domingo, 13 de fevereiro de 2022

Vodum

 


Vodum, vudu ou vodu (em fom: vodun; em francês: voodoo ou vodou, /ˈvuːduː/, vo̅o̅′do̅o̅) termo que refere-se aos vários ramos de uma tradição religiosa baseada nos ancestrais (negros antilhanos de origem animista) que tem as suas raízes primárias entre os povos Jeje-Fom do Benim, atual religião nacional, com mais de 7 milhões de adeptos.

Além da tradição fom, ou do Daomé, que permaneceu na África, existem tradições relacionadas que lançaram raízes no Novo Mundo durante a época do tráfico transatlântico de escravos (século XVI - século XIX) e que persistem até hoje, tais como o candomblé brasileiro, o tambor de mina maranhense, o vodu haitiano, a santería cubana, o vudu da Luisiana (Estados Unidos), etc. "Vodum" pode designar tanto a religião quanto os espíritos centrais nessa religião.

O vodum da África Ocidental (Vodun ou Vudun na língua fom do Benin e da Nigéria e na língua jeje do Togo e Gana) é uma religião tradicional da costa da África Ocidental, da Nigéria a Gana. É distinta das religiões animistas tradicionais do interior desses mesmos países, e semelhante a diversas religiões surgidas com a diáspora africana no Novo Mundo, como o vodu haitiano, o vodu da República Dominicana, o candomblé jeje no Brasil, o vodu da Luisiana e a santería em Cuba, que são sincretizadas com o cristianismo e as religiões tradicionais africanas do povo bacongo.

É praticado pelos jejes, cabiés, minas, fons e (com um nome diferente) os povos iorubás do sudeste do Gana, Togo meridional e central, Benin meridional e central, e sudoeste da Nigéria. A palavra vodún (pronunciado vodṹ - ou seja, com um u nasal em um tom alto) é o termo bês (jeje-fom) para a palavra "espírito".

60% da população do Benim, cerca de 4,5 milhões de pessoas, praticam vodum. Além disso, muitos dos 15% da população beninense que se denominam "cristãos" praticam, na verdade, uma religião sincretizada, semelhante ao vodu haitiano ou ao candomblé brasileiro. Muitos deles são descendentes de escravos libertos brasileiros que se fixaram na costa perto de Uidá. Em Togo, cerca de metade da população indígena pratica religiões, das quais o vodum é, de longe, a mais seguida, com cerca de 2,5 milhões de seguidores. Pode haver outros milhões de vodunces entre os jejes de Gana: 13% da população de 20 milhões são jejes e 38% dos ganenses pratica religiões tradicionais. Cerca de 14 milhões dos nigerianos pratica religiões tradicionais, principalmente o vodum.


Brasil

A tradição e a cultura dos escravos jejes, fons, minas, fantes e axântis deram origem no Brasil às tradições conhecidas como:


Candomblé jeje: teve início em Salvador e no Recôncavo baiano, nas cidades de Cachoeira e São Félix e outras, depois migrou para o Rio de Janeiro, São Paulo em maior número.

Tambor de Mina: teve sua origem em São Luís com a Casa das Minas, de culto mina-jeje e a Casa de Nagô, de culto mina-nagô. Posteriormente foi inserido no estado do Pará.

Xangô do Nordeste, Xangô do Recife, Xangô de Pernambuco ou Nagô-ebá ou Jeje-Nagô: teve início na Região Nordeste do Brasil. Uma parte migrou depois para outros estados.

Batuque (religião), no Rio Grande do Sul, que embora cultue os orixás tem influência jeje, chegando, a partir deste estado brasileiro, até ao Uruguai e à Argentina.


Cuba

A tradição fom mais ou menos "pura" de Cuba é conhecida como La Regla Arará. 


Estados Unidos

É importante notar que a palavra vodu é a mais comum, conhecida e usada na cultura popular americana, embora seja vista como ofensiva pelas comunidades praticantes da Diáspora africana. As soletrações diferentes deste termo podem ser explicadas como segue:

A palavra vodu é usada para descrever a tradição creole de New Orleans; vodou é usado para descrever a tradição vodu haitiana.

O vodu da Luisiana, também conhecido como vodu de Nova Orleães, é uma religião da diáspora africana, uma forma de espiritualidade que foi desenvolvida falando-se a língua francesa e o Creole pela população Afro-americana do estado de Luisiana, nos Estados Unidos.


Haiti

O vodu haitiano, chamado de Sèvis Gine ("serviço africano") no Haiti, tem também fortes elementos dos povos Ibos, congos da África Central e dos Iorubás da Nigéria, embora muitos povos diferentes ou "nações" da África tenham representação na liturgia do Sèvis Gine, assim como os índios tainos, os povos originais da ilha agora conhecida como Hispaniola.

Formas crioulas de vodu existem no Haiti (onde é nativo), na República Dominicana, em partes de Cuba, e nos Estados Unidos, e em outros lugares em que os imigrantes de Haiti dispersaram durante os anos.[5][6] É similar a outras religiões da diáspora africana, tais como Lukumi ou Regla de Ocha (conhecida também como santería) em Cuba, candomblé e umbanda no Brasil, todas essas religiões que evoluíram entre descendentes de africanos transplantados nas Américas.


Voduns

Mawu é o ser supremo dos povos jejes e fons, que criou a terra e os seres vivos e engendrou os voduns, divindades que a ("Mawu" é do gênero feminino) secundariam no comando do universo. Ela é associada a Lissá, que é masculino, e também corresponsável pela criação, e os voduns são filhos e descendentes de ambos. A divindade dupla Mawu-Lissá é intitulada Dadá Sebô (Grande Pai Espírito Vital).


Os voduns na África são agrupados em "famílias" chefiadas por um vodum principal, ora representando um elemento ou fenômeno da natureza, ora da cultura. Existem, basicamente, 4 famílias principais:


Os Jivodum, ou "voduns do alto", chefiados por Sô (forma basilar de Quevioço).

Os Aivodum, que são os voduns da terra, chefiados por Sapatá.

Os Tôvodum, que são voduns próprios de uma determinada localidade (variados).

Os Henuvodum, que são voduns cultuados por certos clãs que se consideram seus descendentes (variados).


No Brasil, os voduns são cultuados nos terreiros de candomblé, sobretudo nos da nação jeje, onde ainda se conserva alguma lembrança da divisão por famílias.


Fá - vodum do oráculo, senhor da adivinhação.

Aizã - Senhora guardiã do portal entre os dois mundos (espiritual e material).

Elebá - Elebató, Dono das ruas, dinheiro, mercados e da fala é também muito comum sua presença nas entradas dos templos para a proteção dele.

Gú - Senhor de Húntójí, o ferreiro e agricultor, dono e criador de todas as armas. Caçador e guerreiro.

Atólú - Vodum guerreiro, guardião do palácio do rei de Savalú, Toxwyó da cidade de Savé.

Agé - Agé gbénú, vodum caçador e guardião das matas, Isaýin, Igbò e Agémà seriam de sua família e junto aos Zàngbétó são os donos de toda a folha e a cura através dela.

Loco - Divindade que reside dentro de uma árvore, o primogênito dentre os voduns e junto a agé são responsável no Candomblé brasileiro por observar e manter os preceitos e e segredos do culto ao Vódùn. temos em sua família: Lòkò-hokò, Lòkò Kpásè e Atindánlokò.

Bessém - Divindade serpente, sincretizada em Daomé com Dã

Sapatá - Vódùn da Varíola, possui muitos títulos, tem relação com as doenças, enfermos e a cura. Tem grande enfase no culto do candomblé Její Savalú, seria seus titulos Azònsú, Azònwaní, Ayíonò, Azòn, Jéxòsú e em sua família encontramos: Ohólú, Avímaádjí ou Azòn djí, Azilé, Kpálálá e Yieowá.

Sobô - Vódùn do raio, que junto a sua família está relacionado a muitos fenômenos da natureza como a Chuva, Tempestades, furacões tufões, fogo e etc. e dentro de sua família encontramos muitos outros voduns pertencentes ao panteão de voduns das aguas, então temos: Quevioço, Badé, Càngò, Akloòmblé, Adèèn, Averequete e etc.

Hú - Vodun chefe do panteão dos voduns das aguas, nela temos outro voduns como: Tòkpádún, Tògbòsí, Agbè, Nayiè Watá.

Nánà - Senhora da Vida e da morte, Vodun muito respeitada dentro do candomblé e com grande importância para os Savalú.

Kenesí - Equivalente ao culto das Iamis do iorubá, culto pouco conhecido no Brasil

Kututó - Equivalente ao culto de Babá Egum do iorubá, culto pouco conhecido no brasil e não feito em casas de candomblé.

É muito comum também, perceber a participação dos voduns em outras famílias e saber que existem muitos outros voduns que o culto não chegou até o brasil ou que o culto foi agrupado a outra divindade.


Os voduns da Casa das Minas, templo de tambor de mina do Maranhão, de quem se conhecem os nomes de aproximadamente sessenta, agrupam-se em três famílias principais e duas que são hóspedes da casa, a saber: a família de Davice, também chamada de família real, a que pertence o vodum dono da casa, Toi Zomadônu e outros, que como ele são relacionados com a família real do Daomé, como: Toi Dadarrô, Toi Doçú-Bogueçagajá, Toi Bedigá, Nochê Sepazin, Toi Daco-Donu, Toi Nagono Toçá, Toi Nagono Tocé e Toi Jagoroboçú; a família de Quevioço (dos voduns chamados nagôs), como Toi Badé Neném Quevioço (Xangô), Nochê Sobô Babadi (Iansã), Toi Loco (Irocô), Toi Lissá (Oxalá), Toi Averequete, Nochê Abê (Iemanjá) e outros; a família de Dambirá (que cura a peste e outras doenças), chefiada por Toi Acóssi Sapatá Odã e que incluí entre outros Toi Azíle, Toi Agonçozonce Dambirá, Toi Polibojí, Toi Lepon, Toi Alôgüé, Nochê Ieuá, Nochê Bôçalabê e Toi Boçucó.

Existem ainda os voduns Toi Ajaúto de Aladánu e Toi Avrejó que formam a família de Aladanu, hóspede de Quevioçô, e os voduns agrupados na família de Savaluno, hóspede de Davice, como Toi Agongono e Toi Jotin. Cada família ocupa uma parte específica da casa e tem cânticos, comportamentos e atividades próprias. O título de Toi significa que o vodum é masculino e o título de Nochê significa que o vodum é feminino.


Rituais

Voduns não usam roupas luxuosas, não gostam de roupas de festa e, geralmente, preferem a boa e velha roupa de ração. As danças são cadenciadas em um ritmo mais denso e pesado. Os voduns estão sempre de olhos abertos e, salvo algumas exceções, conversam (usando preferencialmente um dialeto próprio) e dão conselhos a quem os procura.


Iniciação

A iniciação ao culto dos voduns é complexa principalmente no começo da sistematização e organização do candomblé que a tornava muito longa e bem duradoura com fundamentos internos e externos e muitos ritos que enriqueciam mais ainda o povo její e o diferenciava de outras culturas como o processo do Glá, Dengwe, Mixaô, aprendizagem do Húngbè, Núbyatô e etc.


Hierarquia

Gàniyákú - "A senhora da saia longa" ou a mais velha entre os jejís, por isso geralmente esse titulo e ocupado pela representante da casa matriz de cada vertente Její seja ela Maxí ou Savalú.

Húngbónò - Hùngbónà - aquele ou aquela que possui os conhecimentos sobre o culto ao vódùn, titulo dado ao sacerdote assim que toma a frente de uma casa.

Dònné - Dònté e o primeiro titulo ao qual o recém sacerdote passa a ser chamado.

Méjító - é um titulo oriundo do Kpó-Dáágbá (casa de grande referência její do Rio de Janeiro), titulo sacerdotal assumido por mulheres.

Vódùnnò - Vódúnnà - titulo daquele ou aquela que é o zelador do templo de um determinado Vódùn.

Méhùntó - Méhùnnà - auxiliares maiores do Zelador, no Maxí encontramos: Méhuntó e Deré/ Mehuntó e Hunsô, postos similares à Babá Kekerê e Iya Kekerê.

Ogà e Anágàn - Homem e mulher que não é tomado pelo vodun e que pode receber diversos postos como Kpènjígán, Húntó, Ekedjí, Hùnsó, Dúgàn e etc.

Hùnsémà ou Sénmàtó - posto dado para aquele que irar cuidar do plantio e coisas voltadas para as folhas, arvores e etc.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Os Fluidos Sexuais - O Segredo da OTO


 ‘Não há nada que possa unir o dividido, exceto o Amor ‘– Aleister Crowley


Muito é dito na literatura oculta thelemita sobre Kalas, as secreções do corpo que podem ser usadas para fins mágico, mas isso é quase sempre feito por meio de alegorias e metáforas, mesmo entre ousados thelemitas. Como se tivessemos algo a esconder. Para algumas organizações isso é tido como um segredo que deve ser escondido a qualquer custo. Mas se um segredo fosse, exatamente secreto, correria na direção oposta de tudo o que o vivemos hoje. O segredo é, no fim das contas, algo comum, que não damos valor e que, pode conter em si o poder de alterar a própria realidade, de modo assustador até. É algo que está lá, mas ninguém quer vê.

Considere a quantidade de relações sexuais diárias ao redor do mundo, e que, nem 10% do mundo utilizaria esse potencial pessoal, o mago tem pelo teu próprio saber, uma pequena arma nuclear a sua disposição, um verdadeiro ‘Elixir da Vida’, como disse Aleister Crowley no capítulo ‘Emblemas e Modos de Uso’ do seu famoso Livro 4. A maior parte das informações deste artigo serão justamente extraídas deste importante texto.

Os textos do Crowley visavam tanto a preservação e o entendimento destes conceitos de acordo com a capacidade pessoal do seu leitor. Mas nem todos tem a mesma visão – Os segredos, repito, sempre foram abertos, só não percebidos. Mega Therion ensina por meios de símbolos alquímicos que “o ovo, é a cópula entre os dois sexos, entre a Águia e o Leão, Mulher e Homem.” neste texto em vez de teorizarmos sobre os mecanismos ocultos por trás disso, vamos nos limitar a parte pratica de operações sexuais, deixando as os mecanismos metafísicos para autores com mais tempo para a arte dos malabares.


O Estado Mental

A melhor ponte pra qualquer operação sexual é uma mente calma e um corpo energizado. Praticas de pranayama fazem milagres acalmando até tempestades violentas que um cérebro pode ter, por vezes, uma substituição por métodos de vampirismo pode ser empregado por quem domina a técnica. No fim das contas,  os dois métodos são viáveis e não muito diferentes um do outro. O Adepto não deveria se perder em nomenclaturas na sua obra, mas sim focar-se em teu objetivo. Carregar seu centro sexual de energia vital, para que, a obra possa ser concretizada. Lembro do fato que, por experiência pessoal, isso nem sempre é regra, e se for uma regra, pode ser quebrada. A pratica constante leva o desrespeito das regras iniciais em qualquer tipo de operação mágicka. Lúcifer toma as regras do céu, as burla para criar seu reino pessoal. Prometheus rouba o fogo dos deuses, ainda que pague seu preço ilumina e aquece a humanidade toda deste então. Crowley diz que os participantes devem “estar transbordantes de energia, magneticamente atraídos um pelo outro, transbordantes de energia, magneticamente atraídos um pelo outro” para dizer que devem estar com tesão.


O Casamento Alquímico

A Operação em si apesar de ser muito protegida com segredos por algumas organizações thelemitas, pode na verdade tomar a forma de uma cópula normal, sem preceitos, mantras, orações e afins. O Adepto pode, caso isso o agrade, santifica-la, tornando-a adornada em invocações que ache viáveis e correspondentes a seu objetivo. Os thelemitas usam as formas-deus de Nu e Hadit para operações de iluminação e de desenvolvimento pessoal e as formas Hórus e Babalon para trabalhos de feitiçaria com fins de Guerra, Vitória ou Amor. Alternativamente,  pode-se dedicar a própria copula a algum Deus especifico e procurar repetir, invocando o nome dessa divindade durante toda a cópula. É uma pratica alternativa, não necessária. Porem, efetiva. Baphomet também é sempre presente em operações ligadas a fins matériais.

Independente disso, a cópula deveria ser a melhor possível, sem se preocupar com restrições e especialmente não caindo na armadilha do cerimonialismo. De fato “esquecer por completo o propósito da operação é um prenúncio de sucesso, na linguagem alquímica o “Leão deve estar enraivecido” Fazer com Verdadeira Vontade é a formula ideal. Se o adepto desejar, ele pode concentrar-se no objetivo da operação desde o inicio, mas isso não é de todo necessário. O objetivo é concentrar o fluido sexual, não é necessário santificar algo que por natureza já é intenso e prazeroso. Assim como não se pode blasfemar contra algo que não é divino tão pouco pode-se abençoar algo tão elevado como o sexo. Intensidade ou Amor é a chave para ambos, mas como sempre, amor sob Vontade.


O Fluido: A Taça Transbordada

Após o coito feito de forma intensa, chega-se a hora realmente ritualística. Deve-se sugar os fluidos com a boca de modo evitar desperdiçar qualquer gota que seja. E então, despejá-los em uma taça. O homem deve fazer isso com a mulher e a mulher com o homem. A união dos dois fluidos, junto com a saliva, é que formarão a chamada Taça das Abominações, a Pedra Filosofal, Medicina dos Metais. O adepto nessa hora, deve olhar para a taça com os fluidos e mentalizar fortemente, imprimindo no fluido gerado sua vontade. A postura mental nesta parte da operação é mais importante do que na anterior, como diz Crowley, “Ovo, mal cuidado, pode adquirir uma Serpente venenosa, de elementos hostis e malignos.”

A mente do Macho e da Fêmea devem estar em absoluta harmonia quanto ao propósito da operação. Não fosse assim, haveria um conflito interno entre as partes e o todo a operação seria um fracasso, ou no pior dos casos contrária ao desejado. Se um matrimônio perfeito não é possível (e de fato é muito raro) é mais indicado que apenas um dos lados saiba o que esta acontecendo e  o outro busque um estado mental de nulidade. Quem quer que imprima sua vontade é a Serpente. A operação lida com polaridades, mas não é necessariamente uma questão de gênero, sabe-se que Crowley se dedicou a ela passiva mente (como Águia) e ativamente (como Leão), mas em todos os casos era a Serpente. Independente do que dizem a respeito de sexualidade ligar a aspectos Sephiróticos/Qliphóticos, aos quais, os resultados práticos contradizem o medo.  A concentração sobre o objetivo, sobre essa energia materializada, é a chave da operação e o ato simbólico é a porta sendo aberta.

Para fortalecer o “chocar do ovo”, ou seja, a ligação com o objeto final um ato simbólico especifico pode ser criado. Isso pode ser feito colocando fios de cabelo do alvo, no caso de uma operação de cura, amor ou destruição. Ou colocar emblema de uma loja e uma moeda de ouro para a prosperidade do lugar. Para operações de prosperidade pode-se mergulhar uma moeda de ouro e para batalhas uma arma pode ser besuntada.


O Sacramento

Seja o uso como for, e especialmente para fins de cura e energização pessoal, faz-se beber da Taça. O Fluido da Imortalidade pode trazer rejuvenescimento segundo as lendas tradicionais e o uso adequado deveria ser feito por, pessoas mental/fisicamente saudáveis. A magia é, no fim das contas, Gerar aquilo que se é, se multiplicar, por assim dizer. Precisa-se de Amor, para gerar Amor, Guerra interna pra gerar Externa. Este é o motivo dos alquimistas dizerem que “Para fazer outro é preciso ter ouro.”

O fluido em questão pode ser entregue á Forças, para que estas trabalhem pela tua vontade. São métodos alternativos de trabalho, que não desvinculam o propósito da mesma. É interessante dedicar toda a operação á um fim especifico, porem resultados interessantes podem ser obtidos, dedicando a energia do coito pra um propósito, e os fluidos para o outro. Aqui temos uma questão que só pode ser esclarecida pela experimentação pessoal.

Lilith - A Rainha da Noite

 


Lilith aparece no Tanak, quando Isaías, ao descrever a vingança de Deus durante a qual a terra de Édom seria transformada num deserto, proclamou isso como um sinal de desolação: “Lilith repousará lá e encontrará seu local de descanso” (Isaías 34:14) A Bíblia de Jerusalém apresenta Isaías 34, 14-17 da seguinte forma:


14 Os gatos selvagens conviverão aí com as hienas,

os sátiros chamarão os seus companheiros.

Ali descansará Lilith,

e achará um pouso para si.

15 Ali a serpente fará o seu ninho, porá os seus ovos,

chocá-los-á e recolherá à sua sombra a sua ninhada.

Também ali se encontrarão as aves de rapina (corujas),

cada uma com a sua companheira.

16 Buscai no livro de Iahweh e lede:

nenhum deles faltará,

nenhum deles ficará sem o seu companheiro,

porque assim ordenou a sua boca;

o seu espírito os ajuntou.

17 Ele mesmo lançou a sorte para eles,

a sua mão distribuiu-lhes, com o cordel, a porção de cada um.

Eles a possuirão para sempre,

de geração em geração a habitarão.


Esta passagem refere-se a futura desolação de Édom, por causa da forma como trataram Israel, quando Deus jogar seu poder sobre este povo. O contexto na profecia é a predicação que a terra dos Moabitas se tornará um deserto desolado.


A palavra no texto em Hebraico aqui é “Lilith” mas infelizmente ela é um hapax legomenon (uma palavra que ocorre apenas uma vez no Antigo Testamento). Por isso não podemos determinar seu significado por comparação com outros usos na Bíblia. – Então somos forçados a recorrer à linguagens cognatas (Akkadian, Aramaico, Ugaritic, etc.), versões (traduções mais antigas) ou à tradição judaica para determinar seu significado.


Consultando-se outras fontes de tradição hebraica, pode-se chegar à conclusão de que quando é dito “os sátiros chamarão os seus companheiros” (a palavra hebraica aqui traduzida como “Sátiros” é “se’ir”) está-se falando de Samael e outros demônios. Depois aparece a companheira dele: “Ali descansará Lilith”. Em seguida fica o veredicto de que a terra de Édon – a que se referia todo o texto – seria a futura morada dos demônios e daqueles animais considerados impuros “eles a possuirão para sempre”.


A tradução ‘criaturas da noite’, que aparece em algumas versões para outras línguas, representa uma especulação, uma tentativa de ler ‘lilith’ baseado em sua similaridade com a palavra hebraica “laylah” (noite). As tradições de Lilith também, as vezes, fazem esta conecção etimológica – particularmente desde que uma de seus papéis é o de succubus, e ela foi muitas vezes associada com corujas, como nesta passagem.


[Se formos comparar as diversas versões e traduções da Bíblia atual, descobrimos que em muitas delas “Lilith” não aparece em Isaías 34: 14-15. A diferença entre esta tradução e outras refere-se a uma diferença fundamental na tradução filosófica da Bíblica. – Algumas versões tem uma abordagem de tradução, especialmente no Tanak (a parte Hebraica, Antigo Testamento) que pretende naturalizar algumas referências de criaturas mitológicas ou sobrenaturais, exceto anjos, substituindo-as por animais conhecidos. Por exemplo, pode-se encontrar Bíblias que traduzem ‘leviathan’ como ‘crocodilo’, ‘behemoth’ como ‘peixe-boi’, etc. Mas o problema de Lilith é ainda mais complexo daquele de behemoth ou leviathan, pois estes são pelo menos bem descritos nos capítulos 40 e 41 de Jó. Leviathan é mencionado algumas vezes (Jó 3:8 Jó 41:1 Salmos 74:14 Salmos 104:26 e Isaías 27:1) e também behemoth é um hapax legomenon mas nós temos uma descrição completa deles, o que não é o caso com Lilith.

Note que as traduções também diferem na tradução de ‘se’ir’ – isto é um bode ou um bode/demônio/sátiro? Suponho que o significado de ‘se’ir’ tem sido determinado pelo significado de ‘lilith’. Se ‘lilith’ é uma demônia, então ‘se’ir’ deve ser alguma espécie de demônio. Por outro lado, se ‘lilith’ é algum tipo de animal indeterminado, então se’ir é um bode].


A tradição judaica, claro, aponta-nos na direção da criatura mitológica.

Um fragmento da antiga comunidade de Qumran contendo menção de Lilith (4QCânticos do Instrutor/ 4QShir – 4Q510 frag. 11.4-6a // frag. 10.1f), foi encontrado nos Manuscritos do Mar Morto. Esta passagem é claramente baseada em Isaías 34:14 e pode ajudar a compreender o real significado do texto:


E Eu, o Instrutor, 

proclamo a majestade de seu esplendor

a fim de assustar e ater[rorizar]

todos os espíritos dos anjos da destruição

e os espíritos bastardos,

demônios, Liliths, corujas e [chacais…]

e aqueles que atacam inesperadamente

para desviar, desencaminhar o espírito de conhecimento…

11QPsAp


Aqui há dois pontos de interesse para nós. O primeiro é que o contexto deixa claro que a comunidade que produziu isto vê a passagem de Isaías como referindo-se ao demoníaco mais do que animais do deserto. Segundo, aqui, nós temos ‘liliths’ no plural, ao contrário de Isaias, no singular. Provavelmente isto não é apenas uma licença poética, pois a tradição diz – e o próprio texto de Isaías da a entender claramente – que Lilith teria filhos, cujas fêmeas são tradicionalmente chamadas de Liliths e os machos de Lillim, sendo que este termo aparece no Targum Jerushalami [1], a bênção sacerdotal dos Números, VI, 26 que contém esta versão:


“O Senhor te abençoe em todo ato teu e te proteja dos Lillim!”


Segundo Alan Unterman (Dictionary of Jewish Lore & Legend) há um costume, ainda praticado em Jerusalém, de espantar esses filhos do corpo morto de seu pai, andando em círculo com o cadáver antes do sepultamento e atirando moedas em diferentes direções para distrair os filhos demônios.


Entretanto, para sabermos mais a respeito dos filhos de Lilith, teremos de recorrer ao Talmude [2] (coleção de tradições rabínicas que interpretam a lei de Moisés), que – em duas ocasiões – fala sobre estes seres. A primeira referência fala de sua origem:


“Rabbi Jeremia ben Eleazar falou, “Durante aqueles anos (depois de sua expulsão do jardim), nos quais Adão, o primeiro homem, esteve separado de Eva, ele tornou-se o pai de ghouls e demônios e lilin.” Rabbi Meir falou, “Adão, o primeiro homem, tornou-se muito devoto e descobriu que ele havia causado morte, que viria ao mundo, fez abstinência por 130 anos, e ele próprio afastou-se de sua esposa por 130 anos, e cultivou figueiras de vinho por 130 anos. Sua paternidade dos espíritos malignos, referidos aqui, tornou-se um resultado de sonhos molhados.” (b. Erubin 18b)


A segunda referência faz apenas menção da morte de um filho específico, Hormin, mas não se estende sobre o assunto:


“Rabba bar bar Hana falou, “Eu uma vez vi Hormin, um filho de Lilith, correndo nas muralhas de Mahoza…. Quando o demoníaco governante soube disso, eles mataram-no [para exibir-se].”” (b. Baba Bathra 73a-b)


O Talmud também da breves descrições de Lilith: “Lilith é uma demônia com aparência humana exceto que ela possui asas.” (b. Nidda 24b); “Lilith desenvolveu longos cabelos.” (b. Erubin 100b) E aconselha:


“Rabbi Hanina falou, “Nenhum homem pode dormir só em uma casa; quem quer que durma só em uma casa, será pego por Lilith”” (b. Shab. 151b)


Este trecho aconselha os homens a casarem-se, para poderem dormir com suas esposas e não sofrerem com o desejo. Do contrário, Lilith viria copular com eles durante o sono para gerar filhos Lillim. Apesar disso, não faltaram homens para “dormirem sós”. A obra Jewish Folktales retomou um antigo conto judaico “Lilith e a Folha de Capin”, que fala sobre um judeu que não seguiu este conselho do Talmud:


Certa vez um judeu foi seduzido por Lilith e ficou enfeitiçado por seus encantos. Mas ele estava muito perturbado com isso, e então foi ao Rabino Mordecai de Neschiz para pedir ajuda.


Mas o rabino sabia por clarividência que o homem estava vindo, e avisou a todos os judeus da cidade para não deixa-lo entrar em suas casas ou dar-lhe lugar para dormir. Assim, quando o homem chegou não encontrou nenhum lugar para passar a noite e deitou-se num monte de feno num quintal. À meia-noite, Lilith apareceu e sussurrou-lhe:


– Meu amor, saia desse feno e venha até aqui.


– Por que eu deveria ir até você? – perguntou o homem – Você sempre vem a mim.


– Meu amor, nesse monte de feno há uma folha de capim que me causa alergia.


– Então – disse o homem – por que você não me mostra? Eu a jogo fora e você pode vir.


Assim que Lilith a mostrou, ele pegou a folha de capim e enrolou-a em volta do pescoço, livrando-se para sempre do domínio dela.


Por vezes, Lilith atacava mesmo os homens casados e, para combatê-la, os judeus desenvolveram rituais elaborados para bani-la de suas casas. Tenho aqui três exemplos, o primeiro trata-se de um amuleto persa com Lilith no centro, circundada por um texto profilático em Aramaico. (The Semetic Museum, Harvard University):


“Vocês estão atados e selados, todos vocês demônios, diabos e liliths, forte e poderosamente presos, assim como estão presos Sison e Sisin… A maligna Lilith, que faz os corações dos homens perderem-se e aparece nos sonhos noturnos e nas visões do dia, que queima e derruba com pesadelo, ataca e mata crianças, meninos e meninas. Ela está dominada e selada fora da casa e moradia de Bahram-Gushnasp filho de Ishtar-Nahid pelo talismã de Metatron, o grande príncipe, que é chamado O Grande Curandeiro da Misericórdia… que vence demônios e diabos, artes negras e poderes da bruxaria. Afasta-os da casa e moradia de Bahram-Gushnasp, filho de Ishtar-Nahid. Amém, Amém, Selah.


Vencidas estão as artes negras e os poderes da bruxaria. Vencida a mulher feiticeira, ela, suas bruxarias e seus ataques, suas maldições e suas invocações, e afastadas das quatro paredes da casa de Bahram-Gushnasp, o filho de Ishtar-Nahid. Vencida e jogada abaixo está a mulher feiticeira – vencida na Terra e vencida no céu. Vencidas estão suas constelações e estrelas. Atados estão os trabalhos de suas mãos. Amém, Amém, Selah.”


Aqui vemos a associação de Lilith com outros seres demoníacos, menção contra a pratica da astrologia “Vencidas estão suas constelações e estrelas”, bruxaria e encantamentos – o que envolvia não só bruxedos em geral mas também a pratica da sedução, fascinação e até mesmo a prostituição.


O “exorcismo” de Lilith e de quaisquer espíritos que a acompanhavam muitas vezes tomava a forma de um mandado de divórcio, expulsando-os nus noite adentro. É disto que trata os outros 2 exemplos seguintes (Lilith recebe Divórcio):


Este é o guet para demônios e espíritos e Satã 

… e Lilith em ordem de bani-los de … toda a casa.

Yah …interrompa o Rei dos demônios 

… a grande governante das liliths.

Eu adjuro você … seja você macho ou fêmea, 

Eu adjuro você….

Assim como os demônios escrevem cartas de divórcio 

E dão-nas para suas esposas e não retornam para elas,

Então pegue sua carta de divórcio, 

Aceite sua quantia de sustento [ketubá],

E vá e deixe e parta da casa…. 

Amém, Amém, Amém, Selah.


O hebraísmo, em certos casos, admite o divórcio (em hebraico “guerushin”) [3]. A iniciativa é tomada pelo marido, que da a sua mulher um documento de divórcio chamado guet. Esse documento pode ser dado mesmo se a mulher discordar. Após o divórcio, a quantia de sustento estipulada no contrato de casamento (ketubá) é paga pelo marido. Vejamos agora um outro guet em forma de amuleto contra Lilith (University Museum, University of Pennsylvania):


“Este amuleto está designado em nome do Senhor das salvações, pelo selamento da casa deste Geyonai bar Mamai, que aqui escapa da maligna Lilith. Em nome de “YHWH-El foi dispersado”; a Lilith, o macho lilin, as fêmeas liliths, a Bruxa, e o Ladrão; os três de vocês, os quatro de vocês e os cinco de vocês.


Despidos estão vocês, enviados para longe. Nem você está vestida, com seus cabelos desalinhados que deixa voar atrás de suas costas.

Isto é feito conhecido para você, cujo pai é chamado Palhas e cuja mãe é Pelahdad:


Escuta, obedece e saia da casa e moradia deste Geyonai bar Mamai e de Rashnoi sua esposa, filha de Marath…. Estejam informados com isto que Rabbi Joshua bar Perahia enviou o banimento conta vocês…. Uma carta de divórcio [guet] desceu para nós do paraíso, e nesta é encontrado escrito seu aviso e sua intimação, em nome do Palsa-Pelisa [“Divorciador-Divorciado”], que rende a vós teus divórcios e tuas separações. Então, Lilith, macho lili e fêmea lilith, Bruxa e Ladrão, estejam incluídos no banimento… de Joshua bar Perahia, que tem assim falado: Uma carta de divórcio que cruzou o mar veio para vocês… Saibam disto e deixem a casa e moradia deste Geyonai bar Mamai, e de Rashnoi sua esposa, a filha de Marath.


Vocês não podem aparecer para eles novamente, tanto nos sonhos à noite quanto no repouso de dia, porque vocês estão selados com o signo de El-Shaddai, e com o signo da casa de Joshua bar Perahia e pelos Sete que estão depois dele.


Então, Lilith, macho lili e fêmea lilith, Bruxa e Ladrão, Eu adjuro vocês pelo forte [Deus] de Abbraham, pela rocha de Isaac, pelo Shaddai de Jacob, Por Yah [que é] seu nome…, Por Yah sua memória… Eu adjuro vocês à despedirem-se deste Geyonai bar Mamai, e de Rashnoi sua esposa, a filha de Marath. O divórcio, escrita e carta de separação de vocês (foi)… Enviado através de santos anjos… Os Exércitos de fogo nos astros, a Carruagem de El-Panim depois de sua duração, as bestas adorando no fogo de seu trono e na água… Amém, Amém, Selah, Aleluia!”


Os dois amuletos apresentados anteriormente contém um desenho tosco no centro, representando Lilith. Em ambos ela apresenta, longos cabelos, cintura fina, ancas largas e está com os braços cruzados sobre o corpo. No primeiro ela está de saia xadrez, com o busto exposto. O rosto de ambas dão a vaga impressão de faces de corujas. A segunda figura usa um incrementado vestido e ornamentos. No geral apresenta um óbvio propósito de sedução (apesar das figuras serem excessivamente mal feitas, aparentando-se aos rabiscos de uma criança no papel).

Lilith no Alfabeto de Bem Sira (sua origem e amuletos de proteção):


Uma outra fonte importante da tradição judaica sobre Lilith e os Lillim é o Alfabeto de Ben Sira, onde encontramos a mais conhecida história da origem de Lilith – como “a primeira esposa de Adão”. [É interessante notar que no Alfabeto de Ben Sira Lilith reivindica igualdade alegando que, assim como Adão, ela foi feita da terra; ou seja, não saiu da costela de Adão como Eva, portanto não era uma parte dele. Talvez a mulher por cima revelasse uma superioridade hierárquica ou ainda, Lilith por cima de Adão sugerisse o sexo por prazer, sem procriação (pois na antigüidade acreditava-se que era mais difícil para a mulher engravidar se copulasse por cima). O que Adão exigia era sexo apenas com a finalidade de procriação]. Estudiosos tendem a datar o Alfabeto entre os séculos 8 e 10, CE [4].. Entretanto, alguns pesquisadores sustentam que a história em si possa ser mais antiga:


Logo após o jovem filho do rei ficar doente, falou Nabucodonozor, “Cure meu filho. Se você não fizer, eu o matarei.” Ben Sira imediatamente sentou-se escreveu um amuleto com o Nome Sagrado, e nele inscreveu os anjos encarregados da medicina por seus nomes, formas e imagens, e por seus flancos, mãos, e pés. Nabucodonozor olhou para o amuleto (e perguntou) “O que é isto?”


(Ben Sira respondeu:) “Os anjos que são encarregados da medicina: Snvi, Snsvi, e Smnglof [Pronuncia-se Sanvi, Sansavi e Semengalef ]. Depois que Deus criou Adão, que estava só, Ele disse, ‘não é bom para o homem estar só’ (Gen. 2:18). Então Ele criou a mulher para Adão, da terra, assim como Ele havia criado o próprio Adão, e chamou-a Lilith. Adão e Lilith começaram a brigar. Ela disse, ‘Eu não vou deitar por baixo,’ e ele disse, ‘Eu não vou deitar por baixo de você, mas apenas acima. Para você é adequado apenas estar na posição inferior, portanto apenas eu estarei na superior.’ Lilith respondeu, ‘Nós somos reciprocamente iguais tanto que ambos fomos criados da terra.’ Mas eles não ouviam um ao outro. Quando Lilith disse isso, pronunciou o Nome Inefável e voou para longe no ar. Adão ficou em prantos depois (falou a) seu Criador: ‘Soberano do universo!’ disse ele, ‘a mulher que você deu-me foi embora.’ De uma vez, o Santo Senhor, bendito seja Ele, enviou estes três anjos para traze-la de volta.


“Disse o Santo Senhor para Adão, ‘Se ela concordar voltar, (está tudo) bem. Se não ela deve permitir que uma centena de suas crianças morram todos os dias.’ Os anjos deixam Deus e seguiram Lilith, a quem eles pegaram no meio do mar, nas poderosas águas nas quais os Egípcios estavam destinados a afogarem-se. Eles falaram-na as palavras de Deus, mas ela não queria retornar. Os anjos disseram, ‘Nós iremos afogar você no mar.’


“Deixem-me!!’ ela disse. ‘Eu fui criada apenas para causar doenças às crianças. Se a criança é macho, eu tenho domínio sobre ele por oito dias depois de seu nascimento, e se fêmea, por vinte dias.’


“Quando os anjos ouviram as palavras de Lilith eles insistiram que ela voltasse. Mas ela jurou à eles pelo nome do Deus vivo e eterno:


‘Sempre que eu ver vocês ou seus nomes ou suas formas em um amuleto, eu não terei poder sobre esta criança.’ Ela também concordou ter uma centena de suas crianças mortas todo dia. De acordo (com isto), todo dia uma centena de demônios pereciam, e pela mesma razão, nós escrevemos os nomes dos anjos nos amuletos de jovens crianças. Quando Lilith vê seus nomes, ela lembra-se de seu juramento, e a criança restabelece-se.” [Alfabeto de Ben Sira Questão #5 (23a-b)]


Esta versão da origem de Lilith ficou amplamente conhecida de forma que até hoje existe o costume, entre algumas pessoas, de utilizar um amuleto [5] com o nome dos três anjos para proteger crianças.


Alan Unterman diz em seu “Dicionário Judaico de Lendas e Tradições” que “Lilith é uma figura sedutora com longos cabelos, que voa como uma coruja noturna para atacar aqueles que dormem sozinhos, para ter filhos demônios dos homens por meio de suas poluções noturnas, para roubar crianças e para fazer mal a bebês recém-nascidos. Se não consegue consumir crianças humanas ela come até mesmo sua própria prole demoníaca. Como proteção contra ela costumava-se pendurar amuletos e talismãs na parede e sobre a cama para mantê-la afastada ou pregar amuletos com as palavras “Adão e Eva excluindo Lilith” nas paredes da casa em que uma mulher se preparava para o nascimento do filho. A porta do quarto das crianças tinha os nomes dos três anjos escritos sobre ela, e, às vezes, cercava-se o quarto com um círculo de carvões ardentes. Nas vésperas de Shabat e da lua nova, quando uma criança sorri é porque Lilith está brincando com ela. Para livrá-la de qualquer mal, deve-se bater de leve três vezes em seu nariz pronunciando-se uma fórmula de proteção contra Lilith. Na Idade Média era considerado perigoso beber água nos solstícios e equinócios, porque nessa época o sangue menstrual de Lilith pingava, poluindo líquidos expostos.”


Como foi visto, segundo a tradição, Lilith ataca as mulheres no parto e causa a morte dos infantes, pois tem inveja da alegria da maternidade. Ela constitui assim uma ameaça ao embrião. Por isso, no passado, o processo de nascimento era cercado de práticas mágicas com a intenção de proteger a mãe e o filho das forças demoníacas. (Também se sussurravam sortilégios no ouvido das mulheres para facilitar o trabalho de parto).

Amuletos contra Lilith costumam trazer nomes de anjos encarregados da medicina, como Sanvi, Sansavi e Samangelaf, Gabriel ou mais raramente Metraton mas também outros tipos podem aparecer:


“Os judeus baniram essa primeira esposa de Adão, escrevendo nas paredes ‘Adam chava chuz Lilith’ [‘Afaste-se daqui, Lilith!] (John Praetorius. Anthropodemus Plutonicus. 1666).


Um talismã típico é um círculo mágico no qual as palavra “Eva e Adão” barram a entrada de Lilith, habitualmente escritas com carvão na parede do aposento onde a criança está e em cuja porta estão escritos os nomes dos três anjos. A alternativa: “Não deixem Lilith entrar aqui” costuma ser escrita na cabeceira da cama da mulher que espera um filho, usando-se tinta vermelha. Em muitas partes do mundo atual há pessoas que ainda usam amuletos como estes.


Teria Lilith uma origem não Judaica?


Alguns estudiosos sustentam que Lilith já existia na forma de um demônio (Lilil ou Lilitu) na mitologia suméria e mesopotâmica, o que tem causado muita polêmica.


As duas representações mais importantes, que estão no centro da discussão, são um trecho do “Prologo de Gilgamesh” (que faz parte do épico babilônico “Gilgamesh” – aproximadamente 2000 A.C.) e um baixo relevo representando uma mulher com asas e patas de coruja, etc. Para melhor compreensão do tema exposto, apresento a seguir as duas fontes acrescidas de comentários.


A seguinte passagem do Prólogo de Gilgamesh foi entendia e traduzida por Samuel Kramer, que – segundo ele – inclui a mais antiga referência conhecida de Lilith na escrita. (A tradução para português foi feita a partir da em língua inglesa de Kramer38:1f)


Depois do céu e da terra terem sido separados

e feitos terem sido criados,

depois de Anûum, Enlil e Ereskigal terem tomado posse

do céu, terra e do submundo;

depois que Enki havia deslizado para o submundo

e o mar baixar e afluir em honra de seu senhor;

neste dia, uma árvore huluppu

que havia sido plantada sobre as margens do Eufrates

e nutrida por suas águas

foi arrancada pelo vento do sul

e levada para longe do Eufrates.

Uma deusa que estava andando entre às margens

siezed a árvore oscilada

E – sob o comando de Anu e Enlil –

Levou-a para o jardim de Inanna em Uruk.

Inanna cuidou da árvore atentamente e amavelmente

ela esperava Ter um trono e uma cama

feito para ela de sua madeira.

Depois de dez anos, a árvore havia crescido.

Mas neste meio tempo, ela descobriu para seu desânimo/assombro

que suas esperanças não poderiam ser realizadas.

Porque durante aquele tempo

um dragão havia construído seu abrigo nos pés da árvore

o pássaro Zu havia posto sua cria no cume,

e uma demônia Lilith havia construído sua casa no centro .

Mas Gilgamesh, que havia ouvido a dificuldade de Inanna,

veio em seu socorro.

Ele pegou seu pesado escudo

matou o dragão com seu machado de bronze maciço,

que mede sete talentos e sete minas.

Então o pássaro Zu voou para as montanhas

Com seus filhotes,

enquanto Lilith, petrificada de medo,

fugiu de sua cada e voou para o deserto


Este texto foi a base para a identificação de um baixo relevo (ver foto), as vezes especulada como sendo Lilith. Entretanto, a conecção entre Lilith e este relevo é correntemente considerada por alguns scholars como duvidosa e tem sido seriamente questionada por alguns eruditos. O seguinte trecho vem do verbete Lilith no Anchor Bible Dictionary (Lowell K. Handy):


Duas fontes de informações previamente usada para definir Lilith são ambas suspeitos. Kramer traduziu ki-sikil-lil-la-ke como “Lilith” em um fragmento Sumérico de Gilgamesh. O texto relata um incidente que esta fêmea fixou residência em um tronco de árvore na qual havia um pássaro Zu empoleirado nas ramagens e uma cobra vivendo nas raízes. Este texto foi usado para interpretar uma escultura de uma mulher com garras do pé de ave como fazendo uma descrição de Lilith. Desde o começo esta interpretação foi questionada só que depois some debate nem a fêmea na história, nem a figura foi assumida como sendo Lilith. (Vol. 4, p. 324)


O baixo-relevo em questão é uma terracota Suméria ou Assíria que mostra uma figura feminina híbrida disposta de pé, frontalmente, acompanhada por vários animais do deserto. A face apresenta um formato redondo com bochechas proeminentes, sobrancelhas unidas, lábios carnudos, olhos grandes bem delineados e nariz regular. O vulto tem uma evidente conformação rotunda, com expressão severa, potente e inefável. O corpo é robusto, com formas femininas bastante acentuadas, coxas grossas e uma ampla bacia. A energia humana parece concentrada nas costas e peito, com seios firmes e bem redondos. A figura feminina apresenta-se nua e ornada com diversas jóias, como pulseiras, colares, etc. A mitra é impressionante, segundo o esquema mesopotâmico ou proto-assírio.


Ela mantém os braços abertos, os cotovelos dobrados em direção aos flancos, com as mãos abertas e dedos unidos. Creio que esta disposição de mãos tenha um significado especial, provavelmente representa um ato de oração ou demonstra um êxtase de superioridade sobre as feras.


Os objetos que ela tem nas mãos não é nem um pouco desconhecido, como alguns autores interessados em Lilith tem proposto. Trata-se de um símbolo da justiça do deus-sol babilônico. Esse mesmo símbolo se encontra facilmente em muitos outros tabletes de argila, inclusive na parte superior de estela onde foi escrito o famoso Código de Hamurabi há uma figura do rei recebendo esse símbolo da justiça e usando uma mitra idêntica a desta mulher. (veja as figuras).


O objeto em sua mão direita está desgastado ou quebrado, mas, da para distinguir claramente que ela possuía símbolos similares nas duas mãos. Entretanto, pode haver uma explicação, mas para mim o porque de um símbolo do deus Sol ter sido posto em ambas as mãos de uma mulher com asas e pés de coruja (indicativos de vida noctívaga) permanece um mistério.


Das costas da mulher descem duas asas esculpidas com exatidão e no final das pernas vê-se pés de coruja com garras afiadas. A disposição das garras é simétrica, vertente, com um acento de domínio. Esta mulher-pássaro está em pé sobre duas leoas agachadas. Nos lados, estão dispostas duas corujas em posição frontal, com as patas unidas em tudo semelhantes àquelas da mulher. São animais vigilantes que rematam a representação.


As corujas, as leoas e a mulher sobre as leoas encontram-se ainda sobre uma enorme cobra, que ou envolve todos terminando por morder a própria cauda, como um ouroboros, ou morde a cauda (ou a cabeça) de outra cobra igualmente grande.


Tanto as asas quanto a mitra ostentosamente ornada que a mulher está usando são características de representações de antigas divindades. O único motivo pelo qual esta imagem distingue-se da maioria das imagens de deusas no mundo antigo são os pés de pássaro e o acompanhamento de animais. A presença de animais não é de todo inusual. De fato, as leoas sobre as quais ela estende-se cria algum problema para os que pretendem considera-la como sendo Lilith, pois eles são geralmente associados com Inanna. Para identificação com Lilith, a chave está na coruja e nos pés de pássaro. Lilith é identificada com a coruja em Isaías 34. Também o prólogo de Gilgamesh associa a moradora da árvore hulupu com a coruja, mas se a moradora da árvore é Lilith, isto reforçaria o argumento. Minha interpretação corrente é que os pé de coruja indica-nos que aquela não é Inanna, mas se esta é Lilith é ainda um assunto aberto à especulação.


LEIS GRAVADAS EM PEDRA: O Código de Hamurabi foi inscrito em 3.600 linhas de escrita cuneiforme numa estela de 2,5 m de altura, no alto da qual o rei recebe os símbolos da justiça do deus-sol babilônico.



Tablete representando a reedificação de um templo solar (Sippar, Babilônia, século IX A.C. British Museum).


Além deste baixo relevo citado anteriormente, também foi encontrado uma imagem muito similar (ver foto abaixo) – Esta é uma placa de barro/argila cozido do Antigo período Babilônico (2000-16000 AC). (Paris, Louvre [AO 6501]).


Parece seguro assumir, que esta representa a mesma figura híbrida apresentada na precedente, apesar da mudança no “cenário”. Ela agora estende-se sobre dois animais. Creio que sejam dois cabritos montês machos, pois possuem chifres. Abaixo uma formação cilíndrica mal esculpida e quebrada, que poderia muito bem constituir o corpo de uma serpente lisa, sobre a qual estão os cabritos, da mesma forma que no outro estavam, as leoas. Entretanto a serpente do primeiro relevo tinha escamas. Todas as bordas deste estão quebradas e gastas, portanto não tem como saber se originalmente haviam mais animais ao redor.


A mitra, pés e asas são certamente idênticos. As mãos também estão completamente desgastadas, portanto não se pode averiguar se neste relevo ela segurava ou não o símbolo do deus-sol.


O fato de ter mudado de animal é significativo, ou seja indica que ela não tem uma relação especial somente com um tipo, como as leõas, que poderiam ser um emblema ou algo assim. Temos aqui os exemplos de corujas, leoas, cabritos e serpentes, entretanto ela provavelmente domina sobre todos os animais, tanto mamíferos, quanto ovíparos, tanto de grande porte quanto de pequeno, tanto carnívoros quanto herbívoros, tanto macho quanto fêmea, etc. Entretanto o principal é, tanto diurnos quanto noturnos… Temos entre os animais esculpidos representantes de cada uma dessas classes.


Como já visto antes, a mitra e as asas são motivos comuns, mas, como notado acima, os pés de pássaro são um importante símbolo de identificação, mesmo sem as corujas. É claro que o mesmo problema aplicado em uma é na outra. Se aquele não for Lilith, este provavelmente também não é.


Agora, para finalizar essa discussão sobre uma possível origem ou inspiração não judaica de Lilith, existe uma teoria – que é tanto defendida por diversos estudiosos quanto contestada por outros – que pretende que o Hebraico tenha sofrido influências do sânscrito; ou ainda que ambas as línguas tenham sido derivadas de um outro idioma, ainda desconhecido . Supondo que “Lilith” fosse originalmente uma palavra sânscrita, ela teria como raiz “Li”, que significa dissolução, destruição; igualdade, identidade. E isso com certeza é a essência de Lilith na mitologia hebraica! Uma palavra realmente derivada de “Li” é “Lîlâ”, literalmente diversão, jogo, passatempo. Nas escrituras ortodoxas hindus explica-se que “os atos da divindade são lîlâ ou uma diversão”.


Um som semelhante a Lîlâ aparece na epopéia de Gilgamesh, na frase que Kramer traduziu como contendo “Lilith”: ki-sikil-lil-la-ke. De qualquer forma se o sânscrito não fosse conhecido dos mesopotâmicos, etc, ainda há uma probabilidade menos remota de ter influenciado judeus do período helenístico (a tempo de entrar no texto massorético das escrituras e no Alfabeto de Bem Sira), ou mesmo, mais dificilmente, durante o “cativeiro na Babilônia”.


Notas:


Targum (aramaico, significa “tradução”) são traduções comentadas da Bíblia em aramaico. Um targum pode ser bem literal ou constituir quantidade considerável de midrash. As traduções da Torá eram feitas originalmente linha a linha, por tradutores profissionais, à medida que se lia o Pentateuco na sinagoga. Fazia-se assim para permitir que os judeus falantes do aramaico, que não entendiam hebraico, compreendessem o texto.


As citações do Talmud foram retiradas das traduções de I. Epstein. (The Babylonian Talmud. London: Socino Press, 1978) e Raphael Patai, Patai81, pp. 184f. O Talmud (hebraico, significa “estudo”) constitúi a obra mais importante da Torá oral, editada sob a forma de um longo comentário em aramaico sobre sessões da mishná. O Talmud também é conhecido por seu nome aramaico, Guemará, que veio a ser amplamente usado para evitar a crítica dos censores cristãos do Talmud. O Talmud foi redigido numa versão palestina (Ierushalmi, literalmente “de Jerusalém”) em c. 400 d.C., e numa versão babilônia mais autorizada (Bavli), cerca de 100 anos depois. As duas recensões do Talmud refletem diferenças entre as condições sociais e pontos de vista das comunidades da Terra Santa e da Babilônia. As leis agrícolas, relevantes para os agricultores judeus da Palestina, ocupam lugar proeminente no Talmud da Palestina, mas não no babilônio. Este último tinha uma tradição de demonologia muito mais desenvolvida que a do primeiro, refletindo a cultura babilônica. Ambos os Talmuds tratam principalmente da halachá, mas cerca de um terço do Bavli e um terço do Ierushalmi focalizam a agadá, o que envolve não só teologia mas também midrash, folchore, medicina, astrologia, magia, provérbios e histórias sobre rabinos talmúdicos. O estudo da Torá deve ser feito num enfoque mental de seriedade, mas o Talmud deve ser abordado com mais brilho e vivacidade, e seu texto estudado de forma melopéica, usando-se melodias tradicionais. O Talmud babilônio é a principal matéria de estudo nas academias de ieshivá, onde os professores geralmente usam um método dialético de exegese em suas incursões aventurosas no que é chamado de “o Mar do Talmud”.


Houve divergências no início do período rabínico quanto às circunstâncias exatas em que a Torá permite o divórcio (Deut.24). A escola conservadora de Shamai o proibia, exceto em casos de má conduta sexual da mulher (adultério), quando o marido é obrigado a se divorciar dela. A escola de Hilel o permitia se a mulher se comportasse de maneira imprópria, por exemplo, estragando a comida do marido, e a ulterior halachá seguiu a opinião de Akiva de que um homem pode divorciar-se de sua mulher até por ter encontrado outra que ele prefira àquela. A falta de filhos também é motivo de divórcio.


Ben Sira: Texto grego dos apócrifos baseado num original hebraico, considerado parte do cânon das escrituras por algumas denominações cristãs. Ben Sira é uma coleção de provérbios e máximas, como os da bíblica Literatura de Sabedoria. O autor Simão (ou Josué/Jesus) Ben Sira, revela uma tendência marcante para as idéias religiosas dos fariseus, enfatizando a grandeza de Israel e a fruição dos prazeres deste mundo dentro dos limites proscritos. A obra é altamente considerada na literatura rabínica e houve, até, uma tentativa infrutífera de incluí-la no cânon hebraico. Sua leitura em público, no entanto, foi posteriormente proibida, para evitar que fosse confundida com a Escritura. Um tesouro em manuscritos foi descoberto numa guenizá do Cairo, depois que um erudito inglês, Solomon Shechter, teve acesso a uma página de um original hebraico de Ben Sira proveniente de lá. Entre os manuscritos que ele recuperou estava uma grande parte do original de Ben Sira.


Haviam amuletos (em hebraico “kemea”) utilizados como proteção contra demônios, mau olhado, doença, combater hemorragia nasal, incêndios, assaltantes, inimigos, para fazer uma mulher estéril conceber, tornar fácil o parto, garantir a felicidade de um recém nascido, obter sabedoria e diversos outros fins. Esses amuletos são textos e desenhos geralmente escritos em pequenos pedaços de pergaminho e incluem sinais mágicos, permutações de letras e os nomes de Deus (Agla, Tetragramaton, etc.) ou de anjos como o de Rafael, Mikael, etc. O amuleto é usado em volta do pescoço ou às vezes pendurado numa parede de casa. Para que um amuleto seja considerado eficaz, tem que ser escrito por uma pessoa santa (segundo a tradição judaica), exímia na prática da Cabala. Se ele se mostrar eficaz na cura de alguém em três ocasiões diferentes, será então, comprovadamente, considerado um amuleto. Embora, aparentemente, amuletos tenham sido amplamente usados no período talmúdico, Maimônides e outros rabinos de mente mais voltada para a filosofia, como Ezequiel Landau, opunham-se a eles, considerando-os superstições vazias. Seu uso, no entanto, foi apoiado pelos místicos e pela crença popular. Até mesmo os cristãos buscavam amuletos com os judeus na Idade Média.

Gênese Vampírica e o Mito de Caim e Abel

 


Uma questão que sempre levantou acirrados debates nos círculos estudiosos é a de como a gênese vampírica se vincula ao mito de Caim e Abel. São vários os relatos míticos que tencionam descrever a autêntica origem da linhagem vampírica. Entre muitas culturas, a judaico-cristã também possui algumas versões, mas nenhuma delas está disponível nos textos canônicos. O mesmo processo que filtrou, eliminou e adulterou os documentos produzidos nos meios pré-cristão e cristão primitivo, de tal modo a autorizar os dogmas e doutrinas da ortodoxia católica, também purgou qualquer menção explícita aos vampiros nas narrativas bíblicas. Muito embora a intenção e o empenho da igreja católica fosse o de destruir todos os livros que, de alguma forma, contradissessem a sua compilação diretamente “inspirada” pelo espírito santo, alguns lograram sobreviver e hoje são conhecidos como apócrifos ou escritos proibidos. É num raro e reduzido grupo destes que encontramos os únicos relatos remanescentes sobre vampiros dentro da cultura bíblica. Recentemente a pretensa antiguidade de um livro deste grupo foi negada; estudos históricos e análise de estilo dataram o surgimento do original por volta do século XI. Neste manuscrito, Caim é posto propositalmente como o antepassado mais remoto da linhagem. O intuito disfarçado na elaboração deste livro é compor mais um elemento para a cortina de fumaça que encobre as intenções filosóficas originais das passagens bíblicas. Sendo assim, não merece uma consideração maior.


Meu interesse se volta mais para uma certa versão gnóstica do Livro do Gênese. Esse texto, em sua transcrição copta, foi preservado por uma seita gnóstica cristã minoritária chamada “astanfitas”, pertencente ao mesmo braço herético responsável pelos “ofitas” e “caimitas”. Devido ao número extremamente reduzido de seguidores, esta seita pôde passar incógnita até proximamente o século IX, quanto foi cruel e sigilosamente exterminada nos alvores da inquisição. Antes de assumir suas feições gnósticas, ela fazia parte das dissidências judaicas do período pré-cristão. Surgiu como uma resposta heterodoxa à outra seita cismática que marcou essa época com seu fundamentalismo austero: os essênios. Estes se referiam aos astanfitas como os inimigos da verdade, um título que eles não rejeitavam de todo; já que, revelando notável concordância com os filósofos céticos, pregavam que a certeza é um engano, a dúvida é fundamental; a mente sem ilusão não tem certeza, a inteligência honesta duvida. Mais tarde, resumiriam: “Toda gnose possível é dúvida rigorosa”. A princípio parece um total niilismo e um profundo pessimismo; mas; para eles; uma conduta moral somente poderia ser construída sobre a dúvida alcançada a duras penas. O homem moralmente apto é aquele que pode se responsabilizar por seus atos e um ato é responsável desde que tenha sido executado por livre opção. Contudo, não há o que decidir se a certeza já nos é dada pela verdade. E optar pelo errado não é uma atitude livre, é apenas uma louca inconseqüência. Logo, é legítima somente a decisão que for pautada numa dúvida muito bem estabelecida, pois apenas ela nos provê de opções, a verdade elimina todas. Assim, chegam a um certo humanismo moral, onde desprezam a verdade revelada que tira do homem a responsabilidade por seus atos. A verdade, diziam os astanfitas, produz apenas dois tipos de homens; os imbecis irresponsáveis e os loucos inconseqüentes.


Depois do desaparecimento dos astanfitas, demorou quatro séculos para que surgisse indícios da sobrevivência de algo dos seus manuscritos. Então, na península ibérica, começou a circular, entre os cabalistas, exemplares de textos nitidamente astanfitas vertidos para o árabe. Inafortunamente, nenhuma dessas obras escapou completa do fogo da inquisição, tudo o que nos restou foram poucos fragmentos dispersos, insuficientes para dar idéia geral sobre o que tratava o texto integral do qual provinham. Comentários, inserções e indicações nos tratados de alquimia e cabala do período, quando não são sucintos em demasia, são herméticos em excesso ou propositalmente evasivos.


Após esse breve aparecimento, só no século XX o interesse na gnose astanfita veio a se reacender através de novos e sensacionais achados. Sintomaticamente, duas das mais importantes coletâneas de textos gnósticos vieram à luz em datas quase concomitantes na década de quarenta. Em dezembro de 1945, foram encontrados, num complexo de cavernas no alto Egito, os famosos “manuscritos de Nag Hammadi” que, após superarem mais de trinta anos entraves de todo tipo, puderam contar uma estória diferente do início do cristianismo.


Em março de 1946, foi a vez dos menos conhecidos “manuscritos astanfitas de Hagia Sophia”. Tendo um percurso tão mirabolante e mais antigo que o da primeira descoberta, sua estória começa quando um colecionador, em 1935, doou à igreja de Hagia Sophia, recém transformada em museu, um maço de pergaminhos aos quais não se deu muita importância, pois se tratava na maior parte de homilias e sermões de padres ortodoxos que oficiavam na basílica entre os séculos XIII e XV. Durante mais de dez anos ficaram preteridos no depósito, quando finalmente foi feito um exaustivo trabalho de recuperação, em que as folhas grudadas pelo mofo e umidade foram separadas cuidadosamente uma a uma. Entremeado aos textos eclesiais, encontrou-se um códice em copta com datação mais remota que o restante do material. Era uma legítima compilação astanfita feita provavelmente no quinto ou sexto século.


Quando soube do achado, o colecionador confessou ter adquirido o maço, junto com diversos outros artefatos egípcios, de um ladrão de túmulos no Cairo, pouco antes da primeira guerra. Este lhe contou que os papéis lhe foram passado numa transação arriscada feita com um receptador de Istambul, mas que, antes dele, estiveram em posse de um padre da igreja ortodoxa que, por sua vez, os haviam recebido em confiança de um operário que trabalhou na recuperação de Hagia Sophia após o terremoto de 1894. O vício em ópio, além de outros prazeres mais caros, levou o sacerdote a negociar os documentos com o comerciante desonesto em troca de algum dinheiro que lhe suprisse, pelo menos por uns dias, suas necessidades mais prementes.


Ao que parece, vários dos manuscritos ficaram por muito tempo resguardados da sanha dos inquisidores em recônditos obscuros dentro da sólida construção de Hagia Sophia, sob a custódia de alguns padres simpatizantes ou simplesmente tolerantes da heresia astanfita. Também há rumores de que o faziam em respeito aos projetistas do edifício: o matemático Anthemius de Tralles e o arquiteto Isidorus de Miletus; estes sim – sustentam certas fontes – eram astanfitas praticantes, fato que mantiveram em segredo durante toda vida por razões óbvias. Sobre isso nada podemos afirmar. Seja como for, o encargo foi passado dentro de um círculo restrito de padres, geração a geração. Até que a tomada de Constantinopla pelos turcos no século XV obrigou os padres a esconder, apressadamente, seus livros e documentos em recintos selados, para que não ficassem ao alcance dos pagãos e fossem destruídos. No meio dessas pilhas de papéis ordinários, os manuscritos astanfitas foram inseridos sorrateiramente sem que os outros padres incumbidos da tarefa suspeitassem. A esperança era que logo os invasores seriam expulsos e os documentos novamente recuperados. Tais expectativas não se cumpriram e a basílica não só permaneceu em domínio turco como foi feita mesquita imperial pelo conquistador, o Sultão Mehmet. E assim foram esquecidos por mais de cinco séculos; quando, então, um terremoto abriu uma das câmaras secretas expondo seu conteúdo. A abertura foi descoberta primeiramente por um dos operários que vieram trabalhar na restauração da igreja. Visando obter algum lucro no comércio ilegal de antiguidades, ele extraviou uns poucos pacotes de escritos, enquanto pode manter oculta a passagem para a cela. Quando, no canteiro de obra, começaram a desconfiar de seus estranhos pacotes, supondo que logo seria despedido, lacrou de vez a passagem, pensando poder voltar assim que a situação fosse esquecida. Nesse meio tempo, deixou seu espólio sob guarda de um padre que era seu conhecido para não levantar suspeitas. Seu azar foi que o tal padre não tinha uma vida tão devota e estava sempre desesperado em busca de dinheiro para sustentá-la. Logo, não demorou muito para cair na tentação e vender todos os pacotes no mercado negro de itens antigos. Ele não poderia imaginar o quanto antigos eram os documentos e que valiam bem mais que as garrafas de absinto e a noite de satisfação carnal. Contudo, não tardou para que todos os seus problemas fossem definitivamente resolvidos; o operário, ao saber que mais nada restava, apunhalou o padre e fugiu. A sorte do fugitivo não melhorou, o padre tinha irmãos menos tementes a deus, que o emboscaram e mataram alguns dias depois.


Depois do relato feito pelo colecionador, começou-se as buscas pela cela secreta e ela foi encontrada. Passou-se, então, ao tedioso trabalho de recuperação e, no seu decorrer, outros textos astanfitas foram surgindo paulatinamente. Entre eles, algumas preciosidades como um evangelho desconhecido e que nem mesmo estava presente na biblioteca de Nag Hammadi. Enigmaticamente, em sua primeira linha lê-se: “Estes são os relatos feitos por Lásarus, o primeiro vivo, sobre Jesus, o segundo vivo”. Outros são conhecidos por Nag Hammadi ou outras fontes, mas designam autores diferentes. É o caso de certos livros, cuja autoria sempre foi dada a João, que aparecem atribuídos a Lásarus, o primeiro vivo. Esse Lásarus evangelista, discípulo e depois mestre de Jesus confunde os pesquisadores imensamente. Nos evangelhos canônicos, ele é apenas o rapaz ressuscitado, irmão de Marta e Maria. Talvez “primeiro vivo” derive do fato de ter precedido Jesus na ressurreição do corpo. O seu evangelho astanfita diz explicitamente isso, mas também revela que a ressurreição foi apenas aparente; já que, efetivamente, eles jamais chegaram a morrer. Nos seus termos:


“A ressurreição só é possível enquanto ainda não sobreveio a morte física. O fruto da arvore da vida é para ser comido pela carne e quem assim o saborear ressuscita e passa a ser um ‘vivo’ como Jesus e, antes dele, Lásarus”.


Tudo isso é muito interessante, todavia estamos nos desviando de nosso tema. Haverá outras ocasiões propícias para retomarmos a esse assunto instigante. No momento, devemos nos ater a uma obra magnífica e sem precedentes revelada entre os manuscritos de Hagia Sophia. Nunca houve qualquer citação sobre ela, tudo que lhe dissesse respeito foi sumariamente destruído. Parece que até mesmo os monges de Nag Hammadi a rejeitaram ou a desconheciam. Nem os detratores da heresia gnóstica que existiram dentro da patrística – normalmente os responsáveis por sobreviver alguma memória dos textos que atacavam e, por paradoxal que pareça, sem eles a existência de certas concepções não ortodoxas seriam completamente varridas da História – ousaram mencioná-la uma vez que fosse. Era como jamais tivesse sido escrita até as descobertas de Hagia Sophia. Talvez os padres da igreja tenham pensado que era mais sensato e prudente omitir comentários e não chamar atenção sobre ela, deixá-la obscura e restrita como estava, não deviam salientar qualquer aspecto de seu conteúdo, até tachá-la de apostasia imperdoável seria conceder-lhe uma importância perigosa. Neste caso, julgaram que o melhor era calar e proceder, sem aviso e demora, uma devassa permanente para busca e apreensão de todas as cópias que surgissem, as quais seriam lançadas ao fogo de imediato. Felizmente, os astanfitas eram poucos e astutos, não se revelavam com facilidade e suas condutas não os denunciavam. Além de tudo, eram muito estimados, pois se destacavam em diversas das artes e ciências da época, inclusive assumiam posto de responsabilidade dentro do império e, mais tarde, na própria igreja. Graças a essas providenciais peculiaridades, um pergaminho contendo uma inspirada versão alternativa do gênese bíblico chegou aos nossos tempos.


Os historiadores catalogaram esse códice com o título de “O Livro de Astanfeus”, já que Astanfeus, um dos sete anjos da criação, é o protagonista da trama narrada no manuscrito. A sua epopéia inicia-se precisamente no trecho bíblico encontrado em gênesis 3:22 nas bíblias atuais e relata sua contenda com Iaodabaoth, outro anjo da criação; metáfora para o conflito eterno entre liberdade e tirania. O sentimento filantrópico nutrido por Astanfeus o levará a defender o homem contra os desmandos megalômanos de Iaodabaoth. Sua interferência se faz, a princípio, através de Eva, pois só ela lhe podia ouvir, isto porque a sensibilidade de Adão foi totalmente embotada pelo domínio que Iaodabaoth exerce sobre a aparência. Astanfeus passa, então, a incentivá-la para que compartilhe com seu parceiro o fruto interdito do conhecimento do bem e do mal, assegurando-lhe que não iriam morrer como sentenciou o anjo que lhes dizia ser um deus único. E, além disso, seus olhos se abririam, o que os tornaria iguais aos anjos. Sua investida surtiu efeito e o fruto foi consumido, o que desagradou profundamente Iaodabaoth, fazendo-o exigir a expulsão do casal humano do éden, para evitar que também usufruíssem da árvore da vida. Todavia, sua moção não foi acatada pelos outros seis anjos da criação; os elohim, o próprio Astanfeus sendo um deles. Enfurecido, Iaodabaoth se volta contra os humanos, persuadindo-os de que nada havia mudado; continuavam a ser as mesmas criaturas indefesas de antes, só que agora estavam eternamente marcadas pelo pecado da desobediência e da soberba de desejarem ser deuses, tornando mister que sofressem uma severa punição: o exílio.


Prefigurando uma notável ingenuidade, eles aceitam as manobras ladinas do anjo contrariado em seu amor próprio. É voluntariamente que se submetem e se humilham a um poder que já não possuía controle sobre seus destinos. E por que fizeram isso? Qual a razão de tal disparate? O texto delata uma cumplicidade tácita entre os dois lados dessa relação de poder. Evidencia que os pais da humanidade não foram enganados, nem poderiam ser; o fruto do conhecimento havia lhes concedido clareza de espírito suficiente para flagrar qualquer tentativa de logro. O que choca é concluir com o autor que eles deliberadamente se deixaram enganar. E isso não é a mesma coisa, está muito longe de ser. Inadvertidamente, usa-se um conceito pelo outro sem considerar a inversão que ocorre entre agente e paciente do dolo. O logrado aqui, no fim das contas, é Iaodabaoth que tomou como sincera a crença depositada em suas palavras.


A que leva e qual a motivação desse estranho jogo de interesse? Depois que conheceram o bem e o mal, Adão e Eva se encontram numa situação semelhante a que passaram antes de comer o fruto. Na ocasião, nada havia que lhes desse certeza de qual dos dois anjos estava certo e, sendo honestos consigo mesmos, esse ponto ainda permanecia incerto; já que Iaodabaoth sentenciou que morreriam, mas não disse quando. Mesmo assim, tomaram uma decisão e declinaram em favor de Astanfeus. Comido o pomo da discórdia, descobriram que o esclarecimento não lhes trouxe a verdade, nem resolveu inteiramente o certo do errado; o que fez foi refinar, de modo extraordinário, a dúvida; paradoxalmente tornando-a algo líquido e certo. O bem e o mal se confundem, se mesclam, permutam incessantemente, variam de acordo com as circunstâncias, são recíprocos de uma mesma inteireza, um consubstancia o outro, entre eles há uma mútua afirmação e uma alternância cíclica de feições. Nessa dança interminável, as alternativas estarão sempre sendo geradas, as escolhas irão se sucedendo a cada passo. O primeiro casal humano percebeu, aturdido, que não lhe seria exigido apenas mais uma decisão; encadeadas a esta viriam várias, uma após outra até o fim da vida que pudessem ter. Vislumbraram uma existência repleta de livres opções e responsabilidade por cada ato. Se a primeira decisão não havia sido fácil, imagine enfrentar isso a todo momento e para sempre. Diante de Eva, Adão pondera:


– De que nos adiantou ter os olhos abertos, enxergamos em detalhes e minúcias o que antes era plano e compacto, abandonamos uma imagem simples e imediata de tudo que era exterior a nós por uma complexa compreensão que não delimita fronteira entre o dentro e o fora. Agora, podemos antecipar que nosso futuro não está previsto, são muitas as possibilidades e nenhuma garantia é possível; o dia seguinte se tornou uma bela esperança. Essa liberdade exasperante que devemos exercer cotidianamente nos será cobrada com mais e mais necessidades. Quanto mais se amplia a potência de nossos atos, mais aumenta nossa responsabilidade pelas conseqüências. A partir do fruto, se não assumirmos e suportarmos esse peso, não nos consideraremos dignos, nem razoáveis. Perdemos totalmente a capacidade de acreditar no quer que seja, sempre conseguiremos ver outras alternativas e, então, fazer mais uma escolha será inevitável, como a responsabilidade dela decorrente. Nunca escaparemos desse destino repleto de opções angustiantes, sempre seremos levados a tomar decisões cruciais e dolorosas. E tudo isso, toda essa demanda valerá a pena? Qual recompensa receberemos pelo extremo esforço? Também sobre isso nada é certo. Nosso discernimento recém adquirido não sustenta um só sentimento de segurança.


– Talvez, Eva, fosse melhor para nós devolver esse dom ingrato. Voltar a fechar os olhos como antes e esquecer tudo que vimos. Apaguemos de vez essa clareza de espírito. Se nos recusarmos a usá-la, ela deve desaparecer com o tempo. Com isso, a jogaremos no olvido junto com todo o resto. Façamos, Eva, com que nossa segunda decisão seja a última. Na primeira, eu te segui e demos ouvidos à serpente; eis que este é o momento de tu me seguires e ficarmos ao lado do Senhor Nosso Deus. A dádiva do fruto que nos trouxe infortúnio também nos mostra a alternativa para escaparmos dele. Argúcia e inteligência não nos convêm, nada mais que sofridos dilemas advirão deles. Como criaturas estúpidas, poderemos voltar a crer em Deus e ficaremos despreocupados em Seu regaço, livres de qualquer responsabilidade.


Eva se deixa convencer e capitula diante de Iaodabaoth para acompanhar Adão no desterro. Aceitam de bom grado o injustificado sentimento de culpa que o demiurgo lançou sobre eles. E obedecem cabisbaixos a ordem para que abandonem o éden e se confinem numa distante caverna nas terras ocidentais.


Nesta escura caverna, Eva gesta e dá luz a Caim (aquele que possui a si mesmo) e Luluva, as metades máscula e feminil do primeiro filho do homem, cuja fecundação se deu no meio do éden em pleno efeito do fruto do conhecimento. Já Abel (vaidade) e Aclia foram fecundados na clausura e no alheamento. Assim, no tempo das origens, o humano nascia, na aparência, com suas partes masculina e feminina separadas em irmãos gêmeos, destinados a se religarem no enlace sexual e recompor o hermafrodita primordial. Entretanto, isso jamais esteve nos planos de Iaodabaoth, pois a imagem humana dividida em dois sexos foi propositalmente concebida por ele, um premeditado arranjo para tornar o homem mais vulnerável ao seu aliciamento. Então, para impedir que a reunião se consumasse, convence Adão e Eva de que os casais deveriam ser prometidos trocados.


Caim e luluva crescem inconformados com a situação injusta a que seus pais estavam sujeitos. Chegaram cedo à convicção de que não precisavam, nem deveriam, adorar Iaodabaoth como deus único. Logo perceberam que era uma entidade insidiosa e com um hipertrofiado conceito de si mesmo, apenas preocupada em alimentar uma vaidade insana. Contrariando Adão e Eva, recusaram-se a louvá-lo, repudiaram seus caprichos, não aceitaram a condição de servos tementes, pois sabiam que ele dependia da anuência de suas vítimas para tocá-las. Mesmo com as imprecações ouvidas de seus genitores, viviam fora da caverna em peremptória e intencional ignorância às determinações do deus de seus pais. Mas não só deles, também seus irmãos Abel e Aclia se converteram em fiéis seguidores e condenavam o modo de vida que adotaram, que consistia em explorar as extensões dos campos ao redor, coletando vegetais e frutas, aprendendo os mecanismos da natureza. Despertaram suas mentes para o céu e o passar do tempo. Descobriram padrões e correlações, intuíram leis benéficas no crescimento dos vegetais, aprenderam técnicas de sobrevivência com os animais. E tudo isso os levou às artes e às ciências. Enquanto seus irmãos enveredaram por outros caminhos; confinaram os animais fora de seus habitats, cevando-os para abate, impondo-lhes ritmos de vida artificiais.


Os fragmentos em árabe deste texto que foram preservados apresentam pequenas discordâncias, em relação ao pergaminho astanfita, quanto à descrição de como foi efetuada a oferenda de Caim e Luluva. No códice, nem mesmo há oferenda, eles se recusam terminantemente em prestar qualquer homenagem àquele deus que tanto desprezavam. Nas versões em árabe até encetam a oblação, cedendo às suplicas dos pais, contudo o desfecho dado vai se modificando nitidamente em cada fragmento. Em exemplares mais tardios, a oferta é mínima, suficiente para não ofender um certo senso de desperdício que não conseguiram negligenciar; enquanto nos de datação mais remota, foram mais radicais e, desistindo na última hora, retiram tudo, ignorando peremptoriamente os apelos e admoestações dos pais e dos irmãos.


Não importa o quanto essa atitude foi minimizada nas versões árabes, a ira despertada em Iaodabaoth é irretocável. Não podendo atingi-los diretamente, nutre a vaidade de Abel e fomenta nele uma crescente desconfiança contra o irmão. E conduz a intriga num estilo que em muito antecipa o Iago no Othelo de Shakespeare:


– Abel, tu bem sabes que te amo tanto quanto a teus pais, que tuas oferendas me são agradáveis e as recebo com júbilo. Tu mereces toda minha deferência, mas teu irmão é o oposto de ti, rejeitou a verdade que te dei de bom grado e enfrenta a dúvida e a incerteza a cada dia. Ele não ouve as súplicas de teus pais e me odeia por puro orgulho, nada fiz contra ele para justificar essa má vontade e não retribuo o mesmo sentimento. Nunca neguei a ele o justo poder que permito a ti que exerças sobre a natureza, através dos animais que criei para te servir e aplacar tua fome. Mas não, por birra, ele prefere se sujeitar aos caprichos da natureza para se alimentar de vegetais ao invés de reinar sobre ela. Fiz-te forte e robusto por meio do que comes, enquanto ele ficou fraco e frágil devido ao seu alimento pobre; não é como um homem deveria ser; o vigor sanguíneo de teu rosto não se compara à tez pálida de teu irmão. A jovial beleza que possuis contrasta com a sobriedade pedante desse primogênito arredio. Talvez eu espere demais de quem é fruto do pecado de teus pais, que foi gerado na desobediência de minhas leis. Muito diferente és tu; filho do amor puro e casto, vieste à luz graças ao enlace que perante mim foi consagrado e comprometido. Bem-aventurado, então, foi teu nascimento e eu o abençoei e permaneci ao teu lado todos os dias de tua vida e jamais te abandonarei. Porém, teu irmão sempre se afastou de minha presença, seduzido por palavras evocativas e sibilinas repudiou minha guarda e proteção. Mesmo se impondo por arrogância, não pode esconder que seu desejo mais profundo é, na verdade, usufruir a intimidade que compartilhamos. Todo o desdém é dissimulado; apesar das recusas enfáticas, ambiciona secretamente todas as dádivas que te concedi. E assim, porque me importo com tua segurança, alerto-te para que te acauteles contra teu irmão. Porque me amas, logo Caim passará a te odiar como odeia a mim. Ele, agora, está enfurecido e rebelou-se totalmente contra meus desígnios. Aviso-te para que saibas: ele inveja-te mais do que nunca depois que te favoreci; reluta em aceitar minha decisão de fazer tua prometida a mais bela das irmãs. A obsessão por Luluva o está consumindo e há intenções hostis em seus gestos. És o predileto de teu Deus e não quero que sofras pelos atos de teu irmão, portanto previna-se contra a violência que ele poderá perpetrar. Tu conheces a morte, a tens provocado com tuas próprias mãos. O que ainda não te dei a conhecer é que não só os animais morrem; no exílio, também o homem morre. Ciente disto, tu perceberás que, em certos momentos, devemos nos antecipar ao mal para que ele não prevaleça.


Bem, o que se seguiu a isso é fácil prever. Abel, temendo a morte nas mãos de Caim, se antecipa e tenta matar o irmão usando seu instrumento de trabalho, ao que ele se defende por puro instinto de sobrevivência e ambos vão ao solo. Não conseguindo conter a fúria do irmão e no afã de o fazer parar, Caim reage reflexamente e desfere um golpe na cabeça de Abel com o que, no momento, estava mais ao alcance de sua mão; uma pedra. Abel tomba para o lado, mortalmente ferido, agoniza e morre. Caim se levanta atônito diante de uma visão que não pôde conciliar; olha o corpo inerte e sanguinolento e não reconhece, nele, seu irmão. Ele havia desencadeado um processo que, de um instante para outro, transformou algo vivo numa massa bruta e sem identidade. Sentia que era uma situação muito grave e, talvez, irreparável. Mas, transtornado, não queria pensar que fosse assim, freneticamente buscava em sua imaginação meios que pudesse reverter os fatos. A lembrança mais reconfortante que lhe ocorreu foi das sementes germinando do solo. Coisas inertes postas sob a terra úmida brotavam para a vida. O mesmo poderia suceder se, literalmente, plantasse aquilo que fora seu irmão. Com esse pensamento, cavou desarvoradamente o solo e na cova acomodou o cadáver, cobrindo-o com a terra solta. Contudo, não se tranqüilizou, sabia: algumas sementes não germinam. Apesar da dúvida, decidiu que nada mais poderia fazer senão esperar. Foi quando ouviu a voz que vem em silêncio lhe inquirir:


– Caim, onde está Abel, teu irmão?

– E logo tu, que deverias saber, me perguntas?


Lógico que sabia; Iaodabaoth perguntava apenas por intimidação. E, ainda a pouco, estivera com os Elohim pedindo para que intercedessem por Abel; primeiro, que lhe restituíssem a vida e segundo, que punissem severamente Caim por seu crime inominável. Ao primeiro disseram: “Há limites a todo poder: a vida é como a água que derrama do vaso partido no solo seco; é possível restaurar o vaso, mas a mesma água não poderá ser reposta”. Ao segundo deliberam que qualquer pena seria injusta: “Posto que nem Caim, nem Abel podem ser responsabilizados pelos seus atos; pois ambos foram privados de opção: A Caim, o ímpeto de sobreviver tirou todas e a Abel, tu não deixaste nenhuma”.


Porém, de nada disso tinha conhecimento Caim e prosseguiu afrontando o demiurgo em seu total estado de transtorno:


– Por certo, não és tu o guardião de meu irmão? Não era teu o compromisso de o proteger de todo mal? Pois, não o protegeste contra mim e agora jaz sob o solo que piso. Minha esperança é que a terra que dá vida ao trigo o faça renascer. Então, por que não mostras o quanto és poderoso e lhe devolves a vida que tirei?


Caim só tentava mais uma solução desesperada para seu drama pessoal, todavia Iaodabaoth encarou aquilo como um desafio; fora profundamente atingido em seu orgulho, não poderia deixar que uma criatura tão inferior o desacatasse assim. Movido pela arrogância e o despeito, Iaodabaoth comete a mais hedionda das ofensas à vida; desrespeita a morte e macula a inocência de um cadáver ao tocá-lo para reanimar seus membros. Tal intenção desnaturaliza sua existência e o torna um elemento estranho para a terra que o acolhe. E, então, num espasmo, ela expele o corpo de Abel de volta a superfície. Perplexo, Caim tem novamente o irmão morto diante de si. Intrigado levanta os olhos e interroga seu interlocutor divino:


– O que estás fazendo, queres brincar com a minha inquietação?

– Não, apenas estou respondendo ao teu desafio e pondo a prova tua descrença.

– Mas ele não se move, ainda o sinto morto. Nada fizeste senão desfazer meu trabalho. Oh, deixa-nos em paz e volta para tuas alturas.


Caim voltou a enterrar Abel na mesma cova e, de novo, o solo fértil recusou-se a recebê-lo em seu seio. Por três vezes Caim tentou devolver o irmão ao úmido útero da terra; ela, entretanto, em todas as tentativas o lançou fora. Na terceira, toda a criação é violada; os olhos de Abel se abrem e o irmão vivo fica mortificado. Nada mudou, é a mesma massa bruta despersonalizada, algo tão apavorante quanto uma pedra que abrisse, de repente, olhos que nunca tivera. O coração de Caim gela quando o irmão, que ainda sente morto, lhe pede, numa voz sumida, para levantá-lo dali, afastá-lo da terra calcinante que queima dolorosamente suas costas. Caim atende e ao erguê-lo percebe que a pele dele está cheia de ulcerações. De pé, Abel começa a se recompor, lança um olhar desvairado para o irmão e diz em tom de contrito lamento: “Tenho fome, muita fome, tanta fome que não penso em mais nada senão em satisfazê-la”. Dito isso, sai, sem aviso, correndo a esmo entre os arbustos até avistar uma presa; num rompante, salta sobre ela e a captura. Com uma expressão de extasiado deleite, mostra o desafortunado animal ao irmão, aperta-o sofregamente entre as mãos e crava os dentes em seu pescoço; em vão ele se contorce e guincha, mas seu sangue jorra e é sorvido avidamente pela boca crispada. Terminado, a carcaça totalmente exaurida de seus fluídos é largada ao chão como um bagaço de fruta chupada. Ato contínuo, o corpo revivo de Abel entra num frenesi convulsionado e, quando cessa, vasculha freneticamente ao redor, ansiando por mais. Assim, se põe a cata de novas vítimas e afasta-se rapidamente do irmão. Caim, terrificado, não tem coragem de ir atrás dele e o deixa à sua sorte. Já presenciara vários predadores em caça, porém nada visto era comparável ao que acabara de assistir, algo excessivamente doentio passara a habitar o corpo de Abel.


Sem alternativa, outra vez volta-se para a voz desincorporada e indaga sobre o que era aquilo:


– O que fizeste ao meu irmão? Não foi vida que lhe reenviaste, mas apenas movimento ao corpo. Ele é um morto que aparenta estar vivo. Algo medonho e abominável criado por mero capricho.


– Como ousas julgar minhas ações. Os meus motivos estão muito além do teu entendimento. Antes de eu criar a vida de aparência, tu criaste a morte de fato. Somos cúmplices nesse horror que se espalhará pela terra. A descendência de Abel proliferará entre os homens, enquanto a tua será apartada da humanidade, proscrita do convívio de seus próprios semelhantes, rechaçada onde quer que vá.

– Como tua maldição poderá se cumprir? Como conseguirão distinguir minha descendência das demais?

– Há uma marca indelével em ti que passarás, inapelavelmente, para todos de tua linhagem.

– Eu não tenho marca alguma e não deixarei que me marques como Abel marcava seus animais!

– Não preciso marcar a ti. Será na humanidade que infundirei a minha marca, um selo que não poderás, nem desejarás, simular. Deste modo, tu e tua descendência é que estarão marcados, justo por não possuírem marca alguma.


Iaodabaoth, imprudentemente, havia reconstituído o vaso: mas um vazamento permaneceu e toda a água nele posta não seria contida por muito tempo. O demiurgo deu a luz a um ser desviante, vazio de vida. Partejou um aborto da natureza que sobreviverá absorvendo a vida de outros. O que é bem diferente dos seres naturais que consomem a matéria para alimentar a vida que lhes é própria.


Bem, é isso. Já me estendi demais nesta resenha. É o que basta para apresentar a gênese mística dos vampiros dentro de uma perspectiva de origem judaica, como havia proposto. E se você achar tudo isso surpreendente demais, lembre-se que a história é escrita pelos vencedores. Quanto aos que insistem na prosaica pergunta: “Então, está é a verdade?”; responderei como faziam os astanfitas: “Não, apenas faz mais sentido!”.