quarta-feira, 6 de maio de 2020

Caoísmo e Magia do Caos


Ao longo dos Aeons, o ser humano tem tentado entender as leis que regem o funcionamento do universo. O próprio universo não torna as coisas mais fáceis, uma vez que está sempre à vista, nos mostrando comportamentos que em um primeiro momento parecem inexplicáveis, e não nos mostrando comportamentos que a teoria diz que deveriam ocorrer. De fato, a maioria das visões de mundo acredita que vivemos em um teatro, tendo acesso somente às imagens que passam pelo véu, enquanto por trás dos panos, nos bastidores, o universo “real” se desdobra e acontece.
Do universo, temos acesso apenas ao que vem até nós codificado por meio dos sentidos. Instrumentos podem ajudar a ampliar a abrangência, mas somente até onde permite o nosso nível tecnológico. Quando tentamos fazer o caminho inverso e explicar algo que estamos pensando, precisamos também de alguma forma de codificar este conteúdo, por meio de linguagem — corporal, gestual, falada, escrita, simbólica.

O Platonismo
Platão explica esta teoria usando a alegoria da Caverna. Nós, seres humanos, estaríamos em uma caverna, tendo acesso somente às sombras projetadas na parede. Alguns, é claro, tentam sair da caverna e ter acesso às coisas verdadeiras que estão formando aquelas sombras. Porém, ao tentarem explicar o que viram para seus companheiros, estas pessoas são taxadas como loucas.
Na teoria geral de Platão, existiria um mundo das ideias, onde ficariam os pensamentos das coisas. Neste mundo, tudo é perfeito, e cada elemento tem seus aspectos ideais. Por exemplo, um cavalo no mundo das ideias seria um cavalo ideal, um molde perfeito de como todo cavalo deve ser.
Por outro lado, existiria um mundo material, o mundo em que vivemos. Ao ser manifestada no mundo material, uma ideia perde parte de sua perfeição, e temos então um cavalo normal. O cavalo real possui imperfeições, machucados, leves deformações, e por mais perfeito que seja nunca será totalmente igual a um cavalo ideal.

Gnosticismo
O Gnosticismo, que é o nome coletivo dado a várias correntes, tem um pensamento similar ao Platônico. Considera que o universo inicialmente estava disperso na forma de uma mônada, um conjunto de todos os conteúdos que viriam a existir, porém estes se encontravam disformes e latentes. A partir da mônada, um Demiurgo ou Arquiteto teria criado o universo material, aprisionando faíscas de conhecimento, ou almas, dentro de formas físicas minerais, vegetais, animais e humanas.
Haveria, então, uma forma de se desprender — de forma temporária ou mesmo permanente — da forma física, para ter um vislumbre do que ocorre por trás do mundo, na mônada. Esta forma de obter conhecimento sobre as leis da realidade se chama Gnose, um estado onde um ser humano consegue se desdobrar do plano físico para ter acesso a conhecimentos sobre o âmago das coisas. Não somente sobre os elementos do mundo em si, mas sobre a faísca que habita nos elementos.

Psicanálise Junguiana
Na teoria de Jung, o funcionamento da mente ocorre com base em regras gerais, que são trazidas a manifestações específicas de acordo com a vivência de cada pessoa. No inconsciente, haveria um conjunto de símbolos — alguns inatos, provenientes do inconsciente coletivo, e alguns adquiridos, provenientes do inconsciente individual. Por sua vez, o consciente seria a parte da psiquê à qual temos acesso, e esta parte tem o poder de buscar conteúdos no inconsciente, porém acessando apenas uma parte dele de cada vez.
Os símbolos de mais alto nível contidos no inconsciente seriam os arquétipos. Estes não podem ser explicados completamente pela linguagem, mas podem ser classificados e explicados de um ponto de vista por vez. Dentre os principais arquétipos, destacam-se o Maná (que pode ser uma pessoa sábia e idosa), o Herói (que pode ser uma pessoa passando por uma jornada para adquirir maturidade), o Trickster (que pode ser uma pessoa que consegue seus objetivos enganando os outros), o Red Horn (que pode ser uma pessoa valente e determinada), os Twins (que pode ser uma pessoa equilibrada e completa), entre outros.
Com um nível um pouco menor — ou seja, com maior especificidade -, teríamos as imagens arquetípicas. Estas seriam formas pelas quais os arquétipos poderiam se manifestar em sonhos ou na vida de uma pessoa. O Maná, por exemplo, pode se manifestar na forma de um bruxo ancião e sábio, que fornece conhecimento, ou então na forma de um eremita que vive meditando no alto das montanhas.
No mais baixo nível, as imagens arquetípicas se manifestam como entidades, pessoas, personagens ou manifestações, que são uma roupagem específica adquirida pela imagem arquetípica no mundo, ou no sonho. No caso do bruxo ancião e sábio, podemos ter Gandalf, Merlin, ou Dumbledore, por exemplo.
A estrutura Junguiana permite que diversas manifestações compartilhem a mesma imagem arquetípica, e que diversas imagens arquetípicas compartilhem o mesmo arquétipo. Os arquétipos podem ainda, se sobrepor e se tangenciar, formando uma teia de significações que deve ser entendida para se alcançar o âmago do funcionamento da Mente.

Caoísmo
Os princípios do Caoísmo se assemelham muito aos do Platonismo, do Gnosticismo, da psicanálise Junguiana, entre outras filosofias. O Caoísmo considera que existe — e sempre existiu — um plano disforme e que contém tudo em sua forma latente, chamado Caos. Este seria o universo “real”, a partir do qual são formados um ou mais universos físicos, estes feitos de matéria e energia comuns. Porém, no Caos, as informações são armazenadas de uma forma extremamente complexa, e as ideias possuem conexões entre si, compartilhando aspectos e se opondo em outros. Quando estas ideias são manifestadas no mundo, ou precisam ser explicadas por alguém que teve acesso a elas, decaem para apenas uma das formas possíveis.
Esta consideração tem consequências importantes. Uma delas, já verificada pela física quântica, é a de que partículas podem ter mais de uma natureza, mas ao serem medidas ou observadas só podem se apresentar de uma forma. Este é o caso do gato de Schröedinger, que está vivo E morto até que se abra a caixa, quando então só poderá estar vivo OU morto. Também é o caso do elétron, que se encontra em uma sobreposição de naturezas particular e ondular, mas que se apresenta como partícula ou onda dependendo da situação.
Outra consequência seria a de que diferentes panteões de deuses no fundo desejam exprimir as mesmas ideias, adotando apenas subdivisões diferentes. Os diversos deuses da tempestade de fato possuem características comuns, e isso é intrínseco aos aspectos relacionados com as tempestades. Da mesma forma, não há muita diferença funcional, embora haja alguma diferença formal, em se dizer que acredita em vários deuses, ou em um deus com várias facetas.
Desta forma, o Caoísmo tem como foco as funções, os objetivos, e as ideias primordiais por trás de cada elemento, não se prendendo na forma de apresentação dos conceitos, ou nos nomes e mecanismos formais estabelecidos. Qualquer linguagem seria válida para explicar o que está por trás dos panos, sendo esta linguagem milenar e já criada por alguma cultura, ou uma linguagem totalmente nova criada por uma pessoa. O que importa é que esta linguagem atenda aos objetivos desejados.

Magia do Caos
A Magia do Caos descende diretamente do Caoísmo, e é sua aplicação no campo mágico. Nesta vertente mágica, estudam-se as estruturas gerais e as classificações globais dos elementos de magia, para isto muitas vezes utilizando termos de sistemas mágicos já existentes, ou criando-se novos termos para evitar a confusão com elementos já consagrados.
O foco é o objetivo, e não importa qual a metodologia utilizada na prática mágica, qual o conjunto de símbolos utilizado, ou qual mecanismo explica o funcionamento do método.
A Magia do Caos teve sua formulação realizada principalmente por Peter J. Carroll com base em trabalhos de Austin O. Spare e da Golden Dawn, e tem como principais obras de referência o Liber Null e o Psiconauta. Há ainda o Livro dos Resultados, de Ray Sherwin, que apresenta uma abordagem mais prática dos conceitos, e os livros PsyberMagick, de Peter J. Carroll, e Chaotopia, de David Lee, que derivam considerações mais avançadas a partir dos princípios da Magia do Caos.
Várias outras vertentes mágicas bebem das mesmas fontes que a Magia do Caos, como é o caso do Discordianismo e da Thelema de Crowley. Estas fontes, por sua vez, foram agrupadas, consolidadas e estudadas por cada um dos diferentes membros da Golden Dawn, que publicaram tratados sobre a utilização de cada sistema mágico, recuperaram informações valiosas há muito perdidas nas areias do tempo, e traçaram correlações que permitiram o uso conjunto de mais de um sistema.

Alguns dos elementos importantes nas práticas da Magia do Caos são:

Gnose
A Gnose é a prática de se alcançar o estágio de libertação temporária em relação ao corpo físico, e que permite vislumbrar o âmago das energias, o que há por trás dos panos. É similar à projeção astral, ou ao desdobramento do plano etérico, e pode ser alcançado de diferentes formas, como por inibição ou hiper-excitação dos sentidos.

Sigilo
Um sigilo (selo, do latim sigilum) consiste na codificação de uma intenção na forma de um desenho, símbolo ou figura. Pode ainda ser uma frase, porém geralmente se aplica a elementos pictóricos. No caso dos hiper-sigilos, pode ainda ser algo mais complexo, construído e alimentado por maior tempo em relação aos sigilos simples, como uma música, um livro, uma obra civil ou um pseudônimo.

Servidor
Servidores são, de forma geral, entidades animadas que adquirem existência com base em um sigilo, uma intenção, uma ideia ou um elemento. Podem ter forma humanoide ou não, e podem ser criados pelo magista para realizar suas intenções.

Meta-Sistema
Tecnicamente, a Magia do Caos não se trata apenas de um sistema mágico, e sim de um meta-sistema. Assim como o Caoísmo permite conciliar sistemas de funcionamento do universo, considerando que todos tratam-se de diferentes formas de se explicar a mesma coisa, a Magia do Caos concilia Sistemas Mágicos, considerando que todos são válidos a partir do momento que apresentam resultados.
Em adição ao uso de qualquer sistema existente, o Caoísmo e a Magia do Caos permitem a qualquer magista criar seu próprio conjunto de símbolos, sua própria teoria de funcionamento do Cosmos, e seu próprio método mágico, usando também elementos já existentes. O foco, como já mencionado, é o resultado final.
Se a magia ocorre apenas de forma psicológica, ou se ocorre mediante fluxos de energias tão sutis que ainda não somos capazes de medir, não importa. Pois, se por trás dos panos tudo é Caos, qualquer prática é válida desde que haja resultados.