terça-feira, 2 de maio de 2023

A Astrologia e a Noção de Destino

A postura de dirigir o olhar não para o que se considera “científico” do ponto de vista atual, mas para tudo o que em alguma época foi proposto como científico, não exige que se faça a defesa da astrologia. Esta exposição não tem a pretensão de fazer uma avaliação de um pensamento muito antigo, mas apenas de levantar alguns registros de como ele se apresenta em alguns momentos da história. Tomar-se-á como fio condutor a noção de Destino, dando prosseguimento ao que Alexandre Koiré diz em seu Místicos, Espirituais e Alquimistas do século XVI alemão:

Quando se aborda o estudo de um pensamento que não é o nosso, o mais difícil – e o mais necessário – é (…) não tanto captar o que não se sabe e o que sabia o pensador em questão, quanto esquecer o que sabemos e o que cremos saber. (…) Às vezes é necessário não só esquecer verdades que se converteram em partes integrantes do nosso pensamento, como até mesmo, inclusive, adotar certos modos, certas categorias de raciocínio, ou ao menos certos princípios metafísicos, que para as pessoas de uma época pretérita eram bases de raciocínio e de busca tão válidas e também tão seguras como são para nós os princípios da física matemática e os dados da astronomia. Ao contrário dessa perspectiva, T. W. Adorno, em sua obra The Stars Down to Earth, defende que a distinção efetuada entre alquimia e química, astrologia e astronomia torna inconcebível pensar ainda hoje numa superstição como a astrologia. Será que as coisas são realmente assim?

A razão em Adorno é pensada dentro do paradigma indivíduo-liberdade e referida à totalidade social. Dessa maneira, fica embargada qualquer outra forma de pensar que não seja aquela que privilegia o indivíduo, que só pode se tornar um sujeito livre e crítico quando usa a razão para refletir sobre a totalidade social. Será que nenhuma outra leitura da vida social que pense o homem como parte de uma totalidade mais ampla abre espaço para que ele possa afirmar sua liberdade e ser indivíduo? Onde se pode olhar com desconfiança para Adorno é nessa impossibilidade de pensar além que seu pensamento instaura.

Não existe nenhuma intenção nas análises que o frankfurtiano faz do horóscopo em ver os movimentos ocultistas, aos quais pertence a astrologia, como objeto que possa ser investigado para além de seu uso instrumental – de modo institucionalizado e organizado. Em nenhum momento, a astrologia, vista do ponto de vista da indústria cultural e em suas analogias com o anti-semitismo, é pensada como algo que remeta a um “sistema de conhecimento” que poderia ser abordado ao lado de outros sistemas de representação da realidade, como se verá a seguir.

No horizonte da história do conhecimento pode-se observar que há diversas formas de pensamento político, religioso, mágico e outros que procuram refletir sobre questões intimamente ligadas à astrologia. Como, por exemplo, aquelas que se relacionam à natureza e suas leis, ao sentido e lugar que o homem ocupa no universo, à relação homem-cosmos, enfim, ao modo como o homem se comporta frente a um conjunto de forças que, em princípio, não são determinadas por ele. Entre estas podem ser vistas as que se encontram na origem dos grandes problemas humanos, como os que se expressam nos pares de opostos liberdade-necessidade, determinismo-livre-arbítrio, que constituem também o cerne das preocupações de Adorno. Uma noção chave que percorre todos esses sistemas de conhecimento é a de Destino, à qual se relacionam outros termos de suma importância para a história do pensamento ocidental, como Sorte, Acaso, Fortuna, Fatum, Fatalidade, Predestinação, Lei Natural, Providência Divina. Para melhor compreensão desse tema, expor-se-á a seguir um breve panorama da extensão histórica das questões e respostas que são dadas a essa interrogação milenar do ser humano.


No que diz respeito a uma abordagem propriamente histórica, que não é objeto deste estudo, deve-se observar que, no caso da astrologia, quando se lida com sua história, depara-se antes de tudo com o problema da literatura sobre o assunto. Quase não se encontra literatura boa disponível a respeito. Se o historiador é astrólogo, ele faz uma revelação gradativa do que considera ser a verdade, sem adotar o mínimo procedimento científico na abordagem do tema. Como o esforço de pesquisa para abarcar 3000 anos ou mais de história teria que ser imenso, é preciso pegar um ponto específico.

Esse é o caso, por exemplo, da tese de doutorado de Juliana Mesquita Hidalgo Ferreira (2005), intitulada As influências celestes e a Revolução Científica: a astrologia em debate na Inglaterra do século XVII. O retrato do problema documental encontra-se bem explicado na referência que faz do livro de S. Jim Tester, A history of western astrology, onde se fala de três categorias de livros sobre o assunto: “primeiro os de astrólogos ou simpatizantes, que são úteis para explicar como a astrologia funciona” (…), mas que são não-históricos e acríticos. “Em segundo lugar existem os que atacam a astrologia” (…): os do passado são úteis como fontes de informação, mas são tão acríticos e não-históricos como os primeiros. Em terceiro lugar vêm as histórias ou delineamentos populares que aumentam em número e não em qualidade. Após colocar a questão histórica da própria astrologia, a autora procura resgatar um período importante, o século XVII, para a compreensão da função social e cultural que a astrologia exerce e que não se reduz a uma superstição. Alguns questionamentos a esse respeito são tratados na conclusão deste artigo.


1) Astrologia : Destino, Moira e Providência


Desde os tempos chamados míticos, a preocupação com o destino sempre esteve associada ao cosmo ordenado, interligado, e, por extensão, à astrologia. A partir das primeiras cosmogonias e teogonias e da visão cosmológica desponta, na Grécia arcaica, o conceito de Moira, que se tornará presente em todo o mundo grego, como “porção”, “sorte” que cabe a cada um. Pela função da Moira nenhum indivíduo se constituía sem que a Totalidade Cósmica estivesse constituída em todas as suas partes. O duplo aspecto da Moira encontra-se já em Hesíodo: as Moiras são filhas da Noite e são filhas da união de Zeus e Thémis¹. No seu aspecto de Necessidade, as Moiras eram a encarnação de uma lei inexorável, à qual até os deuses estavam sujeitos, como é expresso em Ésquilo no seu Prometeu Prisioneiro:


Coro: Quem então da Necessidade é o timoneiro?

Prometeu: Moiras triformes e memoriosas Eríneas.

Coro: E mais fraco que essas é Zeus?

Prometeu: Não escaparia ao já dado destino.


(ÉSQUILO)

1 JAA TORRANO EXPLICA QUE COM ESSA DUPLA ORIGEM ELAS SÃO, DE UM LADO, O LIMITE POSITIVO E CONFIGURATIVO DE CADA SER HUMANO OU DIVINO, E, DE OUTRO, O LIMITE NEGATIVO, COERCITIVO. AFIRMAM TUDO O QUE UM SER É E PODE SER E NEGAM TUDO O QUE UM SER NÃO É E NÃO PODE SER. ENQUANTO É O PRÓPRIO SER DE CADA SER, É TAMBÉM PARA CADA SER TODAS AS COERÇÕES QUE PODE PADECER, OU SEJA, O QUE PROVÉM DE TUDO O QUE LHE É EXTERIOR E OUTRO. NESTE LOTE, PORÇÃO QUE CABE A CADA UM, COINCIDEM AFIRMAÇÃO E NEGAÇÃO, LIBERDADE E NECESSIDADE, ESPONTANEIDADE E COERÇÃO, IPSEIDADE E ALTERIDADE. (CF. HESÍODO. TEOGONIA, A ORIGEM DOS DEUSES. ESTUDO E TRADUÇÃO DE JAA TORRANO. SÃO PAULO, MASSAO OHNO – ROSWITHA KEMPF EDITORES, 1981, P. 97-98.).

Mas a astrologia não nasceu na Grécia. Sua história oficial mostra-a ligada originalmente aos progressos na observação da regularidade do movimento dos astros e à observância de ritos mágico-religiosos: astrologia e astronomia, ciência e magia não se dissociam. A “ciência” dos astros aparece em várias civilizações : na Caldéia, na Índia, na China, na América Latina. “Sua prática no Ocidente origina-se em um antigo corpo de conhecimentos iniciado pelos babilônios, desenvolvido pelos gregos e romanos e ampliado pelos árabes no início da Idade Média” , observa Keith Thomas.

No helenismo, uma concepção de mundo religiosa se desenvolvia por toda parte sob o signo da deusa Fortuna (Túkhé) e do fatalismo astral. Nessa época, a magia e a astrologia se popularizavam e atraíam certos filósofos, como os estóicos, que reconheciam a validade da astrologia. De imediato, a ideia de Fatalidade nos remete às noções estoicas de Heimarmenê (destino, lei necessária que rege as coisas) e Ekpyrosis (conflagração universal que ocorre quando os astros voltam a uma mesma posição do início, ocasionando uma destruição). O aspecto fatalista da concepção do destino, tal como a concebem os estoicos, se expressa sobremaneira na sua teoria da Ekpyrosis:

Os estoicos dizem que quando os planetas voltam ao mesmo signo, seja quanto à longitude seja quanto à latitude em que cada um estava no princípio, quando o universo se constituiu na origem, nesses períodos de tempo advém uma conflagração e uma destruição dos seres; e novamente o cosmo se refaz do princípio; e de novo, movendo-se os astros no mesmo modo, cada evento acontecido no precedente período outra vez se realiza, invariavelmente.

Se, por um lado, os estoicos davam um novo sentido ao destino determinado pelos astros, por outro, não se pode ignorar o fato de que, graças aos cálculos efetuados pelos babilônios, a leitura do mundo incluía sua divisão em períodos e crises dominados pelos planetas. Essa doutrina, segundo a qual tudo o que existe possui uma duração determinada pelos astros, bem como a técnica astrológica que a aplica desenvolvem-se a partir dos estudos dos babilônios sobre as revoluções astrais. Só que, com os estoicos, o homem descobre-se não apenas solidário, mas também determinado pelo ritmo dos astros.

A palavra Heimarmenê (destino) deriva do particípio passado de verbo meiromai (ter parte, ter por sorte), cuja raiz mer encontra-se em meros (parte) e possivelmente em Moirai (As Moiras, as Eríneas, as Parcas). Na filosofia estóica, contudo, não tem a mesma carga dramática que se encontra entre os grandes trágicos gregos, onde se mostra como uma força terrível e extra-mundana que pune os culpados por sua falta. Com o estoicismo, o destino é uma realidade natural, aparecendo como um nexus causarum, uma disposição imutável, cada coisa acompanhando cada outra de maneira inviolável na ordem do todo. É a “razão do mundo, ou a lei de todas as coisas do mundo regidas e governadas pela providência, ou a razão pela qual as coisas passadas foram, as presentes são e as futuras serão.” (Plutarco). Um Logos que é também um sopro vital e divino (pneuma), força que preside à organização de tudo. Do ponto de vista das coisas, essa ordem é Heimarmenê e do ponto de vista de Deus é Pronóia (Providência). “Zenão pensa que a lei natural é divina e que esta força se mantém como é necessário, governando e contendo os contrários.” (Cícero).

Em seu panteísmo monista, os estoicos identificam Destino, Providência, Razão com Deus, considerado como natureza (cosmos) e como natureza intrínseca operante nas coisas (logos). Dessa forma, Crisipo diz que a adivinhação é “a capacidade de conhecer, de ver e de explicar os sinais com que Deus se manifesta aos homens. O seu papel é o de revelar com antecedência as intenções dos deuses em relação aos homens, de saber como os poderemos satisfazer e tornar favoráveis.” (Cícero). A sabedoria humana consiste, pois, em tomar consciência dessa força cósmica (Destino, Providência) que existe em todas as coisas, aceitando a vida do homem, impassivelmente, como parte da ordem do mundo e ligada a ele pela “simpatia universal” que une os seres entre si, indiferente aos males, aspectos isolados do todo. A ordem do mundo, o movimento regular do céu e dos astros mostram-nos que tudo faz parte de um plano rigoroso: não há lugar nessa ordem para a espontaneidade ou o acaso. Mas, pelo fato de cumprir com o seu dever, obedecer à lei da natureza, executando a vontade divina, o sábio prova sua liberdade e transcende o determinismo. Em suma, ao praticar a sabedoria, o homem realiza a identidade com o divino e assume livremente seu destino.


O destino, para os estoicos, não deve ser confundido com a Fortuna. Embora ambos se refiram às ações humanas e ao tempo, é preciso distingui-los. Se no destino a sequência dos acontecimentos é racional e necessária, devendo o sábio agir de acordo com as causas naturais, na Fortuna os acontecimentos são contingentes e produzidos pelo encontro de causas secundárias e fracas que se aproveitam das primárias. “Enquanto querer o destino é a ação própria do homem virtuoso que conhece as causas necessárias de sua ação e das ações da natureza, a Fortuna é o lugar da pura paixão”.


A imagem cristalizada da Fortuna mostra-a “representada por uma jovem belíssima, de olhos vendados, que traz numa das mãos o globo e na outra uma cornucópia; tem na cintura um cinto com os signos do zodíaco; vem com um manto agitado pelo vento; tem asas nos pés e pisa sobre a roda que faz girar com os pés”. Essas asas indicam que a fortuna age porque tem a seu favor o tempo – que não é o tempo nem do destino, nem da providência, nem da natureza, mas o tempo efêmero de que se vale: o kairós, o instante oportuno, o momento em que se deve saber agarrar a oportunidade, a iniciativa ética que dobra as paixões. “Graças à liberdade da vontade, graças à racionalidade de sua natureza, o agente virtuoso é aquele que delibera no momento oportuno considerando os efeitos de sua ação, de maneira a não agir sob o impulso sedutor da fortuna que o fará, logo adiante, pagar o preço da imprudência”.


Na época helenística, sobretudo durante o Império Romano, paralelamente às novas filosofias da antiguidade clássica – o estoicismo, o epicurismo, o ceticismo e a doutrina dos cínicos –, novas criações religiosas impõem-se em todas as cidades que, após as conquistas de Alexandre, desenvolvem-se sob o signo do sincretismo greco-oriental, ilustrando a poderosa reação espiritual do Oriente vencido. A promessa de salvação constituirá a principal novidade e a característica mais marcante dessas religiões. “Poder-se-ia dizer que as promessas de salvação forcejam por exorcizar o prestígio da deusa Túkhé (a Sorte; latim, Fortuna). Caprichosa e imprevisível, Túkhé traz, indiferentemente, felicidade ou má sorte; manifesta-se como Anánkê (necessidade) ou Heimarménê (destino) (…)” (Eliade), e encontra-se associada ao fatalismo astral.


As respostas que as religiões de salvação procuram dar apoiam-se na convicção de que certos seres divinos são superiores ao Destino. “Nos mistérios de Isis, a deusa assegura ao iniciado que pode prolongar-lhe a vida além do termo fixado pelo destino. Nos Louvores de Isis e Osíris, a deusa proclama: “Conquistei o Destino e o Destino me obedece”. De mais a mais, Túkhé torna-se atributo de Ísis.” (Eliade). Se antes o próprio Zeus era subjugado pelo Destino, agora, numa nova etapa, Ísis conquista o Destino, impondo-lhe limites. Como os deuses, os iniciados também não serão mais determinados pelo Destino.


2) A Solução do Cristianismo: Cisão Alma-Corpo

Dentro desse contexto cabe perguntar qual seria a solução do cristianismo para o homem que quer sair da alternância da boa ou má sorte. Não será, por certo, a via astrológica. Consta que Santo Agostinho, no século IV, tinha um bom conhecimento dos astros, chegando a ser, quando jovem, um adepto fervoroso da astrologia, antes mesmo da sedução pela cosmologia maniqueísta. Após sua conversão se opôs fervorosamente a ela. Para ele, aparentemente a astrologia negava o livre-arbítrio e poderia levar os homens a se resignarem com o destino em vez de lutarem pela graça. Os astrólogos dispõem de uma arte que lhes permite calcular o curso do tempo no firmamento, mas não têm condição de predizer acontecimentos relativos a decisões e escolhas do homem. A racionalidade da maravilhosa ordem que ele percebe no firmamento é prova da força criadora de Deus e o acaso que observa nos fatos imprevistos está escondido no abismo de seu incorruptível juízo, sendo acessível a cada um segundo os merecimentos ocultos da sua alma. (Confissões, VII, 6, 10).


Renato Janine Ribeiro mostra que foi Boécio, filósofo cristão do século VI, quem tornou o tema da Fortuna, constante em suas reflexões, um topos do pensamento ocidental. Na sua Consolação da Filosofia, segunda obra mais lida na Idade Média (depois da Vulgata), Boécio mostra que “a fortuna está associada às tribulações de quem se meteu (como ele), e se alienou, na vita activa” (Janine). Para se resignar ao desfecho de uma morte cruel, escreveu, na cadeia, a Consolação. “Nesta obra se vai consolidar, em antítese à Fortuna, o papel da Consolatio, que – identificada por Boécio à filosofia – tentará aliviar de seu desespero as vítimas da fortuna, ensinando-lhes que uma vida recatada, contemplativa, seria menos infeliz”. A solução de Boécio tem como precondição a introdução, trazida pelo cristianismo, de um elemento novo: a serenidade de espírito, que só a fé pode dar, como “uma boa via para se salvar a alma”. Assim, não recorrerá à virtude para escapar da fortuna, pois, como esta não incide sobre o merecimento humano, desempenha um papel de “agente indireto da Providência”.


Mais uma vez, podemos notar aqui ecos da influência da ideia de necessidade (Heimarmanê) dos estoicos, com as noções que lhe são inerentes de Destino e Providência, fundamento de todas as elaborações teológicas a partir do neoplatonismo. Embora este defenda a astrologia, Plotino afirma que os astros não exercem influência sobre o plano terrestre, mas apenas anunciam o que a providência decide.


De outra parte, não se pode falar de solução cristã sem retomar Platão. São os ecos da doutrina platônica que se podem ouvir, não só nos primeiros padres da Igreja, como também em Boécio, modelo exemplar de uma concepção do destino que irá perdurar por toda a Idade Média. A cisão platônica entre o mundo sensível e o mundo inteligível, fazendo o poder da Moira recair apenas sobre o mundo sensível, coincide, neste ponto, com a cristã. Tanto para Platão quanto para o cristianismo as tribulações a que Boécio se refere, ligadas à vida ativa e, portanto, ao mundo dos sentidos, constituem o campo específico de atuação da Moira. Sobre a realidade inteligível, ou seja, do espírito, a Moira não tem domínio. O livre-arbítrio só incide no espírito – o corpo está repleto de Destino.


Os estudos realizados por Liz Greene sobre a Moira trazem novas luzes sobre o problema da cisão entre corpo e espírito, principalmente quando essa separação se relaciona à maneira essencialmente dualista de lidar com a questão do destino. A mesma cisão encontra-se na noção de Karma do pensamento oriental. A concepção platônica de um mundo sensível, corporal, como um reflexo imperfeito do mundo inteligível, aproxima-se da concepção oriental do homem preso ao mundo de maya durante muitas encarnações. “Ele não pode alterar o Karma, mas pode “diluí-lo” – deixar de se identificar com seu corpo sofredor – e influenciar a predestinação das encarnações futuras, libertando seu espírito, aceitando os golpes do destino com tranquilo desprendimento e centrando-se em sua unidade interior com o divino”.


No século XIII, época em que a astrologia é altamente cotada, acreditava-se que as distintas partes do corpo humano encontram-se vinculadas de alguma forma ao macrocosmo, de tal modo que os “humores” humanos são determinados pela posição dos corpos celestes. Santo Tomás de Aquino aceitava a influência dos astros, mas acreditava que esta incidia apenas no corpo. Sobre a realidade inteligível, ou seja, o espírito, o destino não tem domínio.


3) Marsilio Ficino: Magia, Imaginação e Kairós

A ruptura com essa concepção do destino se dará apenas no Quatrocento, com Marsilio Ficino, tradutor, para o latim, do Corpus Hermeticum. Aliás, esse foi o primeiro texto grego que Ficino traduziu para o latim, fato que Mircea Eliade considera altamente significativo e que é frequentemente ignorado pelos historiadores. Cosimo Medici comprara o texto e pedira a Ficino que o traduzisse imediatamente, antes das traduções de Platão e Plotino, das quais estava também encarregado. Segundo Eliade, Cosimo e Ficino estavam entusiasmados com a descoberta de uma revelação primordial e não tinham motivo para duvidar de que a egípcia, inspiradora de Pitágoras, Platão e dos Magos Persas, fosse a mais antiga acessível, precedendo a de Moisés. O interesse pelo Egito e o hermetismo, que obcecou, a partir da tradução de Ficino, inúmeros teólogos e filósofos durante quase dois séculos, revela “uma profunda insatisfação em relação à teologia medieval e às concepções medievais do homem e do universo; uma reação contra aquilo a que podemos chamar de cristianismo “provincial”, isto é, puramente ocidental, um anseio por uma religião universalista, trans-histórica, mítica.” (Eliade).


Designam-se por Corpus Hermeticum os dois livros atribuídos ao lendário Hermes Trimegisto (Três vezes Grande): o Poimandres (Pastor do homem) e o Asclépio (livro iniciático). Os platônicos da Renascença consideravam que estes escritos herméticos fossem remanescentes da biblioteca de Thoth (o Hermes egípcio), contendo a ciência sagrada dos egípcios. Pesquisas contemporâneas, feitas pelo erudito grego Isaac Casaubon, em 1961, situando, com bases filológicas, os textos do Corpus no século II ou III d. C. , levam à conclusão de que eles estavam diante não da sabedoria egípcia muito anterior a Platão, mas do “substrato pagão do primitivo cristianismo, aquela religião fortemente tingida de magia e influências orientais, versão gnóstica da filosofia grega e refúgio de fatigados pagãos que buscavam respostas para a vida, diferentes das oferecidas pelos primitivos cristãos”.


Ainda que as referências dessas obras fossem moldadas num quadro pseudo-egípcio, acabaram por ser consideradas por muitos estudiosos como um repositório de elementos egípcios genuínos. Mircea Eliade completa essas informações de Yates dizendo que essa literatura hermetista com pretensões de ser egípcia baseia-se em conhecimentos do Egito ptolomaico, cuja realidade não deve ser desprezada.


Voltando a Marsilio Ficino, pode-se dizer, com Liz Greene, que inicialmente ele era mais um filósofo neoplatônico tentando colocar sua mente acima das forças do Destino. Contudo, ao longo de sua vida, sua visão se alterou, principalmente após seu contato com os textos mágicos e alquímicos, não só do Corpus, como de outras obras gregas, filosóficas e astrológicas, que tinham sido enterradas em Constantinopla após o saque de Roma pelos godos. “Por causa dele, também mudou a visão predominante no Renascimento, abrindo aos séculos futuros a possibilidade de o homem ter uma participação ativa no cosmo de Deus e, portanto, fazer uma tentativa válida de estabelecer uma relação diferente com o destino”. Ficino, segundo Liz Greene, deu início, sozinho, à Renascença florentina, ao traduzir Platão para o latim e possibilitar, pela primeira vez desde o início da era cristã, que o Ocidente, impregnado de Aristóteles, tivesse acesso aos textos neoplatônicos. Não importa que o Corpus Hermeticum fosse compilação de obras de vários autores num período de três séculos. “Ficino acreditava em Hermes, e em pouco tempo todo o mundo também acreditava”.


No Corpus, além da descrição das doutrinas platônicas, hierarquias astrológicas e de considerações sobre o Destino e a Necessidade, “existe uma declaração de que é possível transformar o destino pela magia”. (Greene). Ora, essa era uma crença alquímica, e a magia do Corpus é pura alquimia. A Grande Obra realiza-se sobre a essência dos metais, libertada de Moira. Em estreita relação com a astrologia, esse trabalho depende de um acordo com os céus. A teoria alquimista afirma que nem sempre os processos químicos ocorrem sozinhos, mas apenas no momento determinado astrologicamente. Assim, ao trabalhar com a prata, a Lua, planeta relacionado a este metal, precisa estar em uma dada posição, e assim com todos os metais e suas respectivas correspondências aos planetas. A alquimia, portanto, depende de Kairós, que “nessa época e nesse contexto significa tempo astrologicamente certo”. (Von Franz).


Interessa ressaltar que para Ficino a magia alquímica aplica-se não apenas aos metais, mas também ao homem. Com essa concepção inaugurou uma nova astrologia, “e às vezes se supõe erroneamente que ele foi um opositor da astrologia por causa de suas cartas e escritos mais ou menos virulentos contra seus colegas astrólogos”. (Greene). Na verdade ele achava que a astrologia, aplicada como prognosticadora do destino, estava sendo aviltada. Segundo ponderava, a função da astrologia deveria ser outra. Se para os astrólogos medievais um mau trânsito significava um golpe do destino, para ele deveria ser visto como Kairós, o momento apropriado para se estabelecer uma nova relação com o destino através da magia natural.


Eis aí a Moira desafiada de uma forma como nunca tinha sido antes. Para a mente pagã, “teria sido a pior espécie de hybris” (Greene). Para Ficino, Hermes estava revelando, no Asclépio, que o homem é um magnum miraculum, criatura digna de adoração e de honra, pois partilha da natureza de Deus como se ele próprio fosse Deus. Esse fato lhe outorgava o direito de mexer no cosmo, pois participava tanto da natureza de Deus quanto da Moira. O homem já não é mais receptáculo das forças do destino, nem um ser inferior contaminado pelo Pecado Original, e nem será mais levado a fugir da carne através da redenção pelo espírito. Co-criador do cosmo, é agora capaz de reunificar Deus e Moira, espírito e corpo, para que não mais se dividam em dois. Fim do dualismo. De platônico que era, Ficino tornou-se hermético. Com isso conseguiu não ofender nem a Moira, nem a Igreja, nem a astrologia, embora não tivesse sido essa a sua intenção.


A chave para realizar o trabalho de unificar corpo e espírito era a “imaginação”, a transformação da natureza do homem através do intercâmbio com o mundo das imagens, o qual tinha o poder de alterar os efeitos do destino planetário no plano físico (os planetas não são apenas corpos físicos no espaço e nem apenas metais no interior da própria terra, mas também imagens dentro do mundo psíquico do homem). Esse intercâmbio, contudo, deveria ocorrer no momento astrologicamente propício – o Kairós.²


2 EUGÉNIO GARIN, EM SEU O ZODÍACO DA VIDA, INSERE ESTE TEMA NA POLÊMICA ENVOLVENDO OS REPRESENTANTES DA MAGIA NATURAL HERMÉTICA (MARSILIO FICINO, CORNELIUS AGRIPA E PIETRO POMPONAZZI), A MAGIA CABALÍSTICA (PICO DELLA MIRANDOLA) E OS HUMANISTAS (PETRARCA). FOGE AO NOSSO OBJETIVO ENTRAR EM DETALHES SOBRE ESTA POLÊMICA EXTREMAMENTE COMPLEXA, QUE SE DESENVOLVE EM MEIO A INÚMERAS CONTRADIÇÕES E EQUÍVOCOS DE TODA ORDEM, SEM QUE SEJA POSSÍVEL DELIMITAR FRONTEIRAS PRECISAS ENTRE VISÕES DE MUNDO APARENTEMENTE OPOSTAS E CONTRASTANTES.

Uma incursão sobre a ideia de Destino no Renascimento não poderia desconhecer o pensamento de Maquiavel sobre o assunto. Em um texto citado por Janine – uma carta de 1505 a Soderini – Maquiavel usa uma linguagem astrológica para exprimir seu pensamento. Se cada um fosse sábio, diz Maquiavel, para “acomodar-se aos tempos e à ordem das coisas”, conforme o que se pedisse dele – prudência ou audácia –, a “ideia de que o homem sábio teria o poder de governar as estrelas e o destino se converteria genuinamente em realidade.” Aqui, diz Janine, Maquiavel retoma o velho adágio “o sábio dominará as estrelas” (vir sapiens dominabitur astra), que designa o momento operativo do trabalho astrológico. Ou seja, pela metáfora astrológica, insinua a possibilidade de o homem adequar sua natureza aos tempos.


A astrologia, diz Janine, pode permitir uma melhor compreensão da fortuna: além de ser o terreno de eleição dessa ideia, é uma “forma de pensamento das mais influentes na passagem do Medievo para a Renascença.” (…) “Ora, na medida em que permita prever os acontecimentos da roda da fortuna”, esta deixa de ser imprevista. “Neste caso, pois, se abriria espaço para uma virtù de maior eficácia do que a descrita por Maquiavel, uma que desse conta mais do que a metade dos acontecimentos, abrangendo, quem sabe, tudo o que ocorre.”


4) Ontem e Hoje: Do Declínio à Expansão

Essa pretensão da astrologia de abarcar todas as situações do real não tinha nada de esotérico nos séculos XVI e XVII: não representava uma doutrina restrita a um grupo fechado. Keith Thomas afirma que, nesta época, “(…) a astrologia fazia parte da imagem que o homem culto tinha do universo e de seu funcionamento (…) era geralmente aceito que os quatro elementos que constituíam a região sublunar – terra, água, fogo e ar – eram mantidos no seu estado de incessante permuta pelos movimentos dos corpos celestiais (…) era assim menos uma disciplina do que uma imagem do mundo aceita por todos. Ela era necessária para o entendimento da fisiologia e, portanto, da medicina. Ensinava a influência das estrelas sobre as plantas e os minerais e, portanto, moldava a botânica e a metalurgia”, constituindo “um aspecto essencial da estrutura intelectual em que os homens eram educados”.


Sua difusão, graças à invenção da imprensa, se fazia por meio de um gênero literário particular: os almanaques – os primeiros grandes sucessos mercadológicos da história da imprensa –, que difundiam seus conhecimentos. O prestígio da astrologia declinou na segunda metade do século XVII, quando se separa da astronomia e se cristaliza num sistema isolado.


À morte de Morin de Villefranche, em 1659, professor de matemática do Collège de France e último astrólogo oficial, conjugam-se as ofensivas racionalista e católica, que empurram a astrologia para fora da sociedade religiosa e erudita. No século XVIII, desenvolvem-se as sociedades secretas (particularmente a franco-maçonaria e a rosa-cruz) que procuram reabilitar a tradição astrológica erudita. Clandestina, ela passa a ser poderosamente reprimida, principalmente na França.


O romantismo dá nova vida ao ocultismo: a astrologia penetra no mundo dos poetas, “sensíveis às correspondências entre a vida interior e o cosmos, a alma e a natureza”. (Petrossian). No final do século XIX, há um novo renascimento das ciências ocultas. “E, coisa paradoxal, é no século XIX, em que triunfa um conceito racionalista e cientista do mundo, que renasce o espiritismo, o magnetismo, a quiromancia, a astrologia.” No início do século XX a astrologia procura constituir-se como científica, com o auxílio de estatísticas e do cálculo de probabilidades. A partir de 1930, sai das portas fechadas de consultórios para ganhar a grande imprensa. Começa a se desenvolver a astrologia de massa.


Investigado em seus próprios termos, não se pode dizer que esse sistema de conhecimento seja uma superstição que tenha permanecido enquanto sombra da luz da razão que Adorno defende, mas como um pensamento jogado na sombra pelo próprio domínio dessa mesma racionalidade técnica que não lhe permite ser reconhecido como tal. Como um verdadeiro “retorno do recalcado”, a astrologia hoje invadiu a imprensa escrita, o rádio, a televisão, a internet, o romance, a literatura e se espalha por inúmeros periódicos especializados. A julgar pela aparência, com certeza ocupa o primeiro lugar no mercado dos produtos adivinhatórios.


Mas, ao lado da astrologia de massa, existe – e sempre existiu – a astrologia erudita que, segundo Philipe Defrance, é hoje inspirada em duas grandes correntes que exprimem suas aspirações contemporâneas: a que deseja elevá-la à dignidade da ciência e a que a considera uma sabedoria que tem em si as verdades perdidas pela ciência. A primeira permanece um sonho: seus postulados são inverificáveis e as conclusões que tira deles são contraditórias. A segunda é a astrologia iniciática, que se caracteriza antes de mais nada por uma procura individual: “não é um saber que se procura possuir”, mas “um trampolim, ascese que conduz à mutação global do saber e do comportamento.” Nessa linha, é significativa a contribuição que C. G. Jung deu à astrologia atual, ao aplicar a noção de sincronicidade às suas explicações das artes divinatórias – astrologia, tarô, I Ching. Na prática, é difícil separar essas duas correntes, daí as inúmeras divergências teóricas que opõem os astrólogos e os subdividem em tendências e sub-tendências. Tomadas em conjunto, as várias explicações são antitéticas: se é sagrada, seu código não pode ser medido estatisticamente, se é simbólica, não pode ser explicada em termos magnéticos. A esse respeito, comenta Olavo de Carvalho:


Por exemplo, alguns definem a astrologia como o estudo das “influências astrais” (entendidas como radiações energéticas), outros como estudo das puras “coincidências sincrônicas”; alguns veem nos astros as causas de nossos comportamentos, outros como a projeção do nosso psiquismo individual ou coletivo. Como supor que exista alguma unidade numa ciência que define seu objeto de forma tão variada?


Contudo, a astrologia é capaz de apresentar uma visão bastante coerente e unitária do mundo, e essa coerência não deve ser buscada em alguma de suas várias tendências, mas em outro lugar: na estrutura mesma de seu pensamento, que permanece inalterável em todas as versões.


5) O Sistema Astro-Lógico

Tentemos, de maneira sucinta, apresentar os princípios gerais que caracterizam a estrutura do pensamento astrológico – seu modo interno de organização que define sua própria natureza enquanto forma de conhecimento. Consideramos que não é possível entender as mensagens horoscópicas analisadas por Adorno, isolando-as, como ele faz, do sistema de conhecimento em que elas se apoiam.


Sem a pretensão de inseri-la no quadro de suas coordenadas originárias, que faz parte de um corpo vasto de conhecimentos metafísicos, teológicos e cosmológicos, podemos sintetizar o que é essa estrutura do sistema astrológico a partir dos estudos de André Barbault e da representação que Edgar Morin e Phiplipe Defrance fazem dele como um sistema analógico.³ Pode-se entender esse sistema a partir de seus dois postulados básicos que fundamentam e justificam a interpretação das configurações astrais. O primeiro propõe que o microcosmo humano exprime analogicamente o macrocosmo cósmico.


3 OS AUTORES NÃO SE PREOCUPAM EM DEFINIR EM QUE SENTIDO USAM O TERMO “ANALÓGICO”. SEGUNDO OLAVO DE CARVALHO, HÁ MUITOS EQUÍVOCOS SOBRE O QUE SEJA O RACIOCÍNIO ANALÓGICO. MUITOS AUTORES SUPÕEM QUE SE TRATA DE SEMELHANÇA DE FORMAS, ENQUANTO OUTROS, COMO GASTON BACHELARD, SUPÕEM QUE SEJA UMA FORMA POÉTICA DE ASSIMILAÇÃO DA REALIDADE QUE SE DISTINGUE RADICALMENTE DA APREENSÃO LÓGICA. MUITOS ASTRÓLOGOS, POR SUA VEZ, USAM E ABUSAM DA FAMOSA “LEI DA ANALOGIA” PARA JUSTIFICAR SUA ARTE, MAS ACABAM ESTABELECENDO CORRESPONDÊNCIAS ENTRE AS CONFIGURAÇÕES CELESTES E OS EVENTOS DA VIDA INDIVIDUAL DE MANEIRA DIRETA E ACHATADA, SEM AS ATENUAÇÕES E MEDIAÇÕES QUE EXISTEM ENTRE ESTES DOIS PLANOS. DE ACORDO COM CARVALHO, “O QUE ESTABELECE UMA ANALOGIA ENTRE DOIS ENTES… É O FATO DE QUE EMANAM DE UM MESMO PRINCÍPIO, QUE CADA QUAL REPRESENTA SIMBOLICAMENTE A SEU PRÓPRIO MODO E NÍVEL DE SER, E QUE, CONTENDO EM SI UM E OUTRO, É FORÇOSAMENTE SUPERIOR A AMBOS”. (OLAVO DE CARVALHO, “QUESTÕES DE SIMBOLISMO ASTROLÓGICO”). PARECE-NOS SER NESTE SENTIDO QUE MORIN E DEFRANCE COMPREENDEM O QUE SEJA ANALOGIA.

Esta astro-lógica é ainda por cima uma ana-lógica. Move-se não num universo constituído por objetos em sentido físico, mas numa realidade cósmica viva, no seio da qual está englobado o homem. A astrologia não postula uma simples influência dos astros na vida humana (…) supõe que o universo é um microcosmo em relação ao macrocosmo estelar, quer dizer analogicamente ligado a ele. Os símbolos que exprimem os planetas ou o zodíaco não são sinais arbitrários (…) Efetuam a ligação analógica entre o microcosmo humano e o macrocosmo. (Morin)


A concepção micromacrocósmica é arcaica, “no sentido em que é o primeiro conceito unitário e coerente do universo que emerge no homem, e no sentido em que todo o espírito humano a tem, mais ou menos virtualmente, mais ou menos profundamente, em si”. (Morin). A reciprocidade analógica entre ambos os planos permite rejeitar a ideia de causalidade. Como a define André Barbault, “a astrologia não trata dos corpos celestes, mensuráveis e contáveis na realidade, mas de uma ordem simbólica. Ela é uma linguagem em que o céu é o significante e o indivíduo o significado: a astrologia trata precisamente da união do significado e do significante no plano simbólico. Por isso os astros não determinam o que é o indivíduo, mas exprimem-no”. Para essa astrologia simbólica não existe a necessidade mecânica da ação física ou da relação causal, mas o conhecimento das correspondências universais.


Se há essa correspondência micromacrocósmica, o elo que une ambos se estabelece por meio de “modalidades secretas, equivalências sutis, que a astrologia se atribui a missão de desvendar.” (Defrance). É este o segundo postulado da astrologia, e que pode ser expresso, segundo as palavras de Robert Amadou, da seguinte forma: “(ela se baseia na) unidade do cosmos e na interdependência das partes deste vasto conjunto, concebidas e percebidas de modo analógico.” Ou, como diz o próprio André Barbault: “Neste mundo em que existe uma harmonia pré-estabelecida, há um acordo sinfônico que liga os homens e as coisas.” Os dados astronômicos – os movimentos dos planetas, a trajetória do Sol – são sustentáculos materiais concretos dessa visão cosmológica, em que o indivíduo, fragmento do Todo, obedece às mesmas leis e é perpassado pelas mesmas forças do universo. É disso, comenta ainda Barbault, que Paracelso quer nos convencer:


Compreendam, por fim, que o astro superior e o astro inferior (dentro de cada um) são uma mesma coisa indivisível. É o céu exterior que mostra o caminho para o céu interior (…) O homem possui um céu que lhe é próprio, que é como aquele que existe fora dele e que possui a mesma constelação. É por isso que o homem está submetido ao tempo: não pelo céu exterior, mas pelo céu interior.


Se é a mesma vida que circula no microcosmo e no macrocosmo – “que já não são duas ordens de grandeza”, mas “eixos infinitos em redor dos quais se organiza e se decifra o universo inteiro” (Defrance) – existe entre estes dois mundos um sincronismo perfeito, “e é por isso que as coisas se desenvolvem paralelamente na terra e no céu.” Ou seja, ambos são manifestações das mesmas energias que circulam no cosmos. “Partindo dessa noção de harmonia entre o indivíduo e o mundo, um e outro podem ser confrontados, comparados a uma hora e em um lugar determinados: o horóscopo não é outra coisa que o algoritmo e a matriz dessa relação”.


“Cartografia do destino”, “mapa astral”, “tema natal”, “mapa do céu”, o horóscopo (do grego hora + skopein = ver a hora do nascimento) é um levantamento que se faz da situação de vários planetas, a partir de conhecimentos astronômicos, em determinado local, dia e hora. Pode se referir a pessoas, países, eleições políticas, convulsões sociais, acontecimentos singulares, como uma viagem, etc. As “previsões” ou “leituras” são apoiadas na concepção cíclica do tempo – na trajetória dos planetas, que passam por diversos pontos do zodíaco com intervalos regulares. Nesse sentido, vai de encontro à lei do eterno retorno, do eterno recomeçar.


Cada tema natal tem dez planetas, doze signos do zodíaco e doze casas, ou setores. A inter-relação entre esses elementos e a situação dos planetas em relação uns aos outros (os “aspectos” que formam uns com os outros) permite traduzir os símbolos carregados de muitos significados. A interpretação se faz por meio de um esclarecimento recíproco da parte pelo todo e do todo pela parte. A maneira como se dispõem os planetas num tema, sua dispersão no céu zodiacal são outros dentre os numerosos índices que se leva em conta na interpretação: “um jogo de construção – jogo de significações de infinitas possibilidades.” (Defrance). Segundo informa Siegfried Böhringer, o astrólogo tem, à sua disposição, pelo menos, 800 unidades combinatórias – outros astrólogos apontam mais de mil -, e por isso precisa adotar critérios de seleção e estabelecer prioridades, em geral de um mestre ou de uma escola. O horóscopo, tal como passou a ser divulgado pela imprensa – o horóscopo de jornal, de rádio, de televisão – leva em conta apenas a data do nascimento, ou seja, os signos zodiacais, determinados pela posição do Sol.4


4 A ASTROLOGIA DE MASSA NÃO PODE FORNECER UM TEMA NATAL INDIVIDUAL. PARA SUPERAR ESTA LACUNA E RESPONDER À QUESTÃO DO INDIVÍDUO SINGULAR, PROCURA INDIVIDUALIZAR AO MÁXIMO O HORÓSCOPO “DIVERSIFICANDO O DIAGNÓSTICO QUASE AO EXTREMO, GRAÇAS AO COMPUTADOR.” (CLAUDE FISCHLER, “A ASTROLOGIA DE MASSA”, IN: EDGAR MORIN E OUTROS, O RETORNO DOS ASTRÓLOGOS, P. 54).

“A astrologia é uma prodigiosa máquina de fazer sentido.” Concilia- se com todos os graus de crença ou doutrinas. Sua prática nunca é conclusiva e nenhuma interpretação esgota a sua totalidade de significações. Talvez isso possa explicar um pouco a sua influência, maleabilidade e permanência como um fato cultural nas mais diversas épocas e nos mais diversos grupos sociais. (Defrance). Devemos nos envergonhar dessa “filosofia primitiva”? – pergunta Barbault – e considerá-la apenas como um engodo? Ou devemos tentar ver o que nela há de fundamental, recalcado pela concepção de mundo científico-positivista? Não é esse reprimido, quase subterrâneo, que volta em seus usuários, aparentemente desinteressados nos postulados que fundamentam “esta grande senhora extraordinariamente bela”, como diz André Breton? (Defrance). Expulsa da consciência, ela ressurge, não necessariamente com tendências fascistas, como sugere Adorno, mas como uma luz intermitente que se acende por ocasião de uma crise, “sempre que a realidade parece se encher subitamente de sinais, de significações, de coincidências.” (Petrossian). Parafraseando Defrance, a astrologia, assim interrogada, interroga o nosso próprio sistema mental e a nossa própria civilização.


Simbolismo e analogia estão, de fato, enraizados no anthropos: grande parte de nossa vida continua a ser regida por eles. O recalcamento feito pela razão foi parcial. Descobrir seu verdadeiro estatuto, avaliar sua importância, a sua influência, viria talvez a modificar a imagem que a “razão” julgou poder dar do homem.


Algumas Considerações

No decorrer dos séculos a astrologia teve, em vários períodos, função social importante e aceitação por muitos indivíduos de alta posição e importância intelectual, mas, em contrapartida, sempre foi também questionada. Há uma longa tradição de questionamentos nessa área. A sua aceitação por círculos influentes viria a mudar apenas no século XVII, quando se nota um declínio de sua influência no meio acadêmico. Seria de se esperar que a motivação de seu declínio no meio acadêmico fosse a revolução científica que se desenrola nesse século. A tese de Ferreira aponta um outro caminho, uma direção, procurando mostrar, por meio de ampla historiografia da época, que os questionamentos feitos à astrologia nesse período continuaram a ser os tradicionais e não guardavam ligação estreita com as novas descobertas científicas.


Eugénio Garin mostra em seu livro O Zodíaco da Vida – a Polêmica sobre a Astrologia do Século XIV ao Século XVI que a batalha em que se envolveu a astrologia nesse período é algo bem complexo. Ele afirma:


Astrologia e religião, astrologia e política, astrologia e propaganda, mas também astrologia e medicina, astrologia e ciência: uma filosofia da história, uma concepção das realidades, um naturalismo fatalista, um culto astral – a astrologia era tudo isto, e mais ainda… Exatamente por isso é de refutar, naturalmente, a tese, apresentada verdadeiramente como um lugar-comum, de uma possível nítida separação, na época do Renascimento, entre astronomia e astrologia.


Garin observa que o nascimento da astronomia coincide com o renascer da astrologia. Os astrônomos “modernos”, Copérnico e Kepler, eram também astrólogos e neles se matizavam temas da nova ciência, do hermetismo e da magia. As duas profissões não se distinguem bem, pelo menos até o século XVII. Newton, por exemplo, dedicou parte de seu tempo ao estudo da astrologia e era um ardoroso pesquisador da alquimia.


É preciso lembrar essa origem da astronomia no interior da astrologia para pôr fim à divisão radical entre o conhecimento científico e o mágico, concedendo verdade a um e falsidade ao outro. Parece ser essa concepção de ciência identificada com a noção de verdade que Adorno encampa ao condenar a astrologia como superstição.


O fosso entre magos e cientistas é estabelecido com a ofensiva racionalista da Academia de Ciência fundada por Colbert em 1666 que proíbe a prática da astrologia, e com o desenvolvimento do método científico que determinou o que é racionalidade e o que é superstição. Um decreto do rei de 1682 proíbe a publicação de almanaques astrológicos (sem êxito) e em 1676 um edito manda prender os loucos. Tudo o que é contra a razão e se afasta das normas estabelecidas é jogado à margem da sociedade: a loucura, antes sagrada, torna-se insensatez, e a astrologia, desconsiderada nos meios cultos, entra para “o universo subterrâneo das ciências ocultas.” (Petrossian).


De outra parte, essa caracterização da astrologia só pode ser feita a partir de uma perspectiva evolucionista, o que a torna objeto de investigação mais de historiadores. As reflexões sobre o assunto, como aparecem nos estudos tanto de Durkheim quanto de Mauss, descrevem pela primeira vez a astrologia como um sistema classificatório, atribuindo-lhe “um lugar intermediário na escala evolutiva, que teria seu extremo inferior nas sociedades australianas totêmicas e terminaria nas classificações científicas modernas.” (Vilhena). Essas observações evidenciam que, por mais que Adorno insista nas imbricações dialéticas entre mito e ciência – isso levaria a supor a não separação radical entre ambos – não ultrapassa a concepção evolucionista do mito, à qual liga a astrologia, desqualificada por ele como superstição. Dessa perspectiva, como entender a presença, no próprio interior do pensamento filosófico, de uma outra racionalidade, que não é essa que triunfou e, por isso mesmo, não ligada à concepção de razão defendida por ele em seu aspecto emancipador?


Nas passagens sobre as ciências que estão surgindo, a química e a astronomia, e sobre seus antepassados, a alquimia e a astrologia, Ferreira mostra documentalmente que as críticas a estas últimas não chegam a ser severas, do ponto de vista estritamente racionalista. Não se trata de considerar essas “ciências”, aos olhos do próprio século XVII, como algo horrível do qual precisaríamos nos livrar no novo estágio da ciência.


Pode-se então perguntar: será que existia na cabeça de algum filósofo, teórico, intelectual do século XVII a ideia de que, com o surgimento de uma nova concepção de mundo, a astrologia torna-se descartável? Nos manuais de astrologia e na literatura sobre história da astrologia e da ciência se diz que no século XVII a astrologia começa a entrar em declínio com o advento da ciência moderna. Esse é o ponto questionado por Ferreira em sua tese. A busca de uma documentação para saber o que pensam e sabem os homens dessa época e o modo como compreendem as questões mais relevantes é seu principal mérito. Ao tecer os fios invisíveis feitos de valores – crenças, símbolos, emoções, ideias religiosas e políticas presentes em suas vidas e nas de seus contemporâneos no decorrer do debate astrológico desse século – Ferreira demonstra que a questão é muito mais complexa e só pode ser entendida no amplo contexto científico, filosófico, cultural e religioso da Inglaterra do século XVII, e não por meio de explicações baseadas num fator único. Com isso acaba também fornecendo farto material para a compreensão, não apenas do problema em pauta, mas da sociedade e da cultura desse século.


O mesmo procedimento poderia ser usado para se estudar outros séculos, outros períodos, onde se possa, por exemplo, notar com mais clareza como se forjou essa ideia da astrologia como superstição, ficção, ou fábula grotesca, tão comum nas abordagens evolucionistas que nos legou o século XIX. Esse poderia ser um outro projeto de estudos. A tese fala um pouco disso em várias passagens, como, por exemplo, quando trata das posições de Calvino, de Gassendi, e principalmente na sua conclusão, quando confronta posições de trabalhos historiográficos mais recentes, como os de A. Koiré, George Sarton, Lyn Thornike, Patrick Curry e especialmente Keith Thomas. E contrapõe-se àquelas abordagens segundo as quais qualquer coisa vira superstição, desde que somos arrastados pelo progresso da razão.


REFERÊNCIAS

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Astrológico e a Filosofia Estoica


1. Sobre o autor e a obra


Nada se sabe sobre a vida de Manilius. Nem sobre sua origem é possível afirmar nada certo, mas tende-se a considerá-lo de origem itálica.

Sua obra, a Astronomica, é um poema latino composto de cinco livros que versa sobre astrologia, mas parece estar incompleto, já que no Livro II Manilius anuncia que apresentará a natureza e influência dos planetas, mas até o final do Livro V não retoma esse assunto.

Não há consenso entre os estudiosos da Astronomica sobre o período exato em que a obra foi escrita. Se, por um lado, é reconhecido e aceito que Manilius tenha iniciado sua obra em torno do ano 9 d.C., quando Augusto era o imperador, há, por outro, um intenso debate em torno do ano em que ela teria sido terminada – ou, ao menos, em que o Livro V teria sido concluído – se durante o reinado de Augusto, ou já após a morte deste, sob o governo de Tibério. O maior problema que se coloca com essa questão é saber a qual imperador Manilius se refere em diferentes momentos dos Livros I, II e IV.

A tese de Housman, apresentada em 1903 e adotada por outros estudiosos, é que a Astronomica teria sido escrita entre 9 d.C. e 22 d.C., ou seja, que os três primeiros livros teriam sido escritos sob o governo de Augusto e, os dois últimos, sob o de Tibério. Porém, E. Flores publicou um trabalho em 1961 onde defendeu a tese de que a Astronomica foi escrita inteiramente sob o governo de Augusto. Tese que Herrmann, em 1962, também defende. Goold, por sua vez, afirma que os Livros I e II foram escritos enquanto Augusto reinava; o Livro III, por sua vez, não oferece pistas conclusivas a esse respeito. Já o Livro IV, ao exaltar o signo de Libra, e não mais o de Capricórnio, quando se refere ao imperador, indica que esse Livro foi escrito sob o governo de Tibério, dado que era ao signo de Libra que ele se associava. Em nossa análise constatamos que no trecho 770-780 do Livro IV, Manilius realmente exalta as qualidades do signo de Libra, identificando-o como regente de Roma e associando-o ao imperador.

Segundo E. Romano, a obra se estrutura da seguinte maneira: o Livro I expõe os conhecimentos astronômicos básicos, que remetem à síntese feita por Aratus de Soli (ca. 315-240 a.C). Os Livros II, III, IV abordam o poema astrológico propriamente dito. E o Livro V seria um adicional ao plano inicial do poema, dedicado a paranatellonta.

PARANATELLON (PLURAL: PARANATELLONTA) É UM TERMO QUE EM GREGO ANTIGO SIGNIFICA “NASCER JUNTOS”. É USADO PARA CARACTERIZAR ESTRELAS OU CONSTELAÇÕES QUE SURGEM SIMULTANEAMENTE COM UMA DETERMINADA ESTRELA OU CONSTELAÇÃO.

O TERMO FOI INICIALMENTE USADO PARA INDICAR UMA CONSTELAÇÃO EXTRA-ZODIACAL QUE SURGE JUNTO COM UMA CONSTELAÇÃO DO ZODÍACO. O EXEMPLO MAIS CONHECIDO É A CONSTELAÇÃO DA ÁGUIA, QUE É UM PARANATELLON DO ESCORPIÃO E QUE, PORTANTO, PARECE REPRESENTÁ-LO EM ALGUMAS ICONOGRAFIAS, COMO DE ACORDO COM ALGUNS NO TETRAMORFO. NESSE SENTIDO, EXISTEM APENAS 72 PARANATELLONTA.

A NOÇÃO DE “PARANATELLON” É APLICADA PRINCIPALMENTE NA ASTROLOGIA, MAS TAMBÉM PODE SER APLICADA EM UM SENTIDO TRADUZIDO EM OUTROS CAMPOS. NA ASTROLOGIA EGÍPCIA, UM PARANATELLON ESTÁ ASSOCIADO A CADA UM DOS 360 ° DA ECLÍPTICA EM QUE O SOL NASCE, ATRIBUINDO ASSIM UM ASTERISMO DIFERENTE A QUASE TODOS OS DIAS DO ANO.

A CARACTERÍSTICA DE ELEVAÇÃO SIMULTÂNEA É MODIFICADA PELA PRECESSÃO DOS EQUINÓCIOS.

Costuma-se afirmar que o conteúdo astrológico do poema é rudimentar e, por isso, ele não se mostra adequado para aquilo a que se propõe: a instrução de estudantes no saber astrológico. Segundo Barton, como a audiência de Manilius era a nobreza, o poema foi escrito em versos e, na realidade, não estava destinado à formação de pupilos – o que se confirma pela ausência de exemplos e horóscopos ilustrativos. Assim, alguns autores tendem a não considerar a Astronomica um manual astrológico, pois não seria possível fazer ou interpretar um horóscopo a partir dela. Entretanto, Goold afirma que a produção de um poema didático é uma tarefa complexa e, por isso mesmo, é possível que um texto seja didático, mas não contemple tudo a respeito do saber sobre o qual se dedica. Este seria, para Goold, o caso da Astronomica, que se mostra como um manual astrológico, mas não completo.

O Livro I faz um breve relato das especulações cosmológicas; trata da esfera, das constelações (zodiacais ou não), dos grandes círculos, e termina com uma discussão sobre os cometas. O Livro II trata dos signos do zodíaco e suas características, classificações, relações geométricas e subdivisões; estabelece a relação entre os signos e as partes do corpo humano; apresenta o conceito de dodecatemoria zodiacal ou planetária; fala sobre os pontos cardeais e expõe o sistema de doze ou oito casas. O Livro III apresenta as doze sortes (As sortes, também denominadas “partes”, “lugares” e “trabalho”, são um sistema de previsão astrológica, mas o fato de serem de doze tipos não estabelece relação com o sistema das doze casas); o cálculo do horóscopo, ou o surgimento dos signos no horizonte; explica o conceito de cronocratoria; expõe um método para calcular a duração de uma vida, e descreve os signos trópicos (Áries, Câncer, Libra e Capricórnio). O Livro IV faz uma descrição dos efeitos dos signos zodiacais nos que nascem sob sua influência; apresenta o conceito de decano; identifica os graus malignos de cada signo; trata de astrologia geográfica, apresentando um mapa do mundo com os regentes zodiacais de cada parte, e termina com uma discussão dos efeitos dos eclipses em diferentes signos. O Livro V fala basicamente sobre o tema das paranatellonta, e a influência que a combinação de diferentes constelações exerce no temperamento e na vida das pessoas.


2. Análise da obra


O objetivo desta análise é identificar qual a concepção de mundo presente na Astronomica, enfatizando especificamente os traços do pensamento estoico na cosmologia e nos pressupostos teóricos que serviram de base ao sistema astrológico proposto por Manilius. Assim, não será analisado o sistema astrológico em si, seus conceitos e técnicas próprias, mas o quanto ele reflete da cosmologia na qual se baseia.

As seções segundo as quais a análise da obra será feita foram definidas a partir da leitura da Astronomica; assim, os conceitos e pressupostos da filosofia estoica serão apresentados em função do material selecionado da obra. Ou seja, não se pretende fazer uma apresentação detalhada dessa escola de pensamento, mas sim relacioná-la com os trechos da Astronomica que foram escolhidos, estabelecendo assim um diálogo que servirá de base para a análise.

Para isso serão usadas basicamente duas das principais fontes primárias do Médio estoicismo: a obra De divinatione, escrita por Cícero, e a obra De mundo, escrita por Posidônio. Cícero (106 – 43 a.C.) não era estoico, mas é considerado como uma das principais fontes de informação sobre o estoicismo, por haver sistematizado, de forma crítica, seus preceitos. Posidônio (c.a.135 – 51 a.C.) foi um dos principais representantes do Médio estoicismo, cujas ideias e contribuições à escola estoica no século I a.C. se mostraram centrais para entender o desenvolvimento do saber astrológico desse período histórico.

As passagens da Astronomica em que Manilius estabelece uma relação entre astrologia e poder não foram destacadas em uma seção própria.


2.1. A estrutura do Universo


O modo como o mundo está formado e disposto no espaço é abordado por Manilius basicamente ao longo do Livro I, onde o autor se ocupou em apresentar algumas noções básicas de astronomia aos seus leitores.

Por se tratar de uma obra escrita em Roma, no século I d.C., é de se esperar que o universo seja compreendido do ponto de vista geocêntrico: a Terra se encontra no centro e se afasta de forma equidistante dos extremos do universo. Ao lidar com a ideia de que há extremos no universo, a concepção de um universo finito é confirmada. Os limites do universo são formados pelas estrelas fixas e, acima delas, não há nada. Em nenhum momento de sua obra Manilius faz referência à concepção estoica da existência do vazio que envolve o universo finito. O autor apenas indica que a esfera das estrelas fixas é a ultima e que ela encerra o universo.

A Terra é estática, o que se move é o céu. O céu é composto pelas estrelas fixas e planetas, porém, enquanto o céu se movimenta em uma direção, fazendo girar as constelações nele dispostas de forma fixa, os planetas circulam na direção contrária a ele, obedecendo, cada qual, sua esfera e órbita determinadas. A ordem em que estão dispostos no espaço, é: Saturno (o mais distante da Terra e mais próximo das estrelas fixas), Júpiter, Marte, Sol, Mercúrio, Vênus e Lua (a mais próxima do centro e da Terra).

A Terra, e tudo que a ela pertence, está sujeito à mudança. As coisas terrestres nascem, crescem e morrem, necessariamente. O céu, por sua vez, permanece imutável, conserva todas as suas partes, e é eterno.

Segundo Manilius, a Terra, o Sol e os planetas são esféricos, já que imitam a forma do universo que, em função de seu movimento circular, adquiriu o formato esférico. O formato do universo, por sua vez, reflete a forma dos deuses (esférica) e sua natureza, não possuindo nem princípio nem fim.

Uma prova da esfericidade da Terra é o fato de não ser possível ver sempre as mesmas constelações de qualquer parte do globo terrestre. Como aquilo que é visto no céu depende do local em que se está na Terra, sua forma é redonda. Outro argumento apresentado por Manilius é que, se ao invés de redonda a Terra fosse plana, o brilho da Lua não a iluminaria gradualmente, primeiro em algumas regiões para, aos poucos, se estender às demais, e sim se daria de uma vez só.

Manilius afirma que o universo está suspenso, e não se apoia em nenhuma base, o que é evidente pelo fato de mover-se, assim como pelo seu movimento circular, observado pelo aparecimento regular das constelações e pelo caminhar previsível do Sol por elas.

A Terra, assim como o universo, também está suspensa no centro e nele permanece estável, graças ao equilíbrio de forças entre os elementos que compõem o universo. É esse equilíbrio que mantém a ordem de todo o universo, assim como o movimento cíclico e regular dos astros.

Ao falar sobre os elementos e sua participação na formação do universo, Manilius diz que: “o fogo alado elevou-se às regiões mais altas e, abraçando os pontos mais altos do céu estrelado, formou uma defesa de chamas para a proteção do universo”. Em seguida, referindo-se ao fogo Manilius diz que “[…] o sopro desceu até a região das brisas sutis”, ou seja, a região ocupada pelo ar. É possível notar, nessa frase, a íntima relação entre a cosmologia apresentada por Manilius e as ideias estoicas, através da ideia de um sopro. Para os estoicos, o sopro pode tanto ser referência ao pneuma – definido como um sopro quente ou espírito que se estende por todo o cosmo – quanto ao fogo artífice, um sopro ígneo e artesão, associado á geração do cosmo. Como Manilius, no texto original em latim, usa o termo spiritus, não temos dúvida de que ele está se referindo ao pneuma.

Ao seguir seu raciocínio, Manilius diz que o ar, encontrando-se abaixo dos astros, é o que alimenta o fogo. O terceiro elemento é a água. Quando a água se evapora, expele a brisa sutil e alimenta o ar. A Terra, por sua vez, foi a última a assentar-se.

Há, na totalidade dessa passagem, uma sequência que alude à cosmologia estoica, segundo a qual existe um primeiro movimento gerador do universo que parte do fogo, passa pelo ar e pela água, e chega na terra. Os elementos são quatro: fogo e ar, os agentes ativos do universo, cuja combinação gera o pneuma, e água e terra, os passivos e mais pesados e, por isso, se encontram no centro do universo.

Manilius, ao discorrer sobre o por quê dos cometas, diz que todo o universo está permeado por fogo, por isso é natural que às vezes apareçam no céu esses rastros de fogo e que o ar resplandeça iluminado por essas chamas brilhantes. O que nos chama a atenção aqui é o pressuposto de que o fogo está presente em toda a natureza, o que é parte fundamental das ideias estoicas. Segundo Manilius:

“[…] o fogo está presente em todas as partes: habita nas nuvens carregadas que dão origem aos raios, penetra na Terra, ameaça o céu com as chamas do Etna, esquenta as águas nas suas próprias fontes e se encontra na dura pedra e na casca verde quando a madeira, ao esfregar-se consigo mesma, se queima; até tal ponto o fogo é abundante em toda natureza […]”.

Segundo a escola estoica, a “natureza é um fogo trabalhando artisticamente, seguindo seu caminho para a criação”. De acordo com Reale, o fogo é o Princípio que tudo transforma e penetra.

Um aspecto da relação entre astrologia e poder é abordado por Manilius na discussão sobre a estrutura e composição do universo. Ao se referir à batalha do Accio, após a qual Augusto se afirma como único governante de Roma, Manilius o designa como “dono do céu” e como “deus na Terra” – associando seu lugar de governante do mundo com o de governante ou regente do universo.

Em outro trecho da Astronomica, ao falar sobre as regiões da Terra de onde é possível observar outras constelações, diferentes das conhecidas pelos romanos, Manilius diz que o céu, assim como a luz do Sol, é igual para todos, mas essas outras regiões somente são superadas por Roma em relação a um astro: “Augusto, que deu sorte a nosso hemisfério: agora o maior legislador na Terra, depois do céu”.

DeNardis afirma que Manilius, ao se referir à figura do imperador como parte do cosmo e, portanto, como expressão natural do poder do universo, confere ao governante poderes divinos e autoriza-o a exercê-lo sobre a Terra.

Vemos que, ao longo de seu poema, Manilius se esforça para reverenciar o imperador, sustentado por conceitos e referências astrológicas. Com isso, alimentava a proximidade entre astrologia e política, característica do final da República e início do Império romano.

Em uma determinada passagem do Livro I, Manilius expõe diversas teorias sobre a origem e formação do universo, com as quais não se compromete. Mas, ao começar a apresentar a concepção de mundo na qual se baseará, afirma: “[…] qualquer que seja sua origem, o aspecto externo do mesmo tem harmonia, e sua estrutura está disposta segundo uma ordem precisa”. Ou seja, Manilius atenta para a harmonia e a ordem constituintes do universo. Esse é o tema que abordaremos na próxima seção.


2.2.2. O princípio ordenador


Se a proposta é analisar as influências estoicas na obra de Manilius, nada mais adequado do que iniciar a discussão com um trecho extraído do início do Livro II, no qual o autor anuncia sobre o que versará:

“Cantarei, de fato, a deus que com silencioso desígnio governa a natureza, que está no interior do céu, da Terra e do mar, e dirige o imenso universo com leis constantes; cantarei como todo o universo subsiste graças à concórdia de suas partes e é movido pelo impulso da razão, pois um único espírito habita em todas as suas partes e impregna o universo percorrendo-o todo e configurando-o como um ser vivo”.

Adequado, porque esse verso expressa, do início ao fim, que Manilius se baseia na física estoica para compreender o universo e, da maneira como apresenta o tema de sua obra, o autor anuncia claramente seu posicionamento teórico.

Dentre os pressupostos básicos com os quais trabalha, está a ideia de que o universo é um todo ordenado, que respeita leis fixas e constantes em seu funcionamento. Isso se deve pelo governo da mente divina ou deus, que está em tudo de forma indiferenciada, já que impregna todos os elementos que compõem o universo, estendendo-se por tudo e, com isso, garante a coesão do todo pelo relacionamento harmônico de suas partes.

De acordo com o pensamento estoico, deus é um ser imortal, sem forma definida, responsável pela geração e ordenação do cosmo, já que é razão e inteligência. Está em todos os elementos do universo, pois, como um espírito, se espalha por tudo e perpassa toda a matéria, unindo-se a ela e mantendo o universo coeso e unido. Como princípio ativo, é inseparável da matéria, portanto, “deus está em tudo e deus é tudo. Deus coincide com o cosmo”, ou seja, é múltiplo e uno ao mesmo tempo.

Segundo Reale, o conceito de deus é o eixo em torno do qual a física estoica se organiza. Deus é identificado com a physis: “para os estóicos, physis implica matéria, mas implica também o princípio intrínseco agente que é, que dá e que se torna forma de todas as coisas, isto é, o princípio que faz tudo nascer, crescer e ser”. Assim, deus é physis mas é também Logos, ou seja, principio de inteligência e racionalidade, imanente à matéria.

O conceito de pneuma, por sua vez, também é estrutural no pensamento estoico, e se define como uma substância muito rarefeita que a tudo permeia, preenchendo o cosmo como um todo. Sua função básica é a geração e a coesão da matéria, assim como o contato entre todas as partes do cosmo. Sambursky afirma que: “a matéria passiva e sem forma é o primeiro substrato do cosmo e, dessa forma, sem qualquer qualidade. É o pneuma que a tudo perpassa que, totalmente misturado com a matéria, a imbui com todas suas qualidades”. Dessa forma, o pneuma se apresenta como o agente responsável pela unificação da matéria, o que se confirma pelas palavras de Sextus Empiricus, ao dizer que “há um só espírito (pneuma) que se espalha por todo o universo, como uma alma, e nos faz um com ele”.

Manilius está se referindo ao pneuma quando diz que “um único espírito habita em todas as suas partes e impregna o universo percorrendo-o todo”, garantindo, assim, sua harmonia e coesão.

Entretanto, embora os estoicos acreditassem na natureza corpórea do pneuma, eles não consideravam que era semelhante à matéria, mas sim à força. Foi a concepção de um poder interpenetrando a matéria e se espalhando pelo espaço e, com isso, causando os fenômenos físicos, que formou a ideia central de pneuma.

Dessa forma, pneuma se tornou sinônimo de deus, e uma noção se define pela outra, já que pneuma, enquanto força natural capaz de dar forma às coisas e causar mudanças no mundo físico, é expressão da razão divina. E deus, ao ser entendido como algo totalmente misturado com a matéria, foi identificado com o pneuma que a tudo permeia. Assim, a razão divina foi definida como pneuma corporal, e ambos se constituem como o princípio ordenador do universo.

Se o pneuma, através de sua ação, faz da natureza uma unidade coerente de característica dinâmica, é o conceito estoico de simpatia (sympatheia), ao pressupor que todos os elementos do universo subsistem em coexistência numa matéria contínua onde não há vazio, que faz do cosmo um único corpo, com uma estrutura harmônica e unificada.

Manilius faz referência ao conceito de simpatia universal no verso que se segue:

“Esta obra, formada com a matéria do imenso universo, assim como as diversas partes da natureza, constituídas em distinta proporção pelo ar, pelo fogo, pela terra e pela água nivelada, são dirigidas pela força divina de uma alma, para a qual contribui a divindade com seu sagrado movimento, que governa com uma norma secreta, estabelecendo mútuos vínculos entre todas as partes, a fim de que cada uma disponibilize suas forças para as demais e receba o mesmo das outras partes, e faça com que o conjunto permaneça unido através de suas diversas formas”.

Com base nesse verso, podemos dizer que Manilius considera a existência da simpatia universal que, por meio da interdependência entre as partes, garante a coesão e unidade do todo.

Um dado interessante, e que reforça a tese de que Manilius se baseia predominantemente na filosofia estoica, pode ser observado no trecho em que o autor critica aquele que ensinou que “o edifício do universo estava formado por átomos e que neles se desfaria”. Ao se contrapor ao Epicurismo de forma explícita, Manilius posiciona-se de um dos lados da disputa filosófica travada entre as escolas atomista e estoica, comum durante a Antiguidade tardia.

Uma das principais diferenças entre as duas escolas pode ser percebida no posicionamento de cada uma em relação à teoria da matéria. Enquanto o estoicismo propunha a teoria de um continuum dinâmico, composto pela matéria (sem forma) juntamente com a ação do pneuma (conferindo, de maneira sensível e inteligente, forma e coerência a ela), o atomismo trabalhava com os conceitos de átomos e de vazio, onde o universo era composto por átomos, pequenas estruturas completas em si mesmas, e pelo vazio, espaço onde não havia corpos – formados, sem a ação de um Logos ou intenção divina, por átomos. Dessa forma, os atomistas só admitiam a interação por contato direto. Já os estoicos, ao considerarem que não havia vazio no universo, falavam de interação em um continuum dinâmico, e em um poder que tudo envolvia.


Manilius afirma:


“Parece-me que não há nenhum outro argumento tão forte, pelo qual resulte evidente que o universo gira graças a um poder divino, que ele mesmo é deus e que não se formou sob a direção do acaso [..]”.

Ou seja, ele considera que as coisas não se dão por acaso e sim pela ação inteligente de um princípio ordenador. E continua criticando as concepções epicuristas ao questionar que os corpos sejam formados por átomos e sem a intervenção da divindade. A favor da ideia de que há a intervenção divina no cosmo, e contra a ideia de acaso, Manilius afirma:

“Por quê vemos que as constelações saem sucessiva e regularmente, seguem as órbitas que lhes foram designadas, como que por uma lei, e que nenhuma se atrasa porque nenhuma se adianta”?

Manilius conclui seu raciocínio dizendo que se não houvesse a harmonia (ou simpatia) entre todas as partes que compõem o universo, e se essa estrutura como um todo não obedecesse à mente divina, que a governa com inteligência e sabedoria, o universo não existiria, pois não haveria ordem e sim caos.

Há um verso, no Livro III, que apresenta de forma bastante completa e esclarecedora os conceitos com os quais Manilius compreende o universo e seu funcionamento:

“A natureza, causa e salvaguarda das coisas secretas, ao erigir coisas imensas e de grande proporção por entre as muralhas do universo, ao colocar astros esparsos ao redor da Terra, que ficou suspensa no centro, ao unir com leis imutáveis membros diversos em um só corpo, e ao ordenar ao ar, à terra, ao fogo e à água oferecer recíproco alimento alternativamente, a fim de que a concórdia regesse tantos princípios em luta, e o universo, unido por uma lei eterna, mantivesse sua estabilidade, a fim de que nada permanecesse excluído da suprema ordem racional e a fim de que aquilo que era do universo fosse governado pelo universo mesmo, também fez depender o destino e a vida dos homens dos astros, os quais defenderiam o mais elevado dos atos, a honra e a glória, o renome, e girariam sem se cansarem jamais”.

Vamos analisá-lo por partes: quando Manilius diz, “A natureza, causa e salvaguarda das coisas secretas […]”, está pressupondo que ela encerra em si os segredos do universo, sua ordem e os princípios de seu funcionamento. Como demonstraremos no final dessa análise, há, nesse verso, a identificação da natureza com o conceito de deus, Logos e mente divina, própria da escola estoica.

No trecho que diz “[…] ao erigir coisas imensas e de grande proporção por entre as muralhas do universo, ao colocar astros esparsos ao redor da Terra, que ficou suspensa no centro […]”, Manilius está se referindo à estrutura do universo, entendido como finito e delimitado por contornos ou “muralhas”; e, espalhados dentro desse espaço delimitado há astros, que giram ao redor da Terra que, por sua vez, está suspensa no centro do universo.

“[…] ao unir com leis imutáveis membros diversos em um só corpo […]”, vemos, nesse trecho, inclusive em função dos termos empregados (“membros” e “corpo”), que o universo é entendido como um organismo vivo, cuja unidade é ordenada e articulada por leis gerais e imutáveis que se estendem por todas as suas partes.

Ao dizer que “[a natureza] ao ordenar ao ar, à terra, ao fogo e à água oferecer recíproco alimento alternativamente, a fim de que a concórdia regesse tantos princípios em luta […]”, Manilius afirma que todos os elementos que compõe o universo se retroalimentam e se relacionam equilibradamente, mantendo uma coerência entre si.

Essa ideia se relaciona diretamente com o pensamento estoico, que entende que o cosmos é uma entidade orgânica, cujo equilíbrio dinâmico – dentro do vazio que o envolve – se dá pelos pesos iguais na mistura dos quatro elementos. Se fosse mais pesado, se moveria para baixo, se fosse mais leve, para cima.


Tanto no verso acima citado, quanto na cosmologia estoica, há a ideia de que o cosmo tende ao equilíbrio, à harmonia. Ou seja, a natureza, ao ordenar os quatro elementos, buscou, com isso, que a mistura coerente entre eles regesse os princípios conflitantes e o embate que existe entre as coisas, para que, com isso, o universo se mantivesse em equilíbrio. Essa concepção é expressa por Posidônio, que diz que o universo é ordenado por um único poder que se estende através de tudo, o qual, por sua vez:


“[…] criou todo o universo com elementos diferentes e separados (ar, terra, fogo e água), envolvendo tudo com uma superfície esférica e forçando as naturezas contrárias a viver em acordo, o que produz a permanência do todo”.


Seguindo em nossa análise, há o trecho que diz: “[…] e o universo, unido por uma lei eterna, mantivesse sua estabilidade, a fim de que nada permanecesse excluído da suprema ordem racional […]”. Aqui há a ideia de que o universo se mantém unido por uma lei eterna, o que garante sua estabilidade, e faz com que tudo que o componha participe da suprema ordem racional, ou seja, do Logos ou mente divina.


No último trecho do verso, que diz: “[…] e a fim de que aquilo que era do universo fosse governado pelo universo mesmo, também fez depender o destino e a vida dos homens dos astros, os quais defenderiam o mais elevado dos atos, a honra e a glória, o renome, e girariam sem se cansarem jamais”, está presente a ideia de que a natureza (enquanto deus ou mente divina), ao imprimir o princípio de que tudo que compõe o universo participa da “suprema ordem racional”, fez com que o universo se autorregulasse e governasse a si mesmo.


Ao final da análise detalhada do verso acima selecionado, podemos definir o conceito de natureza com o qual Manilius trabalha. A natureza: 1) erigiu o que compõe e se insere no universo, como os astros e a Terra; 2) conferiu as leis imutáveis que geraram e mantém o universo; 3) é responsável pela coerência e união de tudo que compõem o universo; 4) ordenou os quatro elementos de modo que a mistura entre eles conferisse estabilidade ao funcionamento do universo; 5) fez que tudo que compõe o universo fosse governado pelo próprio universo, de modo que nada permanecesse excluído da suprema ordem racional a ele inerente; 6) fez com que o destino e a vida dos homens dependesse dos astros.


Ou seja, a natureza é entendida como sendo inteligente, que age de forma coerente e segundo princípios lógicos, e tem como finalidade manter a ordem e o funcionamento harmônico do universo, criado por ela. Nota-se, portanto, a clara sobreposição dos conceitos de natureza e de deus, própria do pensamento estoico.


A última frase do verso que acabamos de analisar – que os astros giram sem se cansarem jamais – contém em si a referência ao movimento regular, cíclico e repetido dos astros, como expressão da ordem e da eternidade do universo. Em outra passagem da Astronomica, localizada no Livro I, Manilius apresenta essa mesma relação:


“E não há nada mais admirável nesse universo imenso que seu desígnio, e o fato de que tudo obedece a leis fixas. Em nenhuma parte causa perturbação o elevado número de estrelas, e em nenhuma parte nenhuma anda errante nem gira em uma órbita mais ampla ou mais estreita ou segundo uma ordem alterada”.


2.3. O céu como causa


Por se tratar de uma obra astrológica, não é de se surpreender que a Astronomica estabeleça uma relação causal do céu para com a Terra. Algumas passagens da obra ilustram essa concepção, como a que se segue, onde Manilius fala sobre a constelação do Cão maior, e diz que ele é: “[…] o mais violento dos astros para a Terra quando sai e o mais prejudicial quando se põe. Quando se levanta está rígido pelo frio e, quando deixa o radiante céu, este se encontra aberto ao calor do Sol: dessa forma, move o universo em ambos os sentidos, produzindo efeitos contrários”. Nas primeiras linhas da citação, parece que a ideia apresentada é a de que quando a constelação surgia no céu, estava associada ao frio do inverno, nos princípios de janeiro; e quando desaparecia, no início de maio, anunciava o calor do verão que se aproximava. Se assim o fosse, Manilius não se distanciaria da antiga visão baseada no simbolismo astral, que entendia as constelações como marcadoras de eventos atmosféricos e variações climáticas, de forma semelhante como Virgílio o fez nas Geórgicas. Porém, a concepção segundo a qual Manilius compreende os fenômenos é esclarecida de forma categórica com a última frase: “dessa forma, move o universo em ambos os sentidos, produzindo efeitos contrários.” A constelação, portanto, produz efeitos, e não só os sinaliza.


Essa relação pela qual o céu produz e causa efeitos e eventos na Terra aparece por toda a Astronomica. Outro exemplo é quando a constelação de Touro aparece no céu: “ele [o Touro] causa guerras e volta a trazer a paz, ao regressar de distintas formas, move o mundo segundo sua visão, e o governa com seu olhar”.


Segundo Manilius, os signos trópicos (definidos por ele como sendo Câncer, Capricórnio, Áries e Libra), “fazem mudar todo o universo […] e introduzem novas formas nos trabalhos e na natureza”, já que são eles que produzem a mudança das estações. Ao discorrer sobre os efeitos que o signo de Áries produz, afirma: “Então pela primeira vez o mar fica calmo com ondas suaves, e a terra se atreve a produzir variadas flores; então nas pastagens os rebanhos risonhos e as aves dão-se ao amor e à procriação, todo o bosque ressoa com vozes harmoniosas e se põe verde toda a folhagem; tanto muda a natureza com as forças desse signo”.


Há também versos dedicados a descrever o tipo de influência que o céu exerce no temperamento dos homens, como a longa sequência presente no Livro IV, do verso 122 ao 293, que aborda as características e habilidades que os signos concedem àqueles que nascem sob seu domínio.


É imensa a quantidade de trechos que estabelece uma relação direta e causal entre os signos, constelações e planetas com as mudanças na natureza e interferência na vida humana; essas foram somente algumas amostras. Um dos pontos que se mostra interessante para a análise é comparação dessa relação de causalidade, explicitamente apresentada por Manilius, e a concepção de que as estrelas apenas sinalizam ou acompanham as mudanças meteorológicas, como vimos nas Geórgicas, de Virgílio.


Nesse poema, Virgílio ilustra e faz referência às estrelas e aos signos como marcadores das estações, e de que forma isso interfere na agricultura ou na vida campesina de forma geral. Essa forma de se referir aos céus não diferia de como era feito até então, e apenas confirmava as concepções vigentes a respeito da influência celeste sobre a vida na Terra, baseadas no simbolismo astral.


Em contraposição a essa compreensão de mundo, temos a concepção astrológica, representada por Manilius na Astronomica, onde um dos eixos principais é a relação de causalidade entre o céu e a Terra, que se expressa na ideia de que as tendências e comportamentos humanos estão sujeitos à influência celeste. Ou seja, quando a concepção astrológica do mundo se afirma, as estrelas não são simplesmente marcadoras das estações do ano, e a posição do céu não somente está associada aos fenômenos naturais, mas os produzem e direcionam, assim como o fazem com as tendências e comportamentos humanos.


Seguindo seu raciocínio astrológico, Manilius afirma que graças às constelações zodiacais e aos planetas é possível conhecer todo o plano do destino, o que os justifica como os elementos mais importantes do universo. Isso porque o destino, sequência inevitável de acontecimentos, é derivado do céu.


Mas antes de entrarmos no conceito de destino, vale abordarmos alguns aspectos da teoria da causalidade segundo o pensamento estoico, para tentarmos compreender com base em que pressupostos teóricos Manilius considera o céu como causa.


Segundo Sambursky, a existência de um nexo causal no mundo é uma verdade axiomática da escola estoica. Porém, para que o nexo causal entre tudo que compõe o universo seja possível, a teoria da causalidade deve se sustentar na concepção de que há uma simpatia universal entre todos os elementos do universo, mantendo-o único e coeso.


“A continuidade da natureza, esta presença dos corpos num mundo de espaço ocupado que ignora o vazio, esta assimilação de Deus e do cosmos, permitem-nos dizer que o todo está em simpatia consigo mesmo, que tudo conspira, que existe uma simpatia universal das coisas e dos seres”.


A concepção de um universo que se manifesta como um continuum de matéria está associada ao conceito de pneuma, uma força que perpassa o mundo todo, conferindo coerência e coesão à matéria, ao misturar-se com ela. O conceito de pneuma tornou-se sinônimo de deus, já que encerra em si a ideia de uma força inteligente ou razão divina que a tudo permeia. Dessa forma, Sambursky afirma que o pneuma tem um lugar central na física estoica porque possui um duplo significado: é poder divino que confere à matéria um estado definido, e é o nexo causal que liga os sucessivos estados da matéria. E, nesses dois aspectos, se revela espacialmente e temporalmente como um agente contínuo.


A propagação se dá, portanto, em um único continuum material. Desse modo, o universo assume um aspecto corpóreo, onde não há vazio: “para os estoicos, o ar não é composto de partículas, mas é um contínuo que não possui espaço vazio”. Condição necessária para que a propagação se estenda, se constituindo como um nexo causal.


A simpatia universal, ou seja, o cosmo como um único organismo, com uma estrutura unificada, coesa e ordenada, onde suas partes interagem, é possível graças a ação do pneuma. Segundo Sambursky, uma das provas da existência da simpatia é, para os estoicos, a influência do céu sobre a Terra, onde o exemplo da relação entre a Lua e a maré é um dos mais usados, aparecendo inclusive no tratado De divinatione, de Cícero, que faz referência aos ensinamentos de Posidônio. Afirma Cícero:


“Para que falar também dos braços de mar ou das agitações marinhas? Seus fluxos e refluxos são governados pelo movimento da Lua. Seiscentos exemplos dessa mesma natureza podem ser citados para que se veja a relação natural de coisas distantes”.


A conexão causal que se estende por todas as coisas assim o faz através do tempo e do espaço, cuja influência é transmitida por contato direto ou pela ação do pneuma. Assim, um corpo transmite sua influência a outro, e aquele que a sofreu pode ser a causa de outros efeitos, na medida em que também transmite sua influência. Esse é o nexo causal, uma cadeia de causas que se estende continuamente no tempo e no espaço, formando, em sua totalidade, o curso do universo.


Um exemplo bastante significativo para o tema com o qual estamos tratando é o das estações do ano. Elas representam o ar em determinados estados termais. Ou seja, a natureza e a influência de cada estação do ano está em uma relação de dependência causal com a posição do Sol.


Assim, se o céu é entendido como causa por Manilius e para a astrologia de forma geral, é com o seu movimento que altera os corpos que estão próximos e, como em uma relação causal, estes transmitem sua influência através do espaço, até entrarem em contato com a Terra e gerarem as alterações específicas.


Manilius não apresenta um raciocínio teórico para explicar como se daria a influência do céu sobre a Terra, mas buscamos nos conceitos fundamentais da física estoica e, como se verá a seguir, nas particularidades do pensamento de Posidônio, os argumentos que justificam suas ideias.


Para Posidônio, deus ocupa o primeiro e mais alto lugar no céu, de onde exerce sua influência sobre os corpos celestes, desde o mais próximo a ele até a Terra. Assim, deus “[…] exerce um poder que nunca se desgasta, por meio do qual ele impera mesmo nas coisas que parecem estar distantes dele […]”. A identificação e localização de deus no céu, e não em todas as partes do universo, é uma especificidade do pensamento de Posidônio em relação à escola estoica. Porém, se deus está no céu, ele se estende por todas as coisas através do contato, em um meio contínuo. Assim, o céu é entendido como aquele que, dentre todos os elementos do universo, melhor e mais claramente manifesta a mente divina, já que, segundo Posidônio, as coisas recebem mais ou menos o benefício divino de acordo com sua maior ou menor proximidade a deus. Manilius, ao pressupor que o céu causa os fenômenos na Terra e, através de seu movimento, produz todas as coisas de acordo com a vontade divina, se aproxima dos conceitos desenvolvidos por Posidônio, que diz que:


“[…] a natureza divina, através de um simples movimento, imprime seu poder naquilo que está mais próximo a ela, que o estende para o que está em seguida e, assim sucessivamente, até estendê-la sobre todas as coisas”.


O que está implícito nesse raciocínio sobre a disseminação da influência divina, que se dá em uma relação causal, atravessando as esferas celestes, é o conceito da matéria como um continuum, que pressupõe a não existência de vazio no universo, e do pneuma como força dinâmica que mantém o universo coeso e em inter-relação. Ou seja, conceitos fundamentais da física estoica, apresentados anteriormente.


Deus é entendido como uma causa, a causa primeira que produz todos os fenômenos que envolvem na Terra, interferindo, assim, em seu funcionamento. É ele que governa o universo:


“A partir do sinal dado desde o alto por aquele que pode ser considerado o líder do coro, as estrelas e o céu como um todo sempre se movem, e o Sol, que ilumina todas as coisas e caminha em frente em seu duplo curso, com o qual ele divide o dia e a noite, com seu nascimento e ocaso, também traz as quatro estações do ano […]”.


2.4. Sobre o destino


Segundo Manilius, “[…] todos os acontecimentos dependem da vontade e do aspecto do céu, já que os astros mudam o destino segundo suas diversas posições”. A imutável ordem do destino é entendida como algo que é desencadeado pelo movimento do céu, como vimos na seção anterior. Porém, quando diz que “[…] os astros, confidentes do destino, que mudam as diversas vicissitudes dos homens, e que são obra de uma razão celestial […]” , Manilius submete os astros e o movimento do céu à deus ou à mente divina enquanto causa primeira, exatamente como o faz Posidônio. Dessa forma, os astros refletiriam o Logos divino, não agindo por si só; essa ideia é evidenciada no verso que se segue, onde Manilius, referindo-se aos planetas, ao Sol, à Lua e às estrelas, diz:


“[…] a natureza lhes concedeu o governo, a cada um lhe atribuiu de forma sagrada sua própria incumbência, e ratificou inviolavelmente o conjunto formado por todas as partes, a fim de que o sistema do destino estivesse, de todas as formas, submetido à unidade”.


A natureza, intencionalmente teria atribuído ao céu, planetas, constelações, Sol e Lua, seus respectivos poderes de influência sobre os acontecimentos e sobre a vida humana, colocando, dessa forma, o destino dos homens sob a ordem imutável dos astros, que, por sua vez, refletem a mente divina. Assim:


“[…] qualquer tipo de coisa, qualquer tipo de trabalho, qualquer atividade e disciplina e qualquer vicissitude que ocorra na vida humana, através de todas as suas circunstâncias, foram englobadas pela natureza sob o destino”.


Segundo o pensamento estoico, os acontecimentos “obedecem às leis do destino que se reduzem a um entrelaçamento de causas providenciais”. O destino (heimarméne) seria, portanto, uma realidade natural, que se inscreve na estrutura do mundo, já que o mundo como um todo exprime uma disposição imutável na ordem das coisas, e essa disposição é inviolável.


Assim, o destino é o nexo causal de um universo pré-determinado, cuja ordem e conexão jamais poderão ser forçadas ou transgredidas. Segundo Reale, o destino é:


“a série irreversível das causas, a ordem natural e necessária de todas as coisas, o indissolúvel nó que liga todos os seres, o Logos segundo o qual as coisas passadas aconteceram, as presentes acontecem e as futuras acontecerão. E dado que tudo depende do Logos imanente, tudo é necessário, mesmo o evento mais insignificante”.


Para os estoicos, o destino é entendido como algo que está submetido à mente divina, na medida em que ele é a expressão da providência, que, por sua vez, “exprime o fato de todas as coisas (mesmo as menores) terem sido feitas pelo Logos, como se deve e como é melhor que sejam. É uma providência […] que coincide com o artífice imanente, com a alma do mundo […]”.


Dessa forma, todos os acontecimentos já estariam determinados previamente, conforme afirma Cícero:


“Todas as coisas existem, mas estão ausentes por aquilo que respeita o tempo. E assim como dentro das sementes está o germe das coisas que dela se produzem, nas causas estão contidas as coisas que vão acontecer […]”.


Os acontecimentos são as causas desdobradas no tempo. E como o tempo está relacionado ao movimento cíclico e ordenado do céu e dos planetas, mapear seu curso e posicionamento, assim como interpretar corretamente o que anunciam, permite aos homens desvendar os caminhos do destino.


Porém, a questão moral fica comprometida em um mundo onde todo acontecimento é previamente determinado, onde inclusive as ações humanas dependem da inalterável e necessária serie de causas, o que leva à ideia de que os homens não podem ser julgados pelos seus atos.


Assim como não podem ser julgados pelo que fazem, o que acontece em suas vidas não está em relação com a forma como a conduzem (com seus valores morais e princípios éticos). Segundo Manilius: “A Fortuna não examina os litígios para favorecer aqueles que o merecem, mas sim caminha errante entre todos os homens sem nenhuma distinção”. Porém, esboça uma solução para o problema moral que se apresenta a partir da noção de destino com a qual trabalha:


“E, entretanto, tal raciocínio não chega a justificar o crime […]. De fato, ninguém odiará menos as ervas venenosas porque não nascem por sua própria vontade, mas sim de uma semente determinada, nem é concedido um reconhecimento menor aos alimentos agradáveis pelo fato de procederem da natureza e não de uma decisão livre […]. Da mesma forma se deveria dar aos méritos dos homens uma glória maior por dever sua excelência ao céu e, por sua vez, odiaremos mais os malvados, por terem sido criados para a culpa e o castigo. E não importa de onde vem o crime: como tal há de ser reconhecido”.


Ou seja, as ações praticadas pelos homens, sejam elas virtuosas ou condenáveis, são decorrentes do céu e das inúmeras combinações que ele pode apresentar. Nas palavras de Manilius: “o destino outorga aos humanos suas habilidades e características, seus defeitos e méritos, suas perdas e ganhos”. Porém, isso não isenta aquele que praticou um crime de responder por ele, dado que tudo que acontece no mundo é decorrente de uma combinação de causas predeterminadas, e essa é a condição natural de tudo que é. “Ninguém pode renunciar àquilo que lhe foi dado nem ter aquilo que lhe foi negado; ninguém pode, com suas preces, apoderar-se da fortuna contra a vontade desta, nem escapar dela quando acossa: cada um tem que suportar sua própria sorte”.


Nesse sentido, no raciocínio de Manilius está implícito o posicionamento adotado pela escola estoica diante dessa questão, que pode ser resumido pelas palavras de Reale:


“A verdadeira liberdade do sábio está em conformar os próprios quereres aos do Destino, em querer com o Destino o que o Destino quer. E esta é liberdade enquanto racional aceitação do Destino, que é racionalidade: de fato, o Destino é o Logos e, por isso, querer os quereres do Destino é querer os quereres do Logos. Liberdade, portanto, é levar a vida em total sintonia com o Logos”.


Vemos, com isso, a tênue fronteira entre a física e a ética estoica: agir de acordo com a lei moral significa agir de acordo com a natureza universal, com a ordem segundo a qual ela opera.


2.2.6. Astrologia: um sistema ordenado


Manilius, ao longo de sua obra, desenvolve uma série de conceitos que compõem o sistema astrológico por ele proposto. Não é nosso objetivo apresentar cada um deles, oferecendo um panorama completo da astrologia maniliana, mas sim apenas aqueles que nos pareceram melhor ilustrar os pressupostos da cosmologia estoica.


No Livro II, Manilius expõe uma série de combinações e classificações entre os signos, como, por exemplo, a divisão entre aqueles que seriam masculinos e femininos, e o estabelecimento de relações geométricas entre eles, marcadas por trígonos, quadraturas, sextis e oposições. Essa apresentação é acompanhada pela descrição dos afetos e desafetos que tais relações gerariam entre os diferentes signos. Como essas relações são fixas e inatas ao padrão zodiacal, e se efetivam através do movimento eterno e inalterável do zodíaco, estendem-se também aos homens, já que eles “recebem seu caráter dos signos que deram origem a seu nascimento”. Manilius, falando sobre as afinidades e dissidências entre os signos, afirma que:


“os nascidos sob estes signos mostram sentimentos semelhantes entre si […], se guiam pelo ódio a uns, pelo amor a outros, a uns preparam enganos, e se deixam cativar por outros”.


Após apontar algumas das relações existentes entre os signos, dadas a eles pela natureza, Manilius diz que “[…] em todo o conjunto há uma ordem verdadeira e concorde”. Ou seja, essas relações não se dão por acaso, mas de acordo com uma ordem que há na natureza. E, a partir do trecho abaixo selecionado, podemos afirmar que essa ordem da natureza é expressão de deus, já que: “[…] deus, ao formar todo o universo segundo algumas leis, distribuiu também os afetos entre os variados astros […]”.


Baseando-se na relação causal entre o céu e a Terra, Manilius explica o mal e a discórdia que existem na Terra em função das inimizades entre os signos:


“Na verdade, posto que em muitos signos os homens nascem em discórdia, a paz desapareceu da Terra, os laços de amizade são raros e concedidos a poucos; assim como o céu está em desacordo consigo mesmo, também o está a Terra, e as nações do gênero humano são arrastadas por um destino que as faz inimigas”.


Vemos, nos trechos acima selecionados, a presença de alguns conceitos estoicos, como a existência de uma ordem implícita que se estende a tudo, e o fato dessa ordem ser a manifestação da mente divina, o que faz com que todos os fenômenos que se dão no universo possuam sentido, já que não são obra do acaso, e sim de uma natureza inteligente e intencional.


Enquanto aborda a característica dos signos e suas relações, Manilius diz que “não se deve desviar a atenção nem dos menores detalhes, nada está desprovido de razão nem foi criado em vão”. Desse modo, o autor faz referência a um universo onde não há acaso, e sim uma rede causal lógica, responsável pelo seu funcionamento. Esse pressuposto leva, portanto, a uma astrologia minuciosa, onde cada detalhe possui sentido e função. Esse traço da astrologia proposta na Astronomica pode claramente ser constatada em alguns conceitos abordados por Manilius, que serão apresentados a seguir.


O primeiro deles é o de dodecatemoria, que divide cada um dos doze signos do zodíaco, que possuem trinta graus, em 12 partes iguais de dois graus e meio. Cada dodecatemoria está dedicada a um signo, e a ordem dos signos que ocupam cada dodecatemoria é igual à ordem dos signos zodiacais. Assim, o signo da primeira dodecatemoria em um determinado signo, repete o signo no qual está inserida, e as dodecatemorias seguintes seguem a ordem zodiacal.


Esse esquema que subdivide os signos confere mais elementos ao astrólogo para interpretar a lógica celeste, já que “cada um dos signos varia segundo as partes em que está dividido, e distribui suas próprias influências de acordo com as dodecatemorias”.


Manilius justifica a verdade e a importância das dodecatemorias dizendo que:


“[…] o grande construtor do universo as atribuiu aos signos que brilham em igual número, para que estes estivessem reunidos alternativamente, e para que o universo fosse semelhante a si mesmo e todos os signos estivessem em todos, de forma que com sua mistura a concórdia governasse o sistema e houvesse uma proteção recíproca devido ao interesse comum”.


Podemos observar que essas passagens falam da constante combinação e mistura das partes que compõem o todo, e de como isso reflete o fato de o todo estar em suas partes, e da intenção divina que fez com que as partes se inter-relacionassem de forma harmônica, visando a integridade e a harmonia do todo. Ou seja, a validade dos conceitos astrológicos é justificada, mais uma vez, com base na cosmologia estoica.


Nos versos 738-748 do Livro II, Manilius ainda propõe outro tipo de dodecatemoria, mais uma subdivisão dentro dos dois e graus e meio de cada dodecatemoria. Nela, cada meio grau é destinado a cada um dos cinco planetas.


Assim como a ordem impera no universo, ela também está presente no sistema astrológico, cuja precisão reflete a regularidade do movimento do céu e dos planetas, já que constelações, signos e planetas se combinam e se sobrepõem para compor e ditar o destino e os acontecimentos. Essa ideia é bastante visível na forma como Manilius apresenta o tema das cronocratorias, presente no Livro III.


Através do conceito de cronocratoria, Manilius buscou relacionar todas as estruturas de tempo (hora, dia, mês e ano) com o sistema astrológico (constelações, signos e graus), para assim justificar os acontecimentos. Nenhuma fração do tempo, composto pelos ciclos que se relacionam e se combinam, fica “solta”, assim como nenhum acontecimento se dá ao acaso, por mais variados que sejam. Tudo estaria, portanto, ligado ao que pode ser descrito como uma complexa rede de inter-relações cósmicas, conforme ilustra o verso que segue:


“A natureza quis distribuir dessa forma seus anos, seus meses, seus dias e inclusive as horas através dos signos, a fim de que o tempo em sua totalidade estivesse repartido entre todas as constelações e realizasse suas mudanças de acordo com a alternância das mesmas, segundo se desenvolve o turno do signo que volta ao horizonte. Por essa razão há um contraste tão grande nos acontecimentos segundo o passar do tempo, por isso os bens estão misturados com as desgraças, as lágrimas seguem aos êxitos, e a fortuna não é sempre igual para todos […]”.


Abaixo temos um exemplo de como esses diversos tempos cíclicos sobrepostos, e a combinação de sua influência, geram os acontecimentos e governam a vida humana:


“[…] ainda que todas as divisões nasçam de uma origem comum, suas vicissitudes, entretanto, são distintas, já que uns completam seu círculo mais lentamente e outros com maior rapidez. Qualquer hora chega ao signo duas vezes ao dia, um dia ao mês, um só mês ao ano, e um ano depois de doze revoluções solares. É difícil que todos os períodos coincidam no mesmo tempo, de forma que o mês e o ano sejam do mesmo signo; assim acontecerá que quem tenha um ano de signo favorável tenha um mês de signo bastante difícil; se o mês cai em um signo bastante benigno, o signo do dia poderia ser funesto; se a fortuna favorece o dia, a hora poderia ser bastante adversa”.


Essa combinação das frações e períodos de tempo com o sistema astrológico é bastante minuciosa, e entende que todos os instantes são regidos por uma influência específica, que levaria a uma determinada sorte de experiências e acontecimentos. Segundo Manilius, por mais que tudo pareça incerto e caótico, principalmente por aqueles que desconhecem o Logos divino que tudo permeia e orienta, esse sistema composto por diferentes ciclos é ordenado e lógico.


Tudo é tão ordenado, as causas estão de tal forma encadeadas para gerarem os fatos, que até a duração de uma vida (que também está predeterminada) pode ser descoberta; para isso basta apenas dominar os cálculos e o saber adequado para desvelar esse dado:


“E não é suficiente conhecer os anos exatos dos signos para que não escape o cálculo aos que buscam a duração da vida: também os templos e as partes do céu tem seus dons, e outorgam suas próprias quantidades com uma gradação precisa, quando se estabeleceu bem a ordem dos planetas”.


E, logo em seguida, Manilius acrescenta: “[…] quando esse tema ficar bem conhecido não haverá perturbação pela interpolação de elementos de nenhuma parte”.


Ou seja, desvelar os mistérios da natureza é uma questão de domínio da técnica, técnica essa que possibilita a melhor adaptação a um universo ordenado e predeterminado. Porém, sua ordenação e predeterminação se dão em uma rede dinâmica de complexas inter-relações. Por isso também a necessidade de um sistema que compreenda seu funcionamento.


A partir desse raciocínio podemos perceber que dentro dessa concepção de mundo não há acaso nem probabilidade, ou seja, o universo é entendido como um sistema fechado e articulado previamente, que funciona de forma complexa, porém ordenada, respeitando leis fixas entre seus componentes. Se sua lógica é compreendida, domina-se seu funcionamento e é possível prever seus movimentos e os eventos que nele se inscrevem, através da identificação das causas. Esse pressuposto teórico é claramente estoico, e é nele que Manilius se baseia para versar sobre a astrologia, saber que é apresentado, portanto, como um sistema lógico e ordenado, com traços marcadamente determinísticos, onde suas constantes subdivisões estão a serviço do refinamento da técnica e da identificação da combinação de causas que geram os fenômenos e eventos.


No Livro IV há a apresentação de outro conceito, o de decanos, que complementa a complexa rede de inter-relações cósmicas proposta por Manilius. O decano é a divisão de cada signo de 30º em três partes iguais de 10º cada, fazendo com que cada signo contenha em si outros três signos. Segundo as palavras de Manilius:


“Esse sistema desvela a forças ocultas do universo, dividindo o céu em muitas formas e em nomes repetidos e estabelecendo no círculo melhores associações que as habituais”.


Para resumir as minuciosas divisões e relações do sistema astrológico proposto, temos: em um signo de 30º do círculo zodiacal há a subdivisão em três partes de 10º graus, denominada decano, que é sobreposta por outra subdivisão, onde os mesmos 30º são divididos em 12 partes de dois graus e meio cada, denominada dodecatemoria; cada decano e cada dodecatemoria é ocupada por um signo. E os dois graus e meio de cada dodecatemoria, por sua vez, são distribuídos para cada um dos cinco planetas. É uma constante subdivisão, que faz com que um ciclo se componha com outro, e/ou se insira em um maior. Essa sobreposição de subdivisões se repete em cada signo do zodíaco e, todas juntas, dependendo da combinação que formam – decorrente do movimento do céu e dos planetas – interferem na Terra e influenciam a vida dos homens.


“Um signo há de ser buscado em outro, e deve-se prosseguir nas forças associadas; aquele que nasce no decano de qualquer signo recebe suas características, e nasce também sob esse signo. Esse sistema se efetiva através dos decanos. Provas disso são a diversidade de nascimento sob a mesma constelação, o fato de que entre milhares de seres vivos nascidos sob um mesmo signo haja tal diversidade de características como de indivíduos, os que manifestam qualidades estranhas aos signos em que nascem […]. Evidentemente os signos, constituídos por diversas partes, formam associações e suportam leis distintas sob seu próprio nome”.


E, como se não bastasse, há outro sistema de subdivisão: a definição e caracterização dos graus que compõem os signos entre malignos e benignos. Todos esses dados (no caso, um determinado signo, o signo de um de seus decanos e dodecatemorias e, mais precisamente, o grau) compõem as informações sobre um acontecimento ou traços do temperamento de um Homem.


“[…] os graus dos signos mostram diferenças; da mesma forma que um signo varia em relação a outro, também em um mesmo signo há discrepâncias, negando em um momento suas forças e seus efeitos saudáveis […]”.


Outro aspecto interessante, que vale a pena ser ressaltado, é a referência que Manilius faz aos ramos do saber astrológico, como a astrologia geográfica, astrologia etnográfica ou astrologia mundial, e a astrologia médica. No capítulo 1 argumentamos sobre o alcance e o status da astrologia no século I d.C., que se diversificou em ramos que se ocupavam da produção de distintos saberes, a partir da mesma compreensão astrológica do mundo. A Astronomica, obra desenvolvida nos primeiros anos da Era Cristã, ao se valer de alguns desses ramos astrológicos de produção de conhecimento e compreensão dos fenômenos, indica a validade dos argumentos por nós defendidos.


Sobre astrologia geográfica, astrologia etnográfica ou astrologia mundial, Manilius diz que:


“[…] a divindade dividiu o universo em partes, distribuindo-as entre as constelações e atribuindo a proteção particular de cada uma a cada reino da Terra e seus habitantes, ao que se somou às elevadas cidades, onde os signos manifestariam suas poderosas influências. E, da mesma forma que o corpo humano se encontra repartido entre os signos, e na divisão dos membros cada signo corresponde a uma parte […], assim também cada constelação reivindica para si umas terras”.


O interessante é observar como Manilius apresenta esses conhecimentos sob a perspectiva estoica, através da ideia de intencionalidade divina.


A relação de causalidade do céu para com a Terra, fundamental à compreensão astrológica do mundo, justifica as bases da astrologia geográfica, etnográfica ou mundial, na medida em que “[…] as constelações brilham distribuídas por regiões determinadas e impregnam com sua atmosfera os povos que estão abaixo”, determinando não só as características físicas dos lugares, mas das pessoas que neles vivem. A diversidade de línguas, costumes, frutos, climas e animais, que existe nos diferentes lugares da Terra, é desse modo explicada por Manilius nos versos 711-817 do Livro IV.


“Desta forma se encontra dividida a Terra entre todas as constelações, cujas leis hão de ser aplicadas aos territórios por elas dominados, pois mantêm as mesmas relações existentes nos signos e, assim como entre estes há alianças e inimizades, encontrando-se opostos no céu, ou unidos em um triângulo, ou bem com seus sentimentos dirigidos por qualquer outro princípio, da mesma forma umas regiões da Terra se dão bem com outras, umas cidades com outras, enquanto umas costas são inimigas de outras e uns reinos de outros […]”.


Um exemplo da associação entre astrologia e poder, tão marcado na sociedade romana durante o período helenístico, pode ser observado na passagem abaixo selecionada, que é um desdobramento do tema que Manilius vinha abordando, a astrologia geográfica:


“A Itália é governada por Libra, seu signo próprio, sob ele foi fundada Roma e sua soberania sobre o orbe; com a balança mantém Roma o controle da situação, levantando e oprimindo os povos que se encontram em seus pratos; sob ela nasceu o imperador, que fundou uma Roma melhor e governa o mundo, pendente somente de sua vontade”.


Manilius está referindo-se a Tibério, imperador romano que sucedeu a Augusto, cujo signo era Libra. O que é transmitido nesse verso é que a soberania de Roma coincide com a do Imperador, já que os dois, o império e seu governante, estão associados ao mesmo signo; ou seja, ambas soberanias são justificadas e/ou confirmadas pela astrologia.


3. Conclusão


Conforme constatamos ao longo desta análise, Manilius se baseia predominantemente no pensamento estoico para entender o cosmo e para justificar o saber astrológico que, segundo tais concepções, estaria de acordo com seu funcionamento. Mas vimos também que, apesar dos conceitos estoicos serem o eixo do raciocínio de Manilius, há outras influências presentes em alguns momentos da obra.


Reconhecemos que o estoicismo forneceu uma base teórica, filosófica e racional, na qual a astrologia pôde se reconfigurar e assumir traços da cultura grega e helenística, contribuindo, dessa forma, que a compreensão astrológica do mundo se afirmasse e se difundisse no período helenístico. Como já afirmado por inúmeros pesquisadores, a cosmologia estoica justificou de forma muito coerente e convincente a verdade do saber astrológico. Através da associação com o estoicismo, a astrologia, além de incorporada à cultura helenística, podia ser explicada teoricamente.


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Jacques Bergier - Melquisedeque

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