por meio da manipulação dos nomes de Deus e dos anjos, considerados sagrados e esotéricos. O objetivo é interferir nos mundos físico e espiritual. Porém, é importante ressaltar que a magia está presente no judaísmo desde o final da antiguidade, antecedendo em muito ao desenvolvimento da Cabala especulativa. Nesse particular também se destacou a influência vinda de Safed. Retomando as tradições mágicas cultivadas na Península Ibérica antes da expulsão do final do século XV, rabinos, dentre os quais se destacaram, novamente, as figuras de Moisés Cordovero e Isaac Luria, desenvolveram uma quantidade significativa de novos rituais daquilo que ficou sendo chamada de “Cabala prática”. Na verdade um eufemismo para magia, que alcançou uma rápida difusão nas camadas populares. Um pequeno inventário dessas práticas pode incluir: orações mágicas, magia de amuletos para vários fins, fórmulas protetoras, invocações de anjos ou demônios, exorcismo de espíritos malignos, encantações, fórmulas de ganhos pessoais (por exemplo, atalhos mágicos, descoberta de tesouro escondido, tornar-se inexpugnável diante dos inimigos), magia sexual, necromancia, alfabeto arcangélico com textos escritos em amuletos, astrologia, alquimia, quiromancia (adivinhação do futuro pelas linhas da palma da mão), metoposcopia (arte de adivinhar o futuro de alguém pela observação dos seus traços fisionômicos). (SCHOLEM, 1989). Ora, essa relação de costumes da Cabala prática, elaborada a partir da obra de Gershom Sholem, é muito similar ao levantamento feito por David Gitlitz e mencionado anteriormente. Assim, depois de analisarmos alguns casos bastante conhecidos de cabalismo na cultura criptojudaica dos tempos modernos, selecionamos um caso inédito para demonstrar a profundidade e complexidade de práticas cabalísticas que existiam entre os sefarditas conversos e judaizantes. Veremos um caso intrigante.
Em 1724, o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa moveu um processo contra um italiano, por nome João Baptista Laroca (Rocaforte), residente provisoriamente na capital lusitana. O mesmo foi acusado de possuir um livro manuscrito de magia cerimonial. O caso revelou o conteúdo de um célebre livro ocultista, rituais para enriquecimento através da invocação de demônios e lançou dúvidas sobre a identidade desse personagem que em meio a um processo confuso pode ter escapado dos rigores da Inquisição mesmo sendo um criptojudeu e alquimista cabalista.
O processo e o manuscrito descrevem em detalhes uma cerimônia que deveria ser celebrada por aqueles que desejassem o enriquecimento material. A interpretação que propomos, fundamentada no paradigma indiciário, levanta a hipótese de que o caso pode ser representativo de um tipo de criptojudeu muito comum nos tempos modernos, um adepto da cabala prática. Vamos aos fatos. No início do século XVIII havia em Lisboa uma agitada comunidade italiana. Originários das mais diversas localidades da Península itálica, eles se reuniam em uma estalagem para debater assuntos diversos, inclusive religiosos. Alguns personagens e parte do conteúdo dessas conversas ficaram registrados na história através de um singular processo do Tribunal do Santo Ofício guardado nos Arquivos da Torre do Tombo, em Portugal. Esses indivíduos se envolveram com a Inquisição porque três deles procuraram as autoridades religiosas para denunciar um conterrâneo que apresentava um comportamento heterodoxo. Ora, a fragmentação política da Itália durante os tempos modernos não foi um fato inconsequente. Entre o século XVI e início do século XVIII a península itálica era geopoliticamente dividida em três regiões principais: Os Estados Papais, na área Central; O Reino das Duas Sicílias, oficialmente pertencente à Espanha, ao Sul; e o Norte da Itália, um mosaico de cidades-estado independentes.
Chama atenção a circunstância de que os personagens envolvidos, tanto os que fizeram a denúncia, quanto os depoentes posteriormente convocados e o próprio denunciado, serem originários de regiões italianas diferentes. Os dois principais denunciantes chamavam-se Miguel Mileti e Caetano Barrilaso e eram naturais da Sicília, ilha localizada ao Sul da Península Itálica. O terceiro denunciante, Antônio Hugo, era natural de Gênova, cidade-estado independente e importante porto mediterrânico do Noroeste da Itália. O denunciado foi João Baptista Laroca, da região do Piemonte, no Noroeste da Itália. O primeiro denunciante é tratado como “Dom” Miguel Mileti e era sacerdote do hábito de São Pedro que trabalhava em Lisboa, trinta anos de idade. O segundo denunciante era natural da cidade de Palermo, solteiro, de vinte e nove anos de idade, fabricante de cordas, que encontrou o denunciado em uma viagem de navio e que também utilizava a referida estalagem como local de negócios. O terceiro denunciante, Antônio Hugo, era homem de negócios, da idade de sessenta e cinco anos e vizinho da casa onde João Baptista Laroca morava, no Beco das Tábuas, freguesia de São Paulo, em Lisboa. A freguesia de São Paulo, próxima da área portuária, que se encontrava na chamada Lisboa ribeirinha, divisão administrativa da cidade de Lisboa que abrigava em torno de quatro mil moradores na primeira metade do século XVIII, parece que funcionava como locus privilegiado para abrigar o tipo de pessoa, aventureiro e estrangeiro, descrito no processo inquisitorial aqui apresentado. Esta freguesia foi criada em 1566 exatamente por conta do alto fluxo populacional advindo da atividade mercantil, pós-descobrimento, sendo possível salientar que, com o desenvolvimento do comércio nas zonas portuárias, muitos dos sefarditas conversos residentes em Lisboa optaram por viver nas zonas ribeirinhas, locais de efervescência econômica.
Perfil do Denunciado e Motivos da Denúncia
Dentre outros crimes, João Baptista Laroca foi acusado pelo padre Miguel Mileti e por Caetano Barrilaso de ser judeu e fugitivo dos cárceres da Inquisição na Ilha de Ceuta. O genovês sexagenário, após ver o vizinho ser preso pelos representantes do Santo Ofício, se dirigiu ao Tribunal para entregar uns papéis que encontrou nos aposentos do acusado. Nada mais acrescentou sobre ele. Para entender os bastidores da denúncia que os dois sicilianos fizeram contra o piemontês é necessário levar em consideração as especificidades e diferenças entre essas regiões. Historicamente, a relação dos estados italianos do norte com os judeus foi bastante diferente da relação que os territórios do sul mantinham com os mesmos. A partir da formação do Reino das Duas Sicílias, em 1442, a região esteve sob domínio Espanhol. Até que o Tratado de Utrecht, em 1713, determinou que a Sicília deixasse de pertencer à Espanha e passasse ao domínio do Piemonte. Dessa forma, quando em 1492 os Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, expulsaram os Judeus do território espanhol, a comunidade judaica da Sicília também foi desalojada. No norte e centro da Itália a situação era diferente. As cidades, constituídas em Estados, preservando sua independência através do governo de famílias nobres locais, mantinham interesses comerciais que implicavam numa política de maior tolerância para com os judeus. Portanto, cidades como Ferrara, Gênova, Livorno e Veneza se notabilizaram por permitirem que os Judeus residissem em seu território. No episódio da diáspora dos judeus da Península Ibérica, a partir do final do século XV, conforme já foi visto, as cidades do norte da Itália, além de uma legislação mais flexível para com os sefarditas, judeus de origem ibérica, serviram de ponte entre o mundo ibérico e o oriente, principalmente o Império Turco. Diante dessa realidade, o fato dos principais denunciantes serem de uma região recém-saída do domínio da Espanha, a “ponta-de-lança da Contrarreforma”, e agora submetida ao domínio do Piemonte, terra do delatado, não pode ser ignorado (BURCKHARDT, 2009, p.114). Para se ter uma ideia do sentimento que à época prevalecia entre os povos sob domínio das cidades-estado italianas, Fernand Braudel, referindo-se ao domínio de Gênova sobre outra importante ilha mediterrânea, a Ilha de Córsega, afirma que a mesma era considerada pelos corsos como “a abominável Dominante” (BRAUDEL, 1995, p. 182).
A denúncia foi feita em Maio de 1724, onze anos após a secular dominação espanhola sobre a Sicília, o “celeiro do Mediterrâneo”, haver passado para as mãos do Piemonte. Nessa época, a região do Piemonte era governada por Vittorio Amedeo II (1666-1732) que, ainda muito jovem, recusara-se a casar com a filha de D. Pedro II, rei de Portugal. Os piemonteses festejaram com orgulho tal recusa de casamento que poderia transformar o Piemonte em uma região subordinada a Portugal. Portanto, existem motivos para conjecturar-se que os sentimentos que moveram os dois principais denunciantes contra João Baptista Laroca extrapolavam o preconceito contra os de origem judaica, cultivado nas regiões sob domínio espanhol. Provavelmente, os denunciantes também se moviam por questões da política de sua terra natal, a Sicília, numa espécie de vingança xenófoba. Um indício disso pode ser percebido nas palavras do genovês quando de sua denúncia à mesa da Inquisição em Lisboa: “e que o que tem denunciado o faz por descargo de sua consciência, não por ódio ou má vontade que tenha ao dito homem”. Mas, que informações podem ser colhidas, a partir do processo, sobre a pessoa de João Baptista Laroca e qual o perfil que pode ser traçado desse denunciado?
Caetano Barrilaso, segundo denunciante, foi capaz de descrever com detalhes a João Baptista Laroca: “Representa ter trinta e quatro annos, alto de corpo, magro, feio de rosto e negro, barba negra, cabello preto e comprido, mal vestido.”58 Antônio Hugo, terceiro denunciante, confirma algumas dessas características: “falei nome o qual he alto, e magro e estava asseito em hum dos Navios da Companhia da Córsega, não se sabe em que ocupação”.
Porém, chama atenção a ênfase constante à sua ocupação. Via de regra, ele foi descrito como sendo “artilheiro” em um veleiro que viajava para a ilha de Córsega. Quando o próprio João Baptista Laroca foi interrogado na sessão de Genealogia, ele pôde esclarecer que trabalhava nos navios dessa companhia. A esse respeito, uma informação importante aparece na denúncia do padre Miguel Mileti. Ele afirmou que João Baptista Laroca era “contratador” em um Navio para a referida ilha. Eis um indício que merece ser explorado. Ao considerar-se o principal destino das viagens de João Baptista Laroca, a ilha de Córsega, está se tratando de uma região geopolítica complexa, chamada por Fernand Braudel de “mundo tirreno”. Na sua análise, o Mar Tirreno sempre foi sujeito às influências dos “mundos vizinhos” e às contingências de uma história movimentada. Com portos importantes, nunca foi dominado, de forma exclusiva, por um poder político ou civilização, excetuando a hegemonia romana na antiguidade. (BRAUDEL, 1995, pp. 138, 139).
Em um caso específico a hegemonia foi secular, ainda nos tempos modernos. No período compreendido entre o século XIII e meados do século XVIII a Córsega esteve sob o domínio da cidade-estado italiana de Gênova, que transformou a ilha numa zona de produção de cereais.
Ora, além da proximidade geográfica de Gênova com o Piemonte, região de origem de João Baptista Laroca, e de suas viagens de trabalho à citada ilha, outros detalhes revelados no Processo da Inquisição ligavam João Baptista Laroca à Genôva e à sua possessão insular. Percebe-se que os laços de João Baptista Laroca com Gênova não são propriamente casuais. A relação se intensifica quando se estuda a história da cidade e se descobre que Gênova foi administrada durante os tempos modernos pela Casa de San Giorgio (1407-1805), banco controlado pelas famílias genovesas Grimaldi e Serra e que, segundo Fernand Braudel, “foi o organismo de crédito mais aperfeiçoado que a Idade Média conheceu”. (BRAUDEL, 1995, p. 359). Assim, a poderosa Casa de San Giorgio, tornou Gênova “a primeira cidade financeira do Mundo” e, a partir de uma aliança celebrada com a Espanha em 1528, conseguiu transformar o século XVI, no “século de Gênova”. A Casa de San Giorgio surgiu em 1407, servindo para um maior controle das finanças públicas por credores das ricas famílias da cidade. Seu capital era dividido em ações denominando os acionistas como collonanti, por conta de suas ações serem anotadas em colunas de forma escritural. Foi confiada à Casa de San Giorgio a arrecadação de impostos em Gênova. O banco emprestou parte dos seus fundos ao governo e recebeu em troca propriedades na Ligúria, na Ilha de Córsega, no Mar Negro e no Mar Mediterrâneo. (DURANT, 2002, p. 144). Seja por conta dos vultosos empréstimos que os genoveses concediam aos líderes cruzados em troca de ordens de pagamento, e que em cada câmbio as famílias genovesas faziam fortuna por causa do acréscimo dos juros do empréstimo. Um exemplo dessas primeiras transações bancárias é a estadia do rei francês Luís IX e a sua troca comercial que, por conta dos juros, em cada empréstimo Gênova ganhava 20% a mais do que havia concedido, descontando do tesouro da França. Outro motivo foi o fato de que Gênova estava entre as cidades italianas que prestavam auxílio com suas frotas navais ao transportar os cruzados à Terra Santa, tais auxílios acabaram resultando em privilégios jurídicos e comerciais. (MORRISON, 2009, p. 94).
A ideia de uma moeda sólida era imprescindível para a acumulação de capital de modo sistêmico, a moeda genovesa tornou-se padrão em todas as transações comerciais tanto do governo quanto das instituições particulares. Tal reforma monetária foi de grande impulso para que as empresas e a própria cidade crescessem de forma gigantesca. Articulando-se à Espanha financiou a expansão ultramarina e em troca recebeu a proteção dos exércitos espanhóis. (MARTINS, 2002, p. 45).
No século XVII, o Banco se envolveu no comércio marítimo, competindo com as duas principais Companhias das Índias Orientais, a Holandesa e a Inglesa, justamente por meio da companhia na qual o acusado trabalhara. Percebe-se então que João Baptista Laroca, empregado como artilheiro e “contratador” da Companhia da ilha de Córsega, segundo a versão dos denunciantes, em última instância, trabalhava para uma das instituições financeiras mais poderosas da época Moderna, controladora da cidade de Gênova, e que emprestava dinheiro aos principais monarcas da Europa.
Poderia esse fato interferir no andamento do processo movido contra João Baptista Laroca em função das denúncias feitas pelos dois sicilianos, aparentemente xenófobos, Miguel Mileti e Caetano Barrilaso?
Contrariando esse perfil de João Baptista Laroca como um judeu profissionalmente definido desenhado pelo padre siciliano, um genovês por nome Desiderio de Vecchio, comerciante de vinho e morador do mesmo Beco das Tábuas na Freguesia de São Paulo, em Lisboa, referido no processo pelo acusado e convocado a depor pelo Santo Ofício, traçou um perfil do acusado bastante distinto. Além disso, por meio da sessão de Genealogia, realizada em 24 de Outubro de 1724, é possível descobrir a representação que o próprio João Baptista Laroca apresentou de si ao Tribunal. Seu sobrenome seria “Rocaforte”, solteiro, que vivia de seu trabalho de artilheiro nos navios da Companhia da Córsega. Natural de Murialdo, marquesado da Casa do Principado de Piemonte, há época em que foi delatado ao Tribunal do Santo Ofício estava com trinta e quatro anos de idade e declarou-se filho de João Agostinho, lavrador, e de Maria Margarida, de Gênova. Um aspecto importantíssimo diz respeito à sua religião. Disse ser cristão batizado e crismado. Ao ser mandado dizer a “doutrina cristã”, recitou o “Padre Nosso”, a “Ave-Maria”, o “Credo”, o “Salve Rainha”, e os mandamentos da Igreja. Um detalhe não desprezível: afirmou saber as línguas italiana, francesa, castelhana e portuguesa. Porém, afirmou não saber o latim! A primeira diferença interessante diz respeito ao sobrenome do acusado. Em vez de chamar-se “Laroca”, o próprio acusado e o depoente genovês, Desiderio de Vecchio, o identificam com o sobrenome “Rocaforte”. Esse último afirmou também que o investigado era “Apostólico Romano”, confirmando a autoidentificação do mesmo e, quando perguntado se vira o acusado praticar alguma ação diferente dos atos cristãos, mencionou apenas a posse de uns papéis que apresentavam umas rodas, “escritos na língua latina, hebraico ou grego”, que o mesmo tencionava vender a um clérigo por três ou quatro moedas. Acrescentou, porém, que ouvira o acusado “repetir as palavras que continham os ditos papéis”. Como conciliar essa informação com a afirmação do denunciado a respeito de seu desconhecimento do latim?
O fato é que Desiderio de Vecchio guardava relação de proximidade com o acusado e mencionou em depoimento que o acolhera em sua casa como por esmola porque João Baptista Rocaforte era tão pobre que não tinha como lhe pagar a dita assistência. Nisso ficou seu depoimento. Muito diferente do perfil traçado nas denúncias dos dois sicilianos.
O Contéudo das Denúncias
De acordo com a denúncia feita pelos dois sicilianos, João Baptista Laroca (Rocaforte) já havia sido penitenciado pelo Santo Ofício da Inquisição de Sevilha, na Espanha. Fora condenado ao degredo na ilha de Ceuta, onde permanecera por doze anos até fugir “por terra de Mouros”. Ele teria se dirigido a Argel, onde se declarou judeu. Depois, viajou para Portugal. Além dos precedentes, de ser fugitivo do degredo em Ceuta e haver se declarado judeu, os denunciantes acrescentaram uma informação que se tornou o principal aspecto investigado pelo Tribunal do Santo Ofício no processo instaurado contra João Baptista Laroca (Rocaforte): O réu afirmara que possuía um livro intitulado “Carcanho de Adamo”, o qual continha, por artes diabólicas, o segredo de alguns tesouros, como o de fazer a “pedra filosofal”.
No restante do processo o Livro é referido como sendo a Clavícula Salomonis, o Grimório60, livro de magia cerimonial, mais conhecido no mundo ocultista Ocidental, originado por volta do século XII da era comum. O livro contém a descrição de rituais, gráficos com símbolos místicos, fórmulas mágicas e astrológicas. Os denunciantes descreveram o ritual que João Baptista Laroca (Rocaforte) teria protagonizado. Segundo eles, o réu executava a cerimônia lendo o livro, do qual não se recordava o nome, e em seguida proferia-se uma missa em nome do Espírito Santo, pondo ao lado do Evangelho um pergaminho no qual estivesse escrito o que cada um dos participantes desejava, havendo também um pouco de água benta do Sábado santo e óleo dos enfermos. É digno de nota que o rito, segundo a narração dos denunciantes, requeria poucos materiais. Evidentemente não se tratava de um ritual difícil de ser executado se fossem levados em conta apenas os seus aparatos. Em seguida, saía ao campo e, metendo-se no círculo com o livro na mão, lhe aparecia o demônio em forma de mulher, depois em forma de Leão e por último, de homem. A partir de então podia pedir o que quisesse que teria seu almejo atendido. O segundo denunciante, Caetano Barrilaso, disse que a cerimônia era tão eficaz que todos que a praticavam conseguiam aquilo que pretendiam, e acrescentou que o círculo na terra era feito uma hora antes de amanhecer, assim como todos os procedimentos. E que o “demônio” apresentava-se para atender aos pedidos. É possível inferir pelas acusações que para a perfeita execução do ritual havia dia, hora, vestes e símbolos precisos. O fato de ser celebrado uma hora antes de amanhecer pode significar, como sugere a Clavícula de Salomão, que aquele horário do dia é especial para a invocação de espíritos, ou outras forças intangíveis tais como os Arcanjos. Aquele seria o momento exato para que o seu poder fosse absoluto e, por consequência, o ritual seria melhor sucedido. Pois, existem as horas mágicas diurnas e noturnas. Se, por um lado, para fazer o ritual eram exigidos poucos materiais, por outro, os seus métodos e procedimentos eram extremamente complicados por conta do nível de detalhamento. A Clavícula Salomonis expõe os arcanjos regentes de cada dia da semana. Seus nomes eram colocados dentro do círculo no qual o celebrante também se localizava. Os arcanjos regentes presentes no manuscrito são: Rafael, Gabriel, Samael, Miguel, Saquiel, Anael ou Haniel e Cassiel. Eles estão associados a um planeta regente e a um dia da semana. Cada um vem acompanhado de um nome oriundo da escrita usada somente pelos magos cerimoniais, que é baseada no idioma hebraico. Nota-se, assim, a influência judaica sobre a magia cerimonial. Em função disso, após ser consultado pelo Tribunal de Lisboa, o Santo Ofício de Sevilha enviou uma Carta à Inquisição portuguesa dizendo que João Baptista Laroca não se encontrava nos seus registros.
Em outras palavras, o denunciado não era um reincidente da Inquisição. De certo modo, não era verdadeira a acusação dos sicilianos, pois essa foi a primeira vez que João Baptista se defrontou com a Inquisição. Em 28 de Junho de 1724, o Inquisidor Phellipe Maciel mandou vir perante si a João Baptista Laroca (Rocaforte), o qual, como já foi visto, declarou ser cristão-velho, ou seja, não ter ascendência judaica.
Portanto, tratava-se de um homem que sabia o que estava se passando consigo, ao menos aparentava ter noção dos Estatutos de Pureza de Sangue vigentes em sua época. Se fosse realmente um descendente de judeu estava escondendo tal fato e, se não o fosse estava tentando reforçar que a sua ascendência, os seus antepassados, não possuíam sangue “impuro”.
João Baptista Laroca (Rocaforte) afirmou que não havia seis meses encontrara no Reino de Múrcia um estrangeiro, “de nação”, chamado Caetano o qual “tratou com familiaridade de amigo”. E que este estrangeiro havia lhe mostrado um livro de aproximadamente vinte folhas chamado Clavicula Salomonis, escrito em latim. E o dito homem explicou onde ficava cada nota, os círculos e as figuras que representavam os astros. É bem provável que tais astros representados fossem o Sol, a Lua, Marte, Mercúrio, Júpiter, Vênus e Saturno; planetas que regem a vida humana, uma vez que o Sol e a Lua eram considerados planetas pela astrologia medieval. Assim, a Clavicula Salomonis se pautava na cosmologia segundo a qual a Terra era de fato o centro do Universo. E quanto mais distante fosse o planeta maior seria o nível dos espíritos que o regiam e mais influentes seriam sobre a realidade humana.
É interessante notar que esses mesmos planetas aparecem na Cabala Prática como Signos Zodiacais, utilizada para um aprofundamento nos estudos acerca da Otz Chiim, a chamada Árvore da Vida. Os símbolos zodiacais, que são baseados nos sete planetas e nos símbolos alquímicos do Ar, da Terra, do Fogo e da Água constituem uma série de 22 (vinte e dois) símbolos. Nessas tradições considera-se a Árvore da Vida como um glifo que é constituído pelos mesmos 22 (vinte e dois) caminhos que interligam às Sephirot, as esferas que simbolizam emanações diferentes da realidade, ou seja, cada caminho simboliza a mudança de passagem entre uma dimensão da realidade e outra. A Clavícula de Salomão e a Cabala comungam de uma ideia em comum, de que a realidade não se apresenta como de fato é. Existem forças invisíveis que regem, que governam o nosso mundo. Existem na Magia Cerimonial espíritos lunares, solares, jovianos, venusianos, mercurianos, saturnianos. Cada espírito habitando um céu de seu astro quando é invocado, precisa ser no dia correto, na hora correta e com os símbolos, os selos, os caracteres, as letras divinas e conjurações apropriadas para o encantamento mágico. Todo astro também tem o seu Arcanjo particular com o qual o mago necessita entrar em sintonia. Tais símbolos e ritos são ricamente descritos no processo. Segundo João Baptista Laroca (Rocaforte), esse Grimório lhe serviria, por meio de encantamentos, para encontrar “tesouros” e enriquecer. E, para justificar a posse do afamado livro de magia cerimonial, afirmou em seu depoimento que, chegando a Portugal, na vila de Abrantes, o dito “de nação”, chamado Caetano, havia simplesmente partido na madrugada deixando a Clavícula de Salomão para trás, entre seus pertences. Quando estava na cidade de Coimbra soube que em Lisboa preparavam-se alguns navios para embarcar em viagens comerciais e, visto que se encontrava em grande dificuldade financeira tinha a extrema necessidade de tomar partido neste empreendimento. Inclusive a empresa que se preparava na capital portuguesa contava com a principal nau da Companhia da Córsega, chamada Primogênita. Recebeu o ofício de artilheiro, sendo pouco tempo depois despedido com o pretexto de ser ele italiano.
No mês de Julho de 1724, o próprio João Baptista Laroca (Rocaforte) pediu audiência ao Santo Ofício para fazer declarações que se recordava a respeito das confissões. Declarou que junto com o manuscrito havia uma faca que era usada para fazer os círculos e de que havia dois pedaços de papel, um com o símbolo do Signo de Samael e outro com outras regras e nomes. E que o dito italiano da Sicília o havia pagado para fazer uma cópia do dito manuscrito e que logo após mudou de concepção e restituiu o dinheiro que o siciliano tinha dado pelo manuscrito. Assim, aparece no processo um terceiro siciliano, também de nome Caetano, que o aconselhará a vender o livro da Clavicula Salomonis para assim pagar suas contas. O réu relatou que se encontrou com um estrangeiro cujo nome não se lembra, e não sabia ao certo a sua procedência e que talvez fosse um grego ou armênio. Mas como tinha a intenção de vender o manuscrito inventara que havia sido preso pela Inquisição de Sevilha por culpa de Judaísmo e que haviam confiscado toda a sua propriedade na Espanha. Com isso, João Baptista Laroca (Rocaforte), pretendia demonstrar que as denúncias que poderia haver contra ele se baseavam em uma mentira, um artifício que o mesmo usou para tentar vender o livro de magia cerimonial. Mas, que nunca acreditara nem fizera uso da Clavícula de Salomão com a intenção de enriquecer e se o fez era por obra do Demônio. Afirmou que chegando a Lisboa ficou alojado na casa de outro italiano chamado Desiderio de Vecchio, localizada no Beco das Tábuas, na freguesia de São Paulo, como já foi visto anteriormente. Dando continuidade aos depoimentos da peça inquisitorial, em dezessete de Outubro do mesmo ano foi chamado para depor Estevão Pusolo Cordeiro. Que havia sido mencionado por Desiderio de Vecchio como sendo vizinho de João Baprtista Laroca (Rocaforte). Esse também era natural do norte da Itália, uma cidadela chamada São Pedro de Area. Estevão declarou que somente poucas vezes havia visto o réu e que não tinha conhecimento de sua procedência, que Desiderio de Vecchio tinha um armazém de Vinhos sendo cliente da sua venda. E com frequência via João Baptista Laroca (Rocaforte) acertando as contas do seu alojamento com o mesmo. Afirmação essa que contradizia o senhorio de João Baptista Laroca que afirmara havê-lo acolhido por caridade. Em 26 de Outubro o réu foi chamado pelo inquisidor Phelipe Marciel para um exame de consciência. Desta vez João Baptista Rocaforte concordou com tudo o que dissera o Santo Ofício a respeito da fé Católica e dos pecados que havia cometido. No dia trinta do mesmo mês assinou o Termo de Segredo. Foi solto pela Inquisição após admitir suas culpas, porém, sem nenhuma penitência, a não ser pagar as custas do processo.
A primeira metade do século XVIII em Portugal foi marcada pelo governo de D. João V (1707-1750). Esse monarca ficou conhecido por haver desperdiçado a imensa fortuna em ouro, levada da América portuguesa para a metrópole, em gastos suntuários. Também se notabilizou pela sua fidelidade cega ao catolicismo romano, transferindo grandes somas em dinheiro para os cofres do Vaticano. Em Portugal e na Espanha, o contato cultural com a Contrarreforma, uma série de medidas tomadas pelo Catolicismo Romano para conter a propagação da religião Protestante, principalmente a definição da doutrina Católica no Concílio de Trento e o surgimento do estilo barroco, mantiveram a Península Ibérica em certa dissonância com o restante da Europa, onde novas ideias floresciam. Havendo cada vez mais intimidade entre o poder político da nobreza e o poder religioso da Igreja. Assim, apesar do movimento chamado “iluminismo católico” que D. João V patrocinou como mecenas das artes, o pensamento de vanguarda do período não encontrou guarida em Portugal. Muito pelo contrário, durante seu governo ocorreu um recrudescimento das ações do Santo Ofício em terras lusitanas. Foi nesse ambiente cultural, com uma inquisição fortalecida e temerária que os cidadãos da colônia italiana de Lisboa se opuseram em torno de um personagem de perfil dúbio, João Baptista Laroca (Rocaforte). Nitidamente as versões dos italianos meridionais (sicilianos) tinham o objetivo de incriminar o denunciado, enquanto os genoveses, do norte da Itália, em seus depoimentos apresentaram uma versão que corroborou as palavras da confissão do réu. Qual a versão verdadeira?
A análise do processo de João Baptista Laroca (Rocaforte) nos fornece indícios para suspeitarmos de uma realidade diferente da que foi aventada pelos dois grupos. Uma terceira possibilidade. O denunciado não seria judeu, como afirmaram Miguel Mileti e Caetano Barrilaso, nem “apostólico romano”, como declarou Desiderio de Vecchio. Mas, um “cristão-novo” judaizante praticante da Cabala.
Em vários momentos já demonstramos como o norte da Itália, durante os tempos modernos, representou um ambiente propício para os sefarditas desenvolverem sua cultura peculiar. Os principais aspectos dessa permanência cultural estão representados pela literatura, pela manutenção de instituições e o ressurgimento do ladino61, mantendo os laços com a Península Ibérica. (BONFIL, 1996).
Porém, além desses aspectos da sobrevivência da cultura sefardita no norte da Itália, destacou-se a importância que a Cabala, com a publicação de duas edições do Zohar ainda em meados do século XVI, desempenhou no ambiente cultural italiano, a ponto de influenciar não somente as comunidades judaicas, mas, também pensadores renascentistas, conforme Jean Delumeau e João Lúcio D’Azevedo descreveram. Além disso, foram estudiosos do norte da Itália os responsáveis pela transmissão do conhecimento místico de Isaac Luria (1534-1572) desde Safed, na Palestina, no início do século XVII. Nisso destacou-se a figura de Israel Sarug que contribuiu para a difusão da Cabala em diversas regiões da Itália no período entre 1594 e 1600, atingindo também ambientes como Amsterdã e Alemanha. Um vestígio interessante presente nas denúncias contidas no processo é a informação de que João Baptista Laroca (Rocaforte) afirmara que o livro “carcanho de Adamo” “continha o segredo de alguns tesouros, fazer a pedra philosofal”, “fazendo quimia”. Nesse particular, o processo demonstra uma relação histórica que poucos estudiosos foram capazes de estabelecer. Qual seja, a influência da Cabala judaica sobre o desenvolvimento do método alquímico. Raphael Patai, em obra de fôlego, demonstrou como grandes cabalistas durante a Idade Média e o Renascimento também eram alquimistas, caracterizando-se por uma, especial predileção por dar um sabor místico a suas anotações alquímicas, insistindo repetidamente em que essa ou aquela observação ou descoberta era ‘um grande segredo’ – e foi precisamente por fazer isso que eles chegaram a uma fusão ou, pelo menos, uma combinação entre a alquimia e a Cabala. (PATAI, 2009, p. 556). Ora, o grande alquimista cabalista Judá Moscato (c. 1530 - c.1593) foi um rabi que desenvolveu o seu pensamento durante o renascimento, no norte da Itália. Também a Cabala luriânica, que foi transportada para a Itália por Israel Sarug, desenvolveu a chamada “Cabala prática” que envolvia magia, alquimia e medicina, sendo uma perspectiva acalentada por seu principal continuador, Haim Vital (1543 – 1620).
Assim, escondido por trás de um nome tão castiçamente cristão, João Baptista, conhecida estratégia de camuflagem criptojudaica por meio da qual os sefarditas conversos assumiam nome e sobrenomes ligados à religiosidade dominante, suspeitamos haver um alquimista cabalista. De certo, porém, ficou a evidência documental de que entre os sefarditas conversos e judaizantes do início do século XVIII circulava um livro de magia cerimonial, a Clavícula de Salomão, testemunho inequívoco de que eles cultivavam a Cabala prática.
Capítulo 8
Cabala Prática e Criptojudaísmo
Durante muito tempo, em Portugal e Espanha, se cultivou a crença de que os judeus ao serem expulsos desses países, no início dos tempos modernos, esconderam tesouros em determinados locais para serem resgatados na posteridade. Apesar de esse relato estar envolto num clima de lenda e também ser distorcido pela imaginação popular na esperança que muitos acariciam de encontrar riquezas em joias e metais preciosos, existem indícios de que esses tesouros eram constituídos de livros da cultura e religião judaicas uma vez que, em sua fuga para outros países cristãos católicos eles não poderiam levá-los consigo por conta da censura literária inquisitorial.
Ora, a crença popular não é sem fundamento de modo algum, uma vez que a tradição judaica prescreve o máximo cuidado com os livros religiosos, considerados sagrados, coibindo a sua destruição ou incineração e exigindo que em cada sinagoga haja um local chamado “genizah”, onde são guardados os escritos já envelhecidos que contém o nome de Adonai. A confirmação desses fatos aconteceu em 1992, quando um “tesouro oculto” foi descoberto em Barcarrota, na Espanha. Nesse ano, um pedreiro realizava obras de reforma na secular casa localizada no número 21 de la Plaza de Nuestra Señora, no centro desse pequeno povoado da Extremadura, e deparou-se com um surpreendente conteúdo escondido por tapumes num espaço vazio existente nas paredes. Trata-se de um conjunto de livros clandestinos que foram escondidos pelo médico criptojudeu Francisco de Peñaranda, por volta do ano de 1557, nas paredes de sua casa antes de viajar para trabalhar no Hospital e Santa Casa de Misericórdia de Olivenza, em Portugal. Os livros ali permaneceram escondidos durante mais de quatro séculos.(MANGAS, 2010).
Na história da cultura universal – e, mais especificamente, da cultura portuguesa e brasileira que se viram amordaçadas durante séculos pela atuação da Santa inquisição -, são múltiplos os exemplos de ‘caça à literatura sediciosa”. Podemos considerar Portugal o pioneiro na censura literária em defesa da fé e de bons costumes. Antes mesmo da instituição da Inquisição em Portugal (1536), observamos por parte do Estado a preocupação em cercear ideias consideradas como perigosas ao regime. Em meados do século XV foi instituída a censura real através de um alvará de Afonso V, de 18 de Agosto de 1451, que mandava ‘queimar livros falsos e heréticos’ (CARNEIRO, 2002, p. 37). Efetivamente Francisco de Peñaranda não poderia viajar para Portual com aqueles livros!
Os livros emparedados ficaram conhecidos como a “biblioteca de Barcarrota” e formam um conjunto heterogêneo de onze obras que inclui dois livros de Erasmo de Roterdã (1466-1536), o humanista e filósofo holandês que questionou tanto católicos quanto protestantes, um livro de quiromancia, um de exorcismo, outro de astrologia, um escrito chamado de “Livro de Alboraique”, dentre outros. Dentre os livros dessa biblioteca clandestina chama atenção exatamente esse chamado “Livro de Alboraique”. Trata-se de um opúsculo, considerado por alguns como um panfleto escrito anonimamente na Espanha, pouco depois de 1488, e que tinha o pretenso objetivo de pugnar contra os conversos judeus, falsos cristãos, que viviam no seio da sociedade.
O livreto toma o nome inspirado na cavalgadura de Maomé, Al-Burak, que, segundo a tradição era uma criatura híbrida com características de cavalo, mulo, leão, lobo e traços dos dois sexos na qual o profeta foi transportado de Meca até Jerusalém. Assim, a metáfora central do livro procurava descrever os conversos tendo em vista que em seu interior conviviam várias características. Apesar de transparecer uma oposição aos criptojudeus, na realidade o livro podia mesmo era servir como um manual de práticas da religião proscrita. Comentando a presença dessa obra entre os livros emparedados em Barcarrota por volta de 1557, Fernando Serrano Mangas afirma:
No es obra esa que tuviera jamás un cristiano viejo, ni muchos menos, un converso o alboraique. Su posesión entrañaba enorme peligro, pues se transmutaba en carta de identidad del poseedor. Ni a un converso, ni a un cristiano viejo se le hubiesse pasado por la imaginación tapiar un ejemplar del raro Alboraique como algo querido y apreciado. La posesión y conservación sólo puede atribuir-se, necessariamente, a un criptojudío, a alguien que en secreto persistía en la fe de sus ancestros. (MANGAS, 2010, p. 30). Sobre o sentido geral dessa “biblioteca”, o autor escreveu: “Astrología, quiromancia y hechicería formaban um todo difícil de separar. El depósito de Barcarrota resulta ejemplar sobre la cuestión. Era el mismo universo científico, pseudocientífico y supersticioso – en alto grado procedente de la tradición hebrea.” (MANGAS, 2010, pp. 27-28). Francisco de Peñaranda recebeu a influência de duas heranças culturais que tradicionalmente cultivavam relações com a magia e o misticismo. Primeiro, a medicina, que no século XVI ainda consistia numa mistura de quiromancia, astrologia, exorcismo, conhecimento de ervas e artes médicas. De acordo com a perspectiva popular, demônios e mágicos eram frequentemente responsáveis por doenças, e a medicina era o lugar legítimo da feitiçaria. Em função disso, muitas vezes os médicos judeus eram chamados para operar milagres. (TRACHTENBERG, 2004, p. 4).
Essa situação crítica do médico de origem judaica se confirma a partir do ângulo de visão de Brás Luís de Abreu, que lançou uma obra intitulada “Portugal Médico” (1726), na qual traça uma imagem negativa do judeu associado com a figura do feiticeiro. “... A seu ver, muitos se fingem de médicos e são: os Idiotas, os Vagabundos, os Judeus, os Barbeiros, os Soldados, os Feiticeiros, os Benzedores, e todos os mais impostores e cícunforâneos, revelando-se, deste modo, lobos que matam e roubam.” (GARCIA, 2006, p. 16).
A segunda herança cultural que influenciou Francisco de Peñaranda foi o Judaísmo, que se apoia num pensamento eminentemente mágico ao defender o princípio de que a performance de rituais bíblicos pode repercutir de forma dramática sobre o curso da natureza. (IDEL, 2004, p. 15).
Esse entendimento mágico do universo se torna mais intrínseco em se considerando a Cabala judaica. Assim, a experiência da biblioteca clandestina do médico criptojudeu torna-se um antecedente significativo para a análise do caso de João Baptista Laroca (Rocaforte), uma vez que ele foi acusado perante o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa de possuir um livro de magia cerimonial intitulado, Clavícula Salomonis. Estaria ele resgatando parte desse tesouro ancestral escondido pelos sefarditas conversos e judaizantes?
O Ritual do Círculo e seu Funcionamento
Segundo João Baptista Laroca informou ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, nas suas andanças estivera em Múrcia, no sudeste da Espanha. Essa é uma região com forte influência mourisca, notadamente na Arquitetura e nos costumes. Foi nessa cidade que conheceu um homem “de nação”, ou seja, sefardita converso, chamado Caetano com quem se identificou, tratando-o com “familiaridade de amigo”. Os dois conversaram sobre um manuscrito, com vinte e uma páginas, contendo círculos, astros, signos e outros artifícios místicos. Assim, na sua explicação, teria sido por meio desse “cristão-novo” que ele teve acesso a esse manuscrito. Mas, essa é uma informação que precisa ser submetida a uma análise crítica. Qual a natureza desse manuscrito? Seria mesmo o famoso grimório “Clavícula de Salomão”? O interessante é que, depois da prisão de João Baptista Laroca (Rocaforte), agentes da Inquisição foram ao “Beco das Tábuas”, na Freguesia de São Paulo, local da moradia do réu, em busca do referido texto. A busca dos enviados da Inquisição resultou infrutífera, mas, posteriormente um vizinho dirigiu-se aos Estaus, palácio sede do Santo Ofício da Inquisição em Lisboa, e entregou os pergaminhos às autoridades inquisitoriais. O material foi incorporado ao processo.
No início do século XVIII, devido à própria repressão do Index Librorum Prohibitorum, a quantidade de literatura clandestina que existia na Europa Ocidental devia ser significativa. Assim, apesar de um livro como a “Clavícula de Salomão” não ser uma obra tão comum, cópias impressas e manuscritas circulavam sigilosamente. O que causa estranheza no manuscrito apreendido, escrito em latim, é o seu conteúdo reduzido. Obviamente, não se trata de toda a obra. Seria apenas um excerto? Ou seria aquilo que a própria obra chama de “o livro das sombras”? Na explicação da versão atual da Clavícula de Salomão, “o Livro das Sombras não é uma obra literária, que possa ser comprada nas lojas, mas um caderno de anotações, uma agenda de magia estritamente pessoal.” (CLAVÍCULA DE SALOMÃO, 2006, p. 120). Ora, o exame detido do manuscrito de vinte e uma páginas, entregue por um vizinho do réu ao Tribunal do Santo Ofício enquanto o mesmo se encontrava preso, revela que o conteúdo do mesmo se dedica sobretudo “ao círculo e seu funcionamento”. Trata-se, portanto, de um manual prático de execução de uma cerimônia mágica. Esse seria o “Livro das Sombras” de João Baptista Laroca (Rocaforte)? Os denunciantes, acima qualificados, Miguel Mileti e Caetano Barrilaso, declararam que João Baptista Laroca (Rocaforte) informara-lhes que protagonizava um ritual de magia com o objetivo de obter riquezas materiais. As orientações para a execução do rito se encontravam no manuscrito que o acusado levava consigo. No manuscrito incorporado ao processo estão desenhados sete círculos, um para cada dia da semana. Cada círculo tem um arcanjo regente e cada arcanjo regente está associado a um planeta diferente. Segundo a Clavícula de Salomão quando se faz um ritual o dia da semana deve ser observado para que possa invocar o arcanjo no dia e na hora em que o mesmo tem o poder absoluto. (CLAVÍCULA DE SALOMÃO, 2006). Por exemplo, Lunedi que corresponde à Segunda-feira é o dia regido pelo Arcanjo Gabriel e a correspondência planetária é a Lua. Martedí que é a Terça-feira é regido pelo Arcanjo Samael e a correspondência planetária é Marte. Abaixo segue uma tabela com o dia da semana, o planeta e os arcanjos correspondentes, como são descritos no manuscrito anexado ao processo:
Dia da Semana Planeta Regente Arcanjo
Domingo Sol Miguel
Segunda-feira Lua Gabriel
Terça-feira Marte Samael
Quarta-feira Mercúrio Rafael
Quinta-feira Júpiter Saquiel
Sexta-feira Vênus Anael
Sábado Saturno Cassiel
É interessante notar que no manuscrito que aparece no processo os arcanjos Miguel e Rafael devem ser invocados nos dias de Domingo e Quarta-feira, respectivamente, enquanto na Clavícula de Salomão eles devem ser invocados em sequência inversa, nos dias de Quarta-Feira e Domingo. Dentro dos círculos do manuscrito vemos letras e palavras em latim, em grego e em hebraico. De modo geral, os idiomas utilizados na Clavícula de Salomão são variantes do hebraico antigo uma vez que o idioma hebraico sempre foi o mais utilizado na magia Ocidental.
Contudo, é difícil afirmar com toda a certeza qual idioma mágico era utilizado na Clavicula Salomonis, pois, mesmo que chegássemos a uma conclusão esbarraríamos na dúvida da possibilidade deste idioma mágico ter mudado com o passar do tempo. Assim, a troca dos dias de invocação dos Arcanjos pode ser explicada devido às modificações operadas nos meios ocultistas com o passar dos anos. Isso porque a Magia Ocidental tem um caráter extremamente mutável uma vez que se apega a hipóteses que são tomadas como verdade quando postas em prática, mas que podem ser modificadas com a experiência posterior. (FIELDING, 2010).
Logo na primeira página do manuscrito encontra-se uma breve preparação que consiste em modificar algumas atitudes. Nove dias antes de fazer o ritual, o mago evita ter contato sexual com mulheres. As versões modernas da Clavícula de Salomão também estabelecem nove dias de preparação antes do mago executar o ritual, porém, o que deve ser evitado é diferente, não faz nenhuma menção à proibição de relações sexuais. Devem ser evitados os excessos e as palavras vãs e qualquer tipo de discussão inútil. Manter a moderação ao falar, comer, beber e ser decente em toda a sua conduta. Segundo o manuscrito, deve ser usado um vaso que nunca tenha sido utilizado na ocasião da magia. O mago deveria ter em mãos água benta para aspergir sobre o círculo e queimar incenso com a finalidade, provavelmente, de purificá-lo, de santificá-lo. Há ainda admoestações para conjurar espíritos rebeldes e das “ladainhas” que se devem fazer para atrair sua presença. Essas admoestações são importantes uma vez que conjurar espíritos rebeldes faz parte da função dos pentáculos que são mencionados também na primeira página.
Para termos uma noção do poder do pentáculo os espíritos invocados obedecerão o portador do mesmo sem nenhum tipo de recusa. Chamados também como medalhas da Arte, os pentáculos são símbolos com natureza mística e são feitos para incutir temor aos espíritos e colocá-los sob a total obediência do mago. De acordo com a finalidade do ritual, o pentáculo poderá ser símbolo de qualquer um dos astros que regem o universo e que foram explicados acima.
Visto que na Clavícula de Salomão cada astro é habitado por gênios, ou espíritos, o pentáculo do ritual fará menção à invocação destes espíritos. É de igual importância observar que todos os elementos denunciados pelos delatores, isto é, a água benta, o círculo, o livro, a missa feita ao Espírito Santo estão presentes logo no início da Clavícula Salomonis. São procedimentos e objetos sagrados que o mago deveria ter em suas mãos.
Interpretação do Ritual
O que simbolizava o círculo no ritual acima descrito? A simbologia do círculo é rica e está presente nas mais variadas tradições religiosas e místicas. O símbolo constitui uma antiga tradição mágica, cuja origem é o “círculo encantado” ou “círculo de proteção” que foi preservada em inúmeras tradições populares. O objetivo é criar uma área protetora ao redor do centro que é o templo sagrado, evitando um vazamento de forças mágicas ou preservá-las; em suma, para as tradições mágicas, o círculo tem a função de delimitar uma área sagrada, um verdadeiro templo. (JUNG; WILHELM, 1983).
No processo de João Baptista Laroca (Rocaforte) existem indícios de que, provavelmente, o ritual do círculo conforme acima descrito, possuía um significado mais amplo. Segundo os denunciantes, o réu afirmara que possuía um livro intitulado “Carcanho de Adamo”, o qual continha, por artes diabólicas, o segredo de alguns tesouros, como o de fazer a “pedra filosofal”. Essa menção explícita a um dos grandes objetivos dos alquimistas ajuda a aproximar a interpretação do desenho do círculo no ritual, pretensamente praticado por João Baptista. Laroca (Rocaforte), de um dos principais símbolos dos alquimistas, a chamada quadratura circuli, que, segundo Carl Gustav Jung, nada mais é que uma mandala. Existe na magia cerimonial um ritual básico chamado “A Cruz Cabalista”. Trata-se de um ritual que o praticante tem que fazer sozinho e diariamente, com o objetivo de ratificar a presença do Espírito de Deus em todos os seres humanos e no universo, servindo como uma ligação entre o mago e o universo. Além de traçar uma cruz de braços iguais no peito, desenha-se um circulo de 1,80 m de diâmetro e somente depois o ritual tem prosseguimento. O que mais importa é que esse ritual, descrito muitas vezes como um dos mais importantes e amplamente conhecido nos meios ocultistas, faz uma forte menção à prática da mandala, o traçar do círculo sagrado presente na cabala prática. (FIELDING, 2010). A questão central é: seriam esses rituais, de fato, conhecidos e praticados pelos sefarditas conversos e judaizantes? Qual a proximidade entre os círculos sagrados descritos nos livros de Cabala prática e o descrito no processo estudado? Investigando o caso chega-se a algumas comparações. Na circunstância de João Baptista Laroca (Rocaforte), os indícios apontam para uma prática de alquimia cabalística. Qual seja, os rituais de circumambulação65 que estavam presentes entre os cabalistas. Por exemplo, em Safed, na palestina, ao chegarem à Sinagoga, por ocasião do culto público, eles realizavam uma cerimônia que consistia em dar 7 (sete) voltas ao redor da arca central recitando os versos do Salmo 67. Essa circumambulação tinha um significado místico: o devoto, incorporando o divino masculino, circulava ao redor do altar de leitura, que simbolizava o divino feminino (Malkhut), sete vezes, com o propósito de facilitar o divino hieros gamos e a iluminação pessoal. (FINE, 2003).
Outros personagens contemporâneos de João Baptista Laroca (Rocaforte) que estiveram sob o poder do Tribunal do Santo Ofício na primeira metade do século XVIII, demonstram como o misticismo de influência cabalística existia entre os acusados de criptojudaísmo. São os casos de Pedro de Rates Henequim (1689-1744) e Antônio José da Silva (1704-1739) que foram anteriormente analisados.
Na realidade, a vida de perambulações de João Baptista Laroca (Rocaforte) ao redor da bacia do Mediterrâneo, levando consigo um livro ou manual de magia cerimonial e discutindo com alguns circunstantes seu conteúdo, note-se que ele mesmo afirmou que o tal Caetano que encontrara na viagem era “de nação”, evoca a figura do “andante” que se dedicava ao trabalho de difusão da cultura proscrita dos sefarditas, numa atitude de premeditada resistência cultural. Não é a toa que o D. Quixote de La Mancha escrito por Antônio José da Silva, o maior símbolo de andante da literatura, é um cavaleiro que se dedica ao trabalho de “desencantar” as pessoas. De tal forma que existia entre os judeus da diáspora, praticantes da Cabala, até mesmo um proselitismo velado.
Era costume entre os criptojudeus a existência de personagens que se arriscavam em viagens com o intuito de disseminar os conhecimentos judaicos às pessoas de origem sefardita. São mencionados por Elias Lipiner os casos de Izaque de Castro Tartas, Francisco Pardo e Joseph Coem. Segundo ele, “era comum àquele tempo (século XVII) o envio de mensageiros para introduzir ou aviventar o culto judaico no meio dos cristãos-novos dele afastados.” (LIPINER, 1992, p. 54).
O perfil desses personagens é muito similar ao de João Baptista Laroca. Eram eruditos, conhecedores de várias línguas, sempre envolvidos em viagens de negócios. Os indícios encontrados, através da análise do processo, para sustentar a hipótese de que João Baptista Laroca (Rocaforte), denunciado ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa em 1724, era um criptojudeu adepto da cabala prática são muitos e se tornam significativos à luz do contexto amplo do movimento de resistência cultural dos sefarditas. O importante é observar que as práticas mágicas descritas no processo de João Baptista Laroca (Rocaforte) são costumes presentes na magia judaica desde os tempos da Idade Média. Desde esse período o judeu foi considerado como um referencial simbólico na magia e na prática da feitiçaria. Segundo Nelson Omegna, a magia era atribuída no mundo medieval europeu como uma atividade de especialização judaica, na qual, quase todas as soluções mágicas recorriam às formulas e caracteres hebraicos. O interessante é que a feitiçaria vai se desenvolver no renascimento com um novo arcabouço, no qual, vai ascender à categoria de uma prática erudita entre os intelectuais europeus com destaque para os judeus.
Francisco de Peñaranda absorveu esse ambiente cultural, com um adendo; a cultura sefardita estava fortemente enraizada no cabalismo, que foi reforçado ainda mais com a influência vinda de Safed, especialmente da chamada cabala prática, tanto de R. Moisés Cordovero, quanto de R. Isaac Luria, exatamente em meados do século XVI. Em que medida esse caldo cultural influenciou João Baptista Laroca (Rocaforte)? Notadamente em se considerando que foi através da Itália que a influência da comunidade cabalística de Safed, especialmente da obra de R. Isaac Luria, espalhou-se pelo mundo, a partir do século XVII? Além dos indícios mais sutis que sustentam a hipótese da origem criptojudaica dele, como são os detalhes do uso da barba, frequente entre os judeus religiosos, do tratamento fraterno dispensado a um indivíduo “de nação”, do fato de ser oriundo do norte da Itália, região que tradicionalmente abrigou sefarditas, de residir em Lisboa numa freguesia densamente habitada por comerciantes de origem judaica, de ser acusado formalmente de ser judeu, embora o negasse, e de praticar rituais associados à Cabala prática, a cerimônia do círculo, conforme analisada nesse texto, e que muito provavelmente ele celebrava, está presente na tradição mágica judaica desde a antiguidade. Além disso, a posse do grimório ou “livro das sombras” também é um costume judaico primitivo tendo em vista que os judeus possuem uma versão ancestral da Clavicula Salomonis, intitulada Sefer Raziel, um grimório de Cabala prática que data, pelo menos, do século XIII da era comum.