terça-feira, 8 de outubro de 2024

A Tradição Espiritual do Ocidente – Parte 5


Na 4ª parte desta série de artigos, vimos como o Esoterismo Moderno tomou forma na espiritualidade ocidental a partir do surgimento do Iluminismo e da expansão de seus valores nos séculos 17 e 18.


A partir de agora, iremos discutir como o Esoterismo da modernidade moldou sua própria face e influenciou toda a espiritualidade ocidental a partir do século 19, atingindo o ápice de seu modelo “espiritualista-cientificista” no século 20, com a estruturação de um cânone próprio de “mestres espirituais” e a delimitação de uma forma de pensamento que se caracteriza atualmente como um modelo próprio de espiritualidade, apartado da essência da Tradição Esotérica Ocidental.


O fortalecimento do Esoterismo Moderno nos séculos 19 e 20


A partir do século 20, o Esoterismo Moderno estabeleceu o seu “cânone sagrado” de autores da espiritualidade contemporânea. Esse cânone é composto de quatro autores principais que serviram (e ainda servem) de base para a criação de dezenas de sistemas filosóficos e espirituais (e Ordens Iniciáticas) que baseiam seus ensinamentos nas obras de tais estudiosos.


Os quatro autores considerados pilares teóricos do pensamento esotérico moderno são os seguintes:


a) Eliphas Levi: tido como o “papa” do Esoterismo Moderno e considerado na espiritualidade contemporânea como um exemplo de autor “tradicionalista” (simplesmente porque foi ex-diácono católico). Levi é considerado o grande expoente do sistema mágico da Golden Dawn (GD), e consequentemente influenciou dezenas de Ordens Iniciáticas pós-século 19;


b) Papus (Gerard Encausse): médico, filósofo e fundador do chamado “martinismo moderno”. Membro da chamada “linha esotérica francesa” (que ao lado da escola inglesa, dominou o Esoterismo Moderno até o início do século 20). Defendia uma espiritualidade mais “prática” e menos teórica que Levi. Ainda assim, seus livros eram famosos pela prolixidade e falta de objetividade;


c) Helena Blavatsky: considerada a “mãe da teosofia moderna”, foi a fundadora da sociedade teosófica da Inglaterra, e responsável por misturar elementos orientais ao Esoterismo Moderno ocidental (frutos de suas viagens de peregrinação à Índia, no fim do século 19). Também é tida como elemento chave do sistema iniciático da Golden Dawn;


d) Aleister Crowley: o grande “popstar” do Esoterismo Moderno. Fundador do chamado “sistema thelêmico”, é considerado pelos thelemitas como “o profeta do Novo Aeon”, e tido como o expoente maior do pensamento liberal da espiritualidade moderna. Tem um discurso essencialmente opositor ao Judaico-Cristianismo, propondo práticas que misturam elementos orientais e ocidentais com pouco (ou quase nenhum) elemento que seja considerado tradicional.


Mais tarde, autores menores ganharam algum destaque fundando sistemas e Ordens Iniciáticas diretamente derivados (ou influenciados) das ideias desses 4 autores-base dop Esoterismo Moderno. Entre eles, podemos citar:


Franz Bardon: o idealizador do sistema iniciático conhecido simplesmente como “hermetismo de Franz Bardon” (ou “bardonismo”);

Antony La Vey: considerado nas Ordens Iniciáticas modernas como o “pai do satanismo contemporâneo” (sic);

Gerald Garner: o fundador da “Wicca”, principal movimento neopagão da atualidade;

Israel Regardie: companheiro de Crowley na GD e famoso por sua abordagem psicológica da prática mágica;

Dion Fortune: tida no Esoterismo Moderno como uma das “conselheiras” de Aleister Crowley, e amiga pessoal da “besta”.


As obras e correntes filosóficas de todos esses autores menores giraram sempre em torno de conceitos ou interpretações alternativas das obras divulgadas pelos 4 grandes nomes do Esoterismo Moderno (Levi, Papus, Blavatsky e Crowley). É sobre as obras dessas quatro perosnalidades que repousa o alicerce teórico de grande parte das correntes esotéricas modernas, e é comum ver estudantes do Esoterismo Moderno repetirem frases desses autores como verdadeiros “mantras”.


Eliphas Levi e Papus são autores que dispensam apresentações a você, caro leitor: se você tiver alguma experiência com o esoterismo moderno (ou se tiver participado de Ordens Iniciáticas), com certeza já deverá ter lido algo a respeito desses autores (ou ao menos deve ter ouvido falar sobre eles em grupos de discussão).


Levi foi diácono católico e teólogo, e apesar de ter um pensamento espiritual mais tradicional (por conta de sua formação religiosa católica) é usado no Esoterismo Moderno como símbolo de “seriedade” e de “tradicionalismo” (mesmo que sua visão da prática mágica esteja completamente dissociada do conceito de “Teurgia” trabalhado na espiritualidade clássica ocidental).


A obra de Levi é mais especulativa que enfática, e seu mais famoso trabalho (“Dogma e Ritual de Alta Magia”) deixa claro a qualquer leitor que ele compartilha mais conhecimentos teóricos que práticos propriamente ditos. Ainda assim, nada impediu as Ordens Iniciáticas modernas de considerarem Levi como um “expoente de magia cerimonial”.


Levy fez estudos sobre magia, Cabala e Tarô, e sua obra foi fruto da espiritualidade de seu tempo (século 19). Como ex-membro do clero católico, dava muita ênfase ao aspecto moral da prática mágica, mas cometeu diversos equívocos conceituais e interpretativos sobre os conceitos filosóficos e teológicos que analisou em suas obras (muito por conta da escassez de acesso a escritos de mais consistência).


Papus foi defensor ferrenho do trabalho espiritual de Eliphas Levi, e como fundador do Martinismo contemporâneo (corrente mística fundada a partir dos ensinamentos de Louis Claude de Saint Martin) é considerado outro grande nome do Esoterismo Moderno. Médico, o autor (ao lado de Levi) é tido como outro grande expoente do chamado “ocultismo francês” (corrente espiritualista que se caracteriza por abordar um esoterismo com forte viés teológico e judaico-cristão). Suas obras tinham uma abordagem mais prática que as obras de Levi, apesar de também demonstrarem um discurso por vezes bastante prolixo e sem objetividade.


Os outros dois autores (Blavatsky e Crowley) são talvez ainda mais “mitificados” na espiritualidade moderna. E não são sem motivo.


Helena Blavatsky pode ser considerada a principal responsável por sincretizar (seguindo critérios pouco coerentes) a espiritualidade oriental à espiritualidade ocidental. É de Blavatsky a ideia de juntar Oriente e Ocidente numa só “corrente esotérica” (como se ambas fossem idênticas, ou tivessem exatamente os mesmos conceitos-base). Todavia, essa mostrou-se uma atitude completamente insana, que empobreceu a espiritualidade moderna à medida que acrescentava a ela elementos completamente alheios ao raciocínio do homem ocidental.


O fato de a Tradição parecer guardar aspectos comuns no Ocidente e no Oriente, não implica necessariamente na necessidade de se sincretizar elementos de culturas distintas. A distinção dessas culturas é um fenômeno tradicional por si só, que divulga valores morais e filosóficos da Tradição de maneira abrangente, respeitando-se as diferenças sociais de cada povo e adotando roupagens distintas com o intuito de conservar os conceitos primordiais da própria Tradição.


Após suas viagens de peregrinação pessoal à Índia (em busca de “conhecimentos”), Helena Blavatsky retornou à Inglaterra repleta de informações e descobertas que havia feito no Oriente: alegou ter mantido contato com “mestres espirituais secretos” (o que mais tarde foi provado ser uma fraude); disse ter sido treinada por “gurus indianos” a respeito da espiritualidade oriental; e divulgou suas descobertas em sua Sociedade Teosófica (fundada anos antes de sua viagem).


A partir das divulgações de Blavatsky, o Esoterismo Moderno se fortaleceu mais ainda e sofreu uma verdadeira “revolução”: assuntos como “Yoga”, “Tattwas”, “Kundalini”, “Chakras”, “Reencarnação”, “Meditação”, “Budismo”, “Hinduísmo”, “Viagem Astral” e outras questões ligadas ao Oriente, passaram a se tornar matéria de pauta em todos os círculos espiritualistas do século 19. As Ordens Iniciáticas passaram a tomar contato com conhecimentos estranhos ao Ocidente; esses conhecimentos eram curiosos, exóticos, e (porque não dizer) “sedutores” no século 19: tratava-se na verdade de um resumo mal apresentado de conceitos espiritualistas retirados do Hinduísmo e do Budismo, e aplicados de maneira absolutamente intempestiva na sociedade moderna ocidental.


Nunca o Oriente passou a ser tão discutido na espiritualidade do Ocidente: a partir de Blavatsky, as Ordens Iniciática passaram a chamar a atenção para a necessidade do ser humano de “limpar seus chakras”, “visualizar Tattwas” ou “meditar diariamente”. Ao mesmo tempo, a prática Ocidental de Teurgia (trabalho com espíritos, operações com grimórios medievais, prática de magia devocional, evocações angélicas, etc.) passou a ser vista e atacada por Blavatsky (que tinha um forte discurso crítico ao Judaico-Cristianismo), sendo tratada como algo “sujo”, “perigoso” e até mesmo “impróprio” aos estudantes modernos (o que ela classificava como “magia negra”).


A divisão da espiritualidade entre algo “branco” e “negro” ganhou mais força à partir do discurso de Helena Blavatsky: tudo que lhe parecesse tradicional ou ligado à essência da Tradição Espiritual Ocidental (por meio do Judaico-Cristianismo) parecia ser considerado por ela como algo espiritualmente “impuro”, “negro” ou “impróprio”. Mas não podemos dizer que esse tipo de condenação foi um privilégio do discurso da “mestra” russa: anos antes, já nas obras de Levi e Papus (adeptos do Judaico-Cristianismo, ao contrário de Blavatsky!),percebemos um discurso incisivo no que diz respeito à separar as práticas espirituais entre “brancas” e “negras”, e na necessidade de evitar a chamada “magia negra” (comumente associada por Levi à prática de necromancia). Assim, o Esoterismo Moderno do século 19 viu algumas práticas esotéricas se transformarem em verdadeiras “modinhas espirituais”, consideradas por Blavatsky como “magia branca” (ou seja: uma forma aceitável de espiritualidade, segundo seu julgamento sincrético): “meditar” (através do chamado “budismo esotérico”); “visualizar Tattwas” (usando uma espécie de sincretismo forçado de conteúdos indianos e métodos europeus de treinamento espiritual); praticar “desdobramento astral” (aproveitando a febre do “Plano Astral” divulgada no século 19, através dos círculos espiritualistas por meio do crescimento do chamado “espiritismo kardecista”); e “acessar” a chamada “Fraternidade Branca” (para “obter conhecimento” dos “mestres ascencionados”).


No fim do século 19, a Ordem Iniciática da Golden Dawn consolidou o Esoterismo Moderno como uma tradição espiritual autônoma, separada da Tradição Espiritual Ocidental (mas originada dela). De maneira perspicaz e sendo diretamente influenciada pela formação maçônica e rosacruciana de seus fundadores, a GD conseguiu estabelecer um sistema iniciático que mesclava elementos da espiritualidade Ocidental (operações teúrgicas, ainda que feitas de forma simplificada, Alquimia Mental [1] e Astrologia Moderna) com elementos típicos da espiritualidade moderna (trabalho com elementos orientais apresentados por Blavatsky, e grande uso de Psicologia para explicar os efeitos das práticas espirituais). Em pouco mais de 10 anos de existência, a Golden Dawn pode ser tida como o primeiro grande sistema esotérico da modernidade, que ainda bebeu de elementos da espiritualidade tradicional do Ocidente, ao mesmo tempo em que a adaptava ou mesclava com elementos modernos.


Foi do sistema iniciático da GD que surgiu a última (e atualmente mais popular) personalidade do Esoterismo Moderno: Aleister Crowley foi membro da Golden Dawn e saiu da Ordem para divulgar um sistema filosófico e espiritual com o qual teve contato através de uma experiência pessoal (sistema thelêmico).


Apesar de não ter sido contemporâneo de Helena Blavatsky, Crowley soube explorar com maestria o espaço aberto por ela no Esoterismo Moderno: seu sistema filosófico e espiritual (Thelema) bebia fortemente de fontes orientais, e recomendava de forma aberta a prática de disciplinas como Yoga e meditação oriental. Dono de um discurso reacionário ao Judaico-Cristianismo (assim como Blavatsky) por conta de dissabores pessoais na infância, Crowley também se opôs ao máximo ao conceito de “espiritualidade tradicional” (que lhe parecia algo próximo demais do próprio Judaico-Cristianismo, especialmente das vertentes católica e protestante), propondo releituras do Trivium Hermético e classificando a si mesmo como alguém que “mudava o que pudesse” (espiritualmente falando) e “testava essas mudanças” (Empirismo).


Crowley procurou satisfazer ao máximo seus desejos pessoais (Humanismo, Pragmatismo) através de sexo, bebidas ou diversão aleatória, ao mesmo tempo em que se dedicava à sua espiritualidade de forma “científica”, numa tentativa de chocar a sociedade de seu tempo e mostrar a seus seguidores que a essência da espiritualidade moderna estava conectada à vida mundana, e que era impossível separar espiritualidade e vida cotidiana.


A grande mudança de Crowley em relação à Blavatsky (e sua grande marca identitária no Esoterismo Moderno) se deve ao fato de que ele tentou aproximar sua prática espiritual o quanto pôde do paradigma científico moderno, transformando seu sistema filosófico numa espécie de “espiritualidade científica”. Os ideais iluministas (classificados por Crowley como “Iluminismo Científico”) foram fortemente defendidos no sistema thelêmico, ganhando popularidade na espiritualidade moderna como uma espécie de “abordagem científica” ao Esoterismo conhecido no Ocidente.


Atualmente, o Esoterismo Moderno tem em Crowley seu maior baluarte, e dezenas de outras correntes filosóficas ou espirituais da modernidade foram inspiradas ou tem nele algum tipo de influência direta. A influência crowleyana sobre o Esoterismo Moderno parece superar até mesmo o peso “tradicionalista” que nomes como Levi, Papus e Blavatsky despertam no pensamento esotérico contemporâneo. Mais que isso: o fato de (assim como Blavatsky) Crowley ter tido um discurso prioritariamente opositor ao Judaico-Cristianismo (pelo menos às vertentes católica e protestante), tornam ele uma espécie de “ícone” a todos os “rebeldes sem causa”, ou aqueles que querem se opor (por prazer ou pura discórdia pessoal) à Tradição. É com Crowley que a espiritualidade moderna ganha um ar de “paganismo renovado”.


O que temos com o advento da popularidade de Aleister Crowley, é na verdade uma espécie de “2º movimento renascentista”: o Esoterismo Moderno assume um discurso opositor ao Judaico-Cristianismo (proveniente de alguns de seus principais autores como Blavatsky e Crowley) e opõe-se a um dos principais pilares culturais/filosóficos da Tradição Espiritual Ocidental, iniciando uma tentativa de “reconstrução” idealizada do paganismo por meio de correntes modernas que buscam “ressuscitar” a espiritualidade pagã de forma estereotipada (como o movimento wiccano). Esse é o chamado neopaganismo.


É necessário deixar claro que o Esoterismo Moderno (assim como a Tradição Espiritual Ocidental) não é “uma coisa só”. Trata-se atualmente, de uma gama de tendências espirituais e filosóficas (muitas opostas entre si!), que tem em comum, na maior parte dos casos, o fato de usarem o Iluminismo como base epistemológica e se oporem diretamente ao modus operandi da Tradição Ocidental.


O Esoterismo Moderno é uma verdadeira “salada mista”, onde tudo (ou quase tudo) é permitido. Não há verdades nele; ou melhor: há “várias verdades” (Relativismo). Todo dia, novas correntes filosóficas nascem (novas “verdades”) e reclamam pra si o “direito” de se fazerem ouvidas (GUÉNON, 2017). Na espiritualidade moderna, tudo tem uma “parcela de verdade”, e apenas a experiência direta (a prática) pode mostrar o que cada corrente esotérica moderna significa (Empirismo).


Na última parte desta série, faremos um balanço das informações transmitidas ao longo dos artigos apresentados, comprovando que o Esoterismo Moderno forma uma tendência espiritual própria, com uma visão de mundo peculiar e alheia ao espírito da Tradição Espiritual do Ocidente, que faz uso de tudo aquilo que lhe é conveniente (do ponto de vista tradicional), ao mesmo tempo em que se organiza (e se apresenta ao homem contemporâneo) de maneira caótica, numa verdadeira mistura desenfreada de conceitos e filosofias.


REFERÊNCIAS


GUÉNON, René. A crise do mundo moderno. Instituto René Guénon de estudos Tradicionais – IRGET. São Paulo: 2017.


[1] O sistema iniciático da Golden Dawn carece fortemente de estudos e trabalhos com Alquimia Laboratorial (ainda que seus manuscritos pareçam levantar a hipótese de que alguns membros da Ordem efetuaram operações espagíricas). O membro da Ordem que poderia ter efetuado um trabalho laboratorial efetivamente alquímico (Israel Regardie) preferiu não fazê-lo e se dedicar integralmente à sua carreira de psicólogo, após receber treinamento pessoal do maior alquimista do século 20 (Frater Albertus).


NOTAS


O Neopaganismo é um dos frutos diretos do Esoterismo Moderno, pregando uma tentativa (muitas vezes simplificada e deturpada) de retorno às tradições pagãs pertencentes à Tradição Espiritual Ocidental, ao mesmo tempo em que mistura esse “retorno à antiguidade” à filosofias essencialmente modernas, como o Holismo e o pensamento Nova Era (New Age).


Helena Blavatsky foi a responsável por sincretizar (de maneira pouco coerente) as espiritualidades Ocidental e Oriental, trazendo elementos do Esoterismo Oriental para o Ocidente. Blavatsky também acentuou a divisão (bastante divulgada por Levi e Papus) da prática de magia em “branca” e “negra”, usando um discurso reacionário contra o Judaico-Cristianismo, e idealizando (mitificando) a espiritualidade indiana.


Eliphas Levi é tido como um dos “mestres” do Esoterismo Moderno, e seu nome é constantemente citado em muitas correntes filosóficas e Ordens Iniciáticas pós-século 19, como exemplo de mago e especialista em magia cerimonial. Porém, suas obras mais famosas tiveram um caráter essencialmente filosófico e teórico, com poucas indicações realmente práticas (no que diz respeito à prática de Teurgia).


A Tradição Espiritual do Ocidente – Parte 4


No artigo anterior, vimos como a Tradição Espiritual Ocidental é essencialmente pautada no trabalho prático com o chamado “Trivium Hermético”. Esse tripé espiritual constitui-se do trabalho com as chamadas “três artes herméticas” (Astrologia Tradicional, Alquimia Laboratorial e Teurgia), e constitui-se na essência da prática espiritual do homem ocidental. Dessa forma, o trabalho com essas três artes constitui-se em algo prioritário, dentro da espiritualidade do Ocidente.


Neste artigo, iremos analisar quando (e como) a essência da Tradição Espiritual Ocidental começou a ser atingida pela propagação dos ideais iluministas, e como o próprio Iluminismo deu origem a uma tradição espiritual própria no Ocidente, conhecida atualmente como “Esoterismo Moderno”.


O advento do Iluminismo no Ocidente, e a mudança de paradigma do homem ocidental


O Iluminismo foi uma corrente de pensamento que surgiu no século 17 e ganhou força no Ocidente a partir do século 18. De uma forma resumida, o Iluminismo pregava a ideia de que o homem é um ser vivo autêntico, dono de inteligência e de livre-arbítrio, que deve assumir as “rédeas” sobre sua vida e seu destino sem depender de Deus ou de qualquer religião estabelecida.


Na prática, o Iluminismo representou uma tentativa concreta do ser humano de se opor à Religião e ao pensamento religioso (especialmente o pensamento judaico-cristão), por considerá-los prejudiciais para a “autonomia” e “evolução” da humanidade (uma vez que a Religião “prendia” o ser humano a dogmas). O pensamento iluminista básico tentava proclamar uma espécie de “independência espiritual” do ser humano, reorientando a visão do homem ocidental: se no período medieval o homem olhava “para cima” (tinha Deus como seu foco maior de atenção), no Iluminismo o homem passou a “para baixo” (para si mesmo), tendo sua vida, seu bem estar e a resolução de seus problemas, como sua maior preocupação.


Por conta dessa proposta de existência absolutamente antagônica ao paradigma histórico (e natural) do homem ocidental, o Iluminismo rapidamente escolheu seus “adversários filosóficos”: a Idade Média foi eleita o primeiro grande adversário iluminista, e passou a ser considerada um período de “trevas e ignorância”, em que o ser humano foi mantido “sob cativeiro intelectual” e “amarrado” à Religião sob ameaça de “castigos”.


O segundo grande inimigo iluminista não podia ser outro: a Religião, e o Judaico-Cristianismo, considerado por muitos iluministas o responsável pela “ignorância científica” propagada na Idade Média. Na ótica iluminista, foi o Judaico-Cristianismo que atrasou o avanço cultural e científico da humanidade, quando “impediu” o homem de buscar soluções para os problemas de sua existência, a partir de suas próprias iniciativas.


A estratégia iluminista para combater seus dois grandes inimigos filosóficos foi recorrer a um “saudosismo cultural” curioso: passou-se a buscar a espiritualidade greco-romana como uma busca por algo “clássico”,que ainda não tivesse sido “contaminado” pelo pensamento judaico-cristão, e ainda possuísse um estado de “pureza existencial” (culturalmente, filosoficamente e espiritualmente falando). Do dia para a noite, Grécia e Roma passaram a ser vistos pelos autores iluministas como “o berço da civilização ocidental”, representando um período da história humana considerado por todos os inimigos da Idade Média como uma “era dourada” (anterior à era de “escuridão” medieval).


Porém, o que à primeira vista pode ser considerado uma visão romântica da cultura greco-romana, através de um apego à antiguidade clássica, na verdade foi apenas uma estratégia criada pelo Iluminismo para enfraquecer a Religião no Ocidente, e especialmente para enfraquecer as bases do Judaico-Cristianismo frente ao ser humano. Tudo não passava de um jogo de interesses: buscava-se a antiguidade greco-romana não por seu “brilhantismo filosófico ou teológico” (que na verdade não interessava ao Iluminismo), mas unicamente com o intuito de se desconstruir uma das bases espirituais da Tradição no Ocidente: a filosofia judaico-cristã (GUÉNON, 2017). Essa busca pela “glória da antiguidade” foi a 1ª etapa do Iluminismo, conhecida atualmente como “movimento renascentista”, ou simplesmente “Renascimento” (séculos 16 e 17).


Apesar de sua forte influência no Ocidente, o Iluminismo não pode ser considerado um movimento filosófico unificado. A partir de meados do século 17 e início do século 18, o pensamento iluminista passou a adotar um discurso ainda mais oposicionista e agressivo ao pensamento religioso ocidental: surgiram então diversas filosofias “dentro da filosofia”, gerando correntes de pensamento que defendiam abordagens distintas em relação à Religião e à Tradição. Todavia, todas essas correntes tinham pontos em comum: buscavam a destruição (e desconstrução) da essência e do conceito da Tradição; davam ênfase à “independência” do ser humano; estimulavam à prática científica sob um viés materialista (classificado no pensamento iluminista como um “espírito investigativo independente”); e procuravam desconstruir a base moral da sociedade ocidental, propondo um relativismo cultural, filosófico, político e espiritual.


Entre as principais correntes iluministas propagadas no Ocidente nos séculos 17 e 18, podemos destacar:


a) Ceticismo: defendia a ideia de que o ser humano deve duvidar de tudo, e só deve acreditar em algo após esgotar todas as suas tentativas de negar aquilo que está investigando. Essa é uma corrente de pensamento amplamente usada na modernidade, e que teve o objetivo inicial de estimular a descrença espiritual, enfraquecendo o pensamento religioso;


b) Relativismo: defendia o pensamento de que tudo é relativo, e depende do ponto de vista de quem analisa a situação. Não se pode chegar a conclusões sobre assunto nenhum, até que se esgotem todas as possibilidades (que são quase infinitas!) de análise de determinado assunto. Conclusões tiradas sobre determinado assunto, na ótica iluminista são quase sempre consideradas ”generalizações”, pois desconsideram os “detalhes” que cercam aquele assunto. Essa corrente iluminista também é bastante empregada no pensamento moderno, pois dá margem para discussões “eternas” sobre questões de qualquer natureza, dando liberdade pra que o homem possa manifestar os posicionamentos que quiser em relação a qualquer assunto (mesmo que seus posicionamentos sejam incoerentes e careçam de validade filosófica);


c) Humanismo antropocêntrico: corrente de pensamento iluminista que defendia o argumento de que o ser humano é o principal ente a ser considerado na natureza. Toda a preocupação do homem deve ser com seu próprio bem-estar, com a promoção de sua “dignidade”, e com a busca por melhorar sua condição social. Nessa corrente iluminista, o valor da Religião e da espiritualidade não é negado; mas é colocado em segundo plano, em detrimento dos interesses do homem. As necessidades do ser humano vem antes das necessidades de Deus (que não precisaria de atenção por “já ter tudo”, e “por ser Deus”);


d) Subjetivismo: corrente iluminista “parceira” do Relativismo. Enquanto este defendia que tudo é relativo e depende da visão de quem analisa cada situação, o Subjetivismo defendia a ideia de que toda análise que é feita sobre algo depende diretamente da interpretação (subjetiva) de cada indivíduo, a partir de suas convicções morais, culturais e filosóficas. Essa corrente tentava justificar o Relativismo, a partir das diferenças sociológicas do ser humano, usando os diferentes contextos de vida do homem para concluir que “não se pode concluir nada de forma unificada sobre o ser humano”. O Subjetivismo abriu margem para o surgimento (no século 19) de outra tendência iluminista, o “psicologismo”: a crença de que o homem possui em si tudo que precisa (sua mente), e de que tudo que ocorre a seu redor é fruto da interpretação que sua mente dá ao mundo;


e) Materialismo: corrente de pensamento perigosa e extremamente nociva ao homem ocidental, que defendia a ideia de que a preocupação do ser humano tem que ser com a realidade que lhe é palpável, e com aquilo que pode ser manipulado de forma direta e objetiva. A Religião preocupa-se com o que “não pode ser provado” ou comprovado (Deus); por isso, preocupar-se com ela (Religião) é uma “perda de tempo” para os materialistas: o ser humano deve preocupar-se unicamente com aquilo que ele pode modificar ou “corrigir” (e que está a seu alcance). O Materialismo era “parceiro” de outra corrente de pensamento iluminista também extremamente nociva à Tradição Espiritual Ocidental: o Ateísmo. Para o Materialismo, a Religião e a espiritualidade tornam o homem “fraco” e “escravo”, o que impossibilitaria a “revolução cultural” necessária para modificar as estruturas sociais do homem moderno. O pensamento materialista está presente na modernidade através do chamado “marxismo” (Materialismo Histórico-Dialético);


f) Progressismo: corrente de pensamento iluminista que defendia a ideia de que a existência do ser humano deve seguir sempre uma linha “evolutiva”: o homem deve sempre procurar “aperfeiçoar” o que já existe e “melhorar” seu modo de vida. A vida deve seguir sempre “pra frente” (avançar), rumo a um estado de perfeição que só será obtido mediante a ajuda da ciência moderna. Os “erros” do passado devem ser “corrigidos” através do método científico e da atitude de busca “da verdade” pelo ser humano. O homem deve estar sempre disposto a “mudar” e a “se adaptar” no mundo, pois nada pode permanecer “parado”, e tudo deve estar em constante “mudança e evolução” (“progredindo”). Assim, para o Progressismo, olhar para o passado é prender-se ao que é “obsoleto”: a visão do homem deve ser orientada sempre para o “futuro”;


g) Pragmatismo: corrente iluminista muito difundida na atualidade, que defende a ideia de que tudo que existe tem que ter uma “utilidade” (função) ao ser humano, e deve gerar resultados palpáveis à vida do homem (de preferência, resultados rápidos). O homem deve ser “satisfeito” em seus desejos, e para isso, toda a natureza deve ter uma utilidade prática na vida humana. A espiritualidade não foge à essa regra: não se pode gastar tempo com atividades espirituais dogmáticas, “teóricas” e “lentas”, pois elas são “inúteis” e não são pautadas na busca por resultados instantâneos. Assim, o valor de algo está em sua “utilidade prática” para o ser humano, pois o que importa ao homem é a obtenção de resultados (e não a filosofia por trás desses resultados);


h) Liberalismo: essa é talvez a corrente de pensamento iluminista mais nociva ao pensamento do homem ocidental. O Liberalismo defende a ideia de que o homem tem que ser “livre” para pensar, agir e especular sobre o que quiser, da forma que quiser, sem ser de nenhuma maneira punido pelo que decidir fazer a partir de seu pensamento. Defende uma “liberdade de ação” quase ilimitada do homem (algumas vezes até mesmo ilimitada!), que abre margem para posturas contraditórias, luxuriosas, antiéticas e até mesmo ilegais do ser humano. Seus frutos foram perniciosos e extremamente nocivos à história do homem ocidental: por ter sido concebido na “reforma” protestante (a “mãe” do Iluminismo), o Liberalismo gerou as sementes do capitalismo selvagem moderno, pautado no lucro desenfreado (o que gerou o aumento das desigualdades, da pobreza e da exploração), e também influenciou o enfraquecimento do pilar judaico-cristão, através do fortalecimento do protestantismo (já que o Liberalismo é uma das “bandeiras” da “reforma” protestante).


É necessário destacar que nem todas as correntes iluministas eram necessariamente céticas, ou negavam a efetividade da Religião: é o caso, por exemplo, das tendências de pensamento iluministas da primeira metade do século 17: para essas correntes de pensamento, Deus e a Religião não eram negados, mas eram apenas “aspectos menores” da existência humana. Analisar Deus era analisar algo sempre tendo o ser humano como base de sustentação argumentativa (e não o próprio Deus).


O Racionalismo e o Empirismo, correntes iluministas encabeçadas por René Descartes e Francis Bacon, respectivamente, seguiam exatamente esse tipo de raciocínio. O Racionalismo foi uma corrente criada a partir do pensamento de Descartes (pensamento cartesiano) de que só se deve confiar na mente, pois ela é a única capaz de fazer uso da razão para levar o homem à verdade. Assim, Deus não deveria servir como critério de alcance da verdade, mas unicamente como objeto de devoção imaterial.


O Racionalismo cartesiano não negava a existência de Deus e nem se opunha à Religião e à espiritualidade; porém, deixava claro que Deus não pode ser “testado” ou “comprovado” através da razão, e por isso mesmo sua existência não deve ser debatida. Assim, a única preocupação do homem devia ser com sua mente, que é a única coisa presente em si que o aproxima de Deus (DESCARTES, 1979).


Já o Empirismo é uma corrente criada a partir da obra de Francis Bacon, e defendia a ideia de que só se deve acreditar naquilo que for devidamente comprovado através de comprovação direta (empírica), sem se deixar levar por achismos e falsas ideias. Para Bacon, toda especulação filosófica feita sem experimentações comprobatórias, não passariam de “ídolos” (no sentido negativo do termo): crenças cegas em conceitos, formuladas sem comprovação prática (“científica”).


O surgimento do Esoterismo Moderno


Se opondo de maneira tão radical ao conceito de “Tradição perene”, não demorou para que o Iluminismo atingisse diretamente o seio da própria Tradição Espiritualidade Ocidental.


Com o surgimento da industrialização, o modo de vida essencialmente agrário do homem ocidental foi substituído por um modo de vida urbano, pautado no trabalho com o manejo de máquinas. O enfraquecimento das monarquias ocidentais acentuou-se a partir do século 18, comprovando que o pensamento iluminista já havia deixado marcas no campo da política (propondo formas de governo mais “democráticas” e liberais, e dando margem para que o homem pudesse governar de maneira dissociada da Religião).


O “rastro iluminista” também se fez perceber através do progresso da ciência moderna no século 19: através de novas descobertas (especialmente no campo da medicina e da astronomia) a ciência moderna pareceu validar a ideia iluminista de “progresso” e “avanço” da humanidade.


A espiritualidade moderna do século 19 se viu cada vez mais obrigada a se alinhar aos preceitos científicos (se ainda quisesse ter alguma forma de “respeito” em sua sociedade). A espiritualidade tradicional Ocidental passou a ser cada vez mais vista como “superstição” e sinônimo de “crendice popular” (algo completamente alheio ao pensamento cientificista do século 19). Assim, diversas Ordens Iniciáticas e correntes espirituais modernas passaram a dar um ar de “cientificidade” a suas teorias e práticas, na esperança de atrair para si alguma espécie de respeito ou respaldo científico. Valia tudo para chamar uma prática espiritual de “ciência”: desde manter registro minucioso de exercícios espirituais nos chamados “diários” (na tentativa de replicá-los e transformá-los em “experiências de laboratório”), até mesmo convidar cientistas e pesquisadores materialistas da época para presenciar fenômenos espiritualistas, sob a pretensa justificativa de se analisar esses fenômenos “sob o julgo da razão” (como o fenômeno espírita das “mesas girantes”, registrado por muitos curiosos em pleno século 19). Assim, nascia ali, entre o final do século 18 e início do século 19, o que se conhece atualmente por Esoterismo Moderno.


A espiritualidade moderna rapidamente se apoderou das três artes do Trivium Hermético (que analisamos na 3ª parte desta série de artigos) e as deturpou, fazendo “ajustes” com o intuito de transformá-las em “ciências ocultas”. Essa foi a estratégia usada pelo Esoterismo Moderno para tentar conseguir algum tipo de respaldo sobre si mesmo, já que a espiritualidade praticada na modernidade é na verdade um amálgama de conceitos: um conjunto de adaptações, criações, ajustes e deturpações feitos a partir da Tradição, sem nenhum (ou com pouco) embasamento teórico ou filosófico (GUÉNON, 2017).


Podemos dizer, de forma sucinta, que as duas grandes características do Esoterismo Moderno são sua capacidade de criar novos conceitos (e tendências espiritualistas) a partir das descobertas promovidas pelo pensamento científico; e principalmente, sua capacidade de deturpar os conceitos clássicos da Tradição Espiritual Ocidental. Riffard (1990) classifica assim a deturpação de conceitos que a modernidade promove em torno do Esoterismo Tradicional:


O Esoterismo Tradicional é desfeito, submetido à metamorfose. Na impossibilidade de abatê-lo, pode-se desnaturá-lo. Há a falsificação, acobertada pela compreensão. Pode-se assim interpretá-lo, deformá-lo, reconstruí-lo, modernizá-lo, traduzi-lo. No caso de desgaste, descarta-se todos os aspectos sagrados, secretos. (RIFFARD, 1990, p. 24)


O Esoterismo Moderno não sobreviveria apenas de suas próprias criações espirituais, baseadas numa aproximação com a ciência materialista. Ele precisa se respaldar: precisa de algo que lhe dê uma história própria, uma identidade própria. Porém, para conseguir isso, a espiritualidade moderna recorre justamente aos valores da Tradição Ocidental, porque sabe que a espiritualidade tradicional bebe diretamente das bases da própria Tradição perene (e imutável). Assim, o Esoterismo Moderno procura promover uma mistura de conceitos: ele mescla suas criações espirituais com o que considera “útil” da Tradição Espiritual Ocidental, deturpando tudo aquilo que considera necessário para que consiga estabelecer uma “proto-tradição” (GUÉNON, 2017). E por mais incrível que pareça, isso deu certo: o Esoterismo Moderno constitui-se hoje, numa vertente espiritual autônoma, independente da Tradição Ocidental, mas originada de seu seio (seguindo porém, uma trilha espiritual distinta).


Com a expansão do Esoterismo Moderno, a Astrologia Tradicional foi a primeira a sofrer os efeitos da “cientificidade iluminista” reinante no século 19: através do teosofista Alan Leo, a Astrologia Tradicional, caracterizada pelo trabalho com predições de acontecimentos na vida do ser humano, transformou-se numa “pseudociência”, fortemente influenciada pela Psicologia Moderna e preocupada em descrever a personalidade do homem e como ele reage às situações que se apresentam em sua vida. Nascia assim a chamada “Astrologia Moderna” ou “Astrologia Transpessoal”.


A propagação da Psicologia Moderna já no inicio do século 20 caiu como “luva” para a espiritualidade moderna. A teoria de Carl Gustav Jung passou a ser vista (e ainda é) como uma espécie de “comprovação científica” das teorias espirituais e filosóficas defendidas por Ordens Iniciáticas e correntes de pensamento pós-século 19. De uma hora para outra, os conceitos da teoria junguiana para explicar o comportamento do ser humano passaram a ser utilizados de forma completamente desproporcional no Esoterismo Moderno:


todo padrão comportamental do homem ocidental passou a ser considerado “arquétipo” de alguma coisa; todos os símbolos espirituais passaram a ser analisados com profundo interesse “oculto”; todo problema na vida do ser humano passou a ser considerado um “complexo mental”; e todos os efeitos de qualquer prática espiritual passaram a ser considerados frutos de “sincronicidade”. E o mais curioso disso tudo: Jung não era astrólogo; não era mago; não era alquimista; e não escreveu absolutamente nada em sua teoria que falasse de maneira objetiva sobre o trabalho com o Trivium Hermético. Jung era tão somente um (excelente) psicólogo, e sua teoria procurava servir de base para seu método psicoterapêutico (que propunha um tratamento mais “espiritualizado” e sensível que o método psicanalítico freudiano).


De toda forma, a utilização da Psicologia Junguiana no Esoterismo Moderno caracterizou a espiritualidade contemporânea como uma verdadeira “auto-ajuda psicológica”; a partir daí, a “psicologização” também a Alquimia Laboratorial e da Teurgia foi apenas questão de tempo…


A Alquimia Laboratorial passou a despertar cada vez menos interesse nos estudantes modernos, por conta dos altos custos de montagem de um laboratório alquímico e da dificuldade de se encontrar instrutores (alquimistas) realmente dispostos a compartilhar os ensinamentos da grande obra. Assim, a partir do século 19, ganhou destaque a chamada “Alquimia Mental”, uma forma completamente psicologizada de se abordar o processo alquímico.


Focada na transformação da personalidade do ser humano, a Alquimia Moderna (Mental) passou a ser representada (especialmente no século 20) por diversos autores do chamado “movimento New Age” (Nova Era), vertente espiritualista oriunda dos Estados Unidos e responsável por divulgar no Esoterismo Moderno uma verdadeira “salada” de teorias e filosofias, que misturam desde o bem-estar do ser humano (holismo) até conceitos como “fraternidade branca”, “mestres ascencionados”, teoria da “terra ôca”, “Shamballah” e “chama violeta”.


Dessa forma, ao invés de abordar a criação de remédios e o tratamento espiritual do ser humano através de uma ascese espiritual (como a Alquimia Laboratorial faz), a Alquimia Moderna passou a ser vista como a necessidade do ser humano de “transmutar seus defeitos psicológicos em virtudes”. Assim, a transmutação metálica passou a ser vista também na Alquimia Mental como “transformação do chumbo dos defeitos em ouro de virtudes”. Autores como Saint Germain passaram a ser tidos como expoentes desse tipo de processo alquímico [1].


Na 5ª parte desta série de artigos, veremos como o Esoterismo Moderno “aperfeiçoou” sua lógica espiritual ao longo dos séculos 19 e 20, através da definição de um “cânone teórico” estabelecido a partir das obras de 4 autores específicos (tidos no meio esotérico moderno como “ícones” da espiritualidade contemporânea).


REFERÊNCIAS


DESCARTES, René. Discurso do método: meditações, objeções e respostas. Ed. Abril Cultural. São Paulo: 1979.

GUÉNON, René. A crise do mundo moderno. Instituto René Guénon de estudos Tradicionais – IRGET. São Paulo: 2017.

RIFFARD, Pierre. O Esoterismo: antologia do esoterismo ocidental. Ed. Mandarim. São Paulo: 1996.

[1] Que na verdade é um processo incompleto, mas não necessariamente errado, já que o trabalho sobre os defeitos da personalidade também é feito na Alquimia Laboratorial, ao passo que o trabalho laboratorial não é feito na Alquimia Mental.


NOTAS


A psicologia é parte integrante do Esoterismo Moderno, e é comum que várias correntes filosóficas da modernidade usem teorias psicológicas (especialmente as teorias de Carl Gustav Jung) para tentar explicar “cientificamente” a natureza dos resultados obtidos em suas práticas espirituais.


René Descartes é tido como um dos baluartes do pensamento iluminista: é dele a autoria do chamado “Racionalismo”, além de também ser tido como o “fundador da Filosofia Moderna”. Apesar de não negar a existência de Deus, Descartes defendia a ideia de que o ser humano deve usar sua razão, tida por ele como a única ferramenta capaz de levar o homem à “verdade”.


O chamado “Renascimento” foi o 1º momento do Iluminismo, e se caracterizou como uma valorização da filosofia greco-romana. Porém, o que parecia ser um “resgate da antiguidade”, na verdade revelou-se uma estratégia iluminista de combate ao pensamento religioso medieval (especialmente à filosofia judaico-cristã), e à própria essência da Tradição Espiritual do Ocidente.


segunda-feira, 7 de outubro de 2024

A Tradição Espiritual do Ocidente – Parte 3


No artigo anterior, vimos que a Tradição Espiritual Ocidental é a manifestação da própria Tradição perene, por meio do substrato de quatro grandes culturas do Ocidente (cultura Pagã e Xamanismo Afrodescendente, cultura Egípcia, cultura Greco-Romana e cultura Judaico-Cristã).


Na 3ª parte desta série, iremos analisar de que forma a espiritualidade Tradicional do Ocidente se manifestou (e ainda se manifesta) em termos práticos, através de seu “tripé prático” (ou “Trivium Hermético”).


O Trivium Hermético: a base do trabalho prático da Tradição Espiritual Ocidental


Vimos que a Tradição Ocidental é pautada nas culturas pagã, egípcia, greco-romana e judaico-cristã, e que a espiritualidade tradicional praticada no Ocidente afasta-se de conceitos iluministas e modernos (além de afastar-se também de conceitos orientais). A partir de agora, tentaremos entender como a Tradição Ocidental manifesta-se de forma prática, através das suas três artes herméticas.


O Trivium Hermético é a base de toda a Tradição Esotérica Ocidental. É sobre três artes espirituais (Astrologia, Alquimia e Teurgia) que a espiritualidade do Ocidente repousa suas práticas religiosas/filosóficas. Assim, qualquer sistema filosófico ou espiritual que não faça uso dessas três artes herméticas, em maior ou menor grau (ou faça uso de apenas algumas delas), não pode ser considerado “tradicional”, ou mesmo “pertencente à Tradição Ocidental”. Aqui, grande parte das Ordens Iniciáticas modernas e correntes filosóficas pós-século 19 já perdem sua “aura” (muitas vezes presunçosa e desonesta) de “tradicionalismo”.


É preciso destacar que quando se fala do Trivium Hermético, estamos nos referindo à três artes específicas: a Astrologia Tradicional (e não a Astrologia Moderna); a Alquimia Laboratorial (e não a “alquimia psicológica” comumente abordada a partir do século 19); e a Teurgia (e não a prática de “magia psiquista” ou psicologizada, ou mesmo os exercícios orientalistas amplamente divulgados a partir do século 19).


A modernidade adaptou ou criou variações das três artes do Trivium Hermético. Essa foi uma estratégia utilizada pelo Esoterismo Moderno como tentativa de puxar para si alguma forma de “validação histórica” que lhe possibilitasse obter a mesma credibilidade da Tradição Espiritual Ocidental. Para isso, a modernidade apropriou-se das artes herméticas e as transformou em “ciências ocultas” (RIFFARD, 1990), dando a elas um ar de “cientificidade” e as tentando aproximar do método científico moderno.


É desnecessário dizer que tanto a Astrologia Tradicional, quanto a Alquimia Laboratorial e a Teurgia não são ciências (no sentido materialista do termo “ciência”). As três são artes espirituais, porque demandam de seus operadores habilidade de manuseio e sensibilidade para se interpretar os resultados obtidos (sensibilidade essa que simplesmente não existe no método científico moderno, pautado na frieza e na busca por resultados sem refletir-se sobre eles). É por essa razão que não nos referimos nunca à Astrologia, Alquimia ou Teurgia como “ciências espirituais” (mesmo que muitos estudantes da modernidade prefiram se referir a elas dessa forma), visto que tratá-las como ciências (mesmo que “espirituais”) já é um grande passo para se analisá-las sob um viés materialista moderno.


De acordo com o alquimista Jean Dubuis, o estudo do Trivium Hermético é amplo, e exige do praticante muita dedicação e seriedade de intenções. O autor chama o Trivium Hermético de “retrato tríplice” (em alusão a alguma estrutura de altar que faça uso de três imagens religiosas simultaneamente), e deixa claro que o estudo das três artes é costumeiramente mais profundo do que se imagina, envolvendo também o estudo de simbolismo, numerologia e mitologia (DUBUIS, 2000).


Eliphas Levi, tido como um dos “baluartes” da espiritualidade moderna, também dividiu a Tradição Espiritual Ocidental em Astrologia, Alquimia e Teurgia. Porém, ele usou nomenclaturas diferentes para se referir ao Trivium Hermético: o autor separou a Cabala da prática de Magia, e incluiu o estudo de Astrologia no que ele denominou simplesmente de “Hermetismo” (LEVI, 2009). Seja como for, mesmo que diferentes autores tenham adotados nomenclaturas distintas (ou feito divisões diferentes), a base da prática espiritual do Ocidente reside sempre nas três artes do Trivium Hermético (em maior ou menor grau).


A primeira arte do Trivium Hermético é a Astrologia Tradicional. Ela é a base dos estudos espirituais da Tradição Ocidental, e é a arte responsável pelo estudo dos astros e sua influência nas ações dos seres humanos. Por ser a base do Trivium Hermético, o trabalho com as outras duas artes (Alquimia Laboratorial e Teurgia) exige necessariamente conhecimentos astrológicos (especialmente para a escolha do melhor momento para se efetuar os trabalhos espirituais, a chamada “Astrologia Eletiva”).


Diferente da Astrologia Moderna (pautada no bem estar do ser humano e na explicação da personalidade do consulente como critério de “autoconhecimento”), a Astrologia Tradicional tem como principal foco a predição de acontecimentos na vida do homem. Sua base epistemológica é essencialmente pautada na ideia de “destino” trabalhada no Estoicismo, e também bastante influenciada pelo ideário espiritual judaico-cristão, responsável pela divulgação da ideia dos astros como “representantes do criador”.


A segunda arte hermética é a Alquimia Laboratorial. Ela é o trabalho de evolução espiritual que é feito através do auxílio à evolução da própria natureza, por meio da manipulação direta da matéria. Apesar de o nome sugerir algo meramente experimental e feito em laboratório, a Alquimia Laboratorial tem também um aspecto espiritual: a prática do oratório. É daí que surge a expressão latina “Ora et Labora” (reza e trabalha).


A Alquimia Laboratorial se divide de acordo com o “reino” no qual o trabalho alquímico é realizado: Animal, Vegetal ou Metálico. Todavia, na prática, o trabalho alquímico é comumente dividido em duas categorias: Espagiria (trabalho com os vegetais) e Alquimia Mineral (trabalho com os metais).


Já a Teurgia é o trabalho de evolução espiritual através do contato direto com o Todo-Poderoso, por meio das entidades que compõem as diversas hierarquias espirituais presentes na Criação. Também conhecida no Ocidente (nem sempre de maneira correta) como “Magia Cerimonial“, a prática de Teurgia consiste essencialmente no trabalho de Invocação e Evocação de anjos, arcanjos, demônios, elementais, desencarnados ou mesmo dos nomes divinos de Deus, como forma de se obter conhecimento direto das entidades que compõem a criação visando o crescimento espiritual do operador.


Constantemente pautada na prática de orações, a Teurgia tornou-se muito popular no Esoterismo Moderno por conta da popularização simplificada (e estereotipada) da Goetia (grimório mágico cerimonial pertencente à Tradição Salomônica). É necessário também dizer que a Teurgia não faz levantamentos morais em torno de seu trabalho, e por mais clichê que possa parecer, é necessário ressaltar que a divisão entre “magia branca” e “magia negra” (muito difundida no Esoterismo Moderno) diz mais respeito às intenções do operador que à prática de Teurgia em si.


Para Jean Dubuis, o Trivium Hermético é um estudo que vai “além da vida”: assim, “As a summary, Alchemy would be the study of chemistry plus Life; Magic the study of physics plus Life; and Astrology the study of Astronomy plus Life“. (DUBUIS, 2000, p. 121). [1]


Conforme o leitor deve ter percebido, a Cabala não está inclusa como uma das três artes herméticas. Por isso, é preciso deixar claro qual a posição da Cabala na Tradição Espiritual Ocidental (uma vez que ela guarda muita popularidade entre os sistemas filosóficos e espirituais da modernidade).


A Cabala não foi citada no Trivium Hermético por uma razão muito simples: uma parte dela já está contida na Teurgia, como parte integrante desta última (no que muitos autores medievais denominavam de “Cabala Prática”, ou simplesmente “Cabala Cristã”).


A Cabala é parte essencial do misticismo judaico, e por isso mesmo, fator primordial na formação da identidade da Tradição Espiritual do Ocidente (como parte da cultura judaico-cristã). Sua atuação na espiritualidade Ocidental ganhou destaque a partir do século 13, por meio da divulgação feita por Moisés de Leon. A partir daí, a Cabala foi fortemente utilizada na prática de magia cerimonial tradicional nos séculos que seguiram, fosse através do uso do alfabeto hebraico, fosse através da utilização de chaves de invocação de anjos, arcanjos ou dos nomes divinos do Criador. Toda essa utilização ficou popularmente conhecida entre os autores ocidentais como “Cabala Prática”, ou mais precisamente “Cabala Cristã”, parte integral da Teurgia.


Obviamente, a Cabala tem um corpo de conhecimentos bem mais vasto que seu aspecto prático que foi incorporado à Teurgia Ocidental. Porém, o aspecto cabalístico comumente adotado na prática teúrgica ocidental diz respeito ao auxílio que a Cabala (enquanto arte espiritual judaico-cristã) pode oferecer ao trabalho mágico do Ocidente. Isso inclui diretamente a abordagem prática do alfabeto hebraico e as maneiras corretas de se invocar nomes divinos comumente presentes em círculos mágicos e inscrições contidas na parafernália mágica. Esse tipo de trabalho espiritual foi intensamente feito no período medieval, onde os cabalistas cristãos que trabalhavam com a Teurgia, “[…] se interrogavam sobre os nomes dos anjos, sobre a significação dos textos bíblicos à força de anagramas” (RIFFARD, 1990, p. 581).


A essa altura, já deve ter ficado claro ao leitor que a Tradição Espiritual Ocidental sustenta sua metodologia prática em três artes distintas (com a Cabala estando inclusa em uma delas, por meio de um sincretismo). Astrologia, Alquimia e Teurgia formam a base de toda a prática espiritual do Ocidente, e as três sempre estiveram presentes na espiritualidade ocidental, fosse na cultura pagã (celta e xamânica), na egípcia, na cultura greco-romana ou mesmo no panorama judaico-cristão.


Como dissemos anteriormente, o trabalho com o Trivium Hermético é condição sine qua non para que qualquer corrente filosófica ou espiritual seja considera “tradicional” ou mesmo pertencente à Tradição Ocidental: trabalhar com as três artes simultaneamente é algo absolutamente necessário (apesar de aparentemente “impossível” na atualidade, por conta da falta de praticantes genuínos da espiritualidade Ocidental).


O trabalho com apenas duas dessas artes, ou mesmo com apenas uma, já é suficiente para se caracterizar qualquer Ordem Iniciática ou corrente filosófica como “não-tradicional” ou “não pertencente à Tradição Ocidental” (conforme já explicitado pelos autores citados ao longo deste artigo). Assim, as correntes filosóficas e espirituais e Ordens Iniciáticas que não se enquadram como “tradicionais”, encaixam-se quase que automaticamente como pertencentes ao Esoterismo Moderno.


No próximo artigo desta série, iremos analisar as origens do Esoterismo Moderno, a grande influência que essa forma contemporânea de espiritualidade sofreu do Iluminismo, e os problemas epistemológicos que ele enfrenta para se respaldar enquanto tendência espiritual contemporânea no Ocidente.


REFERÊNCIAS


DUBUIS, Jean. The Fundamentals of esoteric Knowledge. Triad Publishing, Gainesville-EUA, 2000.

RIFFARD, Pierre. O Esoterismo: antologia do esoterismo ocidental. Ed. Mandarim. São Paulo: 1996.

[1] “De forma resumida, a Alquimia seria o estudo da Química aplicado à vida; a Magia, o estudo da Física aplicado à vida; e a Astrologia, o estudo da Astronomia aplicado à vida”. Tradução livre.


NOTAS


Para a Teurgia Ocidental, a prática mágica consiste justamente de se trabalhar em conjunto com espíritos, anjos e demais entidades como forma de se obter resultados concretos e manifestações no plano físico. Para isso, a linguagem cabalística é utilizada como ferramenta de enriquecimento das operações teúrgicas, fazendo com que a Cabala seja parte integrante da Teurgia (mas não uma arte hermética independente, no Trivium Hermético).


A Alquimia Laboratorial (ou Operativa) consiste no trabalho com a natureza, através da manipulação direta da matéria. O alquimista busca aperfeiçoar os processos realizados pela natureza, produzindo tinturas, elixires e medicamentos capazes de manter a essência da matéria trabalhada e curar o ser humano.


A Astrologia Tradicional busca analisar a influência dos astros sobre o plano físico. Diferente da Astrologia Moderna (que procura entender como os astros influenciam a personalidade do ser humano), a Astrologia Tradicional dá atenção especial à predição de acontecimentos.

A Tradição Espiritual do Ocidente – Parte 2


Na 1ª parte desta série de artigos analisamos o significado do termo “Tradição” à luz da Santa Doutrina Cristã, e vimos como o Catolicismo é a base espiritual do Ocidente. Dessa forma, vimos como a interpretação dada ao vocábulo “Tradição” remonta essencialmente ao Cristianismo, e influencia diretamente a visão de mundo do homem ocidental. Por isso, na 2ª parte desta série de ensaios, iremos analisar a espiritualidade ocidental observando as diferentes tradições filosóficas e culturais que receberam reflexos da mensagem divina transmitida à humanidade, constatando que, ao contrário do que a modernidade defende, essas diferentes tradições não são iguais nem “equivalentes” entre si, e nem tem o mesmo grau de importância que a Sagrada Tradição Cristã guarda para o Ocidente. Por fim, perceberemos a mistura desorganizada que é feita na espiritualidade moderna entre conceitos orientais e ocidentais foge completamente à essência da Tradição Cristã, mantenedora do modus operandi do Homem Ocidental.


Tradição VS tradições: porque a Santa Doutrina Cristã é soberana no Ocidente, em relação às demais correntes filosóficas e espirituais


Vimos no artigo anterior que ao contrário do que a modernidade comumente prega, não existem “várias tradições equivalentes”: existem sim manifestações espirituais, culturais e filosóficas, que guardam entre si esboços da mensagem enviada pelo Divino Pai Eterno aos homens, servindo como precursoras do Cristianismo no Ocidente. 


A Sagrada Tradição é perene (eterna) e não está sujeita às impermanências do tempo. De forma resumida, a Sagrada Tradição é o depósito da Verdade revelada (GAUDRON, 2011). A Verdade revelada foi manifestada no Ocidente pelo Cristianismo…e é através da doutrina cristã que a mensagem divina foi transmitida por Deus Todo-Poderoso a diversos povos e culturas, por meio da transmissão da doutrina de Cristo a seus apóstolos, e posteriormente aos bispos da Igreja cristã que nascia. Essa transmissão da doutrina é denominada “sucessão apostólica”, e o conjunto de ensinamentos cristãos transmitidos ao longo dos séculos é denominado de Sagrada Tradição ou Tradição Cristã.


No âmbito da cultura, da filosofia e da espiritualidade, o Cristianismo influenciou diretamente a Moral e a Ética do homem ocidental. Assim, o modus operandi da espiritualidade ocidental foi sendo formado ao longo dos séculos, por meio da manifestação da doutrina cristã na história humana…ao mesmo tempo em que a Sagrada Tradição ia formando seu corpus e sendo transmitida de geração a geração, sendo levada aos diversos povos e culturas ocidentais. Dessa forma, podemos afirmar que a Moral ocidental é fruto direto da doutrina cristã revelada por Deus aos homens: essa doutrina foi antecipada nas tradições culturais dos diversos povos pagãos (muitas vezes de forma pouco clara). Essas tradições misturavam aspectos filosóficos, espirituais e culturais desses povos, mas não tinham ainda o caráter divino transcendente apresentado pela Sagrada Tradição Cristã.


A ideia relativizada (e iluminista) de que a Sagrada Tradição depende das características políticas, sociais e culturais do ser humano não ajuda a entender a essência da espiritualidade do Ocidente: a Santa Doutrina Cristã tem uma base de valores que não dependem de diferenças culturas ou sociais, e que vem se manifestando há séculos à humanidade.


De uma forma geral, a espiritualidade ocidental é constituída pela própria Tradição Apostólica Cristã (a Sagrada Tradição). Essa Tradição foi precedida por tradições filosóficas, culturais e até espirituais oriundas dos povos pagãos do Ocidente, que por vezes (de forma quase inconsciente) divulgaram esboços da doutrina que viria a formar a base da espiritualidade ocidental (a doutrina Cristã), através de insights filosóficos manifestados por meio de uma espiritualidade muitas vezes de viés materialista. Porém, ainda assim, a Metafísica Católica conseguiu unificar os elementos pré-cristãos presentes nas tradições pagãs, enriquecendo o corpo da Sagrada Tradição apostólica por meio de comparativos filosóficos (KREEFT, 2008).  


É necessário deixar claro a você leitor, que apesar da doutrina de Cristo ter sido divulgada a diversos povos e culturas, ela nem sempre foi aceita ou compreendida por esses povos (como no caso do povo judeu). Outras vezes, essa doutrina foi reinterpretada de acordo com as características de cada povo, enriquecendo a Sagrada Tradição com abordagens distintas à mensagem divina.


Dentre as diversas tradições pré-cristãs presentes na espiritualidade do Ocidente, quatro merecem destaque por terem fornecido elementos que enriqueceram o corpus filosófico da própria Sagrada Tradição Cristã. Essas quatro tradições são as seguintes:


a) A tradição pagã: manifestada essencialmente no Ocidente pelo Xamanismo e pela religiosidade expressos na cultura céltica e nas religiões de matriz afrodescendente. Essa tradição divulga um estilo de espiritualidade que comunga diretamente com a natureza, por meio de um animismo manifesto no contato com espíritos e entidades ligadas ao meio-ambiente dos diversos povos pagãos. A tradição pagã forneceu elementos importante para a Tradição Cristã, principalmente no que tange ao manuseio da natureza para a produção de ervas e remédios naturais (através da Alquimia Operativa).


b) A tradição egípcia: responsável direta pela difusão no Ocidente de valores espirituais relacionados à especulação filosófica sobre a vida pós-morte, o trabalho com o Trivium Hermético (Teurgia, Astrologia e Alquimia) e o culto religioso socialmente organizado. Apesar de ser uma tradição muito anterior ao Cristianismo, a tradição egípcia forneceu à Sagrada Tradição elementos importantes no que diz respeito à reflexão sobre o destino do ser humano pós-morte, e a importância da religião organizada como vetor de organização social.


c) A tradição greco-romana: propagadora de várias correntes filosóficas ocidentais que serviram de base para estruturar todo o pensamento metafísico do Ocidente, como o Platonismo, o Hermetismo, o Estoicismo e o Neoplatonismo. Também forneceu à Sagrada Tradição elementos cruciais a respeito da necessidade de organizar de maneira legislativa a prática religiosa (por meio do modo romano de estabelecer seus cultos). É da tradição greco-romana que o homem ocidental tira grande parte de seu modo de filosofar sobre a Criação: essa tradição pré-cristã é a base da formação filosófica do Ocidente, fornecendo pensamentos preciosos de autores como Platão e Aristóteles, que enriqueceram o corpus filosófico da Sagrada Tradição.


d) A tradição judaica: responsável pela estruturação de uma Moral pré-cristã, da qual o próprio Cristianismo foi derivado. A tradição judaica foi a última tradição pré-cristã onde a mensagem de Deus Todo-Poderoso foi divulgada. É uma tradição muito restrita e delimitada ao modo de vida do povo judeu, que por ter rejeitado Cristo como o Messias profetizado nas Escrituras, guardou elementos de uma Ética alheios à Sagrada Tradição. Todavia, a tradição judaica é um importante elemento comparativo com a Sagrada Tradição, possuindo elementos filosóficos e teológicos comuns ao Cristianismo, mas divergindo em questões doutrinárias cruciais. Por isso, não podemos falar de um “judaico-cristianismo”, uma vez que há uma rejeição explícita do Judaísmo aos preceitos da Sagrada Tradição Cristã.


É a partir dos elementos pré-cristãos dessas quatro tradições, aliados aos ensinamentos da Sagrada Tradição Cristã, que repousam as bases da espiritualidade do Ocidente. Qualquer coisa que saia desse escopo não pertence à essência da prática espiritual Ocidental, ainda que sejam também formas ricas de manifestação cultural ou espiritual. Não se trata aqui de pregarmos um “exclusivismo”: trata-se simplesmente de constatarmos que a espiritualidade do Ocidente repousa sob a Tradição Apostólica Cristã e os elementos pré-cristãos fornecidos pelas quatro tradições apresentadas anteriormente (RIFFARD, 1990).


Obviamente, o leitor pode questionar-se se essa análise que estamos fazendo acerca dos alicerces da Tradição Ocidental não soa “eurocêntrica” demais. De certa forma, ela realmente pode soar como uma espécie de “eurocentrismo” (apesar de não ser essa nossa intenção), ao sermos taxativos em estabelecer os centros de manifestação cultural da espiritualidade do Ocidente. Sabemos que o ser humano da antiguidade ou do período medieval desconhecia os conceitos de “Ocidente” e “Oriente” (pelo menos até o século 8, quando Carlos Magno constituiu uma identidade cultural do Ocidente enquanto algo unificado). Mas de uma forma geral, para fazermos um estudo embasado do significado da Tradição Espiritual Ocidental, precisamos primeiramente nos livrar de quaisquer relativismos que dificultem a análise das bases epistemológicas do homem do Ocidente; e isso passa necessariamente por deixarmos claro a você leitor, o que é “ocidental” (espiritualmente falando) e o que simplesmente não é.


A espiritualidade do Ocidente se manifesta de uma forma prática, objetiva: o homem ocidental, via de regra, não busca apenas especular sobre Deus e sua existência. Essa é uma diferença primordial entre a espiritualidade do Ocidente e aquela manifestada no Oriente: para o homem ocidental, a comprovação física (concreta) dos efeitos de sua prática espiritual tem um valor quase inestimável. O homem ocidental quer não apenas “estudar Deus”, mas principalmente “experimentá-lo”: ele precisa “ouvir” Deus, “tocar” em Deus, e se possível, “ver” a Deus. E isto tudo deve ser feito não no sentido figurado, mas literal do termo…


O homem ocidental não quer apenas filosofar sobre sua espiritualidade: ele busca uma justificativa para a existência humana, uma explicação para seus problemas, e acima de tudo, soluções concretas para seus dilemas existenciais. Ele quer explicações palpáveis para assuntos muitas vezes sutis; busca justificativas para questões aparentemente sem solução. Por isso, falar de uma Tradição Espiritual Ocidental é antes de tudo “[…] ir ao fundo de seu pensamento (do homem), e de lá lançar-se para as extremidades, porque esse centro abriga todo o conjunto” (RIFFARD, 1990, p. 9, grifo nosso).


Falar de espiritualidade tradicional no Ocidente é falar de algo quase completamente alheio ao pensamento científico moderno. A Tradição Espiritual Ocidental não se respalda e nem busca se aproximar da ciência moderna, por um motivo muito simples: a busca espiritual é uma busca por respostas de assuntos que não são objeto de estudo da ciência materialista (“vida pós-morte”, existência de Deus, etc.). A ciência moderna até admite seus limites e reconhece que não é capaz (e nem tem intenções) de trabalhar sobre esses assuntos. Porém, mesmo quando reconhece sua impossibilidade de atuação nessas questões, a ciência moderna o faz de forma pejorativa: assim, é comum que a ciência materialista, ao se referir à espiritualidade, o faça de maneira vexatória, humilhante e escandalosa (RIFFARD, 1990).


Ainda assim, a espiritualidade Ocidental não é refém da ciência moderna. Ao contrário do Esoterismo Moderno que tentou e ainda tenta (de maneira inadequada) se alinhar ao pensamento científico materialista, a espiritualidade tradicional do Ocidente não guarda e nunca guardou nenhuma intenção de se aproximar, compactuar ou dialogar com os valores iluministas que predominam no método científico moderno (apesar de valorizar o avanço científico como uma bênção concedida por Deus). Isso deixa claro que a Sagrada Tradição Cristã em nenhum momento é “rival” da ciência moderna (nem mesmo nega seus avanços e descobertas): são dois campos de conhecimento distintos, que não precisam (e nem tem) a mínima necessidade de serem “fundidos” ou “unificados” (como a espiritualidade moderna tenta fazer). De certa forma, “a espiritualidade se revela por si mesma. Não precisa de um psicanalista ou de um crítico. Possui sua própria linguagem” (RIFFARD, 1990, p. 28).


A essa altura, já deve ter ficado claro ao leitor qual o campo de atuação da Tradição Cristã: a busca por respostas a questões que incomodam o ser humano (questões essas que não podem ser respondidas pelo método científico moderno). A partir disso, podemos também evidenciar outra coisa: a espiritualidade oriental, tão defendida no Esoterismo Moderno por elementos do Hinduísmo e do Budismo, não faz parte do corpo de conhecimentos trabalhados na espiritualidade ocidental, porque se afastam da Tradição Cristã. Essa, por si só é uma constatação que parece contradizer (e irritar) os espiritualistas modernos, entusiastas de um conceito de “sincretismo espiritual”, e que defendem a existência de uma prática espiritual “fast food”, onde todos podem misturar elementos de diversas filosofias diferentes para formar sua “espiritualidade pessoal”, juntando “o melhor de cada corrente espiritual”.


Não estamos dizendo que a espiritualidade oriental não tem valor: a questão não é essa. Ela tem seu valor e sua beleza, e certamente possui resultados comprováveis entre seus adeptos (alguns, às vezes, até ocidentais). Porém, o que está em jogo aqui é outra coisa: a construção da identidade e da visão de mundo do Homem ocidental faz uso de valores que não são abordados (ou mesmo compreendidos) pela espiritualidade oriental (e vice-versa). É por isso, que argumentos do tipo “Yoga funciona”, “meditação budista é ótima” ou “a espiritualidade oriental é mais honesta que a ocidental”, não justificam ou explicam a inclusão sem critérios de conceitos orientais à espiritualidade do homem ocidental.


Esses são argumentos comumente usados pela modernidade para justificar sua busca por algo “diferente” ou “chamativo” que contradiga aquilo que lhe desagrada no Ocidente (o Catolicismo), fazendo-a correr atrás de “conhecimentos secretos” ou de “verdades espirituais autênticas” em elementos espirituais que sejam alheios ao modo de vida do homem ocidental.


Essa aproximação com o Oriente foi feita no século 19, através da expansão do Esoterismo Moderno (o que iremos ver com detalhes ao longo desta série de artigos). A espiritualidade oriental (que nem sequer é conhecida como “esotérica” pelos adeptos de suas culturas) não compactua dos valores do homem ocidental, ao contrário: o raciocínio do homem oriental é pautada em preocupações absolutamente distintas daquelas demonstradas pelo homem ocidental: enquanto o oriental tende a ter uma forma de raciocínio mais psiquista (focada em sua própria mente e na qualidade de seus pensamentos) e preocupada com o bem-estar de sua sociedade (holismo), o homem ocidental tende a se preocupar mais com aquilo que é externo a si (exterior à sua mente), e busca na espiritualidade formas concretas de melhorar sua própria existência e a de seus semelhantes (às vezes, nem isso). Isso faz com que o homem ocidental aparente tenha uma espiritualidade mais “egoísta” que o homem oriental.


A verdade é que nem um nem o outro estão errados: tratam-se de pontos de vista essencialmente distintos sobre o mundo e o sentido da vida. Isso se expressa de forma muito clara na espiritualidade: o oriental procura meditar, “esvaziar sua mente”; o ocidental anseia por resultados visíveis, através de evocações, invocações e orações. Assim,


“O Oriente se baseia na realidade psíquica, isto é, na psique, enquanto condição única e fundamental da existência. […] Trata-se de um ponto de vista tipicamente introvertido, ao contrário do ponto de vista ocidental que é tipicamente extrovertido. […] A introversão é, se assim podemos nos exprimir, o estilo do Oriente, ou seja, uma atitude habitual e coletiva, ao passo que a extroversão é o estilo do Ocidente” (JUNG, 2011, p. 17-18).


Mesclar (sem critérios ou justificativas) aspectos espirituais orientais à espiritualidade do Ocidente, usando-se o argumento de que “tudo que é bom deve ser aproveitado”, é algo  nocivo ao pensamento do Homem ocidental: é um desserviço espiritual, tanto ao Oriente quanto ao Ocidente. A própria Psicologia (tão admirada e utilizada no Esoterismo Moderno) faz questão de enfatizar as diferenças de interesses e de raciocínio entre orientais e ocidentais, e por esse motivo fizemos questão de citar Jung (2011), uma vez que ele é considerado um dos baluartes da espiritualidade moderna.


Considerações Finais


 “Nem tudo que reluz é ouro”. Esse ditado popular expressa bem as diferenças existentes entre a espiritualidade moderna e a Sagrada Tradição Cristã: tratam-se de duas substâncias diferentes, que apesar de aparentemente terem uma mesma “consistência”, comungam de pressupostos completamente diferentes.


A Sagrada Tradição é o depósito da Fé: ela se expressa no Ocidente através da doutrina Cristã, guardada ao longo dos séculos pelo Catolicismo (Romano e Ortodoxo), assim como das interações mantidas entre a Sagrada Tradição Cristã e as tradições pré-cristãs presentes na história Ocidental (tradição pagã, tradição egípcia, tradição greco-romana e tradição judaica).


Discursos moralistas ou pseudo-conservadores que não comunguem dos ideais tradicionais da doutrina Cristã (como os discursos do Protestantismo) por si só já estão excluídos do corpo de ensinamentos espirituais que podem ser considerados tradicionais. Por isso, caro leitor, esperamos que a partir de agora você tenha compreendido que nem sempre aquilo que aparenta ser tradicional é realmente algo alinhado à Sagrada Tradição Cristã (ainda que propague um conservadorismo).


Da mesma forma, a rejeição da modernidade à Sagrada Tradição não é algo inesperado: trata-se pura e simplesmente de uma consequência natural da influência iluminista sobre o modo de vida da sociedade moderna. Assim, o Esoterismo Moderno também não é algo tradicional, e a espiritualidade moderna é apenas a materialização da visão espiritual iluminista sobre a modernidade, propondo uma espiritualidade fraca, misturada e sem consistência, como forma de se opor ou deturpar a Religião e a mensagem de Cristo.


A Sagrada Tradição Cristã é a transmissão da mensagem revelada pelo Altíssimo por meio de Jesus Cristo, homem perfeito e Deus perfeito. A verdade revelada por Deus não é ninguém senão Cristo: a manifestação física do Pai Eterno na história humana, comprovando que Deus está sempre junto ao Homem, e nunca abandona sua Criação.


Diante disso, é na Filosofia Católica que a Tradição Cristã foi resguardada e transmitida ao longo dos séculos no Ocidente. Foi a partir do Cristianismo que Deus preparou a humanidade para sua mais profunda revelação: a manifestação da divindade no plano físico.


REFERÊNCIAS


GUÉNON, René. A crise do mundo moderno. Instituto René Guénon de estudos Tradicionais – IRGET. São Paulo: 2017

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião oriental. Vozes. Petrópolis-RJ: 2011.

RIFFARD, Pierre. O Esoterismo: antologia do esoterismo ocidental. Ed. Mandarim. São Paulo: 1996.


NOTAS


Apesar de ter sua beleza e funcionalidade, a espiritualidade oriental (tão incentivada pelo Esoterismo Moderno) muitas vezes contradiz valores do homem ocidental e não se caracteriza como parte da Tradição Espiritual do Ocidente.


A Tradição Esotérica Ocidental não se alinha aos preceitos do método científico moderno, porque compartilha de valores e preocupações distintas.


O xamanismo é um dos pilares da Tradição Esotérica Ocidental, pregando um estilo de vida em comunhão com a natureza. Ele é um dos guardiões de valores espirituais tradicionais no Ocidente.


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